Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2005
Guiné 63/74 - P330: Cartas que nunca foram postas no correio (1): Em Bissau, longe do Vietname (Luís Graça)
Guiné > Zona leste > Bambadinca > 1969 > O ex-furriel miliciano Henriques, atirador de armas pesadas, da CCAÇ 12 (1969/71) : "Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!"...
© Luís Graça (2005)
1. Tenho algumas cartas que fui escrevendo, no meu Diário de um Tuga, dirigidas a amigos, mas que nunca cheguei a pôr no correio. Por lassidão. Por cansaço. Mas também por receio de correr riscos, desnecessários. Nunca soube até que ponto a PIDE/DGS me vigiava, nos vigiava.
Se bem me lembro, eu era o único tuga, da CCAÇ 12, em Bambadinca, que recebia o Notícias da Amadora e o Comércio do Funchal, jornais conotados com a oposição ao regime de Salazar-Caetano. O Marques, por sua vez, recebia a Seara Nova. Não era nenhum crime de lesa-pátria nem punha o regime em perigo. Afinal, eram jornais sujeitos a censura (o exame prévio, que eufemismo!). Circulavam legalmente… e até chegavam à Guiné, pelo serviço postal militar (SPM).
Na época, poucos de nós se interessavam por política. De resto, quem se interessava por política era do reviralho, alguns grupos e grupúsculos (intelectuais e estudantis, católicos progressistas, organizações clandestinas, ligadas à esquerda e à extrema-esquerda…). Tínhamos todos nascidos no Estado Novo e sido formatados pelo Estado Novo… Quem se poderia interessar por política ?
Não obstante a efémera primavera marcelista e as mudanças de cosmética no aparelho repressivo, o país começava, perigosamente, a descomprimir-se… A contra-cultura e a contra-ideologia instalavam-se no quotidiano, nas empresas, nas instituições e até nas forças armadas… Era o famoso “espírito dissolvente”, denunciado pelos espíritos mais lúcidos e ultraconservadores do regime.
Chegavam-me, à Guiné, alguns ecos dos movimentos estudantis e as lutas operárias de 1969… Era preciso ler as notícias nas entrelinhas. De qualquer modo, começava-se a perder as ilusões sobre a natureza do regime, sob o consulado de Marcelo Caetano (que tinha estado na Guiné em Abril de 1969). E alguns de nós começavam a ter a consciência do beco sem saída a que nos conduzia a guerra colonial. Na campanha eleitoral de Outubro de 1969, a oposição ao regime defende o direito à autodeterminação das colónias… Em 1966, eu já lutava por fim da guerra, mas sabia que lá iria parar, a Angola, a Moçambique ou à Guiné… Em 1969 eu deveria ser dos poucos militares, em Bambandica, que estava recenseado, tendo inclusive exercido o meu direito de voto… Eu, o meu capitão e poucos mais…
Sempre fui um outsider. Não estava ligado a nenhuma rede ou organização política da chamada oposição democrática. Por me manifestar, a título individual, contra a guerra colonial e expressar as minhas simpatias pelo PAIGC, chamavam-me o Soviético. A alcunha foi-me posta, creio eu, pelo Sargento Piça, o sargento mais bacano que eu conheci na tropa. Uma amizade feita de muitas cumplicidades e muitos copos. Era o nosso pai e o irmão mais velho. Devia andar pelos seus 37 anos, tantos quantos os do nosso capitão Brito, militar de carreira, um bom homem…
2. Publico hoje uma carta que escrevi, de Bissau, a um dos meus amigos... Ao fim de nove meses de comissão, desenfiei-me e fui até Bissau. Tínhamos uma espécie de acordo tácito, nós, os milicianos e o sargento Piça, que nos arranjava a guia de marcha. Todos os pretextos era bons, médicos ou não médicos, para se fugir do Vietname: o mais vulgar, era “ir Bissau mudar o óleo” (sic), tratar dos dentes, marcar a tão sonhada viagem de férias à Metrópole, enfim, beber uns copos, espairecer as ideias…
Tínhamos chegado à Guiné em finais de Maio de 1969. Ao fim de menos de nove meses, era já precária a nossa saúde física e mental… Trinta e cinco anos depois, posso revelar a quem era destinada a carta que nunca chegou ao seu destino: era para o meu camarada e grande amigo Levezinho, o Tony Levezinho, furriel miliciano como eu na CCAÇ 12…
O Tony fez há dias 58 anos, no dia 24 de Novembro, no seu retiro algarvio, lá para os lados de Sagres… É uma surpresa que eu lhe faço, mesmo que ele estranhe o tom desta carta… É também um pequeno gesto de homenagem e de amizade, para com ele e a Isabel que eu , na época, só conhecia de fotografia. O Tony veio de férias à Metrópole, e casou, a meio da comissão, deixando a pobre Isabel candidata a viúva... Bom, ele nunca suspeitaria da existência desta carta que eu, pela minha parte, imaginei mandar-lhe como se ele estivesse na… Metrópole, longe do Vietname…
É uma carta insólita para um camarada, no sentido etimológico do termo: o que dorme no mesmo quarto, na mesma camarata… Devo dizer que já não me recordo de quantos dias andei desenfiado em Bissau, longe do Vietname.. Possivelmente uma semana, não mais… O Levezinho conhecia Bissau, tão bem ou tão mal como eu…Neste acaso, utilizei-o apenas como um simples interlocutor imaginário para uma conversa imaginária… Em condições normais, em Bambadinca, eu nunca faria (in)confidências deste género. Por pudor, simplesmente por pudor.
Este texto está datado, vale o que vale e algumas das suas expressões mais duras podem ferir, mesmo ainda hoje, algumas sensibilidades… Em resumo, não poderia subscrevê-hoje, tal como foi escrito há trinta e cinco anos… Mesmo assim, apeteceu-me divulgá-lo. Julgo que pode ter algum valor documental.
