Foto 1 > fonte: Citação: (1973), "II Congresso do PAIGC, na Frente Leste" [18 a 23 de Junho de 1973], Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44115, com a devida vénia.
GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE
UM OUTRO OLHAR SOBRE O "LOCAL MISTERIOSO" DA PROCLAMAÇÃO SOLENE DO ESTADO DA GUINÉ-BISSAU, EM SETEMBRO DE 1973, EM PLENA ÉPOCA DAS CHUVAS
PARTE II
- AS PRIMEIRAS "ACÇÕES" E O ESTUDO DAS ACESSIBILIDADES ('CORREDORES') NA FRONTEIRA DO BOÉ, EM JUNHO DE 1964 -
► Continuação do P22106 (I) (15.04.21) (*)
1. - INTRODUÇÃO
Conforme ficou expresso no P22106 (15Abr21), que serviu de lançamento do projecto de "reconstrução historiográfica do puzzle do Boé" e zonas limítrofes (a que for possível…), seria interessante poder encontrar provas factuais sobre a incógnita, a misteriosa, a obscura ou a enigmática localização onde decorreu a «I Assembleia Nacional Popular», durante a qual teve lugar a «Proclamação Solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973», assim como o da realização do «II Congresso», que legitimou o evento anterior.
Enquanto tal não acontecer, estes dois factos continuam a ser considerados como "embustes históricos", por fazerem parte do "imaginário político e maquiavélico do PAIGC".
Porque nos documentos consultados, relativos ao desenrolar das duas cerimónias, não existem quaisquer referências à variável "clima" (ventos e chuva), o mesmo acontecendo nas imagens das curtíssimas e cirúrgicas reportagens fotográficas a que tivemos acesso, as suspeitas manter-se-ão inalteráveis, uma vez que ambas foram organizadas em "plena época das chuvas".
Por outro lado, ainda que tenhamos procedido à leitura das narrativas que constituem o vasto espólio existente no Blogue, com início no P3911, de 18Fev2009 (já lá vão doze anos!), o objectivo não é repeti-las, embora a elas possamos recorrer, sempre que necessário, como fonte primária de informação.
O que está implícito neste "desafio de resiliência" é percorrer "outros (novos) caminhos, trilhos ou picadas da Região do Boé", ou com eles relacionados, sinalizados na análise hermenêutica dos documentos disponíveis nos arquivos de Amílcar Cabral (1924-1973), aos quais se adicionam algumas "peças jornalísticas" apoiadas em factos relevantes, e na sua triangulação, por serem as únicas hipóteses que hoje dispomos, pois as outras, as do "terreno", já não são exequíveis.
Como primeiro exemplo do que acabámos de descrever, está o facto de no âmbito das "Comemorações do 42.º Aniversário da Independência da Guiné-Bissau" (1973-2015), o jornalista guineense (creio) Lassana Cassamá, correspondente da VOA – organização internacional de notícias multimédia dos EUA, ter referido que Teodora Inácia Gomes [foto 1], nascida em 13 de Setembro de 1944, em Empada, região de Quinara, militante e dirigente do PAIGC desde 13 de Junho de 1964, ter feito "parte das poucas pessoas que procuraram e encontraram o local da proclamação da Independência Nacional, entre Luís Cabral (1931-2009) e Nino Vieira (1939-2009)."
Esta é, naturalmente, uma boa informação!
Fonte:
https://www.voaportugues.com/a/guine-bissau-assinala-42-anos-de-independencia/2972574.html
Depois da (mítica) "Madina do Boé" ter sido indicada como o local da (última) cerimónia, outros foram alvitrados como alternativa ao oficial, todos eles pertencentes à região do Boé, de que são exemplos: "Lugajole", "Vendu-Leidi", "Lela" ou "Malanta"…, como referido no P21554, de 17Nov2020.
Será que, para além destas, poderemos encontrar outra (s) possibilidade (s)? É esse o objectivo de partida!
Para a sua concretização, foi/está definido um plano de estudo, estruturado por ordem cronológica, de modo a compreender as consequências da actividade operacional das forças beligerantes, e das suas estratégias, bem como das influências produzidas por estas na mobilidade dos diferentes agregados populacionais que foram afectados.
