quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P19048: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 66 e 67: "mas porque é que esta rapariga não arranjou outro rapaz nestes meses todos e está à espera daquele bandalho?"


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > O 1º cabo cond auto José Claudino da Silva, no início da comissão.


Foto: © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Cortesia do autor,  página do Facebook.
1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome daPátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita, com a esposa Amélia, no dia em que fazem 43 anos de casados] (*):

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje: que o digam mais de 150 mil portugueses!), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade no âmbito do programa Novas Oportunidades; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.


2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré; o dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(v) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas da companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vi) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(vii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe"; a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(viii) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(ix) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogramas por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(x) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xi) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xii) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xiii) começa a colaborar no jornal da unidade, os "Serrotes" (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xiv) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xv) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não... no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda; manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada; em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xvi) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas; em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xvi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas; o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;

(xvii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia (obus 14); e o autor faz 23 anos em 19 de maio de 1973; a 21, sai para Bissau, para ir de férias à Metrópole; um grupo de 10 camaradas alugam uma avioneta, civil, que fica por um conto e oitocentos escudos [equivalente hoje a 375,20 €];

(xviii) considerações sobre o clima, as chuvas; em 19/5/1973, faz 23 anos... e vem de férias à Metrópole, com regresso marcado para o início de julho de 1973: regista com agrado o facto de o pai, biológico, ter trazido a sua tia e a sua avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem dele;

(xix) vê, pela primeira vez, enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente da guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio; manda um texto para o jornal "O Século" que decide fazer circular pelo quartel e onde apela a uma maior união do pessoal da companhia, com críticas implícitas ao capitão Serrote por quem não morre de amores: na sequência disso, sente-se "perseguido" pelo seu comandante...

(xx) vai de baixa médica para Bissau, mas não tem lugar no HM 241; passa o Natal de 73 e o Ano Novo de 1974 nos Adidos; conhece a "boite" Chez Toi onde vê atuar alguns elementos do grupo musical Pop Five Music Incoporated, a cumprir o serviço militar na Guiné;

(xxi) grande ataque, em 7/1/1974, ao quartel e tabanca de Fulacunda com canhões s/r, resultando danos materiais, feridos entre os militares e a população e a morte de uma criança.

(xxii) faltam 5 meses para acabar a comissão... e há mais uma "crise" nas relações com a namorada...


3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 66 e 67

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


66º Capítulo > ERAS TU

A maior de todas as coisas que aprendi, entre as muitas coisas que a vida me ensinou na Guiné e, principalmente, dentro daquela prisão, talvez tenha sido “perdoar”. Quem me conhece não consegue entender como, com tão pouco, tenho tanto. Aos 67 anos de idade, não tenho a mais pequena dúvida em afirmar que quem aturou uma raiva da minha parte,  sabe que alguns minutos depois já estava arrependido de a ter. Infelizmente, não agradei a todos e dói-me ter entre as pessoas a quem não agrado algumas das mais importantes da minha vida. É por elas que a frase na minha página do facebook diz: “Por vós, lamento imenso não ter a imagem que querem que eu tenha”.

Apenas de duas pessoas, nestes anos que levo de vida, me recordo de algo de mal que me fizeram; de todos os outros, se os houve, não me lembro. É assim com a minha Pátria. Não tenho qualquer rancor ao meu país pelo que me fez. A dor transformou-me num sobrevivente. Ninguém me derrotou, apenas perdi pequenas batalhas.

As cartas que li ou reli nestes últimos dias, e que quero divulgar para quem tenha a curiosidade ou a paciência de conhecer o que nelas está vertido, embora escritas num tempo já longínquo, mostram que mesmo no meu pior, tenho de me sentir bem.

Ainda me faltam ler algumas dezenas de cartas e aerogramas para terminar esta tarefa. Não sei o que vou encontrar, nem sei se terei surpresas agradáveis ou desagradáveis, mas sei que tenho aqui, na minha mão, um texto que foi escrito para a mulher da minha vida e que mais uma vez afirmo: sem ela, este livro não podia ser editado. A do dia 21 de Janeiro de 1974 foi dirigida à minha namorada; hoje é… para a minha mulher e para todas as mulheres do mundo.

Sim eras tu!
Com teus cabelos castanhos!...
Com os teus olhos castanhos
Brilhando como o luar.
Foste tu com o teu caminhar, silencioso, ondulante!...
Foste tu com o teu sorriso provocante!...
Foste tu com o teu vestido esvoaçando ao vento
Eras tu surgindo em cima de uma onda que se aproximava
Eras tu fazendo vibrar em meu espírito um sentimento profundo
Eras tu! – AMOR
Oh! Eras tu sim! Conseguindo com tuas palavras provocantes, com teus sorrisos aliciantes, a minha inteira admiração.
Foste tu, sim! Que me fizeste homem 

Foste tu que me fizeste sofrer
Mas foste tu que me ofereces-te a alegria
Mas foste tu quem me ofereceu o que sem ti jamais iria encontrar
A FELICIDADE



67º Capítulo > SERÁ QUE ELE NÃO MUDOU MUITO?


