Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 28 de outubro de 2019
Guiné 61/74 - P20284: Notas de leitura (1231): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (3) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Agosto de 2019:
Queridos amigos,
A comissão de Eduardo começa em Quipedro e tem o seu término em Barraca. O imprevisto de toda esta narrativa é, como se observou anteriormente, haver uma descrição oficinal a ritmo moderado, o que começa por se contar parece um fotomaton que cabe no currículo de muitos de nós, e de chofre, depois de uma estadia em Quipedro, numa tensão habitual de guerrilha, chega-se ao Leste e é uma autêntica descida aos infernos, daí não hesitar em dizer que nada de mais explosivo se escreveu sobre os horrores da nossa última guerra em África.
E termina-se com uma citação um tanto cabalística do autor na apresentação do seu livro:
"Um forte sentimento de culpa, aliado a laços de camaradagem e de cumplicidade, tem levado os ex-combatentes ainda vivos a silenciarem acontecimentos dramáticos que protagonizaram de modo ativo ou passivo. Esse é um dos grandes óbices a que se escreva a verdadeira história da guerra colonial".
Um abraço do
Mário
Uma das mais explosivas obras da literatura da guerra colonial: “O Alferes Eduardo”, por Fernando Fradinho Lopes (3)
Beja Santos
A obra “O Alferes Eduardo”, por Fernando Fradinho Lopes, Círculo de Leitores, 2000, centrada em acontecimentos ocorridos na guerra de Angola, é um documento com imenso significado. A roda da fortuna lançou um jovem alferes em Quipedro, no Norte, tudo parece levar a crer que é uma guerra de guerrilhas que opõe as forças portuguesas e as surtidas rebeldes, é certo que há população afetada, mas muitíssimo menos grave do que ele vai presenciar no Leste.
Ele escreve em 17 de setembro de 1967, no Alto Cuíto:
“O Alto Cuíto era um simples morro que dominava uma extensa chana onde corria o rio Cuíto, de águas cristalinas. Dentro do espaço protegido por arame farpado, no topo da colina, existiam improvisadas barracas de madeira para utilização da tropa. Contrastavam com a confortável casa de alvenaria do Administrador de Posto.
O Administrador Raposo tinha sob as suas ordens cerca de duas dúzias de milícias mal vestidas e de pés descalços, armadas de velhas espingardas de repetição. Mantinham a sua própria segurança, com um sentinela permanente num torreão de madeira.
Sendo aquela uma zona de guerra, onde as populações haviam abandonado as suas sanzalas e passado para o controlo da UNITA ou do MPLA, não fazia sentido continuar a existir no Alto Cuíto uma autoridade administrativa, pensava o Alferes. Mas o certo é que o Raposo mantinha-se no seu posto como se tivesse sido esquecido pelos seus superiores hierárquicos ou como se estes ignorassem a situação de guerra no terreno.
O administrador convidou o alferes a deslocar-se à secretaria do seu posto administrativo, para participar num interrogatório de negros suspeitos de ligações com a UNITA.
O primeiro detido, ao ser perguntado sobre a localização dos guerrilheiros, nada disse. Os cassetetes dos dois sipaios de serviço funcionaram então implacavelmente, tal como as mãos e os pés do administrador. O interrogado rebolou no chão como se de um objecto qualquer se tratasse.
O segundo detido enfrentou o Raposo com uma aparente serenidade. Também parecia mostrar-se decidido a não declarar nada. E nem sequer reagia às violentas pancadas que um dos sipaios lhe infligia. Poucos saíam dali vivos”.
Mais tarde, o alferes avistou duas vítimas no chão, uma delas com um lago de sangue à sua volta. À noite, os milícias deitaram os corpos num rio.
E comenta-se:
“No Leste, a vida dos adversários ou dos meros suspeitos não tinha significado algum para cada uma das partes do conflito. Assassinava-se a sangue frio, sem dó nem piedade, por tudo e por nada”.
