Foto: Página oficial da Presidência da República Portuguesa (com a devida vénia...)
1. A intervenção do Presidente da República Portuguesa [PRP], Marcelo Rebelo de Sousa, na Assembleia da República, por ocasião dos 47 anos do 25 de Abril, mereceu um amplo e justo eco na sociedade civil, na classe política, na comunicação social.... E tem sido comentado como um dos melhores discursos da sua carreira.
Mais do que o unamismo, importa realçar o seu apelo a um consenso na leitura histórica não só da "revolução dos cravos" como de todos os seus antecedentes, imediatos e mediatos. 60 anos não é nada para se poder compreender e explicar como é que que em 1974 Portugal iniciou um processo de tão profundas (e também dolorosas) mudanças políticas, económicas, militares, demográficas, sociais, mentais, culturais e geográficas, voltando às suas fronteiras (terrestres e marítimas) do séc. XIV, depois dos 13 anos e tal da guerra colonial / guerra do ultramar.
Mais do que um discurso para a História, é, no nosso entender, uma discurso sobre a nossa história e a nossa identidade, sobre Portugal enquanto Nação, Estado e Pátria, e que merece ser lido, relido, analisado e comentado num blogue como o nosso, de amigos e camaradas da Guiné, antigos combatentes, para quem a Pátria tem sido madrasta...
Não é um discurso neutro, muito menos "populista", pelo contrário, é também uma proposta de afectos, um discurso, liberto da tradicional ganga ideológica ou do tom panfletário do discurso político, à esquerda ou à direita... Um discurso que também não é meramente institucional, tem um propósito pedagógico, em que se arrisca e se partilha uma visão sinótica do nosso porvir e devir enquanto portugueses, no que temos de melhor, de bom e de menos bom (, de resto, como todos os povos). Nunca, em caso algum, um discurso maniqueísta, separando bons e maus, esquerda e direita, vencedores e vencidos, "nós e os outros"... Intecionalmente ou não, o PRP evitou os "ismos" que não nos unem, só nos separam...
É ainda um discurso que faz bem à nossa autoestima depois de um mais ano, duro, difícil, doloroso, trágico, de luta contra a pandemia de Covid-19. E contra uma certa tendência das nossas elites (, que o povo depois replica) para, a torto e a direito, com ou sem razão, se invocar aquilo que chamam a nossa "pecha nacional", a nosso "transtormo bipolar coletivo", que, depois de Alcácer Quibir, nos tem levado, como diz o PRP, a periodos de autoflagelação, por um lado, ou de autoglorificação, por outro... Na realidade, parece termos gozo em passar, muito rapidamente, "de bestiais a bestas" e vice-versa....
Enfim, é um discurso de inclusão, de tolerância, de reconciliação (connosco, com os outros povos lusófonos, irmãos, com a nossa História comum...), e de esperança, ao fim e ao cabo, no Portugal futuro (, como diria o poeta Ruy Belo).
Embora podendo incorrer na acusação de violação de uma das nossas regras editoriais básicas (, o blogue não se deve imiscuir na atulidade noticiosa, e mormemente em questões de política partidária, religião proselitista e clubismo desportivo), achamos que este discurso está para além da efeméride e do efémero, devendo chegar ao conhecimento do maior número dos nossos leitores e, se possível, ser amplamente comentado.
Na realidade, o PRP não se limita a evocar aqui os "shareholders" (os atores pincipais do 25 de Abril e da descolonização) mas todos os "stakeholders" (todos os que, direta ou indiretamente, foram afectados, positiva ou negativamente pelos acontecimentos de há 60 anos): não só os combatentes de um lado e do outro, mas também todas as vítimas do(s) conflito(s), dos retornados aos povos das ex-colónias que se viram depois envolvidos em guerras civis e invasões estrangeiras (em especial Angola, Guiné, Moçambique e Timor), em esquecer os que "alinharam no lado errado da história", os nossos camaradas africanos que integraram as fileiras das Forças Armadas Portugueses [mais de 400 mil num milhão de homens em armas], e que foram esquecidos e abandonados por uns, e condenados por outros.
Para tornar a leitura do discurso mais fácil, vamos intercalá-lo com subtítulos e comentários da nossa lavra, em negrito, metidos em parêntes rectos [ ]. O discurso do PRP vai em itálico. Algumas palavras e frases também vão simulataneamente em itálico e negrito. Os substítulos estão alinnhados ao centro, os nossos comentários à direita. (LG)
Que para sempre marcou a vida dos que já lá vivendo idos eles ou os seus antepassados de terras daquém mar de lá vieram, no termo desses longos anos, ou lá ficaram e estão para ficar.
Que para sempre marcou a vida dos que viveram e morreram do outro lado da trincheira para conquistarem o que alcançaram definitivamente depois do 25 de Abril de 74.
Olhar com os olhos de hoje e tentar olhar com os olhos do passado que as mais das vezes não nos é fácil entender sabendo que outros, ainda, nos olharão no futuro de forma diversa dos nossos olhos de hoje.
Acreditando muitos, nos quais me incluo, que há no olhar de hoje uma densidade personalista, isto é, isto é de respeito da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos, na condenação da escravatura e do esclavagismo, na recusa do racismo e das demais xenofobias que se foi apurando e enriquecendo, representando um avanço cultural e civilizacional irreversível.
Acreditando muitos, nos quais também me incluo, que o olhar de hoje não era nas mais das vezes o olhar desses outros tempos.
