© ADÃO CRUZ
Reflexão
adão cruz
A minha vida clínica de quase sessenta anos está a findar. Desde a pobreza da medicina rural nos confins da Serra da Gralheira, à dura e precária assistência médica na guerra colonial da Guiné, passando pela sombria urgência nos empedrados corredores do velho Hospital de Santo António até às tecnologias dos dias de hoje, tudo atravessei, com a consciência de que a minha consciência nunca me atraiçoou.
De tudo eu vi, desde a máxima nobreza do ser humano à sua maior indignidade e degradação. Em todo o meu percurso, permanentemente irmanado com as forças e as fraquezas humanas, sempre ergui vitórias e tropecei em fracassos, como toda a gente, mas muito especialmente nesta nobre e perigosa profissão em que é possível ser herói mas também vítima da fragilidade humana. Mas os meus sonhos e todos os horizontes que esses sonhos abriram à minha frente durante uma vida inteira, há muito que tendem a ruir e a dissolver-se na angústia e na tristeza de ver o caminho sinuoso por onde está a enveredar a medicina.
A ciência médica evoluiu espantosamente do ponto de vista da investigação e dos avanços tecnológicos, mas de forma muitas vezes anárquica e desarticulada das necessidades sociais. Além disso, o abandono e os ataques ao Serviço Nacional de Saúde pela empresarialização e a industrialização da assistência médica transformaram o exercício da medicina numa fábrica de exames e o doente na matéria prima necessária à superprioridade do lucro. Por outro lado, a alienação da verdadeira clínica como pilar fundamental da medicina e do seu carácter humano na relação com o doente, transfigurou o médico num agente técnico-industrial e o doente numa simples ficha com um número, encarrilado numa espécie de linha de montagem. Como se não bastasse, a perda social de muitos dos conceitos de valor, a par do obscurantismo como grande predador da inteligência e da cultura, constituem o caldo adequado à proliferação de toda esta disforme aberração civilizacional que estamos a viver a todos os níveis.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 16 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23529: (In)citações (215): Reflexão entre dois copos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)
7 comentários:
O Sr. Doutor Adão Cruz, nosso camarada na guerra da Guiné, sem arranjar pseudónimo vai ficar entre os nossos distintos médicos/escritores, no seu caso poeta. E que poeta.
Poeta e notável cidadão.
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
Tens razão Valdemar!
É uma alegria muito grande reconhecer na pessoa do Dr. Adão Cruz, as qualidades que engrandecem o ser humano e o transportam nas asas da nossa imaginação, desolados por haver cada vez menos Homens como ele.
Obrigado Dr. Adão Cruz!!
Os seus poemas, uns com as cores das tintas outros com as cores das palavras, enriquecem este blog de memórias.
Abraço
Eduardo Estrela
Que texto reconfortante!
Pensava eu, depois de ser bombardeado diariamente com uma miríada de especialista a opinarem sobre o nosso SNS, que o Juramento de Hipócrates já tinha caducado. Pois segundo estes iluminados especialistas o busílis do SNS são os vencimentos dos ditos.
Obrigado camarada Adão, pelo seu humanismo, pela sua sabedoria, pela sua sensibilidade (humana e estética) julgo que sublimada pela sua passagem pela guerra na Guiné.
O meu muito obrigado
Joaquim Costa
Caros amigos
Não por preguiça mas por entender desnecessárias mais palavras, permito-me subscrever o que foi aqui colocado por todos os antecedentes.
Apenas chamo a atenção ao Valdemar que além de "Poeta e notável cidadão" devia também ser acrescentado "e pintor".
Hélder Sousa
Adao Cruz dixit:
"Mas os meus sonhos e todos os horizontes que esses sonhos abriram à minha frente durante uma vida inteira, há muito que tendem a ruir e a dissolver-se na angústia e na tristeza de ver o caminho sinuoso por onde está a enveredar a medicina".
Caro amigo Adao Cruz, nao é a medicina que esta a ruir, é o mundo que conheciamos até aqui, é a humanidade no seu todo.
Um mundo diferente, com valores e ambientes diferentes estao a nascer diante dos nossos olhos, um mundo a que nos ja nao pertencemos, feliz ou infelizmente.
Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
Meu caro Helder é verdade, passou-me.
Mas o Estrela corrigiu-me e assinalou com esta máxima:
"Os seus poemas, uns com as cores das tintas outros com as cores das palavras...."
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
Para uma melhor homenagem prestada ao dr. Adão Cruz e à sua sensibilidade como homem, médico e
artista subscrevo o comentário do Cherno Baldé.
Carlos Gaspar
Enviar um comentário