A tropa de Eduardo dá proteção à Junta Autónoma das Estradas, prepara-se uma ponte numa área de intervenção do MPLA, protegem-se serrações de madeiras a 75 e a 95 quilómetros do Alto Cuíto. Ocorrem emboscadas, morre o 1.º Cabo Costa, vítima de uma emboscada próximo da serração do Nhonga. Faz a contabilidade, com apenas um terço da comissão tinham sido feridos e mortos em combate nove soldados. O contexto do terrífico e do horror não abranda.
Ele escreve a 26 de outubro:
“De manhã saiu, em missão de patrulhamento, uma secção comandada pelo Furriel Marta. Ao cruzar-se com dois negros desarmados, deteve-os e não tardou a eliminá-los, utilizando um processo cruel. Amarrou-os um ao outro, costas com costas. Depois colocou uma granada defensiva despoletada entre os corpos e afastou-se. À distância, gozou o espectáculo macabro dos dois condenados a serem despedaçados pelos estilhaços do engenho explosivo”.
Sucedem-se os patrulhamentos, numa sanzala controlada pela UNITA, os habitantes mostravam-se aterrorizados, nada lhes aconteceu. No regresso de um outro patrulhamento, já perto do Alto Cuíto, “viu o jipe do administrador carregado com cinco negros de mãos atadas atrás das costas, escoltados por sipaios. Não duvidou do destino que os desgraçados teriam mais tarde”.
Os interrogatórios em casa do administrador Raposo não param, Eduardo está enojado, pensou mesmo em prendê-lo mas temeu as consequências. Termina as observações desse dia escrevendo:
“O morro do Alto Cuíto era um barril de pólvora que mais tarde ou mais cedo teria de explodir”.
Prossegue a atividade operacional, a guerrilha estende-se como mancha de azeite. Os acidentes também não param, caso de um soldado que caiu numa armadilha e ficou espetado num pau aguçado, que lhe entrou na virilha e avançou até perto do pescoço.
Eduardo regressa a Munhango, tinham sido distribuídas armas a uns tantos homens numa sanzala próxima, esses homens passaram-se com armas e bagagens para a UNITA. Já estamos em 1968, os patrulhamentos não abrandam. O relacionamento entre Eduardo e outro alferes é cada vez mais tenso, e o relacionamento com o Capitão Francisco já teve melhores dias. O alferes volta a Cangonga, vem com a missão de penetrar em zonas “libertadas” e surpreender gentes da UNITA, os resultados são magros.
Descreve a 29 de janeiro:
“Verificou que as sanzalas, tempos antes habitadas, iam sendo progressivamente abandonadas pelas populações, entaladas entre as pressões da UNITA e as das tropas portuguesas. Quando se aproximou para cumprimentá-lo, o Sr. Vilaça, madeireiro em Cangonga, insinuou de modo crítico que o alferes era excessivamente brando para com os negros. Defendia que deveria, no mínimo, ser tão duro como o seu antecessor Barradas. A população branca que ainda permanecia no Leste exigia sangue. Queria acções de represália contra os suspeitos. E por ali toda a gente negra era suspeita. Muitos acreditavam que aquela guerra só poderia resolver-se com o terror do branco contra o terror do negro".
Este jogo do gato e do rato com a UNITA, o convite a que as populações se apresentassem frutifica, vão-se apresentando pessoas num pinga a pinga que vai aumentando, vão ser necessárias obras de construção para albergar alguns daqueles que haviam participado em atos cruéis de terrorismo. Melhoram as relações entre os oficiais da companhia, o sofrimento das populações é inesgotável, os episódios de horror repetem-se, como se exemplifica:
“Sentado junto de uma tenda de campanha, vi um negro cambaleante e esfarrapado aproximar-se da porta de armas do quartel de Munhango. Desatou o cordão que trazia amarrado à cabeça e o maxilar inferior caiu-lhe de imediato, deixando-lhe a boca escancarada.
Segurou o queixo com uma das mãos e, quase imperceptivelmente, foi balbuciando o seu drama.
