quarta-feira, 24 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22032: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte Vi: (i) batismo de fogo... com a reza do terço; e (ii) uma patuscada... de gato por lebre!


Foto nº 1 >  - Simulando o ataque a um avião inimigo. Cada tiro cada melro... pois aviões ca tem... A tropa não deixa de me surpreender: Antiaéreas em Aldeia Formosa? Os nossos amigos, ou IN, tinham mísseis terra-ar Strela!
 
 
Foto nº 2 - Em Aldeia Formosa, com todas as comodidades embora já batizados, com a 1a comunhão marcada e o Crisma garantido > da esquerda para a direita os furriéis da companhia: Camarada que mudou de vida depois de ir de férias! Costa, Gouveia, Vieira, Albuquerque e o soldado Covas

Foto nº 3 - Aldeia Formosa -No banco da frente> O aluno do Colégio das Caldinhas e Albuquerque (o condutor). No banco de trás: Martins e Costa, armados em grandes senhores


Fig. 4 - Natal em Aldeia Formosa (1972): Gouveia, Martins, Machado, o homem do colégio das
Caldinhas, Costa, Albuquerque e Beires. Todas na bicha para o champanhe...
 
Fotos (e legendas): © Jaoquim Costa (2021). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-
Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VI

O batismo de fogo... com a reza do terço


Entramos na rotina de patrulhas no mato; fazer a proteção à coluna semanal para Buba e principalmente fazer a proteção a uma equipa de engenharia do exército na construção de uma estrada, de interesse estratégico, com o objetivo de criar as condições de segurança para a reocupação de tabancas abandonadas, no tempo do antigo governador [, gen Arnaldo Schulz?], por força da intensa atividade do IN na zona com elevadas perdas humanas.

Todos as manhãs a azáfama era grande na preparação da coluna que partia diariamente de Aldeia Formosa para a frente de trabalhos. Esta coluna transportava´,  para al
ém dos soldados, (i)  um grande grupo de homens da população empunhando grandes catanas (os chamados capinadores), que tinham a árdua tarefa de seguir à frente dos trabalhos capinando todo o tipo de vegetação para permitir a entrada das máquinas;  (ii) os manobradores das máquinas de engenharia;  bem como (iii) alguns elementos da população, sempre acompanhados pelas suas cabras, galinhas e porcos, na sua deslocação a Mampatá.

Quanto à coluna para Buba, a primeira vez que o meu pelotão foi escalado para fazer a sua proteção, fiquei impressionado com os preparativos para a mesma. Não havia Berliet que não levasse,  para além dos soldados, que faziam a proteção, grandes grupos de população local (em grande algazarra) em trânsito para as diferentes tabancas que ficavam no caminho até Buba, sempre acompanhados pelas suas cabras, galinhas e porcos; que fugiam e esvoaçavam por cima e por baixo das viaturas recusando o embarque (sim… os porcos voavam!).

Não obstante a insistência do chefe da coluna de que nem todos, por razões de segurança, podiam fazer a viagem, ninguém ficava em terra.

Fazer aquela coluna era sempre uma grande odisseia: no tempo das chuvas,  o adversário maior era a lama, o atolar de várias viaturas, bem como o remoção de árvores caídas na picada. No tempo seco o grande adversário era o pó fino vermelho da picada que se levantava em nuvem, não permitindo ver as viatura que iam na frente. Era um ar irrespirável, mesmo com o lenço tabaqueira na boca a servir de máscara. 

Chegados a Buba e no regresso a Aldeia Formosa,  ninguém reconhecia ninguém, só se viam os olhos, dada a quantidade de pó vermelho colada no rosto com o suor. Durante vários dias, do que saía da boca e nariz o pó vermelho predominava.

Não era permitido mas muitos soldados se ofereciam para fazer a viagem na arrastadeira (a dita viatura rebente-minas) na época seca na ânsia de fugir ao pó.

A famosa Cecília Supico Pinto (mais conhecida no teatro de guerra por Cilinha, destemida presidente do Movimento Nacional Feminino) (#), nas suas inúmeras visitas à frente de Guerra viajava, segundo alguns relatos, nesta arrastadeira para evitar o pó por forma a chegar sempre com aspeto aceitável junto dos soldados. Nunca assisti a uma visita sua mas de acordo com os relatos fazia questão de se deslocar às zonas mais perigosas,  vestida como fosse a uma festa nos salões do Casino do Estoril.

Entretanto, como bons cristãos, tudo começa com o batismo… com muita reza… e muita “festa”.