Assim, nesta parte dois, para começar, daremos a conhecer os objectivos das primeiras "acções" da guerrilha, elencadas por Amílcar Cabral, a que deu o nome de «Missão a Gaoual», a realizar em Junho de 1964 (ano e meio depois do início do conflito).
Esta missão, atribuída a Armando Ramos, incluía a realização de vários estudos nas áreas de fronteira entre as duas Guinés, merecendo destaque, neste âmbito, os relacionados com as acessibilidades – "corredores" de passagem e circulação mais seguros – na região do Boé.
2. - AS PRIMEIRAS ACÇÕES DA GUERRILHA NA REGIÃO DO BOÉ:
- EM CADA UM DOS LADOS DA FRONTEIRA
2.1 - Missão a Gaoual
1. – Contacto com o Governador. Expor as razões da visita. Pedir-lhes todo o apoio, no quadro do que ficou estabelecido na reunião que o Secretário-geral teve com ele e outros responsáveis da República da Guiné no Ministério da Defesa Nacional e Segurança.
2. – Colher o maior número de informações em Gaoual mesmo sobre a situação no Boé.
3. – Visitar a fronteira, indo por Koumbia e Ngolé até Lela. De Lela ir a pé até Hancundi, na mata que está próximo da fronteira. Estudar as possibilidades da travessia do rio Féfiné-Senta. Estudar as condições da mata. Estudar o caminho a pé que vai de Lela à fronteira, entrando pelo Boé. Na volta ir a Pato-Kono, perto de Guidali e tomar, a pé ou de jeep, o caminho que segue para Fidibore e Kampoundiny, indo até à fronteira. Estudar esta zona.
Imagem de satélite da região do Boé, sinalizando-se, a vermelho, a linha de fronteira onde deveriam ser identificados os melhores locais para funcionarem como "corredores" ou "portas de entrada".
4. – Obter informações sobre a possibilidade de passagem, a pé ou de carro, entre Neteré (perto do Rio Féfiné) e Tiankouboye (perto de Madina do Boé).
5. – Durante a visita à fronteira, obter o maior número de informações sobre a situação no Boé, sobretudo no que se refere a Béli, Dinguiras, Madina, Dandum. Enviar para dentro do país um ou mais comissários informadores, se possível, os quais devem regressar com urgência, antes do fim da missão.
6. – Regressar a Gaoual. Contactar de novo o Governador e regressar a Conacri.
2.2 - Informações que interessa obter - concretamente
● No exterior
a) – Movimento de pessoas entre os dois lados. Se há gente do lado da República da Guiné que dá informação ao inimigo. Se há famílias que vivem dum lado e do outro da fronteira.
b) – Comércio entre os dois lados. Se há gilas que fazem vaivém constantes. Se a gente do lado da República da Guiné está interessada no comércio com a gente do nosso lado.
c) – Gente da nossa terra que vive do lado de cá, permanentemente, tanto em Gaoual como nas outras povoações próximas da fronteira. Ligações entre essa gente e a do interior.
d) – Onde estão os oportunistas. Quantos são exactamente (homens e mulheres). O que estão a fazer. Quem são os chefes.
e) – Se os habitantes das povoações próximas da fronteira, na República da Guiné, são ou não simpatizantes com a nossa luta. Se estão ou não predispostos a ajudar, em caso de necessidade.
f) – Possibilidades de alimentação na proximidade da fronteira. Se há arroz e outros alimentos de base.
g) – Natureza e estado das estradas, picadas e caminhos, na República da Guiné, perto da fronteira ou conduzindo à fronteira. Possibilidade real da passagem de jeep e de camião.
h) – Rios presentes no caminho e ao pé da fronteira. Possibilidades de os atravessar.
i) – Natureza do terreno (montes, vales, mato, floresta, etc.).
j) – Condições da mata de Lela [na República da Guiné]. Se é boa para instalar uma base de combatentes.
● Em relação ao interior:
a) – Se há tropas portuguesas no Boé e número exacto ou aproximado, armas de que dispõem, onde estão instaladas. Se fizeram fortes, trincheiras, etc..
b) – Quem é o chefe de Posto em Madina (nome, branco ou africano, etc.). Quem é a autoridade colonial em Béli e em Dandum.
c) – Se os chefes fulas são todos contra nós. Quais os que são contra nós: nome, importância, local onde vivem, posição do povo em relação a eles, etc.. Se as suas tabancas estão fortificadas.
d) – Se os chefes fulas têm armas e gente armada. Quantos homens, que espécies de armas, em que localidades.
e) – Se a jangada de Ché-Che que liga para o Gabú, está a funcionar ou não. Se há outras jangadas no rio Corubal, onde estão instaladas. Se há tropas (portugueses ou fulas) a defender a jangada.