Residia na sanzala de Magimbo quando uma bala lhe destroçou a face. Refugiara-se na floresta, receoso de ser apanhado pela tropa ou pela UNITA. Mas a fome e o medo acabaram por obrigá-lo a apresentar-se às autoridades portuguesas. Ali estava ele em busca de paz e de alimento”.
Os episódios sangrentos avantajam-se, houvera uma emboscada e a tropa reagiu, dois grupos de combate foram tentar a sua captura e fazer justiça.
E repete-se o horror:
“O jovem oficial levava consigo farinha e peixe, a servir de isco. Era um artifício destinado a incutir nos aldeões a ideia de amistosidade. As pessoas, embora desconfiadas inicialmente, quando viram a comida aproximaram-se, na expectativa de alcançarem a sua quota-parte.
Depois dos habitantes estarem reunidos, apareceu o guia denunciante, incumbido de identificar os elementos hostis. Foi nesse momento que compreenderam a intenção da tropa. Assustadas, procuraram fugir em todas as direcções. Eram centenas de negros em fuga precipitada. O alferes não hesitou. Ordenou aos militares que atirassem impiedosamente. Homens, mulheres e crianças tombavam como animais no matadouro”.
Em março, a CCAÇ 1638 viaja para Barraca, um lugar situado a cerca de cem quilómetros a sudeste da capital, junto da estrada que ligava Luanda ao Dondo. A corrente de alta voltagem que se vivera na região Leste vai-se diluindo, regressa-se ao trivial, às situações corriqueiras, fazem-se férias e em fevereiro de 1969 retoma-se a viagem para Luanda, é o regresso.
“Quando chegou à Covilhã, olhou o recorte noturno da montanha sob o céu escuro. A mesma que via desde a sua infância. Os pais acharam-no pouco falador, muito menos do que outrora. Nunca fora expansivo. Mas parecia-lhes claro que ele não desejava falar sobre a sua vivência em Angola. Antes de deitar-se tomou um Vesparax completo. E adormeceu. Não ouviu nem sentiu o forte tremor de terra dessa noite de 27 para 28 de fevereiro de 1969. O maior das últimas décadas em Portugal”.
E assim se chega ao termo de uma obra avassaladora, onde as descrições no Leste de Angola atingem o pico do horror, do medo, da existência sem sentido, como se sobreviver fosse o santo-e-senha.
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Notas do editor
Vd. postes de:
14 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20238: Notas de leitura (1226): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (1) (Mário Beja Santos)
e
21 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20263: Notas de leitura (1228): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (2) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 26 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20276: Notas de leitura (1230): "Retalhos das memórias de um ex-combatente", de Ângelo Ribau Teixeira (1937-2012): excerto do capítulo 11, "Mina na Companhia 305", evocação, pungente, da morte do cap inf Oscar Fernando Monteiro Lopes, vítima de mina A/C, na estrada Buela-Pangala, Norte de Angola, em 10/7/1962
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17 comentários:
Mário Beja Santos, na via do hoje "politicamente correcto" brinda-nos com as suas rescensões sobre a a "guerra colonial" agora em Angola e Moçambique. A Guiné não chegava.Ainda há de escrever sobre o tempo do Paiva Couceiro e do Gungunhana, e do Afonso de Albuquerque, na Índia. Nós todos, militares portugueses, é só matar, matar, matar. Claro que era uma guerra, feia, suja, injusta como todas as guerras. Mas porquê, para quê este gosto de nos vitimizar-mos, de darmos tiros no inimigo e na nossa própria alma? Qual o legado que deixamos aos nossos filhos e aos nossos netos, nós, combatentes, "uns reles criminosos."
Para onde vai este blogue?
Abraço,
António Graça de Abreu
Sobre o autor, Fernando Fradinho Lopes, natural da Covilhã. advogado e ex-deputado, pelo Círculo de Castelo Branco, Assembleia da República, na 3ªlegislatura, 1983/85.
