Devo dizer, em primeiro lugar, que estou muito sensibilizado pelo convite de Gustavo Pimenta [n. 1944, em Ponta de Lima] para fazer a apresentação do seu primeiro livro. Suponho, aliás, que o convite tem sobretudo a ver, para além da sólida amizade que nos liga, com o facto de o autor saber do meu interesse pelo tema que trata o livro – a guerra colonial – e da minha relação com o período mais penoso da geração a que ambos pertencemos.
No final dos anos 60, na Guiné, eu e ele cruzámo-nos sem nos cruzarmos, percorremos trilhos da mesma aventura, navegámos os mesmos rios, pisámos a mesma terra, vivemos os mesmos perigos, suportámos os mesmos sacrifícios, socorremos os nossos feridos, chorámos os nossos mortos, colhemos experiências comuns, e chegámos até a frequentar os mesmos quartéis. Quando – já não sei em que data – a companhia de Gustavo Pimenta esteve em trânsito pela sede do meu batalhão, embora por muito pouco tempo, certamente chegámos a estar tão próximos um do outro quanto estamos agora aqui, nesta sala, a celebrar um acontecimento extremamente importante: a celebração de um novo livro. Quer-se dizer: a celebração do seu primeiro livro. Mas ainda que tenhamos estado na mesma unidade, nunca porém nos encontrámos.
Só mais tarde, devido a uma circunstância feliz, viemos a conhecer-nos em Lisboa, para – já então reconciliados com o nosso passado de guerreiros transitórios – voltarmos à Guiné como homens livres, na companhia de um amigo comum, o tenente-coronel José Aparício, seu antigo comandante. Foi nessa viagem de trabalho e depois dela que nasceu e se desenvolveu a nossa amizade. Uma amizade que ficou para a vida inteira.
Para a maioria dos presentes, senão mesmo para todos, Gustavo Pimenta dispensaria apresentações. Mas, se me permitem, gostaria ainda assim de fazer algumas considerações acerca do autor de sairòmeM. Além de amigo exemplar, Gustavo Pimenta é também um homem de fino trato na relação com os outros, senhor de uma extraordinária verticalidade no confronto com a vida e o mundo que o rodeia.
Durante quase vinte anos fui, na qualidade de jornalista, regularmente à Assembleia da República. E posso dizer, sem qualquer favor prestado, que Gustavo Pimenta foi um dos deputados [pelo Partido Socialista, na mais discretos que algum dia conheci nas sucessivas legislaturas que acompanhei. E ser-se discreto não significa, neste caso, ao contrário de muitos outros, infelizmente, um menor empenhamento nos trabalhos do plenário ou nas comissões parlamentares. Esteve sempre onde devia estar, com o mesmo espírito de missão e sentido de dever com que no passado lutou por uma causa em que ele próprio não acreditava.
No seu livro, o autor escreve, a propósito. Passo a citar:
"Mais do que não sentirmos nosso o que defendíamos, o dilema estava em não sabermos, não entendermos, o que estávamos a defender. Aquela terra, aquelas gentes, por mais hospitaleiras que se nos oferecessem, nada nos diziam. Não éramos dali. Fôramos parar à Guiné como, na roleta das mobilizações, poderíamos ter ido parar a qualquer outra colónia. Coubera-nos em rifa o cu do mundo, dizíamos. Porque o cu do mundo, se existe, é sempre o sítio da nossa perplexa angústia".
(...) Além da atitude simples e discreta deste homem perante a vida, dos sentimentos de solidariedade que o habitam, das qualidades humanas a que já fiz referência, e só não me alonguei por respeito à modéstia que o caracteriza, Gustavo Pimenta é também um herói. E não sou eu a dizê-lo.
Há cerca de três anos, a SIC passou um documentário sobre a guerra colonial. Nesse documentário, que relata um dos episódios mais tristes e violentos da guerra em África, participaram, entre outros antigos combatentes, Gustavo Pimenta, o tenente-coronel José Aparício, seu antigo comandante, e vários oficiais dos exércitos português e guineense.