Foto 2 > Região do Boé > Estrada (picada) de Ché-Che para Béli (30Jun2018), cinquenta e quatro anos depois da missão ordenada por Amílcar Cabral, em 24Jun1964. Foto do álbum de Patrício Ribeiro – P18862, com a devida vénia.
f) – Estado em que se encontra a estrada entre Contabane (perto do Saltinho) e Madina do Boé. Se a tropa portuguesa vigia ou anda nessa estrada.
g) – Estado da estrada entre Ché-Che (rio Corubal) e Béli e entre Ché-Che e Madina. Estado da estrada entre Béli e a fronteira (Vendu-Leidi). Estado da entrada entre Madina e a fronteira.
h) – Informações sobre número, armamento, presença de soldados africanos, etc., nas tropas inimigas estacionadas em Piche e Gabú-Sare (Nova Lamego).
i) – Possibilidades reais de travessia (onde e por que meios) do rio Féfiné no Boé.
Foto 3 > Região do Boé > Picada para Dandum (30Jun2018), cinquenta e quatro anos depois da missão ordenada por Amílcar Cabral, em 24Jun1964. Foto do álbum de Patrício Ribeiro – P18863, com a devida vénia.
j) – Situação alimentar no Boé. Se há arroz e outros alimentos de base (milho, milho preto, funcho, etc.). Se a população não tem falta de alimentos e de artigos de primeira necessidade (sal, fósforos, tabaco, açúcar, tecidos, etc.).
l) – Se há comerciantes europeus (ou africanos) em Madina, Béli e Dandum. Quem são e quantos são.
(m) – Situação Política – Se o povo está contente. Se sabe bem da luta. Se há gente que aprova a luta. Se a população paga impostos e a quem paga (aos chefes fulas, ao chefe do Posto?).
n) – Empregados e funcionários africanos no Boé. Quem são, qual a sua posição em relação ao Partido e a luta, estado da família, etc..
Fonte: Citação: (1964), "Missão AR - Missão a Gaoual", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40180 com a devida vénia
Ø (1) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07061.033.030. Título: Missão AR – Missão a Gaoual. Assunto: Instruções de Amílcar Cabral para Armando Ramos - Missão a Gaoual. Pontos que devem ser discutidos com o Governador de Gaoual e as informações que devem ser aí recolhidas. Missão de reconhecimento à fronteira com a Guiné-Conakry, exterior e interior (Boé). Declaração. Data: Quarta, 24 de Junho de 1964. Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Nota de Amílcar Cabral: "Lucette: Arquivar". Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.
Ø (2) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 05248.000.048. Título: II Congresso do PAIGC, na Frente Leste (?). Assunto: II Congresso do PAIGC, na Frente Leste: Teodora Inácia Gomes, Arafam Mané, Silvino da Luz [Juvêncio Gomes], José Araújo, Bernardo Vieira (Nino), Aristides Pereira, Luís Cabral, Pedro Pires, Vasco Cabral, Carmen Pereira e Victor Saúde Maria. Data: Segunda, 18 de Junho de 1973 – Sexta, 22 de Junho de 1973. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.
Ø Outras: as referidas em cada caso.
Termino agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
20Abr2021
___________
Nota do editor:
(*) Último poste da série > 15 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22106: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte I: A variável "clima" (Jorge Araújo)
7 comentários:
É interessante notar as "reservas" de Amílcar Cabral em relação ao "fulas" (de quem ele de facto não gostava em nunca gostou, ao contrário dos "balantas", que eram "romantizados" por ele...) e por outro o cuidado em nunca mencionar a palavra "cabo-verdiano" (Os cabo-verdianos, como era sabido, eram comerciantes, donos de pontas e prenchiam uma boa parte dos lugares da administração colonial)...