Espero que os meus amigos e camaradas de tertúlia, a começar pelo Tony, sejam condescendentes comigo.
Diário de um Tuga > Bissau, far from the Vietnam. 10 de Fevereiro de 1970:
Meu caro L.
Gostaria de falar-te de Bissau, cidade lumpen, e da sua morna dolce vita, em termos não propriamente de desencanto mas de desmistificação, a ti que ficaste no Vietname… E com palavras que fossem como ácido sulfúrico na pele!... Receio, porém, que a minha crueldade não chegue a tanto (que a realidade, essa, é requintadamente sádica, grotesca, como as telas de Brueghel ou do Goya!) e que não passe, afinal, de azeda esta carta que daqui te envio, aproveitando o macaréu da minha neurastenia e uns fugazes dias de liberdade vigiada. Daqui, da esplanada do Pelicano, frente ao estuário do Geba, rio tragicamente belo, insubmisso como os povos que habitam as suas margens!...
Bissau revisitada… Devo, antes de mais, confessar-te que, se acaso fugi da Guiné por uns dias, nem por isso deixo de sentir-me perseguido pelo seu fantasma. Sabes como é (ou, pelo menos, deves imaginar): uma incómoda sensação de estado de sítio (que nada tem a ver com a insularidade – aliás, pouca gente sabe que Bissau fica numa ilha), agravada, para quem aqui vegeta, pelos fantasmas dos foguetões que ainda há tempos flagelaram Bolama, a antiga capital colonial…
Bissau, cidade-caserna, cidade-bordel!... Para quê falar-te do tráfego (e do tráfico!) de carne branca sem qualquer carga erótica para lá do fetiche da cor da pele ?! De qualquer modo, o contrabando do sexo é negócio que vai de vento em popa - aqui funcionam as leis do mercado, a procura é muita e a oferta é variável ! – a par da quinquilharia oriental e sobretudo dos produtos nipónicos que ultimamente invadiram os free-shops cá do sítio, desde os Gouveia aos Taufik Saad, para quem o amendoim, o coconote e os panos de chita já foram chão que deu uvas… Enfim, o comércio da guerra e a guerra do comércio, uma parelha que sempre se deu bem em toda a parte!
Para quê falar-te dessas prostitutas que naufragam em todos os portos onde cheire a merda, a morte e a soldadesca, fugidas da miséria das ilhas de Cabo Verde e dessas outras ilhas de Lisboa e do Porto ?! Ou ainda dessas fêmeas, balzaquianas, que os tropas do ar condicionado mandaram vir da Metrópole e que passam, sequestradas, nos Wolkswagen e nos Mercedes pretos, conduzidos por soldados africanos – insólita imagem de jovens eunucos negros, subsaarianos, guardando as velhas odaliscas nos haréns dos sultões das Arábias!...
Guiné-Bissau > Bissau > 1996: Aspecto (degradado) do Pelicano que em 1970 era o melhor café-esplanada de Bissau
© Humberto Reis (2005)
Não suporto, aliás, a visão desse branco asséptico, dessa cor neutra das metropolitanas cujo tom de pele tem qualquer coisas de viscoso como as paredes dos hospitais… Receio até que esteja a tornar-me racista ao contrário ou a caminhar para a misoginia, como aquele prisioneiro que, ao sair de Auschwitz, não conseguiu sequer beijar a mulher porque tinha horror a tudo o que era humano…
Decididamente não queria falar-te de mulheres (e, muito menos, das brancas que, aqui, no cu do mundo, povoam os nossos delírios palúdicos)… Mas como não, se elas são o único antídoto contra a angústia da morte ?!... As paredes das nossas casernas no mato estão forradas de posters de gajas nuas, loiras, de olhos azuis, formas esculturais e pele acetinada, que é “para um gajo não se esquecer da carne branca” (sic)…
Em contrapartida, a pomada antivenéria (e, claro, a penicilina, em doses de milhões) é o que mais se gasta nos nossos postos de caserna. O bordel é talvez a única instituição castrense verdadeiramente respeitável… Mas se os franceses mandavam para a Argélia putas de campanha juntamente com os seus legionários, nós, tugas, não temos esse problema: fornicamos sem preconceitos raciais, ou não fossemos “um país, muitos povos, uma só Nação”!...
Imagina, pois, Bissau como estância de repouso do guerreiro. Há aqui, de certo, um equívoco, um tremendo equívoco por parte do médico miliciano, que até é um gajo porreiro, capaz de dar umas baixas aos operacionais, não obstante as ameaças veladas do comandante de sector… Mas eu estou farto dos gajos porreiros, como ele, que joga bridge com os cabrões dos oficiais superiores, apostados em ganhar a guerra (leia-se: os próximos galões) à custa de ti, de mim e da nossa tropa-macaca… É que Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!...
De qualquer modo, para além duns furtivos raides ao Pilão, as únicas operações que aqui se realizam ainda são do tipo gastronómico. Enfim, a nossa velha filosofia epicurista segundo a qual o melhor que se leva desta vida é ainda o que se come e o que bebe. Eis-nos, portanto, tristemente reduzidos ao ciclo vegetativo , ou seja, aos camarões, às ostras e às verdianas (sim, por que essas pretas de 1ª, na nossa linguagem machista e racista, também são coisas que se comem!)…
Quanto ao Pilão, como escrever-to ? É a grande tabanca, o grande muceque de Bissau, um verdadeiro gueto, um enorme abcesso putrefacto produzido pelo colonialismo e pela guerra, e onde frequentemente explodem as tensões raciais e étnicas.