Incorporado no Regimento de Infantaria 5 (RI5 - Caldas da Rainha) como soldado-cadete n/m 09465364 do Curso de Sargentos Milicianos, é transferido para o Curso de Oficiais Milicianos e colocado na Escola Prática de Artilharia (EPA - Vendas Novas).
Em 3 de Abril de 1966 promovido a aspirante-a-oficial miliciano atirador de artilharia e colocado no Regimento de Artilharia Pesada 3 (RAP3 - Figueira da Foz);
Em 21 de Janeiro de 1967, tendo sido mobilizado pelo Regimento de Infantaria 2 (RI2 - Abrantes) para servir Portugal na Província Ultramarina de Angola, embarca em Lisboa no NTT 'Vera Cruz' rumo ao porto de Luanda, integrado no Batalhão de Caçadores 1901 (BCac1901) como comandante de pelotão da Companhia de Caçadores 1638 (CCac1638);
Em 23 de Novembro de 1968 agraciado com a Medalha de Mérito Militar de 3ª classe;
Em 18 de Fevereiro de 1969 inicia a torna-viagem a bordo do 'Vera Cruz' e em 27 de Fevereiro de 1969 desembarca em Lisboa.
http://ultramar.terraweb.biz/06livros_FernandoFradinhoLopes.htm
Meu caro Luís
Esqueceste-te de indicar o PS, Partido Socialista, como o aconchego e o conforto político do ex-deputado. Está no seu pleníssimo direito. Naturalmente, hoje em dia, como o Beja Santos, a reverenciar o "politicamente correcto", que é a moda.
Abraço,
António Graça de Abreu
... Antônio, foi um mero lapso de escrita. De qualquer modo, a referência a aos partidos políticos do pós 25 de abril não é relevante. Não conheço o autor, estes dados são públicos. Vou a caminho do Porto, tua terra.
Quando escrevemos sobre as nossa experiências na guerra, para mim são mais do que relevantes as opções políticas de cada um de nós, antes e depois do 25 de Abril. O caso do Beja Santos é lapidar.E mais não digo, por respeito por mim próprio.
Abraço,
António Graça de Abreu
Em 1966/67/68 no centro de Angola, Alto Cuito (?) Kuito é hoje o distrito que corresponde ao antigo distrito do Bié onde nasce o rio Cuito, (centro, não leste) não existiu esta guerra, havia uma outra guerra um tanto ou quanto surda, entre o MPLA e a UNITA, já na altura com jogo dúbio do Savimbi comprovadamente a dar uma mãozinho «à gente» contra o mpla.
A JAEA, junta Autonoma de Estradas de Angola tinha brigadas de construção e manutenção de estradas em todo aquele distrito com conhecimento directo do Governador e da tropa, com conhecimento, e só, digo eu.
Eu já comentei, eu, ex funcionário da JAEA e dos Serviços Geograficos e Cadastrais de Angola, que a Guerra de Angola ao contrário da Guerra da Guiné, havia tempo para tudo.
Daí poderem aparecer todas as imaginações mirabolantes, como essa de o exército português ter um alferes que assiste de braços cruzados a um chefe de posto fazer a guerra e ele não mexer uma palha, nem "ajudar" o pobre homem a guerrear, sozinho.
Em 2000, 32 anos após 1968, este herói do ultramar, covarde, vem acusar o chefe de posto Raposo mais o furriel Marta...!
E esta generalidade?
(“O morro do Alto Cuíto era um barril de pólvora que mais tarde ou mais cedo teria de explodir”.
Prossegue a atividade operacional, a guerrilha estende-se como mancha de azeite. Os acidentes também não param, caso de um soldado que caiu numa armadilha e ficou espetado num pau aguçado, que lhe entrou na virilha e avançou até perto do pescoço.)
É verdade, digo eu, Rosinha, praticava-se a caça a gungas palancas ou veados atravez de buracos com paus afiados no fundo, disfarçados com capim, nos trilhos da caça a caminho dos locais dos bebedouros.
