Foto (e legenda): © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017). Todos os direitos reservados.
1. Foi assim, quase sem querer, que começou o nosso blogue: em 23 de abril de 2004, publiquei aquele que seria o primeiro poste (*) do blogue que viria a chamar-se Luís Graça & Camaradas da Guiné e dar origem à Tabanca Grande.
Foi neste blogue que publiquei o primeiro texto alusivo à guerra colonial na Guiné. Na altura tinha-me chegado às mãos uma coleção de quase de duas centenas de cartas, recebidas por uma "madrinha de guerra".
Dessas publiquei uma, nas vésperas do 25 de Abril de 2004, em jeito de homenagem às "nossas mulheres" e, em particular, às "nossas madrinhas de guerra". (Em boa verdade, já tinha feito, há anos atrás, em 1980, um primeiro tratamento temático dessas cartas; um artigo meu, sobre o tema, já fora publicado no extinto semanário "O Jornal", na secção criada pelo saudoso jornalista Afonso Praça, "Memórias da Guerra Colonial").
Dessas publiquei uma, nas vésperas do 25 de Abril de 2004, em jeito de homenagem às "nossas mulheres" e, em particular, às "nossas madrinhas de guerra". (Em boa verdade, já tinha feito, há anos atrás, em 1980, um primeiro tratamento temático dessas cartas; um artigo meu, sobre o tema, já fora publicado no extinto semanário "O Jornal", na secção criada pelo saudoso jornalista Afonso Praça, "Memórias da Guerra Colonial").
Dezasseis anos depois do primeiro poste do nosso blogue, voltamos aqui a reproduzir o aerograma de um camarada da Guiné, cujo nome na altura se omitiu (bem como o da sua companhia), e que era datado da véspera do Natal de 1969:
Guiné, 24 de Dezembro de 1969
Exma menina e saudosa madrinha:
Em primeiro de tudo, a sua saúde que eu por cá de momento fico bem, graças a Deus.
Estava um dia em que meditava e lamentava a triste sorte que Deus me deu até que toquei na necessidade de arranjar uma menina que fosse competente e digna de desempenhar tão honroso e delicado cargo de madrinha de guerra. Peço-lhe desculpa pelo atrevimento que tive em lhe dedicar estas simples letras. Mas valeu a pena e é com muita alegria que recebo o seu aero [aerograma].
Vejo que também está triste por mor da mobilização do seu mano mais novo para o Ultramar. Não sei como consolá-la, mas olhe: não desanime, tenha coragem e fé em Deus. Eu sei que custa muito, mas é o destino e, se é que ele existe, a ele ninguém foge. Nós, homens, temos esta difícil e nobre missão a cumprir.
Nós, militares, que suportamos o flagelo desta estadia aqui no Ultramar, não temos outro auxílio, quer material quer espiritual, que não seja o que nos dão os nossos amigos e entes queridos. E sobretudo as nossas saudosas madrinhas de guerra.
Sendo assim para nós o correio é a coisa mais sagrada que há no mundo. Porque nos traz notícias da nossa querida terra e nos faz esquecer, ainda que por pouco tempo, a situação de guerra em que vivemos e os dias que custam tanto a passar.
As notícias aqui são sempre tristes, nestas terras de Cristo, habitadas por povos conhecidos e desconhecidos. Não lhe posso adiantar pormenores, mas como deve imaginar uma pessoa anda triste e desanimanada sempre que há uma baixa de um camarada.
Lá na metrópole há gente que pensa que isto é bonito. Que a África é bonita. Eu digo-lhe que isto é bonito mas é para os bichos. São matas e bolanhas que metem medo, cobertas de capim alto, e onde se escondem esses turras que nos querem acabar com a vida.
E mais triste ainda quando se aproxima o dia e a hora em que era pressuposto estarmos todos em família, juntos à mesa na noite da Consoada. Vai ser a primeira noite de Natal que aqui passo. Com a canhota [espingarda automática G3] numa mão e uma garrafa de Vat 69 {, marca de uísque] na outra.
São duas horas da noite e vou botar este aero na caixa do correio. Daqui a um pouco saio em missão mais os meus camaradas. Reze por nós todos. Espero voltar são e salvo para poder ler, com alegria, as próximas notícias suas. Queira receber, Exma. Menina e saudosa madrinha, os meus mais respeitosos cumprimentos. Desejo-lhe um Santo e Feliz Natal.