O Pilão é o lumpen… Daí as recomendações que te fazem ao chegares aqui - lembras-te ? -, à mistura com histórias mirambolantes, pouco ou nada verosímeis, de cabeças cortadas à catanada:
- Ao Pilão nunca vás sozinho, sobretudo à noite. Os gajos são todos turras. E com as verdianas, muito cuidado, menino, que as filhas da puta já nasceram todas esquentadas! - avisou-me um furriel fotocine, no Chez Toi, uma espelunca de 3ª classe com pretensões a night club, onde os tropas de galões dourados redescobrem o gosto civilizado do champagne francês (marado…), bebido com uma pin-up ao colo, como em qualquer bar rasca, de alterne, na Reboleira do J. Pimenta…
Descobri, entretanto, que o gajo – o fotocine – não passava de um proxeneta, nas horas vagas:
- É, claro, se quiseres, tens aqui coisa fina… Pró carote, já se vê..
Trata-se de um safado miliciano, como tantos outros que estão aqui na guerra do ar condicionado, afilhados de padrinhos com boas relações no Terreiro do Paço. Cabrões que conhecem a Guiné au vol d’oiseau, de helicóptero ou de Dornier. Felizardos que passam fins de semana nas praias da Ilha de Bubaque. Gajos para quem Buba ou Bambadinca, Guileje ou Piche são tudo cartões de visita exóticos: apenas sabem vagamente que fica lá no mato, no Vietname, de preferência longe de Bissau…
Quanto ao resto, meu caro, é aquele ritmo burocraticamente febril duma cidadela militar, tradicional reduto da presença dos tugas desde finais do Séc. XVIII, simbolizado no forte da Amura. Há tropa por todo o lado, com particular notoriedade para a tropa especial aqui aquartelada – comandos, paras e fuzos – que entre duas viagens de helicóptero, ou de lancha de desembarque, na ociosidade destes dias e noites escaldantes de Bissau, se pavoneiam pelas esplanadas, de tomates inchados, apalpando o cu das bajudas, olhando por cima do crachat a tropa-macaca ou provocando-se mutuamente, por excesso de adrenalina ou por velhos ressentimentos corporativos…
O tráfego de viaturas e aeronaves é intenso mas só dificilmente nos apercebemos de que Bissau é o centro motor dum país em guerra. O melhor é tu postares à entrada do Hospital Militar e contares os helicópteros que aterram na placa…
À noite, entretanto, c’est le vide: os únicos noctívagos ainda são aqueles que vêm do mato e que sofrem da fobia do arame farpado: é vê-los até às tantas da madrugada, à mesa das esplanadas, empanturrando-se de ostras e de cervejas e contando histórias do mato. Mas em vão o guerreiro, em cura de repouso, busca outra atmosfera em que o oxigénio não esteja carregado das toxinas da angústia e da lassidão… A menos que, no dia seguinte, tenha passagem marcada para a Metrópole… Ele vem da guerra e para a guerra há-de voltar, de avião ou de barco, já que não há praticamente ligações terrestres de Bissau para o resto da Guiné. De qualquer modo, os que vêm do Vietname, ainda são as espécies mais curiosas da fauna humana que vagueia por esta capital-fantasma.
De facto, aqui desaguam todos os rios humanos da Guiné: a carne que já foi do canhão e agora é do bisturi (ou dos vermes, em caixões de chumbo, discretamente empilhados, à espera que o Niassa ou o Uíge ou o Alfredo da Silva os levem nos seus porões nauseabundos); os desenfiados, como eu, todos os que procuram safar-se do inferno verde, quanto mais não seja por uns dias ou até umas breves horas, que o tempo aqui conta-se, de cronómetro na mão, até à fracção de segundo; os prisioneiros de guerra, esfarrapados, andrajosos, a caminho da Ilha das Galinhas; as populações do interior desalojadas pela guerra; os jovens recrutados para a nova força africana; enfim, os criminosos de guerra como o capitão P. que está aqui detido no Depósito Geral de Adidos à espera de julgamento em tribunal militar – suponho eu -, juntamente com um furriel miliciano da sua companhia. Ambos estão implicados em vários casos, muito falados, violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos…
A propósito, como os tempos mudam, meu caro!.. Em conversa com um sargento de cavalaria que teve o Velho como comandante de batalhão no Norte de Angola – conversa a que ocasionalmente assisti -, o Capitão P. (que eu não sei, nem me interessa saber, se é miliciano, ou se é do quadro, ça c'est m´égale!), mostrava-se vexado (o termo é dele) pelo facto do então tenente coronel ameaçar executar, in loco, sumariamente os guias nativos que mostrassem a mais pequena hesitação na escolha dos trilhos ou os carregadores que deliberadamente deitassem fora a água dos jericãs...
- E agora, como Com-Chefe na Guiné, não permitir sequer que se toque no cabelo de um preto!
Bissau, enfim, porto de fuga e salvação!... Embora não se possa exactamente prever até onde tudo isto irá parar, com a actual escalada da guerra, de parte a parte, aqui tu tens ao menos a reconfortante sensação de teres as malas sempre feitas, pronto a partir em qualquer altura… Mas nada te garante que embarques a tempo: é que estamos todos metidos num atoleiro e em vias de perder o último avião!...
Make love, not war. Um abraço. Até mais logo. Talvez apanhe o barco da Gouveia, amanhã. Já estou farto desta merda.
Henriques [Luís Graça] (*)
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(*) Ex-furriel miliciano da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)
Guiné 63/74 - P329: Brá, SPM 0418 (2): Memórias de Colina do Norte (Virgínio Briote)
Guiné > Bissau > Comandos perfilados frente ao Palácio do Governador
Em Brá nasceram os primeiros comandos da Guiné, organizados em grupos e depois em companhia. Estes comandos, de primeira geração (ou os "velhos comandos") antecederam a primeira companhia de comandos metropolitana, formada em Lamego, e aqui chegada em Junho de 1966 (3ª CCmds). Na época era Governador Geral o brigadeiro Schultz , promovido a general em 5 de Setembro de 1965.
© Virgínio Briote (2005)
Viva Luís,
Tenho estado à espera que mais camaradas apareçam, de outras paragens. A Guiné era pequena, mas foi muito grande para os que por lá andaram, passou por lá tanta gente, tanta coisa aconteceu em treze anos. Quantos passaram por lá durante esse tempo todo, alguém sabe?