O que obriga a uma missão ingrata: a de julgar o passado com os olhos de hoje, sem exigir, nalgumas situações, aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores ou o seu entendimento para nós agora tidos por evidentes, intemporais e universais, sobretudo se não adotados nas sociedades mais avançadas de então.
Se esta faina é ingrata para séculos remotos que não se pense que ela é desprovida de dificuldades para tempos bem mais recentes.
Continua a ser complexo entendermos tantos olhares do fim do século XIX quando os impérios esquartejaram a régua e esquadro o continente africano ou do começo do século XX quando o império monárquico passou a império republicanos.
Este revisitar da história aconselha algumas precauções. A primeira é de não levarmos as consequências do olhar de hoje, sobre os olhares de há 8,7,6,5,4,3, 2 séculos ao ponto de passarmos de um culto acrítico triunfalista exclusivamente glorioso da nossa história, para uma demolição global e igualmente acrítica de toda ela, mesmo que a que a vários títulos é sublinhada noutras latitudes e longitudes.
Monarcas absolutos e portanto ditatoriais aos olhos de hoje, e foram a maioria, seriam globalmente condenados independentemente do seu papel na Fundação, na unificação territorial, na Restauração, na diplomacia europeia intercontinental.
Com monarcas e governantes no liberalismo, que os houve, prospetivos na história que fizeram ou refizeram no século XIX às vezes com a singularidade improvável de um Príncipe Regente no Brasil, filho primogénito do nosso Rei, que declarou a independência dessa potência do presente e do futuro sendo o seu primeiro Imperador e vindo a lutar pela liberdade e a morrer em Portugal, no mesmo quarto onde nascera trinta e cinco anos duas coroas e uma independência antes. Ou personalidades do liberalismo republicano importantes no centro ou na periferia do Império como Norton de Matos.
Segunda precaução: é de aprendermos a olhar, em particular quanto ao passado mais imediato, com os olhos que não são os nossos, os do antigo colonizador, mas os olhos dos antigos colonizados, tentando descobrir e compreender, tanto quanto nos seja possível, como eles nos foram vendo e julgando, e sofrendo, nomeadamente onde e quando as relações se tornaram mais intensas e duradouras e delas pode haver o correspondente e impressivo testemunho.
Terceira precaução: essa a mais sensível de todas por respeitar a tempos muito, muito presentes nas nossas vidas.
Para todos eles e muitos mais o juízo é tão complexo como complexa foi a mudança histórica que neste dia evocamos, na sua abertura para a Descolonização, para o Desenvolvimento, para a Liberdade, para a Democracia. Desenvolvimento, Liberdade e Democracia, sabemo-lo todos, sempre foram imperfeitos e por isso não plenos. Porque nunca tendo resolvido uma pobreza estrutural de dois milhões de portugueses e desigualdades pessoais e territoriais, e desinstitucionalizações, que aqui referi em 2016 e 2018, que a pandemia veio revelar e acentuar.
Mas foi complexa essa mudança histórica em 74. Fruto da resistência de muitas e muitos durante meio século com os seus lseguidores políticos sentados neste hemiciclo. Ela ganhou o seu tempo e o seu modo decisivos no gesto essencial dos Capitães de Abril, aqui qualificadamente representados pela Associação 25 de Abril e que saúdo, reconhecido, em nome de todos os portugueses.
Foi assim aquele dia 25 de Abril antes de suscitar o Processo Popular Revolucionário que o seguiu e apoiou. Antes de ser hoje património nacional em que o seu único soberano é o povo português.
Foi no seu eclodir resultado de décadas de resistência e depois crucialmente grito de revolta de militares que tinham dado anos das suas vidas à Pátria no campo de luta e que sentiam estar a combater sem futuro político visível ou viável presididos eles, e todos nós, por dois Chefes Militares um após outro que tinham conhecido intensa e prolongadamente o que é a guerra de guerrilha em missões militares e cargos politico ou militares os mais relevantes.
Eis por que razão é tão justo galardoar os Militares de Abril tendo merecido já uma homenagem muito especial aquele, de entre eles, que depois de ter estado no terreno veio a ser peça chave na mudança de regime e primeiro Presidente da República eleito da democracia portuguesa, e que sempre recusou o Marechalato que merecia e merece, o Presidente António Ramalho Eanes.
Eis também porque é tão difícil o juízo sobre uma história tão recente salvo naquilo que é de mais óbvio consenso: o consenso naquilo em que o Império não entendeu o tempo que o condenara. A ditadura não podia entender o tempo que a tinha condenado de forma irrefragável e ainda mais evidente a partir de 58 e da saga de Humberto Delgado e a relação colonial não conseguira entender a raiz da inevitabilidade da sua inconsequência.
Estas reflexões são atuais porque nada como o 25 de Abril para repensar o nosso passado quando o nosso presente ainda é tão duro e o nosso futuro é tão urgente.
E ainda porque a cada passo pode ressurgir a tentação de converter esse repensar do passado em argumento de mera movimentação tática ou estratégica num tempo que ainda é será de crise na vida e na saúde e de crise económica e social encaremos com lúcida serenidade o que pode agitar o confronto político conjuntural, mas não corresponde ao que é prioritário para os portugueses. E além de não ser prioritário nestes dias de crises é duvidoso que o seja alguma vez.
É prioritário estudar o passado e nele dissecar tudo: o que houve de bom e o que houve de mau. É prioritário assumir tudo, todo esse passado, sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas, nem autoflagelações globais excessivas.
E no caso do passado mais recente assumir a justiça largamente por fazer ao mais de um milhão de portugueses que serviram pelas armas o que entendiam ou lhes faziam entender constituir o interesse nacional. Aos outros milhões que cá ou lá viveram a mesma odisseia. Aos milhões que lá e cá a viveram do outro lado da história combatendo o Império colonial português batendo-se pelas suas causas nacionais ou a viveram do mesmo lado, mas ficaram esquecidos, abandonados por quem regressou e condenados por quem nunca lhes perdoou o terem alinhado com o oponente.
Aos muitos, e eram quase um milhão, que chegaram rigorosamente sem nada depois de terem projetado uma vida que era ou se tornou impossível. Aos muitos, e eram milhões, que sofreram nas suas novas Pátrias conflitos internos herdados da colonização ou dos termos da descolonização.
Até por respeito para com todas estas e a todos estes, que se faça história e história da História, que se retire lições de uma e de outra sem temores nem complexos, com a natural diversidade de juízos, própria da democracia. Mas que se não transforme o que liberta, e toda a revisitação o mais serena possível e liberta ou deve libertar em mera prisão de sentimentos, úteis para campanhas de certos instantes, mas não úteis para a compreensão do passado a pensar no presente e no futuro.
O 25 de Abril foi feito para libertar, sem esquecer nem esconder, mas para libertar e os que o fizeram souberam superar muitas das suas divisões durante a Revolução e depois dela a pensar na unidade essencial da mesma Pátria tomando os termos simplificadores desses tempos sensibilidades diferentes no Movimento das Forças Aramadas que se chocaram então, não deixaram de entender depois que a unidade essencial de uma rutura depois feita Revolução ela própria composta de várias revoluções tudo o mais sobrepuja. Nações irmãs na língua têm sabido encontrar-se connosco e nós com elas e têm sabido julgar um percurso comum olhando para o futuro ultrapassando séculos de dominação política, económica, social, cultural e humana.
Discurso do Presidente da República na Sessão Solene Comemorativa do 47.º aniversário do 25 de Abril
25 de abril de 2021
(...) Portugueses,
[15 de março de 1961: o início da guerra do ultramar / guerra colonial]
Passaram, há um mês, sessenta anos sobre o início de um tempo que haveria de anteceder e determinar a data de hoje, aquela que aqui evocamos, 25 de Abril de 74.
Um tempo feito de vários tempos e modos que para sempre marcou a vida de mais de um milhão de jovens saídos das suas terras para atravessarem mares e viverem e morrerem noutro continente ou dele regressarem alguns com traços indeléveis na sua saúde.
Que para sempre marcou a vida das suas famílias, dos seus lugares, das suas aldeias, das suas vilas e mesmo das suas cidades, no fundo de todo um Portugal durante treze anos ou um pouco mais.
Que para sempre marcou a vida daqueles que, por opção de princípio, recusaram aquela partida e rumaram a outros destinos continuando ou iniciando uma luta contra o que estava e queria permanecer.
Um tempo feito de vários tempos e modos que para sempre marcou a vida de mais de um milhão de jovens saídos das suas terras para atravessarem mares e viverem e morrerem noutro continente ou dele regressarem alguns com traços indeléveis na sua saúde.
Que para sempre marcou a vida das suas famílias, dos seus lugares, das suas aldeias, das suas vilas e mesmo das suas cidades, no fundo de todo um Portugal durante treze anos ou um pouco mais.
Que para sempre marcou a vida daqueles que, por opção de princípio, recusaram aquela partida e rumaram a outros destinos continuando ou iniciando uma luta contra o que estava e queria permanecer.
[Referêna a exilados políticos e militantes da(s) oposição(ões)
ao Estado Novo , mas também faltosos, refractários, desertores
das Forças Armadas Portuguesas]
Que para sempre marcou a vida dos que já lá vivendo idos eles ou os seus antepassados de terras daquém mar de lá vieram, no termo desses longos anos, ou lá ficaram e estão para ficar.
[Referências aos habitantes das colónias/províncias ultramarinas,
essencialmente de origem europeia, que, na sua grande maioria,
perto de um milhão, tiveram que refazer as suas vidas, noutros territórios:
Portugal Continental e Insular, Brasil, Africa do Sul, Venezuela, etc.]
Que para sempre marcou a vida dos que viveram e morreram do outro lado da trincheira para conquistarem o que alcançaram definitivamente depois do 25 de Abril de 74.
[Referência aos militantes e simpatisantes
dos movimentos nacionalistas - PAIGC, FLING, MPLA,
UPA, FNLA, UNITA, FRELIMO, RENAMO, FRETILIN, etc.,
que lutaram e morreram no conflito.]
Que para sempre marcou a vida de famílias, de lugares, de aldeias, de vilas e mesmo de cidades de Pátrias afirmadas como Estados independentes após treze anos ou um pouco mais de um tempo ainda não tão vizinho de nós e todavia já tão longínquo para tantas gerações.
[Império Colonial Português: dos "Descobrimentos" ao "Colonialismo"]
Que não foi um tempo desprendido de outros tempos. Foi o que foi porque as décadas que o precederam, o século que o precedeu, os cinco séculos que o precederam criaram ou prolongaram contextos que o haveriam de definir e condicionar.
E por isso é tão difícil dir-se-ia até impossível explicar qualquer que seja a visão de cada qual esses treze anos ou um pouco mais sem falar do Portugal dos anos 20 aos anos 70; do Portugal do final do século XIX aos anos 20; do Portugal dos vários pequenos ciclos de que se fizeram o Império Colonial e as relações coloniais nele vividas.
E por isso é tão difícil dir-se-ia até impossível explicar qualquer que seja a visão de cada qual esses treze anos ou um pouco mais sem falar do Portugal dos anos 20 aos anos 70; do Portugal do final do século XIX aos anos 20; do Portugal dos vários pequenos ciclos de que se fizeram o Império Colonial e as relações coloniais nele vividas.
[Olhares: os de hoje e os do passado]
Olhar com os olhos de hoje e tentar olhar com os olhos do passado que as mais das vezes não nos é fácil entender sabendo que outros, ainda, nos olharão no futuro de forma diversa dos nossos olhos de hoje.
Acreditando muitos, nos quais me incluo, que há no olhar de hoje uma densidade personalista, isto é, isto é de respeito da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos, na condenação da escravatura e do esclavagismo, na recusa do racismo e das demais xenofobias que se foi apurando e enriquecendo, representando um avanço cultural e civilizacional irreversível.
Acreditando muitos, nos quais também me incluo, que o olhar de hoje não era nas mais das vezes o olhar desses outros tempos.
O que obriga a uma missão ingrata: a de julgar o passado com os olhos de hoje, sem exigir, nalgumas situações, aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores ou o seu entendimento para nós agora tidos por evidentes, intemporais e universais, sobretudo se não adotados nas sociedades mais avançadas de então.
Se esta faina é ingrata para séculos remotos que não se pense que ela é desprovida de dificuldades para tempos bem mais recentes.
[Colonialismo: o continente africano dividido a régua e esquadro]
Continua a ser complexo entendermos tantos olhares do fim do século XIX quando os impérios esquartejaram a régua e esquadro o continente africano ou do começo do século XX quando o império monárquico passou a império republicanos.
[Referência à conferência de Berlim, de 1884-86
e à divisão e partilha de África
pelas principais potências europeias]
Mais óbvio é pelo contrário o juízo sobre o passado ainda mais recente quando outros impérios terminaram e o império português retardou, por décadas, o processo descolonizador, recusando-se a ouvir conselhos da História e apenas extinguindo o indigenato nos anos 60, ou seja, uma dúzia de anos antes de 74.
[Referência às reformas feitas no Estado Novo,
no que diz respeito à adminuistração colonial,
nomeadamente a partir de 1951,
e culminado na abolição do estatuto do indígena,
com Adriano Moreira, em 1961]
[Revisitar a história, com recauções:
a 1ª precaução: nem santificação nem diabolização]
Este revisitar da história aconselha algumas precauções. A primeira é de não levarmos as consequências do olhar de hoje, sobre os olhares de há 8,7,6,5,4,3, 2 séculos ao ponto de passarmos de um culto acrítico triunfalista exclusivamente glorioso da nossa história, para uma demolição global e igualmente acrítica de toda ela, mesmo que a que a vários títulos é sublinhada noutras latitudes e longitudes.
Monarcas absolutos e portanto ditatoriais aos olhos de hoje, e foram a maioria, seriam globalmente condenados independentemente do seu papel na Fundação, na unificação territorial, na Restauração, na diplomacia europeia intercontinental.
Com monarcas e governantes no liberalismo, que os houve, prospetivos na história que fizeram ou refizeram no século XIX às vezes com a singularidade improvável de um Príncipe Regente no Brasil, filho primogénito do nosso Rei, que declarou a independência dessa potência do presente e do futuro sendo o seu primeiro Imperador e vindo a lutar pela liberdade e a morrer em Portugal, no mesmo quarto onde nascera trinta e cinco anos duas coroas e uma independência antes. Ou personalidades do liberalismo republicano importantes no centro ou na periferia do Império como Norton de Matos.
[Referência a figuras relevantes na história da colonização portuguesa
como D. Pedro IV filho de D. João VI, ou o gen Norton de Matos,
político da República demoliberal e colonial, mas poderiam citar-se outros
que foram dissidentes do Estado Novo, como o gen Humberto Delgado
ou o capitão Henrique Galvão ]
[2ª Precaução:
adotar também o olhar do "outro", o "colonizado"]
Segunda precaução: é de aprendermos a olhar, em particular quanto ao passado mais imediato, com os olhos que não são os nossos, os do antigo colonizador, mas os olhos dos antigos colonizados, tentando descobrir e compreender, tanto quanto nos seja possível, como eles nos foram vendo e julgando, e sofrendo, nomeadamente onde e quando as relações se tornaram mais intensas e duradouras e delas pode haver o correspondente e impressivo testemunho.
[3ª Precaução:
o desfasamento geracional]
Terceira precaução: essa a mais sensível de todas por respeitar a tempos muito, muito presentes nas nossas vidas.
Aqueles de nós portugueses que têm menos de 50 anos não conheceram o Império colonial nem nas lonjuras nem na vivência, aqui, no centro. O seu juízo é naturalmente menos emocional, menos apaixonado. Admito que assim não seja, porém, em muitos jovens das sociedades que alcançaram a independência contra o Império Português e viveram depois décadas conturbadas pelos reflexos de vária natureza da anterior situação colonial.
Já para os portugueses com mais de 50 ou 55 anos o revisitarem a infância ou a juventude é mais desafiante. É uma mistura de recordações, de novos mundos descobertos, de desenraizamentos ou novos enraizamentos, de primeira desertificação do interior do Continente, de migrações e muitas mais imigrações, de transformações pessoais, familiares, comunitárias, de mortes choradas, de sinais na saúde e na vida, de traumas os mais diversos e em momentos diferentes por aquilo que sonharam e se fez, por aquilo que sonharam e se desfez, pelo que sofreram e ficou, pelo que esperaram aguentaram e sentem nunca ter tido reconhecimento bastante.
Já para os portugueses com mais de 50 ou 55 anos o revisitarem a infância ou a juventude é mais desafiante. É uma mistura de recordações, de novos mundos descobertos, de desenraizamentos ou novos enraizamentos, de primeira desertificação do interior do Continente, de migrações e muitas mais imigrações, de transformações pessoais, familiares, comunitárias, de mortes choradas, de sinais na saúde e na vida, de traumas os mais diversos e em momentos diferentes por aquilo que sonharam e se fez, por aquilo que sonharam e se desfez, pelo que sofreram e ficou, pelo que esperaram aguentaram e sentem nunca ter tido reconhecimento bastante.
[Dos 3 DDD do 25 de Abril à atual Pandemia de Covid-19]
Para todos eles e muitos mais o juízo é tão complexo como complexa foi a mudança histórica que neste dia evocamos, na sua abertura para a Descolonização, para o Desenvolvimento, para a Liberdade, para a Democracia. Desenvolvimento, Liberdade e Democracia, sabemo-lo todos, sempre foram imperfeitos e por isso não plenos. Porque nunca tendo resolvido uma pobreza estrutural de dois milhões de portugueses e desigualdades pessoais e territoriais, e desinstitucionalizações, que aqui referi em 2016 e 2018, que a pandemia veio revelar e acentuar.
[25 de Abril de 1974; a complexidade e perplexidade da mudança histórica]
Esses Capitães de Abril não vieram de outras galáxias, nem de outras nações, nem surgiram num ápice naquela madrugada para fazerem história. Transportavam consigo já a sua história, as suas comissões em África, uma, duas, três, alguns quatro, anos seguidos nas nossas Forças Armadas, tendo de optar todos os dias entre cumprir ou questionar, entre acreditar num futuro querido ou que outros definiam ou não acreditar, entre aceitar ou a partir de certo instante romper, tudo em situações em que a linha que separa o viver e morrer é muito ténue apesar dos princípios, das regras, dos ditames escritos por políticos e juristas em gabinetes, que não são os cenários em que a coragem se soma à sobrevivência e à solidariedade na camaradagem. Pois foram estes homens, eles mesmos, não outros, os heróis naquela madrugada do 25 de Abril.
Como haviam sido eles e muitos, muitos mais os combatentes ano após ano nas longínquas fronteiras do Império. Como foram eles quem acabou por aceitar para símbolos públicos face visível da mudança oficiais mais antigos encimados pelos que haveriam de ser os dois primeiros Presidentes da República na transição para a Democracia. Que não eram, não tinham sido militares de alcatifa. Tinham sido grandes chefes militares no terreno e nele responsáveis por anos de combate, de coordenação com serviços de informação e de atuação anti guerrilha, de proximidade das populações.
Como haviam sido eles e muitos, muitos mais os combatentes ano após ano nas longínquas fronteiras do Império. Como foram eles quem acabou por aceitar para símbolos públicos face visível da mudança oficiais mais antigos encimados pelos que haveriam de ser os dois primeiros Presidentes da República na transição para a Democracia. Que não eram, não tinham sido militares de alcatifa. Tinham sido grandes chefes militares no terreno e nele responsáveis por anos de combate, de coordenação com serviços de informação e de atuação anti guerrilha, de proximidade das populações.
[Referência a Spínola e Costa Gomes,
dois brilhantes combatenetes,
que foram os primeiros PRP da transição para a Democracia,
sem esquecer depois o primeiro presidente eleito,
António Ramalho Eanes, que significativa e simbolicamente
recusou o bastão de Marechal]
Foi assim aquele dia 25 de Abril antes de suscitar o Processo Popular Revolucionário que o seguiu e apoiou. Antes de ser hoje património nacional em que o seu único soberano é o povo português.
Foi no seu eclodir resultado de décadas de resistência e depois crucialmente grito de revolta de militares que tinham dado anos das suas vidas à Pátria no campo de luta e que sentiam estar a combater sem futuro político visível ou viável presididos eles, e todos nós, por dois Chefes Militares um após outro que tinham conhecido intensa e prolongadamente o que é a guerra de guerrilha em missões militares e cargos politico ou militares os mais relevantes.
Eis por que razão é tão justo galardoar os Militares de Abril tendo merecido já uma homenagem muito especial aquele, de entre eles, que depois de ter estado no terreno veio a ser peça chave na mudança de regime e primeiro Presidente da República eleito da democracia portuguesa, e que sempre recusou o Marechalato que merecia e merece, o Presidente António Ramalho Eanes.
Eis também porque é tão difícil o juízo sobre uma história tão recente salvo naquilo que é de mais óbvio consenso: o consenso naquilo em que o Império não entendeu o tempo que o condenara. A ditadura não podia entender o tempo que a tinha condenado de forma irrefragável e ainda mais evidente a partir de 58 e da saga de Humberto Delgado e a relação colonial não conseguira entender a raiz da inevitabilidade da sua inconsequência.
[Prioridades: (re)pensar passado, presente e futuro]
Estas reflexões são atuais porque nada como o 25 de Abril para repensar o nosso passado quando o nosso presente ainda é tão duro e o nosso futuro é tão urgente.
E ainda porque a cada passo pode ressurgir a tentação de converter esse repensar do passado em argumento de mera movimentação tática ou estratégica num tempo que ainda é será de crise na vida e na saúde e de crise económica e social encaremos com lúcida serenidade o que pode agitar o confronto político conjuntural, mas não corresponde ao que é prioritário para os portugueses. E além de não ser prioritário nestes dias de crises é duvidoso que o seja alguma vez.
É prioritário estudar o passado e nele dissecar tudo: o que houve de bom e o que houve de mau. É prioritário assumir tudo, todo esse passado, sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas, nem autoflagelações globais excessivas.
E no caso do passado mais recente assumir a justiça largamente por fazer ao mais de um milhão de portugueses que serviram pelas armas o que entendiam ou lhes faziam entender constituir o interesse nacional. Aos outros milhões que cá ou lá viveram a mesma odisseia. Aos milhões que lá e cá a viveram do outro lado da história combatendo o Império colonial português batendo-se pelas suas causas nacionais ou a viveram do mesmo lado, mas ficaram esquecidos, abandonados por quem regressou e condenados por quem nunca lhes perdoou o terem alinhado com o oponente.
Aos muitos, e eram quase um milhão, que chegaram rigorosamente sem nada depois de terem projetado uma vida que era ou se tornou impossível. Aos muitos, e eram milhões, que sofreram nas suas novas Pátrias conflitos internos herdados da colonização ou dos termos da descolonização.
Até por respeito para com todas estas e a todos estes, que se faça história e história da História, que se retire lições de uma e de outra sem temores nem complexos, com a natural diversidade de juízos, própria da democracia. Mas que se não transforme o que liberta, e toda a revisitação o mais serena possível e liberta ou deve libertar em mera prisão de sentimentos, úteis para campanhas de certos instantes, mas não úteis para a compreensão do passado a pensar no presente e no futuro.
[O MFA e a CPLP: entender o essencial que nos une]
O 25 de Abril foi feito para libertar, sem esquecer nem esconder, mas para libertar e os que o fizeram souberam superar muitas das suas divisões durante a Revolução e depois dela a pensar na unidade essencial da mesma Pátria tomando os termos simplificadores desses tempos sensibilidades diferentes no Movimento das Forças Aramadas que se chocaram então, não deixaram de entender depois que a unidade essencial de uma rutura depois feita Revolução ela própria composta de várias revoluções tudo o mais sobrepuja. Nações irmãs na língua têm sabido encontrar-se connosco e nós com elas e têm sabido julgar um percurso comum olhando para o futuro ultrapassando séculos de dominação política, económica, social, cultural e humana.
[2024: meio século do 25 de Abril]
Que os anos que faltam até ao meio século do 25 de Abril sirvam a todos nós para trilharmos um tal caminho como a maioria dos portugueses o tem feito nas décadas volvidas fazendo de cada dia um passo mais no assumir as glórias que nos honram e os fracassos pelos quais nos responsabilizamos, e bem assim no construir hoje coesões e inclusões e no combater hoje intolerâncias pessoais ou sociais.
Quem vos apela a isso mesmo é o filho de um governante na Ditadura e no Império, que viveu na que apelida de sua segunda Pátria o ocaso tardio inexorável desse Império, e viveu depois, como constituinte, o arranque do novo tempo democrática. Charneira como milhões de portugueses, entre duas histórias da mesma História e nem por exercer a função que exerce olvida ou apaga a história que testemunhou. Como nem por ter testemunhando essa história deixou de ser eleito e reeleito pelos portugueses em democracia. Democracia que ajudou a consagrar na Constituição que há 45 anos nos rege.
[A humildade e acoragem de assumir o seu lugar no passado e no presente,
por parte do atual PRP que, nascido em 1948, viveu parte da juventude
em Moçambique quando o pai, o médico Baltazar Rebelo de Sousa (1921-2002),
foi lá Governador Geral, em 1968/70,
e homem forte do regime, no consulado de Marcelo Caetano:
ministro da Saúde e Assistência, em 1970/73,
e depois Ministro do Ultramar, 1973/74 ]
Que o 25 de Abril viva sempre, como gesto libertador e refundador da história. Que saibamos fazer dessa nossa história lição de presente e de futuro, sem álibis nem omissões, mas sem apoucamentos injustificados querendo muito mais e muito melhor.
Não há, nunca houve um Portugal perfeito. Como não há, nunca houve um Portugal condenado.
Houve, há e haverá sempre um só Portugal. Um Portugal que amamos e nos orgulhamos para além dos seus claros e escuros também porque é nosso.
Nós somos esse Portugal.
Viva o 25 de Abril!
Viva Portugal!
Não há, nunca houve um Portugal perfeito. Como não há, nunca houve um Portugal condenado.
Houve, há e haverá sempre um só Portugal. Um Portugal que amamos e nos orgulhamos para além dos seus claros e escuros também porque é nosso.
Nós somos esse Portugal.
Viva o 25 de Abril!
Viva Portugal!
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Fonte:
https://www.presidencia.pt/atualidade/toda-a-atualidade/2021/04/discurso-do-presidente-da-republica-na-sessao-solene-comemorativa-do-47-o-aniversario-do-25-de-abril/
[Seleção, revisão, substítulos, comentários, itálicos e negritos, para efeitos de edição neste blogue: LG, com a devida vénia...]
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Nota do editor:
9 comentários:
Meu caro Luís
Sobre este discurso concordo plenamente contigo.
È a Lucidez de quem não está entrincheirado.
Um Abraço
Joaquim Costa
E uma pena que os nossos leitores andem "preguiçosos" a comentar... E aproveito parar chamar a atenção para a entervista, publicada hoje no "Público", do coronel e historiador David Martelo
Recorde-se quem é:_
(i) oficial do Exército, coronel reformado,
(ii) nascido em 1946, em Viseu;
(iii) ingressou na carreira militar em 1963, mantendo-se no ativo até 1995 (, 3o anos);
(iv) encetou, então, a sua atividade como escritor, privilegiando o debate dos temas de defesa contemporâneos e a história militar:
(v) é autor das seguintes obras: O Exército Português na Fronteira do Futuro, As Mágoas do Império, A Espada de Dois Gumes, 1974 – Cessar-Fogo em África, O Cerco do Porto, A Dinastia de Avis e a construção da União Ibérica e Os Caçadores. Colaborou na obra Portugal e a Grande Guerra (coord. A. Afonso e C. M. Gomes);
(vi) Para as Edições Sílabo, traduziu e prefaciou as três principais obras de Maquiavel (O Príncipe, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e A Arte da Guerra) e a História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides;
(vii) é membro efetivo do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de História Militar.
(viii) de 2007 a 2012, foi membro do Comité Bibliográfico da Comissão Internacional de História Militar.
(Fonte:https://www.wook.pt/autor/david-martelo/12649)
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ENTREVISTA: DAVID MARTELO, CORONEL E HISTORIADOR
“A História é uma sucessão de feridas físicas e morais e temos de viver com isso”
David Martelo, coronel e historiador, lembra que Portugal “era um país pobre para poder ambicionar ter um império colonial”. E critica a reforma da estrutura superior da Defesa, dizendo que vai criar uma “coisa cabeçuda com pernas muito pequeninas”.
Helena Pereira, Eunice Lourenço (Renascença) e Nelson Garrido (Fotografia)
Público, 29 de Abril de 2021, 6:30
https://www.publico.pt/2021/04/29/politica/noticia/historia-sucessao-feridas-fisicas-morais-viver-1960415
Excertos:
(...) David Martelo, historiador e coronel, lembra que Portugal “era um país pobre para poder ambicionar um império colonial” e defende o fim das “autoflagelações sobre o colonialismo”
Marcelo Rebelo de Sousa (M.R.S.) na sua intervenção no 25 de Abril disse que se devia discutir a guerra colonial sem álibis e omissões. Ao fim destes anos todos, que álibis e omissões ainda existem?
Uma vez que tenho feito vasta investigação sobre o assunto, parece-me que é um tipo de frases feitas de pessoas que têm lido muito pouco sobre o que se tem publicado acerca da guerra colonial. Estão publicados mais de 600 títulos sobre a guerra colonial e a maior parte foi escrita por antigos combatentes. Como tem havido uma diminuição intensa do estudo da História, cada vez que um assunto destes vem para a ribalta, as pessoas agarram-se a estes chavões, mas não têm fundamento para o fazer. (...)
Excertos:
M.R.S. leu poucos desses livros, é isso?
Não, não. O Presidente está noutro plano. Ele foi extremamente hábil em ter aproveitado um tema que esteve muito recentemente em discussão, sobretudo devido ao falecimento do tenente-coronel Marcelino da Mata, e percebeu e muito bem que surgiram nessa altura posições extremamente surpreendentes, até do ponto de vista do bom senso histórico. E, portanto, como professor, quis utilizar a cerimónia do 25 de Abril como uma aula de pedagogia. Só tenho a louvá-lo. Terá sido também uma maneira de não falar de outros assuntos que são muito mais difíceis de abordar num dia festivo, como a corrupção. (...)
Excertos:
(...) Noutro artigo, o mesmo Manuel Loff escreveu que, enquanto “permanecem vivos os protagonistas imediatos da guerra colonial, permanece forte a ideologia da legitimidade da dominação colonial”. Em Portugal, acha que ainda existe essa ideologia da legitimidade da dominação colonial? Pensa que há uma nostalgia do império?
Tenho a certeza de que há uma pequena percentagem de antigos combatentes que ainda defende essa legitimidade, mas a maior parte ainda lamenta e com razão que, no contexto desta discussão, não reconheçam o enorme sacrifício que foi o terem lá ido.
Há que separar a questão política do serviço obrigatório, de cumprir aquilo que estava estabelecido na altura. Muitos dos oficiais que fizeram o 25 de Abril foram ilustres combatentes da guerra colonial e foi exactamente por terem esse sentimento do dever cumprido que se sentiram com o ânimo e justificação para fazerem o 25 de Abril. Essa ligação da guerra colonial com o 25 de Abril que está perfeitamente consolidada nos militares que o fizeram — não está, por vezes feita, de uma forma positiva na sociedade civil.(...)
Excertos:
(..) Está a dizer que houve um colonialismo bonzinho?
A ideia que por vezes vem a debate é essa. O colonialismo bonzinho, por vezes, é o resultado de não termos capacidade para sermos piores. A distância civilizacional entre nós e os africanos era menor do que entre os holandeses e os asiáticos ou os ingleses e os africanos. Como estávamos mais próximos deles, talvez não fôssemos tão arrogantes e por falta de meios financeiros não tínhamos capacidade para sermos uns grandes colonialistas. E isso foi, talvez, um dos erros maiores da História: foi querermos ter um império colonial, no final do séc. XIX, como a Inglaterra, e ainda quisemos ter aquele território entre Angola e Moçambique.
Isto era uma coisa absolutamente de loucos, nós não tínhamos meios. Éramos um país pobre, que não tinha riqueza nem excesso de população para poder ambicionar ter um império colonial. Quando chegámos à década de 50 e 60, é claro que foi um erro; assim que as outras potências começaram a descolonizar, o nosso Governo devia ter sido o primeiro a dizer: “Nós também!” Do ponto de vista político, foi um excesso. Parafraseando Camões, foi “mais do que prometia a força humana”. E há o aspecto humano dos militares que fizeram o sacrifício de lá estar e o dos que estavam lá como colonos.(...)
Ainda sobre o discurso do PRP no 25 de Abril de 2021... Entrevista a David Martelo, coronel e historiador:
(...) No dia a seguir, surgiram uma série de artigos de opinião que são esmagadoramente a favor e elogiosos do discurso do Presidente. O único que não foi tão elogioso foi o de Manuel Loff. A determinada altura escreveu:
“Quando Marcelo nos pede para não ‘[exigir] aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores (...) agora tidos por evidentes, intemporais e universais’, persiste num dos mais velhos erros metodológicos da leitura reaccionária do passado: o de inventar um tempo em que os valores dominantes seriam tão consensuais que nenhuns outros teriam sido enunciados. Em todas as épocas os valores dominantes tiveram alternativas; todas as ordens tiveram resistência; todas as verdades do tempo tiveram quem as denunciasse.”
É aqui que está a questão que mais necessita de ser debatida: as tais alternativas. Eu até sugeria aos mais novos que começassem por ler a carta de Pêro Vaz de Caminha sobre o achamento do Brasil, em que conta o encontro dos marinheiros portugueses com os habitantes locais. Ele faz a descrição minuciosa de como ele estavam seminus e como se conseguiam entender. A partir daí é necessário dizer quais eram as alternativas àquilo que se fez depois de os europeus, através dos portugueses, saberem que existiam essas terras habitadas por seres humanos que, segundo Charles Boxer, estavam na idade da pedra. O desafio que eu faço é: digam lá quais eram as alternativas. Os marinheiros chegavam lá e, em vez de irem imbuídos das bulas papais que foram concedidas ao rei de Portugal para as Descobertas, iam actuar com a moral actual?
É para isso que o Presidente da República chama a atenção.
Eu já fiz essa tentativa de saber como se lidava com essas populações. Quando uma pessoa diz que é contra o colonialismo, fico com a dúvida sobre o que essa pessoa está a dizer: uma coisa é ser contra o colonialismo numa perspectiva pós II Guerra Mundial; outra é ser contra o colonialismo e recuar às colónias gregas e fenícias e condenar isso tudo e pedir indemnizações. Tudo isso tem de ser devidamente contextualizado com bom senso.
Uma das posições que, embora não concordando, aceitaria seria dizer: “Quando os portugueses chegaram às costas do Brasil e viram que estavam lá seres humanos com os quais não se entendiam, deviam ter feito meia volta e terem-nos deixado lá estar em paz.”
A partir deste absurdo, vamos discutir se havia alternativas como disse o professor Manuel Loff. Estou desejoso de saber quais são. Fico à espera que este desafio do Presidente da República e a resposta do professor Manuel Loff sejam o próximo plano do debate, para acabarmos de vez com estas suspeições e estas autoflagelações que têm sido feitas nos últimos tempos. (...)
https://www.publico.pt/2021/04/29/politica/noticia/historia-sucessao-feridas-fisicas-morais-viver-1960415
Obrigado Luís
Sem prejuízo de vir novamente a terreiro, eventualmente num post, deixa que te diga que é sempre muito reconfortante ler os teus comentários, sem barreiras nem trincheiras, não virando a cara a uma boa refrega, mas sempre disponível para ouvir, e, se for o caso, dar razão ao interlocutor sem nenhum constrangimento.
Sempre desconfiei de quem se acha detentora da única verdade . a sua
Um grande abraço e dorme bem
Joaquim Costa
Joaquim, nenhum de nós tem a "verdade"... Cada um usa os "óculos" que tem para ler a "realidade", o passado, o presente e o futuro... Todos temos "grelhas de leitura do real... mais ou menos "enviesadas"....
A(s) ciência(s) (incluindo as ciências sociais, a antropologia, a sociologia, a história...) ajudam-nos, através do conhecimento produzido, a ler melhor, com mais validade e fiabilidade, aquilo que somos e a nossa circunstância...
No nosso blogue, como sabes, não "vendemos verdades", produzimos apenas "memórias e afetos", contamos histórias... E, como camaradas que fomos e somos, somos pessoas de boa vontade, sinceras e intlectualmente honestas... É essa a nossa maneira de ser e estar ba Tabanca Grande...
Claro que é impensável que haja "unanimismo" nas nossas leituras e interpretações dos acontecimentos... Cada umn de nós é único, e pensapela pela sua cabeça, com todaas as limitações que tem, a comneçar pela informação e o conhecimento... Eu não sei 99,99% do que devia saber, e se chegasse aos 100% era ... Deus!... E eu não quero ser Deus!...Proque se soubesse tudo, se fosse ominisciente, dava em doido!...
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