Vejajm-se algumas perguntas do Amílcar Cabarl:
b) – Quem é o chefe de Posto em Madina (nome, branco ou africano, etc.). Quem é a autoridade colonial em Béli e em Dandum.
c) – Se os chefes fulas são todos contra nós. Quais os que são contra nós: nome, importância, local onde vivem, posição do povo em relação a eles, etc.. Se as suas tabancas estão fortificadas.
d) – Se os chefes fulas têm armas e gente armada. Quantos homens, que espécies de armas, em que localidades.
l) – Se há comerciantes europeus (ou africanos) em Madina, Béli e Dandum. Quem são e quantos são.
(m) – Situação Política – Se o povo está contente. Se sabe bem da luta. Se há gente que aprova a luta. Se a população paga impostos e a quem paga (aos chefes fulas, ao chefe do Posto?).
n) – Empregados e funcionários africanos no Boé. Quem são, qual a sua posição em relação ao Partido e a luta, estado da família, etc..
(...)
Caro Luis Graça,
A tua observaçao é oportuna e mostra o jogo do "Caboverdiano" que, de facto, ele era, diante da situaçao politica da Guiné na altura, e dos seus principais protagonistas. Amilcar Cabral nao perdia uma unica ocasiao para maldizer aos "Tugas" e aos seus "lacaios", aliados fulas que, bem organizados a volta dos chefes tradicionais (Régulos), nao queriam aliar-se a luta dos partidos oriundos das cidades que congregavam Caboverdianos e Grumetes aos quais, também eles, tinham sérias reservas.
Esta atitude nao é nada inocente, pois era uma forma de desviar a atençao dos combatentes guineenses sobre o real papel dos Caboverdianos nos meandros do sistema colonial e atirar a ira contra os fulas em geral e em particular contra os chefes tradicionais que, em parte resultou, mas nao foi suficiente para esquecer todo o mal que os Chefes de Posto Caboverdianos tinham feito em terras guineenses.
Mas atençao, a aversao era reciproca do lado dos fulas mais esclarecidos contra os Caboverdianos e Grumetes das cidades (Bissau, Bolama, Geba/Bafata, Buba e Farim) que desde sempre concorriam lado a lado para ganhar a confiança da administraçao colonial e, desta forma, preencher o lugar de intermediario no quadro das relaçoes coloniais entre Portugal (Europa) e a populaçao indigena (Africa).
A proposito, lembrem-se do papel ambiguo dos tais cidadaos durante as guerras de Bissau antes do Cap. Teixeira Pinto, agrupados na Liga Guineense que, mais tarde viria a ser dissolvida pelas autoridades coloniais, julgo que, pelas mesmas razoes.
Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
PS/Quanto a missão do Armando Ramos, o homem que, dentro do Paigc, talvez conhecia melhor a Guiné Conacri, era exremamente dificil, para não dizer impossível.
Cherno AB
Cherno, penso que o Jorge Araújo nos vai continuar a surpreender com as "pistas" que nos tem dado dobre o dossier Boé. Esta zona tal como toda a região de Gabu devia ser aquela em que, no início da luta, o PAIGC conhecia pior é onde se sentiria menos confortável. Mantenas
Luis
Cherno, penso que o Jorge Araújo nos vai continuar a surpreender com as "pistas" que nos tem dado dobre o dossier Boé. Esta zona tal como toda a região de Gabu devia ser aquela em que, no início da luta, o PAIGC conhecia pior é onde se sentiria menos confortável. Mantenas
Luis
Não sabemos se este blog é muito acompanhado em Caboverde e em Bissau, falta o feedback para sabermos.
Talvez não seja mesmo muito acompanhado, lá...e cá!
Vemos aqui assuntos que dizem muito pouco a muita gente.
O Cherno bem põe de vez em quando o dedo na ferida, dum determinado lado da guerra na Guiné, e que no meu entender se pode estender a toda a guerra colonial do "Ultramar".
Olá Camaradas
Pobres dos povos que não têm História!...
Mas, pior, mais pobres os povos que fazem gala em não a ter. Podendo e devendo tê-la. Era a sua maneira de se inserirem na comunidade internacional.
Quem quer "tomar os seus destinos nas suas mãos tem de ser responsável".
De outra forma faz rir aos que já "naquele tempo" previam a desgraça ia ser cómica. E foi! Infelizmente...
Volto a recordar que isto "não são contas do eu rosário".
Um Ab.
António J. P. Costa
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