Caros amigos
Os artigos sobre Cabo Verde e o Campo do Tarrafal[1], posteriormente também hipocritamente chamado de “Chão Bom”, tiveram algum efeito nas minhas emoções.
De tal modo que pensei em escrever alguma coisa sobre isso mas não me atrevi a fazê-lo sem antes proporcionar algum distanciamento.
Ora bem, já será conhecido por aqui no Blogue que o meu pai [, Ângelo de Sousa Ferreira, 1921-2001 ,ex -1º Cabo n.º 816/42/5 da 4ª Companhia do 1º Batalhão de Infantaria do R.I. 23, São Vicente, Cabo Verde, 1943/44, foto à esquerda] fez parte das forças expedicionárias que procuraram afirmar a soberania em Cabo Verde aquando do conflito designado por II Grande Guerra Mundial, nos inícios dos anos 40 do século passado.
Dessa permanência lá, na Ilha de São Vicente, chegavam-me por vezes alguns relatos, algumas referências, algumas recordações dele, quando se dispunha a falar sobre isso ou quando se viam as fotos. E as “fomes”, e as doenças e as alusões ao “Campo da Morte Lenta”, apareceram de forma natural e acabaram por ficar gravadas na minha memória. Relacionamento meu com Cabo Verde só por os aviões que utilizei nas férias tocarem o solo da Ilha do Sal nas suas idas para a Guiné.
No entanto, em finais de Julho de 2018, integrado numa delegação da minha Ordem profissional, participei em eventos ocorridos na Ilha de Santiago (aquela, onde, segundo uma canção, “tem corpinho de algodão, saia de chita com cordão…”.
O evento correu bem, a estadia também, gostei muito de lá ter estado, ainda experimentei a temperatura da água do mar, mas como não estava de férias não tive muito tempo para fazer visitas.
Apesar disso ainda fui pela “primeira vez” à Ribeira Grande e, como não podia deixar de ser e para cumprir os versos da conhecida canção da Cesária Évora, “um passeio sabe, fui dentro dum reservado” (já que fui, com outros, numa carrinha “reservada”). Visita interessante à primeira capital do arquipélago com algumas histórias/informações curiosas, de que ressalto a placa comemorativa e evocativa da passagem do Padre António Vieira pelo local (foto 1), mas não é dela que quero dar conta.
Foto 1
Estando lá, em Cabo Verde, na Ilha de Santiago, não me sentiria bem se não conseguisse visitar o Campo do Tarrafal (“Chão Bom”…) e prestar a minha silenciosa homenagem aos que por lá pereceram e sofreram. E assim foi.
Uma viagem relativamente longa e difícil dada a orografia do terreno, por boas estradas, com toda a aparência de construção recente, fruto de, salvo erro, apoios da União Europeia, com passagem por Somada (ou Assomada, terra do pai de Amílcar Cabral, segundo disseram) (Foto 2), onde foi feita uma paragem e se aproveitou para visitar o mercado local e comprar mangos e outras coisas.
Foto 2
Visitar o mercado local e comprar mangos e outras coisas (Foto 3).
Foto 3
Antes de se ir visitar o Campo da ignomínia fomos almoçar em local sobranceiro à praia. Areia fina, limpa, mar calmo (Foto 4).
Foto 4
Na visita ao Campo o primeiro impacto é logo a entrada do mesmo. Não é uma imagem estranha. Construção concebida segundo a “moda da época” e por isso faz lembrar o que será muito conhecido na entrada de Auschwitz, sem a famosa frase e à dimensão portuguesa, mas com o torreão e uma linha ferroviária que atravessa, prossegue depois sobre o fosso que separa a vedação externa e a mais interior e entra depois então no espaço do Campo (Fotos 5, 6 e 7).
Foto 5
Foto 6
Foto 7
Lá dentro sente-se (senti) o peso do passado, com as “barracas” para os presos (com a configuração da utilização mais “recente”, com construções para utilizadores distintos: angolanos, guineenses e outros (Foto 8).