O soldado-atirador da Companhia de Caçadores (...)
São duas horas da noite e vou botar este aero na caixa do correio. Daqui a um pouco saio em missão mais os meus camaradas. Reze por nós todos. Espero voltar são e salvo para poder ler, com alegria, as próximas notícias suas. Queira receber, Exma. Menina e saudosa madrinha, os meus mais respeitosos cumprimentos. Desejo-lhe um Santo e Feliz Natal.
O soldado-atirador da Companhia de Caçadores (...)
2. A carta era antecida de um preâmbulo do nosso editor Luís Graça. A nossa amiga e camarada enfermeira-paraquedista Maria Arminda Santos é a única que tem um comentário a este poste (*), do seguinte teor:
Nesse ano de 2004, só se publicaram 4 postes com temas alusivos à guerra colonial na Guiné. Mas foi o ponto de partida da nossa Tabanca. Temos o descritor Blogue-Fora-Nada com cerca de meia centena de referências. Por ocasião do nosso aniversário, temos vindo todos os anos "repescar" alguns dos melhores postes já publicados... E já lá vamos a caminhos dos 21 mil... Que os bons irãs nos protejam na caminhada pela picada da vida, sempre cheia de minas e armadilhas, antes, durante e depois da nossa participação na guerra da Guiné (1961/74)... Hoje as minhas 6 armadilhas estão relacionadas com a pandemia de COVID-19 e o confinamento a estamos obrigados... Mas continuar a blogar é preciso! (****)
(*)23 de abril de 2004 > Guiné 63/74 – P1: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)
______________
Notas do editor:
(**) Vd. poste de 20 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10833: Mi querido blog, ¿por qué no te callas? (3): A moral da história, cada um que a tire; e quanto ao mural, cada um que o pinte... Relembrando o velho blogue-fora-nada, com amor, com humor, e votos de festas felizes para tertulianos de ontem e grã-tabanqueiros de hoje... (Luís Graça)
(****) 21 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20886: 16 anos a blogar (1): O helicóptero, poema de Jorge Cabral, comentário de Torcato Mendonça
3 comentários:
Os meus, enviados e recebidos dos meus pais e madrinha de guerra destruí-os todos. Acho que não tinham grande interesse literário ou factual. O diário que não consegui escrever teria mais interesse. O blogue é bom para recordar aqueles acontecimentos que nos marcaram no T.O. da Guiné.Longa vida!
Camarada, esqueceste-te de pôr o teu nome no fim do teu comentário...
Não concordo com o que dizes sobre os nossos aerogramas: têm interesse, e muito, do ponto de vista sociolinguístico e socioantropológico... mesmo que, eventualmente, não tenham interesse "literário"...
Apenas meia dúzia de nós, antigos combatentes, vai ficar na "História da Literatura Portuguesa"... Ninguém escrevia aerogramas e cartas a pensar que ia ficar na História, nem mesmo o António Lobo Antunes que descobriu, só amis tarde, o sue "talento literário"... As cartas emviadas à sua nulher, entretanto falecida, não foram publicadas por ele, mas sim por uma das filhas...
É pena que milhões de aerogramas e cartas do tempo da guerra colonial (ou do Ultramar, como se queira) tenham já sido destruídos...
De qualquer modo, o nosso blogue, desde há 16 anos, tem feito um apelo para que essas nossas memórias escritas (cartas, aerogramas, diários, etc.) e icónicas (fotos, "slids", filmes de 8 mm, mapas, e outros documentos...), sejam preservadas e, se possível, divulgadas, partilhadas, pela grande comunidade de antigos combatentes... Éramos um milhão, se calhar hoje seremos apenas 600 mil, os sobreviventes...
Caro Luis Graça
Efectivamente esqueci-me de pôr o nome. Consulto o blogue todos os dias. Sou Albertino Nunes Ferreira, ex alferes miliciano da C. CAÇ 4540, na Guiné de 72 a 74, passando pelo Cumeré, Bigene, Cadique e Nhacra, com alguns passeios pela 5ª Rep, Pelicano, Pintosinho e Santa Luzia.
Albertino Ferreira
Enviar um comentário