Constou-me que dois colegas meus teriam também caído nesse tipo de armadilhas, e teriam sobrevivido.
Não vi, logo não garanto, nem romanceio.
Mas essas armadilhas conheci, e até comi caça apanhada nessas armadilhas, por indígenas que trabalhavam comigo.
Eu nunca fui caçador nem nunca tive arma de caça, mas gostava de bifes.
Cuito não é Leste, é centro, no Cuito só houve guerra após o 25 de Abril.
Ali o MPLA, não riscava, e o Savimbi (cínico) limitava-se a não deixar entrar ali o MPLA e a evitar o contacto com os flechas comandados pela PIDE.
A pior guerra naquela região para a tropa da metrópoçe era o tédio do arame farpado.
Beja Santos, publica tudo e mais alguma coisa, para conhecermos bem o que foi aquela guerra aos olhos de cada um de nós.
Penso que por este andar, não vai ser o LObo Antunes e o seu Cú de judas, a levar o Nobel.
Mário. talvez seja bom esclarecer qual o género literário em que se pode classificar esta obra: é autobiografia ? é biografia ficcionada do alferes Eduardo ? é romance, é ficção ? O Eduardo é/pode ser um "alter ego" do autor ?...
A CCAÇ 1638 existiu, passou por Angola, não é ficção... Não há reacções dos camaradas da CCAÇ 1638 ? Se não há, hajo muito estranho... Na caso das "cartas" do António LObo Antunes, choveram logos protestos e insultos de muitos lados, até inclusive houve ameaças físicas, na sequência de uma entrevista que ele deu, salvo erro, à revista "VISÃO"...
Há grande diferença entre liberdade artística e investigação historiográfica, sujeita a regras específicas, ibcluindo a ética e a deontologia profissionais... Portanto, vamos lá entrendermo-nos sonre a questão do "género" (literário)...
Meu caro Luís
Dizes ao MBS:
"Vamos lá entendermo-nos sobre a questão do "género" (literário)..."
Quando estamos a constatar (António Rosinha sabe do que fala!)quando estamos a constatar aldrabices de todo o tamanho, em memórias sobre a guerra de Angola, vens tu com a questão do género literário. Apaziguar as hostes, ficção e realidade, fingir que vale tudo em escritos sobre as nossas guerras em África...
Abraço,
António Graça de Abreu
Há vários "Cuitos" em Angola. Há o Cuito Cuanavale, no Cuando Cubango, onde ocorreu uma terrível batalha depois da independência de Angola, onde morreram milhares de combatentes de ambos os lados e onde o exército sul-africano foi derrotado de forma estrondosa, o que determinou o seu abandono do território angolano. Há a cidade do Cuito (frequentemente grafada Kuito), que mais não é do que a cidade antigamente chamada Silva Porto, capital do distrito (agora província) do Bié. E há o Alto Cuíto, povoação situada no distrito (agora província) do Moxico, a sul de Munhango (com estação na linha do Caminho de Ferro de Benguela), que é o Alto Cuíto de que fala o livro em questão. Receio, pois, que o António Rosinha tenha confundido o Alto Cuíto, referido no livro, com a cidade do Cuíto, ex-Silva Porto, capital do Bié.
Eu estou com muito receio em abordar este assunto, porque não estive no Leste e sim no Norte de Angola, e por isso não falo por experiência própria. Digo aquilo que me foi dito por terceiros, nomeadamente pelo segundo capitão que a minha companhia teve, o qual anteriormente tinha estado colocado no Luso (atual cidade de Luena), onde o comandante da Zona Militar Leste era o general Bettencourt Rodrigues. Por aquilo que esse capitão me contou e pelo que pude pesquisar na Internet, a zona do Alto Cuíto era uma zona de implantação da UNITA, a qual se estabeleceu no terreno de uma tal forma que constituiu um tampão que impedia o avanço do MPLA para Oeste, a partir da Zâmbia. Havia, portanto, três forças em presença no Alto Cuíto: as Forças Armadas Portuguesas, a UNITA e o MPLA. À data em que terão ocorrido os acontecimentos narrados no livro, ainda a UNITA não tinha feito um acordo com as Forças Armadas Portuguesas no sentido de colaborarem entre si no combate ao inimigo comum, que era o MPLA. Este acordo só terá ocorrido mais tarde, quando o general Bettencourt Rodrigues passou a comandar a Zona Militar Leste e dele resultou o quase desmantelamento do MPLA na zona, profundamente dividido por rivalidades internas resultantes das dificuldades enfrentadas.