Foto 8
Vi, como como não poderia deixar de ser, o que disseram ser a ”entrada” para a tristemente célebre “frigideira”, vi a sua versão mais “moderna”, a “holandinha” (Fotos 9, 10 e 11) e impressionou-me particularmente a leitura de algumas frases bem ilustrativas do modo de vida, do dia-a-dia naqueles espaços (Fotos 12, 13, 14 e 15).
Foto 9
Foto 10
Foto 11
Foto 12
Foto 13
Foto 14
Foto 15
No regresso à Cidade da Praia passámos por um conjunto de instalações de envergadura (residências para estudantes, complexo hoteleiro e outras realizações) em construção pela “solidariedade chinesa” e deparei com uma estátua de Amílcar Cabral (Foto 16) que ilustra o contraste da atitude que existe em Cabo Verde para com o “pai da Pátria” com o que se houve dizer que se passa (ou passava) na Guiné.
Foto 16
Em resumo, a visita a Cabo Verde, mais propriamente à capital Praia, foi muito interessante e gratificante. Seja lá o dinheiro de quem for a verdade é que estão a fazer coisas acertadas e úteis. A visita ao Tarrafal deixa sempre, pelo menos a quem não for insensível aos dramas de outros, uma tristeza interior somente compensada pela certeza de que apesar desses miseráveis comportamentos o género humano afinal foi capaz de derrotar a barbárie.
Abraços
Hélder S.
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Notas do editor
[1] - Vd. postes de:
7 de março de 2020 Guiné 61/74 - P20708: (D)o outro lado do combate (58): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte V (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)
3 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20701: (D)o outro lado do combate (56): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte III (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)
2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)
29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)
Último poste da série de 17 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20742: Memória dos lugares (405): Cacela, a fadista Lucinda Cordeiro e o grupo "Cantar de Amigos", num vídeo do Zeca Romão (ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 3461 / BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, e CCAÇ 16, Bachile, 1971/73)
3 comentários:
O Hélder deixa-nos o relato de viva memória deste ignomioso campo. Faz-nos lembrar que a História nos ensina a olhar para o futuro, e que não devemos deixar cair no campo do esquecimento os pedaços de resistência ao regime de Salazar. Como não podemos esquecer o que foi a Guerra Colonial.
Parabéns Hélder.
Camaradas, nos dias que correm, em que voltamos a ser açulados (mas não assolados...) pelo medo da pandemia do novo coronavírus COVID-19, e em quarentena, por razões de saúde pública, é bom podermos partilhar algumas fotos e notas de viagem, feitas nos úlimos anos, e que tenham alguma relação, direta ou indireta, com a nossa história recente, incluindo a guerra colonial na Guiné. É o caso da viagem do Hélder Sousa a Santiago, Cabo Verde, com um "salto" ao campo penal do Tarrafal (, reaberto em 1961 como "campo de trabalho de Chão Bom", para onde foram encaminhados cerca de 3 centenas e meia de nacionalistas angolanos, guineenses e cabo-verdianos). Chamos-lhes o Tarrafal I e Tarrafal II.
É um lugar e um tempo que pertencem à história comum dos nossos países, Portugal, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola... E que nos diz muito, até como filhos, eu e o Hélder, de antigos expedicionários enviados para Cabo Verde durante a II Guerra Mundial... Recorde-se a nossa série "Meu pai, meu velho, meu camarada", com mais de 8 dezenas de referências...
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Meu%20pai%20meu%20velho..
Hélder
Prestas um serviço publico neste tempo em que a memória de muitos vacila.
Os sofrimentos porque passaram gente de toda a raça e credos naquele campo de ignomínia e morte.
Eu conheci pessoalmente o sr Borda natural de Alcobaça e participante na revolta dos marinheiros. Ele contou-me muito do que lá viu e sofreu e isso fez-me pensar no que foi preciso de esforço de cada um durante aqueles anos.
Este teu poste encaro-o como uma homenagem a esses heróicos resistentes.
Um abraço
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