E ao recordar aqueles tempos, pergunto-me se estou a ser correcto, politicamente falando, claro.
Estou de serviço, tenho que andar para a frente.
Aqui vão mais algumas histórias.
Um abraço,
vb
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Memórias de Colina do Norte (1)
4. DIÁRIO
Lulas, sardinhas, atum, carnes frias, lulas, sardinhas, sardinhas e lulas, assim há 3 semanas. Não tenho direito a reclamar, com tão pouco tempo ainda! Nem me quero ver contaminado por este ambiente, dizer mal de tudo e de todos os que cá não estão.
O Didi veio agora de férias da metrópole. É pá, guerra é aqui! Em Lisboa não querem saber de nada, apenas os que têm familiares aqui se preocupam alguma coisa. Querem lá saber da maralha! Mesmo os gajos do QG, em Bissau! Deve ser do ar condicionado, arrefece-os tanto que até se esquecem de nós.
Estou aqui há pouco mais de dois meses, ainda só ouvi tiros da minha G3, quando a estive a experimentar, levo uma vida pacata, sem problemas até agora. Só a calma é que é excessiva. Um intervalo na minha vida, passo os dias a olhar para a rua cheia de pó, o nariz cheio de catinga , o ar abandonado de todos, tudo precário.
Há dias dei por mim a lembrar-me de um artigo qualquer que li, em tempos, sobre a entrada dos portugueses na 1ª Guerra Guerra. O entusiasmo dos políticos, Portugal não pode ficar de fora, Portugal tem que fazer parte do esforço na guerra contra os boches , não pode deixar de pensar nas colónias, como então chamavam a estas terras. Depois, roupas de verão para o inverno das Flandres, o desastre de La Lys. Quem pagou? As tropas, claro. Uma mortandade, os gases, as amputações, as vidas desfeitas! Despacharam-nos para a terra, nunca mais quiseram saber deles. Vai acontecer-nos aqui o mesmo? Talvez não, os turras também não são os boches, pelo menos para já.
Estou a escrever estas coisas, para quê? Sempre as mesmas opiniões, sempre sem solução. Mas isto não é um sonho, isto está mesmo a passar-se!
Prometi-me quando cá cheguei, fazer um esforço pelo menos, evitar revelar os meus piores momentos, que os iria certamente ter. Há tão pouco tempo ainda e já vejo em mim sinais que eu vejo nos outros. Afinal, não resisti nada, estou a olhar para mim e vejo o meu moral a rastejar.
Se se vêem livres disto! É o que se ouve desta gente, a toda a hora. Estendidos nas tarimbas, mosquiteiros fechados, uns por cima dos outros, falam alto das amizades, da velha mãe, do pai seco de fome, da jovem mulher a labutar como uma moura, dos filhos que conhecem da fotografia, de tudo o que deixaram no Alentejo deles.
Custa-me entrar no celeiro, dou a volta por fora, sento-me nas traseiras numa cadeira indígena, com a mata em frente. Olho o céu exuberante de luz, tanta que nem preciso da lanterna.
Lembro-me da Barca do Lago, do rio Cávado a correr devagar, sem vontade de se perder no mar, dos tempos de ontem, de há 3 meses só, à espera que as conversas dentro do casarão acalmem.
A sentinela ao meu encontro, olhos na escuridão da mata em frente, a lua africana, um disco de luz a bater-lhe, os traços recortados. Triste, mê alferes? É sempre assim, a gente quando chega fica assim mais saudosa!
É melhor nem falar, mostrar só um sorriso, tenho medo do que diga, de mim próprio até! Já nem me reconheço, pareço outro, não fora sentir que esta boca amarga é a minha, que estes ossos são meus também, diria que era outro que estava aqui.
Já nada se ouve, apenas o sono. Acordo da minha saudade. Amanhã não tenho trabalho, é o meu dia de folga. Como se aqui houvesse dias de trabalho e de folga, mas enfim, levantar-me-ei mais tarde, puxarei a corda do regador, a água duma vez por mim abaixo, rexina, água outra vez no regador, corda nele, secar, fresco para o almoço, limpo deste suor pegajoso, disposto a aguentar as conversas do capitão Galo à mesa. A minha mulher dá aulas, diz que não tem tempo para se dedicar à nossa filha, como desejava, escreve-me isto, a mim que estou aqui tão longe, vejam lá! Conta-nos outra vez a sua vida, que não foi feito para isto, já a ouvi não me lembro quantas vezes.
O senhor é profissional, ofereceu-se voluntário, foi para cavalaria, a especialidade de carros de combate vê-se no seu peito, para quê esse emblema aqui? Esses queixumes não têm direito na sua boca, apetece-me dizer-lhe. Sei que estou errado, ele é novo como nós, nem trinta tem, também tem direito a dizer mal disto.
Faz-me bem escrever, às vezes não consigo, saem-me palavras sem nexo. Também não sou um Pasternak! Tenho pensado muito, o ambiente é propício. Espero dias mais claros, menos nevoentos. Sinto-me mais leve, mais bem disposto, depois de falar comigo!
5. ENTRE FAQUINA FULA E FAQUINA MANDINGA
Meu capitão, um dia destes vou sair com o pelotão. Ai vai, para onde? Para onde costumamos ir, Faquinas, Sitató, para esses lados!
Tem mas é juízo, pá, o Didi logo. Já tivemos Comos que nos chegasse, não precisamos de mais sarilhos! A paz nesta zona foi conquistada por nós e, se eles passam sem problemas, nós também não os temos tido. Convém às duas partes, é bom não esquecer. Cuidado, meu capitão!
Guiné > Bissau > 1965 > O palácio do Governador Geral em dia de festa.