O filme conta a história da operação militar da retirada da Companhia 1790 do aquartelamento de Madina do Boé, durante a qual morreram 46 militares, 15 dos quais pertencentes ao pelotão comandado pelo ex-alferes miliciano Gustavo Pimenta. A tragédia, de incomensuráveis proporções, ocorreu quando a jangada que ligava as duas margens do rio Corubal, para o transporte dos homens e das viaturas, se virou inexplicavelmente. Muitos salvaram-se, muitos morreram. Vinham de Madina – essa região vasta e despovoada no leste do território, junto à fronteira com a República da Guiné-Conacri – onde a companhia de caçadores, de que fazia parte Gustavo Pimenta, estivera estacionada durante treze meses. E em treze meses, não contando com o número de ataques da forças do PAIGC de duração inferior a dez minutos, que em muitos casos só serviam para causar desestabilização e afectar psicologicamente os militares, o quartel foi bombardeado por 243 vezes.
Sobre a vida tormentosa dos homens que pertenceram à Companhia de Caçadores 1790, desses soldados anónimos que viveram no confronto permanente com a morte, pronunciaram-se no documentário que atrás citei quatro antigos combatentes: dois oficiais portugueses e outros dois guineenses.
Num depoimento emocionado, o brigadeiro Hélio Felgas, que era o comandante da operação e comandante do sector, diz o seguinte: "Quando o general Spínola deixou o helicóptero e foi ter comigo, eu estava a chorar. Porque realmente pareceu-me injusto que homens que tanto tinham sofrido, que militarmente haviam sido uns heróis, acabassem por morrer afogados".
Também o general Almeida Bruno se refere aos militares da Companhia 1790 em termos que não deixam margem para dúvidas. Passo a citá-lo: "Quero aqui prestar uma homenagem – a minha homenagem pessoal, como comandante que fui – a todos os militares, oficiais sargentos e praças, que viveram e combateram em Madina, que, com uma coragem notável, resistiram não só ao adversário, ao inimigo, como às condições adversas em que viveram. E julgo que um dia a história vai fazer dos militares que viveram em Madina o exemplo típico do soldado português, que é verdadeiramente de excepção".
Sobre a capacidade de resistência e heroísmo dos militares que, como Gustavo Pimenta, viveram e combateram em Madina do Boé, Ierro Camará, antigo guerrilheiro e actual tenente-coronel do exército guineense afirma também. E cito-o: "Todos aqueles que combateram em Madina do Boé, tanto da parte portuguesa como da parte do PAIGC, podem ser considerados heróis. São heróis mesmo!".
Ainda no mesmo documentário, o coronel Aliú Camará, ex-comandante da unidade de artilharia que regularmente bombardeava o quartel, falando por si e pelos seus antigos camaradas, diz. Passo a citar: "Nós rendemos homenagem aos ocupantes de Madina, porque era muito difícil viver naquelas circunstâncias. Sempre à espera dos bombardeamentos, em horas alternadas, às vezes à meia-noite, às vezes ao meio-dia, às vezes no período da tarde, tantas vezes que ninguém pode imaginar aquele sacrifício".
(...) No seu livro, Gustavo Pimenta lembra o episódio mas, como noutros que relata, fá-lo com a serenidade e o distanciamento de quem acha haver cumprido uma simples missão, sem aclarar, no entanto, que essa e outras tarefas exigiram dele e dos restantes camaradas sacrifícios impensáveis. É do autor s seguinte frase. Cito-o: "Em cima da jangada vinham dezenas de homens que, durante cerca de treze meses se haviam habituado a mergulhar para a vala mais próxima ou a correr para o abrigo mais à mão, sempre que o som cavo das granadas à saída da boca dos morteiros ou dos canhões sem recuo anunciavam mais um ataque com armas pesadas".
O livro de Gustavo Pimenta não é um romance. É um livro de memórias. Um livro que exclui a existência de heróis – ainda que o tenham sido todos quantos viveram e combateram em Madina do Boé –, um livro que reflecte sobre a existência do sacrifício na sua expressão mais brutal e nos ajuda a reflectir, à distância de 30 anos, acerca da dimensão de uma das maiores tragédias do nosso tempo, à escala nacional. Gustavo Pimenta escreve sobre o império do delírio da guerra com um sentimento que nos emociona. Está ali uma parte da sua vida, a partida e o regresso a casa; o relato dos anos perdidos da juventude num país longe, a mais de quatro mil quilómetros de sua casa. É dele a seguinte frase. Passo a citar: "Não desejávamos a morte, nossa ou deles, mas ninguém abdica do direito à valentia. Cada combate era sempre uma questão pessoal onde não se prescindia do melhor desempenho. É por isso que os portugueses serão sempre bons soldados".