No site Ultramar Terra Web, que raramente visito, está uma imagem contendo uma passagem da História da Unidade do BCaç 1901, a que pertenceu, precisamente, a CCaç 1638, de que Fernando Fradinho Lopes foi alferes miliciano. Esta imagem está no endereço http://ultramar.terraweb.biz/RMA/BCac1901/BCac1901_[utw].JPG.
No Alto Cuíto, Munhango, Muié, etc. esteve também, em 1969-71, um dos mais famosos batalhões que alguma vez passaram por Angola: o BCav 2899, mais conhecido por "Ás de Espadas". Este batalhão foi um dos únicos três batalhões que receberam uma condecoração coletiva durante toda a guerra em Angola. Em concreto, o "Ás de Espadas" foi condecorado com a Medalha de Valor Militar com Palma. Refira-se, a propósito, que os outros dois batalhões condecorados foram o BCav 2909 ("Sus! A eles!"), que esteve em Zemba e no Grafanil, e o Batalhão de Caçadores Paraquedistas 21.
O batalhão "Ás de Espadas" tem página no Facebook, mas desta vez valho-me do seu blog "Histórias do Batalhão" e sobretudo da página "Memória da Chegada a Alto Cuíto" (http://www.batalhaoasdeespadas.com/Batalhao_As_de_Espadas/Historias/Entries/2014/1/6_71_-_Memorias_da_chegada_a_Alto_Cuito.html) e "Alto Cuíto/Barraca - Fotos tiradas na zona do Alto Cuíto e Barraca" (http://www.batalhaoasdeespadas.com/Batalhao_As_de_Espadas/Album_Fotos/Pages/Alto_Cuito___Barraca.html#25.
(continua)
(continuação)
Conclusão: não me parece, de maneira nenhuma, que o conteúdo do livro tivesse sido inventado. Quando muito, terá sido exagerado. Àqueles "Cus de Judas", o braço da lei praticamente não chegava. A lei eram os chefes de posto, os comerciantes, os madeireiros e outros brancos que a faziam. Não nos esqueçamos que o distrito do Moxico, por si só, era maior do que a Metrópole inteira!
Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano da CCaç 3535, do BCaç 3880, Angola 1972-74
Fernando Ribeiro, é chato falar de Angola, neste ambiente da Guiné, pois que não há contraditório por parte de quem nos lê.
Eu se entrei aqui, neste blog, foi apenas porque conheci a Guiné (geograficamente) melhor do que Portugal ou Angola.
Mas entre mim e tu, tenho a registar uma verdade tua que também é minha e que retrata coisas que às vezes pretendo dizer sobra Angola.
Essa verdade tua (e minha) aqui vai:
"Àqueles "Cus de Judas", o braço da lei praticamente não chegava. A lei eram os chefes de posto, os comerciantes, os madeireiros e outros brancos que a faziam."
Só te falta dizer quem eram os outros brancos e eu sei quem eram esses brancos:Era eu e imensos colegas de brigadas da Junta Autónoma de Estradas, eram as brigadas dos serviços de Geologia e Minas, eram os caçadores e fiscais de caça, era o Instituto de Investigação Agronómica...etc.
Fernando Souza Ribeiro, havia uma realidade em Angola que passava desapercebida completamente à maioria de quem ia passar lá os 24 meses de comissão.