© Virgínio Briote (2005)
O pessoal, alferes Duarte, está cá há muitos meses, demasiados, falta-lhe pouco tempo para regressar a Bissau e embarcar para a metrópole. Precisa mais de quem o proteja do que gente que o meta ao barulho…
Mas Cuntima é uma pista desimpedida para eles, para meterem minas e armas no Oio, são trilhos pisados de fresco, passam todos os dias…
A minha ideia? Sair daqui sem espalhafato, a outras horas, permanecer na zona até eles aparecerem. Se vamos sempre para o mesmo sítio montar emboscadas, se nunca os encontramos e se o caminho está sempre pisado de fresco, só não os apanhamos se não quisermos, ou então se formos aselhas…
Ao princípio da tarde numa conversa com o furriel Poças, escolheu-se quem deveria sair. A seguir reuniu-se o pelotão na presença do capitão, que fez questão de assistir à partida. Vamos dar uma volta por aí, quem quer vir?
Voluntários, só voluntários, o capitão a atalhar, e o pelotão todo a dizer, eu vou.
Tu, tem mas é juízo! Mas eu também quero ir, meu capitão, o soldado a insistir! Dos furriéis só não foi o Palhares porque lhe doía a perna, que chatice logo hoje, além disso, parecia-lhe também que estava com paludismo. 22 mais um guia indígena e 5 auxiliares nativos.
Saíram da zona em viaturas, em direcção à fronteira. Minutos depois, apearam-se e internaram-se no mato, por um caminho que mal se via, de há tanto tempo não passar ali ninguém. Foram andando com cuidado, devagar, mais separados uns dos outros, sem grandes barulhos. Afinal, o pessoal sabe andar no mato. Avistaram a tabanca de Faquina Mandinga, abandonada há muito. Chegados perto do local onde costumavam emboscar-se, prosseguiram pelas margens do trilho, até à fronteira.
Para os lados de Sitató , quase em frente a Koldá, no Senegal, viram um local descampado. Os trilhos todos marcados com pegadas recentes. Esconderam-se atrás de arbustos, de pequenos baga-baga, e prepararam-se para o que desse e viesse.
Uma volta pelo pessoal para ajustar algumas posições individuais. Estabeleceram uma frente de cerca de 100 metros, ao longo do trilho que vinha do Senegal, com a bolanha em frente, um ângulo de visão de mais de 180 graus. Todos na expectativa, prontos para o que desse e viesse. E dispostos a esperar, pelo menos até ao meio-dia do dia seguinte. Mas eles devem aparecer antes…
Deitou-se com a G3 ao lado, tirou do casaco a Agfa que recebera de Angra uns dias antes, para o caso de haver motivos. Eram para aí 17, 17 e 30, quando ouviu uma voz muito baixa dizer, atenção malta, vêm aí os gajos!
É agora, o coração a dizer-lhe conta comigo. No meio de um silêncio enorme, uma culatra puxada atrás, um barulho que até eles devem ter ouvido! Agora? A que propósito? Uns tiros, uma rajada, depois uma girândola de rajadas para o descampado em frente, tudo em pouco mais de um minuto.
Coluna de carregadores do PAIGC
Foto: © Agência de Notícias Xinhua (1972).
Sacos pelo chão, gritaria, um preto a mancar com uma bicicleta ao lado, a tentar montar para cima dela, uns tipos caídos a gemer, um não se mexia, os valentes alentejanos pareciam que estavam a jogar rugby, todos ao monte para cima deles, para aí 5 ou 6, filhos desta e daquela. Eram poucos para tantos sacos, de arroz, sal e cola, duas bicicletas, granadas, duas caixas com munições, uma Mauser, portuguesa em tempos, livros de leitura em português, correspondência… Uma pequena secção de reabastecimento do PAIGC posta fora de combate em pouco mais de meia hora.
Um trabalhão pegar naqueles alentejanos e pô-los de regresso, com os prisioneiros feridos em padiolas improvisadas. Levou mais tempo a regressarem do que a irem, está bom de ver. Iam fazendo perguntas aos infelizes que tinham sido apanhados, para onde tanto arroz, para família, e livros, para meninos da família aprender a ler, cola para a família também, e que família é essa? É uma família muito grande, não é?
E quem foi o artolas que resolveu puxar a culatra atrás? Quem usa Mauser aqui, os milícias, quem havia de ser! Tinha que ser, meu alfero, os turras vinham de lá! Mas porquê, logo quando eles estavam a entrar na zona de morte?
Este sim, foi um baptismo de fogo ! Era assim que gostaria que fosse sempre, apanhá-los à sorrelfa, sem darem por ela.
Avistaram Cuntima ao longe, a noite já fechada, os petromaxes acesos, e, junto ao arame farpado, militares e a população civil em peso.
O Galo ao encontro deles, então?
Eu não lhe dizia que era uma questão de horário, meu capitão?
Tudo bem, parabéns, mas queira Deus que este episódio não nos traga problemas. Vá-me dando pormenores, vamos para o posto de rádio, vá falando.
Uma desorganização total, meu capitão. Cada um a fazer o que lhe deu na mona, a abrirem fogo quando lhes apeteceu, a correrem todos a monte, sem segurança nenhuma, o gajo da culatra…
Espera-lhe pela volta, Gil, o Didi a virar costas, quem havia de ser?
Mas a guerra, de facto, tomou conta de Cuntima. Foi como se tivessem mexido num enxame de abelhas. Uma ou duas semanas mais tarde, a outras horas, nova emboscada, e desta vez ninguém puxou a culatra antes. Depois, umas minas, a seguir um ataque a Cuntima. Nunca mais houve paz ali.
A fronteira ali tinha sido riscada num mapa, era mais administrativa que outra coisa, não correspondia a nenhuma divisão real entre as pessoas ou etnias. Familiares viviam de um lado e do outro, às vezes mudavam-se com as famílias todas atrás.