Poucos dias após a nossa chegada a Aldeia Formosa, estava eu a jogar com o Gouveia (O Beirão , “Alcaide de Almeida”) uma partida de damas, a fazer horas para o jantar (geralmente arroz com estilhaços), quando vejo um clarão e ouço um grande estrondo na copa de uma árvore junto de nós, seguida de rajadas de metralhadora e mais rebentamentos espalhados pelo quartel, com a resposta quase imediata das nossas antiaéreas (que faziam fogo direto para a mata) e de metralhadoras.

Mas que grande “festival” com os RPG a rebentarem por cima das nossas cabeças e o “matraquear” das metralhadoras de um lado e do outro! 

De tal maneira fiquei atrapalhado (, foi um batismo assustador, reagindo no momento, quase... como o amigo “merdalómano” de Tavira, ) que permaneci imóvel, sem saber o que fazer e completamente atarantado, com toda a gente a fugir para as valas. Saio deste torpor empurrado por um “velhinho” para a vala ainda com o tabuleiro na mão que de seguida voou com um chuto do camarada e lá nos resguardamos, eu numa vala e o Gouveia noutra.

Passado uns segundos cai em cima de mim um peso enorme – era o Sargento Redondeiro que, na queda, me prende uma perna, situação bastante dolorosa. Então na vala alguém começa a rezar:

− Ai, minha mãezinha,  reza por mim!

Ao que eu respondo:

– Ai, Redondeira,  liberta a minha perna!

E ele:

− Ai, nossa Senhora de Fátima tem piedade de nós!

E eu:
−  Ai,  Redondeiro liberta a minha perna!

E ele:

− Ai, meu bom Jesus, cuida de nós!

E eu:

− Ai,  Redondeiro, liberta a minha perna!

E a lengalenga continuou... E assim estivemos os dois a “rezar o terço” até ao fim do ataque. No final não sei se fiquei mais aliviado por o Redondeiro libertar a minha perna, se pelo fim do ataque do IN…

Recordo sempre com muita saudade e ternura este bom homem, contudo, em nome da verdade, depois de sairmos da vala, não identifiquei o homem que rezou comigo.


Gato por lebre...


Já com amizades consolidadas com os velhinho de Aldeia Formosa, juntamente com outros camaradas, fomos convidados, por um furriel africano, para uma patuscada.

O nosso amigo guineense, grande caçador, havia caçado, segundo se constava, uma cabra de mato e fazia questão de a partilhar com os periquitos acabados de chegar.

A convites destes “não se olha a dente”, é de aceitação obrigatória, particularmente vindo de um simpático amigo furriel guineense com fama de grande caçador e mais de bom cozinheiro.

Quando chegamos já se sentia o cheirinho agradável dos condimentos próprios da região na preparação da carne.

Para quem comia ao almoço ração de combate e ao jantar arroz com estilhaços, tínhamos a sensação de estar no Artur, em Carviçais (restaurante em Torre de Moncorvo especialista em carne de caça), pelo que fomos molhando a goela com umas cervejas, utilizando como lastro umas bem torradas castanhas de caju…

Enquanto esperavamos, o nosso anfitrião lá nos foi contando as suas histórias de grande caçador (na altura praticamente impossível por razões óbvias) bem como a melhor forma de preparar cada peça de caça. Para cada peça a sua arte: gazela, cabra de mato ou porco espinho cada qual o seu tempero.

A conversa era boa mas a fome já apertava, pelo que fomos ocupando os nossos lugares para o repasto. Chega o dito à mesa, com um aspeto esplêndido e um cheirinho de fugir. Ao primeiro pedaço sentiu-se um sabor divinal. Enquanto houve carne, houve um silêncio de igreja (não confundir com roubo de igreja).

Terminado o repasto, bem regado, logo apareceu uma viola alegrando o ambiente soltando-se algumas vozes, um pouco roucas devido ao gindungo, cantando músicas africanas (a caminho do porto cais,  furriel com a carta na mão...). 

Chegada a hora da partida, enquanto agradecíamos o convite para tão fausto jantar, o anfitrião, com toda a candura diz alto e bom som: ainda bem que os meus amigos gostaram, não há ninguém melhor do que eu a preparar macaco-cão…

Com o aumento da pobreza extrema na Guiné-Bissau, nos dias de hoje, mais de 1500 macacos são vendidos anualmente como carne nos mercados urbanos da Guiné-Bissau, mas muitos mais são caçados e não chegam ao destino, temendo-se a extinção de algumas espécies .

Os cientistas constataram também que é difícil identificar as carcaças de primatas que chegam aos mercados urbanos, o que compromete os esforços de conservação.