Sinceramente, nunca li, nas dezenas de livros até hoje publicados em Portugal sobre a guerra colonial, todos ou quase todos ficcionados, uma reflexão desta natureza. Gustavo Pimenta odiava a guerra, combatia contra a sua própria guerra, não queria morrer nem desejava a morte dos outros, dos que lutavam do lado de lá, mas ainda assim não deixa de reconhecer que nem ele nem ninguém abdicaria do direito à vitória de um combate – nem que para isso fosse preciso pôr em causa a própria vida.
Escrever isto, no registo em que o faz, constitui uma atitude de coragem digna de louvor. Li o primeiro esboço do sairòmeM em Julho passado, quando Gustavo Pimenta me consentiu esse privilégio. É um livro comovente, escrito num registo elegante e poético. E só um homem como Gustavo Pimenta, despretensioso, simples, naturalmente simples, poderia escrever um livro destes.
Não sou crítico literário e por isso não me atreverei a tecer quaisquer considerações técnicas à boa maneira dos críticos literários. No entanto, como leitor atento, permitam-me que aconselhe a leitura desta obra, não apenas às pessoas particularmente sensíveis ao tema, mas a todas em geral. Porque além das emoções que se revelam em cada página, há também a beleza da linguagem que nos prende e nos seduz. Felicitemos pois o autor e marquemos desde já com ele um novo encontro para a apresentação do seu segundo título.
José Manuel Saraiva
Fonte: Extractos de Palimage Editores - A Imagem e A Palavra
(...) Além da atitude simples e discreta deste homem perante a vida, dos sentimentos de solidariedade que o habitam, das qualidades humanas a que já fiz referência, e só não me alonguei por respeito à modéstia que o caracteriza, Gustavo Pimenta é também um herói. E não sou eu a dizê-lo.
Há cerca de três anos, a SIC passou um documentário sobre a guerra colonial. Nesse documentário, que relata um dos episódios mais tristes e violentos da guerra em África, participaram, entre outros antigos combatentes, Gustavo Pimenta, o tenente-coronel José Aparício, seu antigo comandante, e vários oficiais dos exércitos português e guineense.
O filme conta a história da operação militar da retirada da Companhia 1790 do aquartelamento de Madina do Boé, durante a qual morreram 46 militares, 15 dos quais pertencentes ao pelotão comandado pelo ex-alferes miliciano Gustavo Pimenta. A tragédia, de incomensuráveis proporções, ocorreu quando a jangada que ligava as duas margens do rio Corubal, para o transporte dos homens e das viaturas, se virou inexplicavelmente. Muitos salvaram-se, muitos morreram. Vinham de Madina – essa região vasta e despovoada no leste do território, junto à fronteira com a República da Guiné-Conacri – onde a companhia de caçadores, de que fazia parte Gustavo Pimenta, estivera estacionada durante treze meses. E em treze meses, não contando com o número de ataques da forças do PAIGC de duração inferior a dez minutos, que em muitos casos só serviam para causar desestabilização e afectar psicologicamente os militares, o quartel foi bombardeado por 243 vezes.
Sobre a vida tormentosa dos homens que pertenceram à Companhia de Caçadores 1790, desses soldados anónimos que viveram no confronto permanente com a morte, pronunciaram-se no documentário que atrás citei quatro antigos combatentes: dois oficiais portugueses e outros dois guineenses.
Num depoimento emocionado, o brigadeiro Hélio Felgas, que era o comandante da operação e comandante do sector, diz o seguinte: "Quando o general Spínola deixou o helicóptero e foi ter comigo, eu estava a chorar. Porque realmente pareceu-me injusto que homens que tanto tinham sofrido, que militarmente haviam sido uns heróis, acabassem por morrer afogados".
Também o general Almeida Bruno se refere aos militares da Companhia 1790 em termos que não deixam margem para dúvidas. Passo a citá-lo: "Quero aqui prestar uma homenagem – a minha homenagem pessoal, como comandante que fui – a todos os militares, oficiais sargentos e praças, que viveram e combateram em Madina, que, com uma coragem notável, resistiram não só ao adversário, ao inimigo, como às condições adversas em que viveram. E julgo que um dia a história vai fazer dos militares que viveram em Madina o exemplo típico do soldado português, que é verdadeiramente de excepção".