Em Cuntima fazia-se muita psicossocial. O médico, um açoriano da Terceira, era um homem bom, com espírito muito prático, não protestava com as condições precárias. Era preciso, fazia-se. Sempre disposto a dar uma ajuda àquelas populações, não interessava a que horas. Mais que uma vez, o doutor tivera que ir ao Senegal ver gente doente. A tropa conduzia-o até à fronteira, depois entregava-o aos guardas senegaleses que o acompanhavam até à tabanca dos doentes.
No passado, aquela gente nunca tinha tido um apoio tão grande como agora. Ajudavam-se os nativos na construção das casas, providenciavam-se mosquiteiros, faziam-se desinfestações, capinavam-se picadas, limpavam-se caminhos, abriam-se outros. Nunca faltavam voluntários para ajudar. Nem precisavam de arregaçar as mangas, andavam quase todos em tronco nu. De facto, naqueles dois ou três anos, desde que o PAIGC tinha iniciado a guerrilha, estava a fazer-se mais por aquela gente do que nos outros anos todos para trás. Isto se se levasse em conta o que se via feito até então. Quase nada. A guerra tem destas coisas.
A companhia militar estacionada em Cuntima, Colina do Norte como era agora chamada, tinha um efectivo a rondar os 150 homens, a esmagadora maioria já a poucos meses de regressar à metrópole. Alguns, muito poucos, estavam lá em rendição individual, para tapar as falhas que ocorrem sempre. Esse era o caso do Gil. Os outros alferes, o Didi e o Ribeiro tinham partido de Estremoz com o batalhão 490.
O Didi tinha o tamanho de um português, um ar de bem-nascido, com o sotaque do Rio, muito pronunciado. Totalmente contra, insinuava estar tão próximo dos guerrilheiros como das tropas que comandava. Um bom coração para as questões humanitárias, sempre pronto a ajudar, quase sempre de má vontade para tudo o que fosse acção ofensiva contra a guerrilha.
O Ribeiro mantinha-se ao largo destas discussões, não se manifestava, por cansaço, ou por outro motivo. Falava da namorada e da mãe, com os olhos brilhantes para as fotos ao lado da cama. Tinha ganho no Como a imagem do alferes mais operacional da companhia, os soldados falavam dele com respeito, via-se que tinha ascendente.
O Gil acreditava no Império, em Portugal do Minho a Timor. De mãos dadas com as populações, de arma na mão contra os que se opunham. Impensável, não via como podiam ter entre eles quem pensasse como o Didi!
Tanto choque de pontos de vista em tão pouco tempo, a guerra deixou de ser motivo de conversa, evitavam-na. Limitaram-se a conviver o resto do tempo que permaneceram juntos. Quando, por qualquer motivo, um deles insistia na conversa da guerra, o outro, como se tivessem combinado antes, punha-se a falar do Benfica e do Sporting…
O capitão tinha um ar blasé. Sobre o alto, magro, uma cara fina e os olhos de medo. Os galões dele mandavam naquela tropa e as coisas andavam por si. Via-se nele o desejo de acabar a comissão o mais depressa possível, sem mais chatices, o que não era nada fácil com um Coronel daqueles.
O doutor falava dos doentes e de Angra, a cidade onde nascera. Agora que tinha ali um recém-chegado da sua terra, puxava-lhe pela língua. Conheceste o quê? O Monte Brasil e as Lajes, claro, a Praia da Vitória, a Terra Chã, a Serreta, os Biscoitos, e que mais? Visitaste o Palácio dos Capitães-Generais, o Outeiro da Memória, a Igreja da Misericórdia, os Impérios, o Algar do Carvão? E que gente conheceste? Em que café paravas? Horas e horas de conversa, perguntas atrás de perguntas. E a namorada terceirense, que tal? Aquela que te escreve, julgas que não sei? Ora, pelo endereço, calhou, só isso, mais nada. Por acaso conheço a família dela, e a ela também, cheguei até a ver-lhe a garganta!
6.VEM MESMO A CALHAR, MORREU-ME UM GAJO ONTEM
Dói-te um dente, aonde, ora deixa ver. Nada que eu possa fazer aqui, porra, estes gajos pensam que vêm para aqui tratar os dentes, mal vai a guerra quando já mandam pessoal com defeito, rosnou. Farim! Quando for dia de dentista, sei lá quando!
Sentado debaixo de um enorme poilão, em Farim, à espera da vez, enquanto o enfermeiro militar percorria a fila dos sofredores, picando este e aquele. De alicate na mão o dentista chegou-se. Abra mais a boca! Ora deixe ver, onde lhe dói, aqui? Não posso fazer isto aqui, não tenho condições, só em Bissau. E tem que tomar um antibiótico, primeiro.
Bissau outra vez. Dente arrancado, aguardava transporte de regresso a Cuntima. No QG, à porta da 1ª Rep, esperava pela guia de marcha de regresso a Farim. Nisto, vê um jeep a estacionar com estardalhaço, dois tipos a saltarem, um alferes e um tenente com um saco de serapilheira na mão, escadas acima. Farda de terylene amarela, lenços no pescoço, emblema dos comandos nos ombros, no jeep também.
Minutos depois descem, sorridentes. Gil Duarte, apresenta-se. Comandos, que tropa é a vossa, que tipo de trabalho fazem?
Porque quer saber? Pormenores? Quer mesmo saber? Então suba!
Saltou para trás, curvado para a frente, a ouvir as respostas. Golpes de mão , guia, turra de preferência, é só o que precisamos. Operações curtas, surpresa, bater e fugir, castigá-los nas costas, fazer guerrilha! Regressar a Bissau, dormir, banho, um frango assado no Fonseca, uma gaja boa e um banho a seguir. Uma guerra limpa, interessa-lhe?