Vendem gato por lebre. Diziam estar a vender uma determinada espécie, mas depois a grande maioria pertencia a outra espécie.

Da grande colónia de macacos com os quais convivemos diariamente na altura, e que faziam as nossas delícias, muitas vezes confundindo-os com grupos do IN, de acordo com as informações que chegam de alguns cooperantes, hoje na Guiné, com o consumo nas zonas rurais como subsistência e com o comércio organizado, já é muito raro encontrar esta espécie nas matas da Guiné.

(Continua...)
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Nota do autor:

(*) Cecília Maria de Castro Pereira de Carvalho Supico Pinto (Lisboa 30 de Maio de 1921 – Cascais 25 de Maio 2011) conhecida popularmente como “Cilinha”, foi a criadora e presidente do Movimento Nacional Feminino, uma organização de mulheres que durante a guerra colonial prestou apoio moral e material aos militares portugueses. Era esposa de Luís Supico Pinto, antigo ministro da Economia de Salazar

No cargo de criadora e presidente do Movimento Nacional Feminino, em 1961, atingiu grande popularidade e uma considerável influência política junto de Oliveira Salazar e das elites do Estado Novo. Visitou com muita frequência as tropas em África (tinha um carinho especial pela Guiné - a quem chamava a minha Guinézinha), promoveu múltiplas iniciativas mediáticas para angariação de fundos.

Granjeou um carinho muito especial dos militares da Guiné, mesmo daqueles que estavam nas antípodas (que eram quase todos) dos valores que defendia, pela sua coragem, deslocando-se aos locais mais isolados, sem quaisquer tipo de mordomias especiais, estando mesmo algumas vezes debaixo de fogo sem nunca demonstrar o mínimo de receio ou pânico.

A todos dava uma palavra de ânimo e conforto sempre com um semblante alegre e genuíno. A ela se deve a criação do mítico aerograma bem como a distribuição de livros e outros materiais em particular no Natal. Chegou a desafiar Salazar, que enfatizava o seu amor às colónias, a acompanhá-la numa das suas visitas a África, sem sucesso,  já que o homem nem a Badajoz foi comprar caramelos. Nunca saiu da sua zona de conforto.. a mesma que o acabou por matar!!!
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Nota do editor:

(...) Com a nossa chegada a Aldeia Formosa as mulheres locais acorreram em grupos à procura dos “periquitos” oferecendo os seus préstimos para a lavagem da roupa.

O dia da lavadeira era o mais esperado da semana no quartel. Vinham em rancho com os seus trajes coloridos, com a trouxa de roupa à cabeça e uma alegria contagiante nos rostos. Aguardavam impacientes junto ao sentinela a autorização para entrarem no quartel, o que geralmente acontecia ao meio da tarde, e era vê-las entrar em grande algazarra, de sorrisos rasgados, dispersando-se pelo quartel como rebanho comunitário acabado de chegar, do monte, ao povoado. (...) 

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O batismo de fogo é sempre uma recordação forte... O coração fica a bater à velocidade Match 1...Depois, é como tudo: a guerra torna-se uma certa rotina... Mas os "embrulhanços" eram sempre temidos, de um lado e do outro... As balas e os estilhaços de granada ou o sopro das muinas A/P ou A/C não tinham "SPM"... Era a roleta russa...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Já não me lembrava que havia anti-aéreas em Aldeia Formosa!... Quem é que lá esteve nas AA ? Precisamos de testemunhos, fotos, histórias...

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

A musica africana a que o Joaquim Costa se refere é "Tchamada pa tropa" de José Carlos Schwarz o nosso jovem prodigio e "enfant terrible" que começou por colaborar com a politica Spinolista "Por uma Guiné melhor" e inclusive fez parte de uma delegaçao da ANP (Acçao Naçao Popular) que visitou Lisboa, antes de aderir ao ideal da luta pela emancipaçao da Guiné. Mais tarde, o PAIGC sera, também, obrigado a afasta-lo de Bissau e morre num acidente de aviaçao em Havana, Cuba aos 27 anos de idade.

Filho de pai Alemao e mae de origem Caboverdiana, foi compositor, animador cultural, poeta e interprete de musicas de intervençao social, tendo sido preso pela PIDE-DGS e deportado para a Ilha das Galinhas, tendo no seu curriculo, juntamente com o Aliu Barry seu colega no grupo de Cobiana Djazz, a ousada aventura de colocar uma bomba relogio na sede da PIDE em Bissau.

