quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P19049: Historiografia da presença portuguesa em África (132): Relatório de um alto funcionário maltratado na Revolução Triunfante, 1931 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Parecia que estava tudo escrito e dito sobre os acontecimentos da revolta de 1931, ninguém ignora que houve uma certa recetividade, rendidos os revolucionários da Madeira, era certo e seguro que os da Guiné iriam pelo mesmo destino. Os elementos da Junta Governativa saíram da Guiné, seriam quase todos severamente punidos, o Estado Novo fazia-se impor e não condescendia aos democratas.
Esta peça que faz parte do acervo dos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa tem o seu encanto e alguém propõe como assunto o seu quase fuzilamento… Ele, que nada tinha a ver com aquela aventura, vinha, com as necessárias mesuras burocráticas, explicar-se convenientemente ao Sr. Governador interino, Soares Zilhão.
Para que conste.

Um abraço do
Mário


Relatório de um alto funcionário maltratado na Revolução Triunfante, 1931

Beja Santos

Não se pode dizer que o assunto do relatório não tenha um título exuberante: Relatório feito pelo Director dos Serviços e Negócios Indígenas, Dr. José Peixoto Ponces de Carvalho, entregue ao Governador nomeado pelo Poder Central, Sr. Coronel João Soares Zilhão, referindo-se à ocorrência, e do qual constam os maus tratos sofridos a quem foi submetido pelos revoltosos, a ponto de, mercê da intervenção de um amigo – revoltoso também – escapou milagrosamente de ser fuzilado, chegou a ser encostado a um muro. É um delicioso relatório constante do acervo dos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa. O texto não é integral, julga-se, no entanto, que guarda o essencial:

“Exmo. Sr. Governador da Colónia da Guiné
Foi às 3,30 horas do dia 17 do passado mês de Abril que os tiros que iniciaram a revolução me despertaram. Mandei chamar o 1.º Oficial desta Direcção, António Pereira Cardoso. Demorado a comparecer, enviei novo recado. Pela resposta soube ter sido preso. Ao amanhecer soube mais: aquele funcionário fora violentamente espancado, bem como o Amanuense Mário Augusto de Serpa Rosa, detido, como o primeiro, no Armazém da Alfândega.

Já dia claro: nas ruas inúmeros civis – deportados, cadastrados e alguns espontâneos – passam armados. Depois, camionetas com metralhadoras, civis, cabos e sargentos.
É neste ambiente que à hora regulamentar me dirijo para o serviço. Ao entrar, um revolucionário deportado mostra-me uma intimação da chamada Junta Governativa, mandando comparecer na Repartição Militar os Magistrados Judiciais e do Ministério Público, Chefes de Serviço e de Repartição.

Na secretaria, todos os funcionários, com excepção dos referidos presos, trabalham nas suas mesas. Às 12 horas, apresentei-me na Repartição Militar, onde, com todos os intimados, assinei o compromisso de acatamento às ordens da Junta, repetindo o juramento feito quando tomei posse do meu cargo. Por duas razões o fiz: a convicção de que não cometia qualquer infracção; a certeza de que à recusa do acatamento corresponderia a da minha imediata prisão, o que necessariamente contribuiria para a desordem dos serviços e desprestígio de um alto funcionário, cujo cargo, para ser útil e eficaz, tanto cumpre fazer respeitar pelo elemento nativo.
O signatário, porque muito preza a verdade – contra a qual os interesses do seu amor-próprio não podem prevalecer – não quer omitir a hipótese de que a perspectiva de inúteis incómodos físicos e morais muito tivesse contribuído para a sua prudente resolução…

Em suplemento ao número 16 do ‘Boletim Oficial’ foi publicado um ‘convite’ a todos os funcionários e entidades oficiais para assistirem à posse do Governador Interino nomeado por ‘Resolução da Junta Governativa da Guiné’. Todos os funcionários compareceram, assinando o respectivo ‘termo de posse’. Nenhum outro contacto houve entre os funcionários da Direcção dos Serviços e Negócios Indígenas e a revolução. Dentro da quase completa estagnação que os acontecimentos provocaram, não se verificou a mais pequena solução de continuidade na pontualidade e compostura dos funcionários que aqui trabalham.
Durante o período revolucionário, nenhum diploma ou portaria foram publicados sobre a proposta, sugestão ou parecer desta Direcção.

Tendo exposto a V. Ex.ª. o comportamento e a atitude dos funcionários e a maneira como decorreram os serviços desta Direcção, durante o período revolucionário creio ter cumprido o que por V. Ex.ª foi determinado, 
15 de maio de 1935,
 José Peixoto Ponces de Carvalho”.



____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19028: Historiografia da presença portuguesa em África (130): Relatório do Comando Militar do Oio, nascia o ano de 1915 (3) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: