Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 24 de junho de 2022
Guiné 61/74 - P23382: Notas de leitura (1458): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Outubro de 2019:
Queridos amigos,
Aqui se fala de um dos mais escabrosos ditadores africanos, Idi Amin, e da tragédia do Ruanda. Desta, recordo-me perfeitamente, trouxe-me a convicção absoluta que naquele ano de 1994 eu já estava a viver, na plenitude, a civilização do espetáculo, mediada por talk shows, reality shows, arraiais de futilidades, mexeriquices, a morte em direto. Tinha ido fazer uma pós-graduação na Universidade de Lovaina a Nova, enquanto comíamos, tanto ao almoço como ao jantar, os ecrãs exibiam filas intermináveis de seres humanos em fuga, tudo sem comentários. Ninguém conversava enquanto levava à comida à boca, a olhar os tais caminhantes exaustos, esqueletos em movimento, sem uma palavra ou um sorriso, humilhados e submissos, como os descreve Ryszard Kapuscinski. Talvez por pudor, o eminente jornalista polaco não revela que os esqueletos por vezes se transformavam em cadáveres, e era assim que partilhávamos a morte em direto, em estradas em direção ao Zaire.
Um abraço do
Mário
Ébano, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (2)
Beja Santos
Em “Ébano”, Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, escreve este magistral jornalista a propósito de Idi Amin: “É o ditador mais conhecido em toda a História da África moderna e um dos mais execráveis do século XX em todo o mundo”. É preciso entender a identidade do monstro, e o autor é minucioso a descrever o seu percurso até se tornar, graças às promoções dos ingleses, general. Chega ao poder por golpe de Estado acompanhado de massacre, criam-se câmaras de tortura. Um mês depois do golpe, Amin autonomeou-se presidente, depois marechal, depois marechal de campo e, por último, tornou este título vitalício. Oiçamos Kapuscinski: “O carro em que se deslocava era escolhido em função do uniforme que envergava. Ao uniforme de gala correspondia o Mercedes preto, ao fato de treino para um passeio o Maserati, e ao uniforme de campo um Range Rover do Exército. Este último carro parecia um automóvel saído de um filme de ficção-científica: estava equipado com uma verdadeira floresta de antenas, arames de todos os tipos, tubos, faróis. No interior carregava granadas, pistolas e facas. Era um ditador que não confiava em ninguém, dormia cada noite em paradeiros diferentes. Era ele que entrava em contato com os seus ajudantes, era ele que decidia com quem falava, quem queria ver. Quando queria dar a conhecer remodelações no Governo transmitia-as via rádio. O seu poder era monopolístico, a comunicação centrava-se nele”.
E assim finda este currículo nefasto: “O domínio de Amin durou oito anos. De acordo com diversas fontes, o marechal terá assassinado durante a sua vida entre 150 mil a 300 mil pessoas. Depois foi ele quem se conduziu a si próprio para o abismo. Uma das suas obsessões era o ódio ao presidente da vizinha Tanzânia, Julius Nyerere. Em finais de 1978, atacou aquele país. O exército da Tanzânia reagiu. Os soldados de Nyerere invadiram o Uganda. Amin fugiu para a Líbia, depois instalou-se na Arábia Saudita, que o recompensou pelo seu esforço de divulgação do Islão. O exército de Amin desfez-se uma parte voltou para casa, a outra parte a viver de assaltos. Nessa guerra, o que perdeu o exército da Tanzânia: um tanque”. E Kapuscinski elenca o drama desse Uganda flagelado por ditadores e guerras tribais.
Não menos impressionante é o que ele escreve sobre o Ruanda, onde em 1994 ocorreu um monstruoso genocídio. Tenha-se em conta a descrição do jornalista:
“O Ruanda é um país montanhoso. Embora o continente africano se caracterize mais pelas planícies e pelos planaltos, no Ruanda predominam as montanhas. Algumas atingem os 2,3 mil metros de altitude e até mais. É por isso que, muitas vezes, se faz referência a este país como sendo o Tibete de África. Enquanto as populações dos estados africanos são geralmente compostas por membros de diversas tribos (no Congo, vivem 300 tribos, na Nigéria 250), no Ruanda existe apenas uma comunidade, a nação dos banyaruandas, dividida tradicionalmente em três castas: a casta dos proprietários das manadas de vacas – os tutsis (14% da população) –, a casta dos camponeses – os hutus (85%) – e a casta dos servos e criados – os twas (1%). Este sistema de castas (com algumas analogias em relação à Índia foi criado há séculos, mas é ainda hoje controversa a sua origem. Discute-se se terá sido no século XII ou XV, porque não existem fontes escritas sobre esta matéria”.