Esta musica pode ser encontrada na Net através do link: https://soundcloud.com/ricardomaria30/tchamada-pa-tropa-jos-carlos/reposts

O José Carlos e seus colegas de Cobiana Djazz contribuiram muito para a sensibilizaçao da juventude guineense sobre a necessidade da luta para a emancipaçao, mas como sempre foi o PAIGC que melhor aproveitou esta dinamica do acordar dos espiritos antes e depois do 25 de Abril.

Junto apresento a letra da musica tal como ainda a lembro, acompanhado de uma traduçao livre da minha autoria. Apos a independencia, nao teve a divulgaçao que tiveram outras musicas do mesmo autor e grupo, porque como verao, trata-se de uma referencia sobre a chamada a tropa (colonial) a que nao interessava muito no euforico periodo pos-independencia.

“Kil dia parmanhã é tchomã pa bai pa tropa;
Ami ku nha mala na mom na caminho pa Ponte-Cais;
N’tchiga na Ponte-Cais n’hodjâ mánga di guíntis;
Randja nha kau pan sínta pan púdi pensa nha vida;
Passado bocadinho, Furriel ku carta na mom, i kunsa na tchôma nomi pa ria pa barco garandi;
Otcha hora tchigá Alfandi (?) tomâ rumo, rumo ki sedi ês ôh, rumo pa bai Bulama;
N’rabidá pa Ponte-Cais n’hodjâ mánga di guíntis;
Ééh..N’odjâ mángadi guintis;
M’bay pa sána sôh n’sána ku iagu na údju;
Ééh... sana ku iagu na údju;
M’bay pa sána sôh n’sána ku iagu na údju".

TRADUCAO LIVRE:

“Na manhã daquele dia em que me chamaram para a tropa;
Eu, com a minha mala na mão, à caminho da Ponte-Cais,
Cheguei a Ponte-Cais, vi/encontrei muita gente;
Arranjei um sitio para sentar-me e pensar sobre a minha vida;
Decorrido pouco tempo, o Furriel com a carta na mão começou a chamar pelos nomes a fim de descermos ao barco grande;
E quando chegou a hora o (Alfandi?) tomou o rumo...o rumo que era para a Ilha de Bolama;
E qunado me virei para a Ponte-Cais, vi uma multidão de pessoas;
E quando ia a acenar, acenei com os olhos cheios de làgrimas;
Acenei sim, com os olhos cheios de lágrimas”.

Autor: José Carlos Schwarz (1949-1977)


Com um abraço amigo,

Anónimo disse...

Obrigado Cherno Baldé!

Que maravilha. O que eu procurei pela letra desta linda melodia africana que me ficou gravada na memória, no coração e na alma.

A cabra de mato, digo: macaco cão soube-me que nem cabrito à Serra d’Agra (Viana do castelo)...até saber que era macaco cão...mas esta canção, tendo em conta o ambiente criado está gravada na minha alma. Acredita que me emocionei com este teu comentário com a letra … a caminho do porto cais… furriel com a carta na mão. Maravilhoso

Obrigado Baldé e ao seu autor - José Carlos Schwarz (1949-1977)

Joaquim Costa

Antº Rosinha disse...

Pensei que José Carlos Schwartz se tornasse para a Guiné tal como Zeca Afonso foi para Portugal.

Ficou na minha cabeça que isso não aconteceu com o afastamento de Luis Cabral e respectivos governantes.

Por mim, que não sou de músicas, modestamente digo que a Guiné perdeu culturalmente imenso, com a morte e depois com o quase esquecimento deste músico e "político".

Também penso que tal como Amilcar, e também Luis Cabral, Schwartz, dizia menos ao povo guineense do que eu pensava.

Isto penso eu, hoje.

É pena!

Anónimo disse...

Caro amigo Rosinha,

De facto o José Carlos, um jovem da "pequena burguesia" local, com passagem por Dakar onde estudou durante algum tempo revolucionário romântico e cheio de utopias que nem o Amilcar Cabral, poderia ser um grande quebra-cabeças para o regime do Paigc se tudo continuasse como estava a caminhar, mas os guerrilheiros que tinham afastado Cabral e suas ideias pouco realistas do tipo "...depois da independência a administração do país deve ser entregue a pessoas competentes (...)" ou "...a pequena burguesia deverá suicidar-se para liderar a transformação económica, social e cultural do país...", não perderam tempo e resolveram afastá-lo para bem longe, pois o inimigo do povo já não eram os colonialistas, mas o próprio partido e seus Comissários de Volvo Suéco, sedentos de poder e de estravagância material com que sonhavam no mato durante os anos da guerra. Morreu muito jovem (27 anos) e ainda hoje subsistem dúvidas sobre as causas reais do afastamento e da sua morte.

Um grande abraço,

Cherno Baldé