Sobre a capacidade de resistência e heroísmo dos militares que, como Gustavo Pimenta, viveram e combateram em Madina do Boé, Ierro Camará, antigo guerrilheiro e actual tenente-coronel do exército guineense afirma também. E cito-o: "Todos aqueles que combateram em Madina do Boé, tanto da parte portuguesa como da parte do PAIGC, podem ser considerados heróis. São heróis mesmo!".
Ainda no mesmo documentário, o coronel Aliú Camará, ex-comandante da unidade de artilharia que regularmente bombardeava o quartel, falando por si e pelos seus antigos camaradas, diz. Passo a citar: "Nós rendemos homenagem aos ocupantes de Madina, porque era muito difícil viver naquelas circunstâncias. Sempre à espera dos bombardeamentos, em horas alternadas, às vezes à meia-noite, às vezes ao meio-dia, às vezes no período da tarde, tantas vezes que ninguém pode imaginar aquele sacrifício".
(...) No seu livro, Gustavo Pimenta lembra o episódio mas, como noutros que relata, fá-lo com a serenidade e o distanciamento de quem acha haver cumprido uma simples missão, sem aclarar, no entanto, que essa e outras tarefas exigiram dele e dos restantes camaradas sacrifícios impensáveis. É do autor s seguinte frase. Cito-o: "Em cima da jangada vinham dezenas de homens que, durante cerca de treze meses se haviam habituado a mergulhar para a vala mais próxima ou a correr para o abrigo mais à mão, sempre que o som cavo das granadas à saída da boca dos morteiros ou dos canhões sem recuo anunciavam mais um ataque com armas pesadas".
O livro de Gustavo Pimenta não é um romance. É um livro de memórias. Um livro que exclui a existência de heróis – ainda que o tenham sido todos quantos viveram e combateram em Madina do Boé –, um livro que reflecte sobre a existência do sacrifício na sua expressão mais brutal e nos ajuda a reflectir, à distância de 30 anos, acerca da dimensão de uma das maiores tragédias do nosso tempo, à escala nacional. Gustavo Pimenta escreve sobre o império do delírio da guerra com um sentimento que nos emociona. Está ali uma parte da sua vida, a partida e o regresso a casa; o relato dos anos perdidos da juventude num país longe, a mais de quatro mil quilómetros de sua casa. É dele a seguinte frase. Passo a citar: "Não desejávamos a morte, nossa ou deles, mas ninguém abdica do direito à valentia. Cada combate era sempre uma questão pessoal onde não se prescindia do melhor desempenho. É por isso que os portugueses serão sempre bons soldados".
Sinceramente, nunca li, nas dezenas de livros até hoje publicados em Portugal sobre a guerra colonial, todos ou quase todos ficcionados, uma reflexão desta natureza. Gustavo Pimenta odiava a guerra, combatia contra a sua própria guerra, não queria morrer nem desejava a morte dos outros, dos que lutavam do lado de lá, mas ainda assim não deixa de reconhecer que nem ele nem ninguém abdicaria do direito à vitória de um combate – nem que para isso fosse preciso pôr em causa a própria vida.
Escrever isto, no registo em que o faz, constitui uma atitude de coragem digna de louvor. Li o primeiro esboço do sairòmeM em Julho passado, quando Gustavo Pimenta me consentiu esse privilégio. É um livro comovente, escrito num registo elegante e poético. E só um homem como Gustavo Pimenta, despretensioso, simples, naturalmente simples, poderia escrever um livro destes.
Não sou crítico literário e por isso não me atreverei a tecer quaisquer considerações técnicas à boa maneira dos críticos literários. No entanto, como leitor atento, permitam-me que aconselhe a leitura desta obra, não apenas às pessoas particularmente sensíveis ao tema, mas a todas em geral. Porque além das emoções que se revelam em cada página, há também a beleza da linguagem que nos prende e nos seduz. Felicitemos pois o autor e marquemos desde já com ele um novo encontro para a apresentação do seu segundo título.
José Manuel Saraiva
Fonte: Extractos de Palimage Editores - A Imagem e A Palavra