Convém que se decida depressa, ainda ontem me morreu um gajo, o curso começa daqui a 2 semanas, temos 4 vagas para comandantes de grupo e ainda só temos 9 inscritos. Na formação, vai sempre alguém abaixo, sabe como é, temos que ter mais pessoal. Decida-se, tem ainda as provas de selecção, físicas e psíquicas. Conversa com o psiquiatra do Hospital é só blá-blá, claro. Material sempre às costas, mil metros, 20 flexões de braços, 20 suspensões da barra, 100 metros velocidade, cangurus, provas de tiro, tudo seguido sem intervalos, que mais pá, coisas assim, quer concorrer? Vai pensar? Ah, então interessa-nos. Porquê? Porque pensa, porra! Pensar é uma grande forma de selecção, desde que decida bem, claro.
Encontramo-nos então amanhã em Brá, 9 horas é uma hora boa.
Uns minutos para respirar, já só faltam os 1000 metros, mais um pequeno esforço, meu alferes, disse o Moita, o furriel instrutor. Como contamos a distância? Fácil, o meu alferes corre, nós vamos à frente no jeep, quando passar 1 km no conta-quilómetros, corta a meta. Menos de 4 minutos, ganha uma cerveja, menos de 3 minutos e meio uma grade, menos de 1 minuto a fábrica. Não, não me recordo, estou aqui desde a abertura do Centro, nunca ninguém ganhou a grade, que me lembre, pois não ó Mirandela?
Guiné > O "roteiro turístico" do comando Briote (1965/67)
© Virgínio Briote (2005)
A correr por ali fora, para os lados do aeroporto, a força do calor na estrada, botas a pegarem-se ao alcatrão, 1, 2, 3 km, sabia lá! Sentado na berma da estrada, esforçava-se em manter os pulmões dentro da caixa.
De regresso a Brá, apresentado ao major M. Dias, assinou os papéis. À noite, quando o largaram na Amura estava mais morto que vivo.
Na outra manhã quando tomava o café na messe, o tenente Tomás da PM sentou-se na mesa dele. Eh, Gil, grande guerreiro, coisa e tal! Os tambores tinham sido mais rápidos que ele. Porquê os comandos, o Tomás curioso. Dentro de 3 ou 4 meses o 490 vem para Bissau, o Coronel vai colocar o pessoal no ar condicionado, a aguardar, tranquilo, os meses que faltam. Porquê os comandos, chiça?
Difícil explicar agora. Nem Gil sabia bem porquê. Também não tinha muito tempo para conversas, o jeep para o aeroporto estava à espera.
Ao princípio da tarde estava em Cuntima. Encontraram-se todos na pista e foram para a sombra, gozar a calmaria do resto da tarde. Um estouro forte interrompeu as conversas, parou tudo.
Para os lados de Jumbembem (2), não? Um macaco que pisou uma anti-pessoal, se calhar, diz um.
Ou uma mina numa viatura, diz outro.
É melhor alguém sair e ir ver o que se passou.
Para quê, a esta hora, é quase noite!
Uma coluna que vinha de Farim, uma mina numa Fox , aqui perto, na estrada de Jumbembem para aqui, perto da curva da morte, parece que há feridos, o capitão Galo a correr para eles, aos gritos, não sei se devemos ir ao encontro, ou se será melhor esperar…que dizem?
Depressa, uma coluna para lá, ao encontro deles, antes que seja noite, meu capitão, um logo!
É melhor esperarmos! Arrancar já, porquê? Sabemos lá o que se está a passar, insiste o Didi.
É pá, não podemos ficar aqui a ver passar os comboios, o rebentamento foi aqui perto, temos que ir ver o que se passa, prestar auxílio, porra!
Depois de muita hesitação, o Galo decide-se, arranca o pelotão mais folgado.
Cuidado, muita atenção, nada de loucuras por aí fora, sempre a abrir, nada disso, ouviu? Tome-me conta destes gajos, falta-lhes pouco tempo! Conte com chocolate , mais que certo uma emboscada no caminho, talvez também uma mina, ouviu?
Bem pensado, a mina na Fox, a viatura destruída, a maralha embrulhada com os feridos à espera de socorros, estes a irem em socorro, de Cuntima no caso, uma mina à espera destes na picada e uma emboscada, não há dúvida, se for assim é bem pensado!
Cuidados redobrados, picadores à frente, todo o pessoal a pé, as viaturas cheias de sacos de areia só com os motoristas, uma eternidade até encontrarem a coluna. Estes, lixados com tamanho atraso, receberam-nos como se estivessem a vê-los regressar da praia.
Enfim, porra! Se não fosse a malta de Jumbembem, os feridos já tinham morrido, que caraças!
Realmente, Jumbembem também estava próximo, mas compreende-se o desespero do comandante da coluna atingida.
O Coronel é que não tinha achado graça nenhuma, mandou um rádio ao Galo, a exigir explicações. A coluna ficara imobilizada, pedira apoio a Cuntima e Jumbembem, porque é que a sua companhia só chegou uma hora depois da outra? Explique-se, estou no rádio à espera da sua resposta.
Que fora só o tempo de preparar um pelotão, mais o tempo da deslocação, as precauções que exigira do comandante do pelotão, até não fora demasiado!
O Coronel com o copo a deitar por fora há muito, deve ter dito borda fora com o Galo, vou mandá-lo pregar para outra freguesia. Foi o que fez, um auto de averiguações, corpo de delito a seguir, uns dias de prisão. Que fizesse o espólio e tomasse a próxima Dornier para o QG, que, de certo, lhe arranjaria um destino mais conveniente.
O capitão Galo, desesperado, defendeu-se por escrito, meteu testemunhas e tudo, Gil à cabeça, solidário com o seu capitão naquele caso. A demora podia ter sido menor, se pusesse as viaturas a esgalhar. No caso, não deu por qualquer perda de tempo, não se puseram a jogar as cartas, tinham percorrido a estrada com cuidado, mas nada de excessivo. Devia haver uma história qualquer por trás.
Na noite da mina, ao jantar, a saída do Gil para os comandos foi mais um assunto para a conversa. Levara-lhes uma garrafa de uísque, abriram-na, cada um falou, do mais novo ao mais antigo.