Se o capítulo anterior encerra um certo romantismo, e como quero cumprir com o máximo rigor a sequência da minha vida em nome da pátria, como está datada, previno os mais descuidados de que está a chegar uma altura muito má para os mancebos enamorados, que ainda resistem aos muitos meses de separação, a começar por mim. Querem ver?

“Disseste-me há dias que a tua mãe está farta de discutir contigo e te ver perder tempo a escrever-me, e o teu irmão também, vou dizer-te o que penso.

Faltam-me mais ou menos cinco meses para acabar a comissão e regressar à Metrópole o que significa que há dezanove meses que esperas por mim. Tenho a certeza que conhecendo a tua mãe e embora tu negues, sei que ela não gosta de mim, neste momento deve pensar. Por que é que esta rapariga não arranjou outro rapaz nestes meses todos e está à espera daquele bandalho? Se calhar aquele merdas chega aqui e nem passa mais cartão à minha filha”.


Acreditem que o que escrevi naquele tempo correspondia à realidade. Muitas raparigas passaram um mau bocado por terem esperado os namorados. Alguns, no seu regresso, trocaram-nas por outras e estas ainda eram desdenhadas por outros rapazes. A miséria do ser humano expressa-se das diversas maneiras. E esse foi, indiscutivelmente, também um dos danos colaterais da guerra colonial. Mesmo com alguns que cumpriram a sua palavra, muitos dos casamentos pouco duraram, coisa que, se agora é banal, há uns anos atrás não era.

Já o disse quase no início deste livro que pouco e pouco fui diminuindo a intensidade dos contactos com familiares e amigos, como vos falei das várias crianças mulatas que vivem nas tabancas. Com que cara um soldado enfrentava a namorada que o esperou dois anos dizendo-lhe:
-Olha! Tenho um filho duma negra na Guiné?

Sabem que mais? Vocês estão-se nas tintas porque não se viram nelas, mas as futuras sogras tinham muita razão em ficar apreensivas.

Tinham tanta razão que no dia 5 de Fevereiro de 1974, dentro duma carta, devolvi um aerograma que tinha recebido.

“Se achas que a tua mãe e o teu irmão têm razão fica com eles. Devolvo-te esse aéro ridículo que não quero ver mais. Só porque disse, o que acho que a tua mãe pensa, já sou eu que penso isso e chego aí não te passo cartão e ponho-me a andar.

Vê bem a data do aéro, demorou 14 dias a chegar aqui, se esta carta demorar o mesmo tempo, vai chegar aí no dia 28, mais 14 dias da tua resposta, e assim sucessivamente tão cedo não me entendo contigo, talvez até chegue aí antes de nos entendermos. Por isso se não confias em mim, segue os conselhinhos da mãezinha e do irmãozinho e não esperes. Tens rapazes aos pontapés, já agora eu é que te dou um conselho. Arranja um que não venha para aqui.
Sinto que o teu amor por mim é que acabou, se assim é diz-me”.

Oh que caramba! desculpem lá. No aerograma seguinte, a Amélia voltava a jurar-me o seu amor e escrevi-lhe logo a dizer que aceitava.

Estão para aí todos a pensar: este tipo é um idiota chapado. Concordo plenamente convosco. Avisei-vos que a minha guerra não tem nada a ver com as outras guerras que vos contaram. Nas reuniões de ex-combatentes só ouço falar de mortes, corpos cortados à catanada, cabeças penduradas nas árvores e, principalmente, muitas fodas dadas nas pretas e barris de cerveja. Eu não posso dizer isso porque poucas mulheres havia onde estive e barris de cerveja, pelo menos no quartel, nunca vi nenhum.

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Nota do editor:

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"Nas reuniões de ex-combatentes só ouço falar de mortes, corpos cortados à catanada, cabeças penduradas nas árvores e, principalmente, muitas fodas dadas nas pretas e barris de cerveja"...

Dino, não é essa a minha "experiência"... Há heróis e heróis, há fanfarrões e fanfarrões... Muitas vezes esses "heróis e fanfarrões" foram "podres diabos", "básicos", que nunca fizeram uma operação no mato, nunca apanharam uma emboscada, uma mina, um ataque ao quartel daqueles de um gajo enfiar os cornos nas valas ...

É preciso ter cuidado com o que se escreve: houve coisas, na guerra, que não nos honram, enquanto portugueses, enquanto militares, enquanto homens.... Mas delas, nos nossos encontros, é raro falar-se e, quando se fala, é com algum pudor, sem farronca, com compaixão e com tristeza por "excessos" cometidos por camaradas nossos, muitas vezes "fora de controlo", e nomeadamente antes do "consulado de Spínola"...

Cinquenta anos depois, mesmo esses "segredos" não devem ser levados para o caixaõ... O nosso blogue também pode e deve funcionar com o "confessionário" do padre ou o "divã" do psicanalista...

Um alfabravo do Luís Graça (a caminho das vindimas na Quinta de Candoz)