Resposta do Carlos Fortunato, em mensagem enviada hoje ao Afonso Sousa (e que agora se divulga no blogue):
Amigo Afonso: Vou tentar responder, separando claramente aquilo que são os factos e aquilo que são especulações:
a) O objectivo principal era tomar o poder ou eram as missões a), b) e c) ?
O que me foi dito foi feito de forma informal, e apenas nos dias seguintes aos acontecimentos terem ocorridos, quer pelos comandos africanos que participaram na operação, quer pelos oficiais da companhia, quer pelo agente da Pide que dava apoio ao batalhão.
Não sei se foi formalmente definida a tomada do poder como objectivo principal, mas dada a sua importância e os meios envolvidos, parece que esse era o objectivo mais importante. Toda a gente se referia a este objectivo como o objectivo principal. O o futuro presidente seria um antigo sargento do exército de Sekou Touré (não me lembro do nome), o qual iria atravessar a fronteira na região da sua etnia, e mobilizar a mesma para dar apoio à queda do regime.
A tomada da rádio era um objectivo fundamental para a tomada do poder, dado que o exército era principalmente constituido por forças não regulares(milícias), que não deveriam ser alertadas até a situação estar controlada.
De igual modo era fundamental para o controlo do poder a destrução dos Migs e de Sekou Touré. O agente da Pide disse-me inclusive que existiam espiões da Pide em Conacri, o que se confirmou mais tarde com a prisão e morte de um alemão, acusado de
espionagem.
b) A 1ª fase da invasão não foi bem sucedida ? Não é o que consta.
Desconheço totalmente o que se passou na 1ª fase da missão.
c) Concretamente qual era a missão da sua companhia ?
c1) Não esteve em Conacri ?
d) Que instruções ou justificação receberam para não actuar ? (lembra-se ?)
A minha companhia estava em Bissorã, era a CCAÇ 13, constituida praticamente apenas por africanos, tinha até um oficial e um cabo africano, e fomos chamados para assinar um documento em como não pertencíamos ao exército português, que iriamos seguir para Bissau, que não precisavamos de levar armamento e que iríamos fazer uma operação numa ilha no sul da Guiné controlada pelo PAIGC, onde faríamos um desembarque em lancha.
Seguimos para Bissau levando apenas as G3, pois poderia haver um ataque pelo caminho. Chegados a Bissau foi-nos dito que não podiamos sair do aquartelamento montado com tendas e que a qualquer momento nos viriam de helicóptero, que nos levariam para uma ilha onde nos seria dado o armamento e que seguiriamos depois para a operação.
Em Bissau encontramos a CCAÇ 14, a outra companhia constituida apenas por africanos, eramos as únicas existente na Guiné, tirando a companhia de comandos e a de fuzileiros.
Só após a operação ter sido iniciada, é que nos foi dito que nós eramos a segunda vaga de assalto, que iríamos apoiar os comandos e os fuzileiros, mas que a missão mesma tinha sido abortada, pelo que iriamos regressar a Bissorã.
O quartel dos comandos estava localizado perto do nosso acampamento, mas tinham ordens para não falar com ninguém, contudo consegue-se sempre fazer algumas conversas.
e) Como clarifica o que diz o David Guimarães: "O armamento usado não foi o nosso", "houve grande confusão no momento", "a operação era para provar a nossa força e confundir os guineenses"? (se calhar, por alguma subjectividade, só ele poderia esclarecer)
Para mim a grande confusão foi quando mem mandaram assinar um papel em como não pertencia ao exército português. Isso deixou-me preocupado, porque suspeitei
que me iriam enviar em missão para um país estrangeiro, que me iriam abandonar com a maior das facilidades, que existiam muitas probabilidade de ser capturado, e que não poderia ter o estatuto de prisioneiro de guerra, e que seria considerado um mercenário e isso significava a morte se fosse apanhado. O facto de dizerem que não precisava de levar armamento reforçou essa ideia, pois seria russo.