E era difícil compreender a todos os militares, o que faziam meia dúzia de gatos pingados (chefes de posto, postos de enfermagem, pequenos comerciantes, pequenos madeireiros, pequenos agricultores, pequenos empreiteiros de estradas e por aí adiante, uns brancos outros mestiços, absolutamente isolados, sem proteção militar, e que segundo a maioria dos militares metropolitanos saiam de Angola a pensar que esses brancos andavam ali a explorar, tratar mal e a roubar aqueles pretos ignorantes e esfarrapados.
E chefes de posto a mandar fuzilar mulheres e crianças como aquele alferes conta...impunemente, e alferes vão e vêm, vão e vêm...e o chefe de posto continua lá, e o comerciante a mesma coisa, e os pretos nem se queixavam ao Savimbi, nem a Agostinho Neto nem a Holden Roberto.
Quando se deu o 25 de Abril, os jornalistas perguntaram ao Holden Roberto, na rádio, porque os povos não aderiram à sua revolução, e a resposta dele, "que eram coisas do diabo".
Mas ele era pastor evangelista(?)acreditava em Deus e no Diabo.
Ora os Alferes qual poderia ser a explicação dada?
Antº Rosinha, eu não quero atingir-te, de maneira nenhuma, nem a todos os que, como tu, deram o melhor de si mesmos por Portugal.
Eu mesmo fiz proteção militar a uma brigada da JAEA, quando esta esteve a arranjar picadas nos Dembos, mesmo naquelas que se encontravam nas zonas mais "quentes" da guerra. Não era a Engenharia Militar que as arranjava, como seria de esperar, eram mesmo os civis da Junta Autónoma de Estradas de Angola que o faziam! E quando alguma autoniveladora ou retroescavadora acionava uma mina na picada, era o civil da JAEA (quase sempre branco, mas também podia ser mulato ou cabo-verdiano) que ia pelos ares, não era nenhum militar. Isto é absolutamente verdade, e desafio quem quer que seja a desmentir-me.
Quanto aos chefes de posto, não partilho a tua opinião. Primeiro, os chefes de posto administrativo não estavam permanentemente exilados no mato. Ao fim de algum tempo mudavam de poiso e de posto. Uns tornavam-se administradores de concelho, outros eram colocados na Agência Geral do Ultramar, outros iam para o Ministério do Ultramar, etc. Em segundo lugar, os chefes de posto não eram nenhuns grunhos; eram licenciados pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU) e, por isso, tinham a obrigação moral de se comportarem à altura dos seus pergaminhos, o que nem sempre acontecia.
Por fim, e à luz da minha própria experiência pessoal, dou todo o crédito ao livro que está na origem de toda esta discussão. Dizia-se naquele tempo: «Na tropa, há filho de muita mãe e muito filho da mãe». O mesmo se poderá dizer de toda a sociedade humana, seja ela qual for. Tal não impede que se denuncie o que fizeram os filhos da mãe. Não é por se varrer o lixo para debaixo do tapete que ele deixa de existir.
Um abraço, e desculpa qualquer coisinha
Fernando de Sousa Ribeiro
Estou a seguir a v/ conversa sobre um livro. Se lerem este talvez concluam que a violência na qual o alf Eduardo andou envolvido é real e ultrapassa a cuidadosa narrativa do Dr Beja Santos. Nota-se que o autor evitou desenvolver certos acontecimentos graves. Onde se pode encontrar a obra? Nas bibliotecas da Câmara Municipal de Lisboa (palácio de Galveias, Belém, Camões, Natália Correia, Olivais, Penha de França, Orlando Ribeiro, David Mourão Ferreira, Cidade Universitária). E também nas bibliotecas do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, das Câmaras Municipais de Amadora, Viana do Alentejo, Braga, Porto, Aveiro, Coimbra, etc
Os chefes de posto não eram uns grunhos? Só se foi no seu tempo. Conheci alguns que eram uns selvagens. Isso de serem académicos só se foi mais recentemente. Naquele quadro administrativo aceitavam sargentos milicianos e julgo mesmo ter havido praças que quw após fim da comissão por lé ficaram. As ralações entre militares não eram as melhores exactamente pela falta de qualidade e prepotência desta gente.