Era uma colónia pouco apetecível, o Ruanda tinha sido atribuído à Alemanha, facto que os ruandeses ignoraram, e os alemães nunca manifestaram grande interesse por esta colónia que passou para as mãos da Bélgica, depois da II Guerra Mundial, que também não mostrou muito entusiasmo, visto que o Ruanda ficava longe da costa e era na época um país pobre em matérias-primas. Por todas estas circunstâncias, o sistema social secular dos banyaruandas manteve-se intato até à segunda metade do século XX. Os ruandeses eram governados por um monarca, a vaca servia de medida para tudo, os tutsis eram proprietários de manadas por serem uma casta dominante, e os hutus formavam a casta dos camponeses. O autor explica o relacionamento interétnico: “Entre tutsis e hutus existiam relações de vassalagem; o tutsi tinha ascendente sobre o hutus, seu criado. Os hutus eram a clientelados tutsis. Eram camponeses que viviam do cultivo das terras. Uma parte das colheitas era entregue ao senhor, que os protegia e lhes dava uma vaca. Tudo como no feudalismo”. Em meados do século XX, vai crescendo a natureza do conflito, ambas as etnias precisam de terra, precisam de mais espaço e o país tem dimensões diminutas. Em 1959 rebenta no Ruanda uma revolta de camponeses que culminou com a destituição do rei, a gironda e o terror.
“Multidões de camponeses, massas de hutus libertados avançam armados com catanas, picaretas e lanças contra os seus senhores e mestres, os tutsis. Dá-se um enorme massacre, a que há muito já não se assistia em África, incendeiam-se propriedades, cortam-se cabeças. Fugiram dezenas de milhares de tutsis e os camponeses hutus tomaram o poder. Depois destes acontecimentos, a nação ficou dividida em dois campos inimigos. Os tutsis planeiam vingança, em 1963 atacam a partir do Sul, do vizinho Burundi. Dois anos mais tarde, dá-se uma nova invasão dos tutsis, segue-se um enorme massacre contra os tutsis pelo exército dos hutus. Há quem diga que 50 mil tutsis foram eliminados pelos hutus". Mas ao lado está o Burundi e Kapuscinski descreve alterações no regime político, e também no Uganda, onde se estava a formar um exército experiente de tutsis desejosos de vingança. Na noite de 30 de setembro de 1990, saem dos quarteis do exército ugandês e entram no Ruanda ao romper da aurora. Vai começar o genocídio, a França intrometeu-se, mandou paraquedistas, o país parecia dividido, era um estranhíssimo compasso de espera. Os estados africanos forçaram o entendimento entre o governo legítimo e a guerrilha, a Frente Nacional do Ruanda. Em abril de 1994 é abatido, não se sabe bem por quem, um avião que se fazia à pista do aeroporto de Kigali, a capital, onde vinha o presidente. Foi o sinal para o início do massacre dos opositores do regime. Estima-se entre meio e um milhão de mortos, uma chacina sistemática durante três meses. “A maioria das pessoas não morreu por causa das bombas e das metralhadoras, mas atacada por armas muito primitivas – catanas, martelos, lanças e paus; morreu espancada e triturada”.
E as multidões puseram-se em fuga, tornaram-se um acontecimento televisivo. E as observações de Kapuscinski terminam num elevado grau de acidez:
“Enquanto durante o nacional-socialismo e o estalinismo eram os membros de instituições especiais – SS ou NKVD – que matavam, e os crimes cometidos por estas brigadas eram cometidos longe dos olhares indiscretos, no Ruanda era importante que todos matassem, que o crime se tornasse produto de uma revolta popular maciça, quase espontânea, para que não restasse alguém que não tivesse as mãos manchadas de sangue daqueles que eram tidos como inimigos do regime. Os hutus fugiram depois de serem derrotados para o Zaire. As pessoas na Europa, que viam as intermináveis colunas de pessoas, não conseguiam perceber que força era aquela que movia estes caminhantes exaustos, o que é que ordenava àqueles esqueletos que estivessem em constante movimento, em longas e densas filas, sem parar, sem comer nem beber, sem uma palavra ou um sorriso, humilhados, submissos e medindo com o seu olhar vazio o caminho-fantasma de culpa e dor”.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 20 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23370: Notas de leitura (1457): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (1) (Mário Beja Santos)
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1 comentário:
Ruanda que juntamente com Burundi minúsculas ex-colónias belgas coladas ao ex-Congo Belga enorme, são três países independentes no principio de 1960, vizinhos de Angola.
A vida desconjuntada desses três países era tão violenta, com ajuda da ONU da América do Norte, e União Soviética, de mercenários, e também com um jeitinho do governo de Angola que dava asilo discreto a mercenários, que eram um exemplo extremamente negativo para o povo angolano não alinhar às cegas nos movimentos angolanos independentistas.
Os paises africanos a quem correu pior as independências foram às ex-colónias portuguesas e Belgas, exceção como todas as regras, Caboverde e São Tomé.
Os ingleses sempre conseguiram evitar a intromissão de terceiros nas suas ex-colónias exceção mais evidente a Serra Leoa por causa dos diamantes.
Mas a violência em África, tanto tribal, política ou religiosa, não comove muito nem europeus nem chineses nem americanos nem russos, os donos disto tudo.
Mas as culpas maiores dessa violência vai cair sobre a Europa.
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