Não houve qualquer contestação da nossa parte, nem comentários, mas todos ficaram intrigados, penso que alguns não tomaram consciência do acto. Penso que esta
não era uma situação que um soldado do exército regular estivesse à espera, e que perante todos os dados alguns poderiam recuar, pois a diferença de forças em confronto no terreno era tal, que dificilmente conseguiriamos uma vitória. Presumo que tudo isto deve ter passado pela cabeça dos elementos envolvidos, muito mais do que irem provocar um grave conflito internacional.
Na minha opinião a operação de tomada do poder estava condenada (mesmo que tivéssemos destruído os Migs). Assim o que fizemos foi realmente o melhor, e deixou
inclusive um sabor a vitória.
Se o sul da Guiné estava controlado pelo PAIGC, se tinhamos sido obrigados a retirar de Guilege, se a situação em Gadamael era crítica, se nunca tinhamos conseguido vencer as forças do PAIGC sedeadas na Guiné-Conacri, como seria possível vencer essas forças, mais as forças da Guiné-Conacri, quando os muitos milhares de milícias nos caissem em cima, com uma companhia de comandos, outra de fuzileiros e mais duas de forças operacionais, sem outras forças de reserva, pois apenas devíamos envolver soldados africanos?
f) O grupo de assalto que deveria tomar a rádio, comandado por um alferes da Guiné, diz-se que se desorientou e ficou pregado no terreno. Não estaria também ele a pensar em desertar ?
A história dos comandos africanos que lá foram, é que foi esse grupo que desertou, mas, no texto do Saturnino Monteiro, "Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa» (Vol.VIII), diz-se que foi parte do grupo de assalto ao aeroporto, toda a gente diz que foi apenas o oficial que desertou. Alguns comandos dizem que os viram quando estavam a embarcar no regresso.
Não acredito que os soldados desertassem, pelo que conheço da sua mentalidade, e porque já combatiam há muitos anos, eram todos veteranos recrutados agora para os comandos, pelo que me parece possivel apenas o oficial ter desertado (a informação era que tinha terminado o curso de comandos e ido para a Guiné). Mas não percebo porque não enviaram alguém para controlar essa situação, e muito menos porque não foi
controlado, fazendo esse grupo parte de um grupo maior que iria assaltar o aeroporto.
Tudo muito confuso.
g) Confirma que o aeroporto, pese embora a fuga do tenente, chegou a ser tomado pelo capitão paraquedista Lopes Morais ?
Foi dito que sim pelos comandos que participaram na operação, e todos os relatos que conheço afirmam isso.
h) Acha que as 3 coincidências que refere indiciam que a operação terá sido marcada pela perda (prévia) do seu secretismo ?
Essa teoria é minha, digamos que é a minha teoria da conspiração, pois com tantos oficiais comunistas existentes nas forças armadas, não me custa a acreditar que os russos e os cubanos possuíssem acesso à descodificção das nossas transmissões, e que
soubessem o que se passava, tendo optado por nos deixar avançar, para nos esmagar depois, pelo que asseguraram apenas o essencial, Migs, Presidente Sekou
Toure e Amílcar Cabral, provavelmente nem estes sabiam o que se ia passar.
A prisão do espião da Pide que estava em Conacri, vem reforçar a ideia de que existiam serviços secretos envolvidos, mas tudo isto é pura especulação.
Carlos Fortunato
2. Comentário do Afonso Sousa:
Sr. Carlos Fortunato: Que interessante depoimento o seu !
É assim que se fundamenta e comprova a história !
É necessário que ele seja associado (como testemunho) ao descritivo histórico de Saturnino Monteiro sobre a Última Batalha da Marinha Portuguesa. Haja alguém que se prontifique a fazê-lo !
Por aqui se constata como o historiador é, por vezes, impreciso e, de alguma forma, até distorce ou omite, por motivos por vezes óbvios, alguma realidade dos factos.
Por isso é que lhe deixei esta série de questões para procurar alguma clarificação. E o Carlos Fortunato fê-lo de uma forma muito minuciosa.
Sem dúvida que podemos considerar o seu depoimento como um documento de contributo histórico.
Um bem haja. Você é mais um homem da história, numa Guiné com muitos homens da história !
Um grande abraço.
Afonso Sousa
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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