S´´o me admira que o cmdt da CCaç 1638 que era um oficial de referência (julgo ter chegado a general)nunca ter posto cobro aqueles desmandos.
G.Tavares
Caro G.Tavares,
Lá pelos meados dos anos 60, era eu adolescente e aluno do Liceu Alexandre Herculano, no Porto, quando frequentei um denominado "Curso de Estudos Ultramarinos", organizado pela Mocidade Portuguesa. Apesar de ter sido organizado por quem foi, este curso foi-me de grande utilidade mais tarde, quando eu mesmo fui mobilizado para Angola em 1972.
O dito Curso de Estudos Ultramarinos foi dado por um conjunto de funcionários do Ministério do Ultramar, os quais eram grandes admiradores, aliás, do prof. Adriano Moreira, que tinha deixado de ser ministro há pouco tempo. Salvo raríssimas exceções, todos os docentes do curso tinham começado a sua carreira profissional como chefes de posto em Angola, Moçambique ou Guiné. Lembro-me, como se fosse hoje, de um docente velhinho de cabelos completamente brancos, que chorava como uma Madalena, de saudades, sempre que falava de Angola.
De todos eles, só retive um nome, que foi o de Eduardo dos Santos (sem José...), que tinha sido chefe de posto no Leste de Angola e que lecionou a "disciplina" de Missionologia no dito curso. Eduardo dos Santos publicou uma numerosa bibliografia sobre as crenças religiosas africanas e também sobre os Quiocos do Leste de Angola, povo no meio do qual ele tinha exercido a sua ação administrativa. Antes de achar que Eduardo dos Santos foi um grunho, por ter sido chefe de posto, veja aqui a sua biografia: https://www.almedina.com.br/index.php?route=product/author&author_id=47.
Igualmente chefe de posto entre os Quiocos (por coincidência) foi Castro Soromenho, pioneiro do neorrealismo em Portugal, agora muito esquecido. Uma sua biografia está em https://www.jornaltornado.pt/castro-soromenho/. Embora não conste desta sua biografia a sua pertença ao quadro administrativo colonial, como chefe de posto em Camaxilo, na Lunda, nordeste de Angola, ela é claramente patente nos seus romances "Terra Morta", "Viragem" e "A Chaga", que poderemos considerar autobiográficos.
Um abraço
Sr Fernando Ribeiro
Por acaso também estive inscrito nesse curso de estudos ultramarinos embora não o concluísse. No final até dava uma viagem ,no meu caso seria S.Tomé. Isto por volta de 1964/5.
Admito que houvesse excepções . Mas referi-me principalmente aos que ingressavam no quadro administrativo sem qualquer preparação académica. As personagens que refere eram funcionários superiores que depois chegavam a Intendentes e Inspectores Administrativos.
A minha recordação reporta-se aos anos que vivi em Luanda e Sá da Bandeira nos idos anos de 1949 e depois 1960 respectivamente.
Cumprimentos
G.Tavares
Voltando como anónimo a interferir nas v/ conversas (antes que o coronavirus nos bata à porta), acrescentarei:
1- Todos os conflitos militares armados envolvem violências e crimes horrendos, gratuitos, impulsionados pela certeza da impunidade.
2- A guerra no Leste de Angola, retratada com grande rigor pelo alferes Eduardo (que teve o cuidado de sonegar alguma informação susceptível de comprometer seriamente os seus camaradas), foi uma guerra suja, com excessos que não deveriam ter acontecido. Tanto por parte dos Turras como dos Tugas. Existia entre as partes um insuperável ódio racista e um espírito de vingança. Pretos contra Brancos.
3- Marcelo garante que nunca houve racismo entre nós. Está enganado.
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