Esta companhia anda com galo, mas anda mesmo! A sina tem sido a deserção, uns por doenças, coitados, outros nem sabem porquê, grandes sacanas!
Dêsaprôvo totalmentche, prôtesto contra esse pessoau! Vi-os no Como, uns gajos horríveis, sem maneiras de lidar com as pêssoas, quanto mais com a pópulação! Só querem saber da guerra, como dar tiro no coitado do negrão, mais nada! Vou-me rêtirá, tchau, o Didi!
Até ao nosso regresso a Bissau, despediram-se oficialmente, digamos assim.
O Coronel não gostava, nem dos atrasos dos outros nem dos dele. Na primeira oportunidade, mandou preparar uma coluna e pôs-se à frente, rumo a Cuntima.
Ora chegue-se aqui, o alferes Gil está cá há quanto tempo, pouco, não é? Não teve tempo ainda de reparar que não tinha um comandante, mas apenas um capitão? E pôs-se a assinar por baixo, a dizer que gosta?
Passou uns dias à espera que o Coronel desse o ok à sua saída, o que aconteceu logo que chegou o novo capitão. Este a sair da Do, o Gil a entrar, mal deu tempo para se falarem.
© Virgínio Briote (2005)
(ex-Alf Mil Comando, Brá, 1965/67)
_________
(1) Colina do Norte > A nordeste de Farim, junto à fronteira com o Senegal (vd. carta da Guiné, 1961)
(2) Jumbembem > A meio caminho entre Farim e Colina do Norte
Em Brá nasceram os primeiros comandos da Guiné, organizados em grupos e depois em companhia. Estes comandos, de primeira geração (ou os "velhos comandos") antecederam a primeira companhia de comandos metropolitana, formada em Lamego, e aqui chegada em Junho de 1966 (3ª CCmds). Na época era Governador Geral o brigadeiro Schultz , promovido a general em 5 de Setembro de 1965.
© Virgínio Briote (2005)
Viva Luís,
Tenho estado à espera que mais camaradas apareçam, de outras paragens. A Guiné era pequena, mas foi muito grande para os que por lá andaram, passou por lá tanta gente, tanta coisa aconteceu em treze anos. Quantos passaram por lá durante esse tempo todo, alguém sabe?
E ao recordar aqueles tempos, pergunto-me se estou a ser correcto, politicamente falando, claro.
Estou de serviço, tenho que andar para a frente.
Aqui vão mais algumas histórias.
Um abraço,
vb
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Memórias de Colina do Norte (1)
4. DIÁRIO
Lulas, sardinhas, atum, carnes frias, lulas, sardinhas, sardinhas e lulas, assim há 3 semanas. Não tenho direito a reclamar, com tão pouco tempo ainda! Nem me quero ver contaminado por este ambiente, dizer mal de tudo e de todos os que cá não estão.
O Didi veio agora de férias da metrópole. É pá, guerra é aqui! Em Lisboa não querem saber de nada, apenas os que têm familiares aqui se preocupam alguma coisa. Querem lá saber da maralha! Mesmo os gajos do QG, em Bissau! Deve ser do ar condicionado, arrefece-os tanto que até se esquecem de nós.
Estou aqui há pouco mais de dois meses, ainda só ouvi tiros da minha G3, quando a estive a experimentar, levo uma vida pacata, sem problemas até agora. Só a calma é que é excessiva. Um intervalo na minha vida, passo os dias a olhar para a rua cheia de pó, o nariz cheio de catinga , o ar abandonado de todos, tudo precário.
Há dias dei por mim a lembrar-me de um artigo qualquer que li, em tempos, sobre a entrada dos portugueses na 1ª Guerra Guerra. O entusiasmo dos políticos, Portugal não pode ficar de fora, Portugal tem que fazer parte do esforço na guerra contra os boches , não pode deixar de pensar nas colónias, como então chamavam a estas terras. Depois, roupas de verão para o inverno das Flandres, o desastre de La Lys. Quem pagou? As tropas, claro. Uma mortandade, os gases, as amputações, as vidas desfeitas! Despacharam-nos para a terra, nunca mais quiseram saber deles. Vai acontecer-nos aqui o mesmo? Talvez não, os turras também não são os boches, pelo menos para já.
Estou a escrever estas coisas, para quê? Sempre as mesmas opiniões, sempre sem solução. Mas isto não é um sonho, isto está mesmo a passar-se!
Prometi-me quando cá cheguei, fazer um esforço pelo menos, evitar revelar os meus piores momentos, que os iria certamente ter. Há tão pouco tempo ainda e já vejo em mim sinais que eu vejo nos outros. Afinal, não resisti nada, estou a olhar para mim e vejo o meu moral a rastejar.
Se se vêem livres disto! É o que se ouve desta gente, a toda a hora. Estendidos nas tarimbas, mosquiteiros fechados, uns por cima dos outros, falam alto das amizades, da velha mãe, do pai seco de fome, da jovem mulher a labutar como uma moura, dos filhos que conhecem da fotografia, de tudo o que deixaram no Alentejo deles.
Custa-me entrar no celeiro, dou a volta por fora, sento-me nas traseiras numa cadeira indígena, com a mata em frente. Olho o céu exuberante de luz, tanta que nem preciso da lanterna.
Lembro-me da Barca do Lago, do rio Cávado a correr devagar, sem vontade de se perder no mar, dos tempos de ontem, de há 3 meses só, à espera que as conversas dentro do casarão acalmem.
A sentinela ao meu encontro, olhos na escuridão da mata em frente, a lua africana, um disco de luz a bater-lhe, os traços recortados. Triste, mê alferes? É sempre assim, a gente quando chega fica assim mais saudosa!
É melhor nem falar, mostrar só um sorriso, tenho medo do que diga, de mim próprio até! Já nem me reconheço, pareço outro, não fora sentir que esta boca amarga é a minha, que estes ossos são meus também, diria que era outro que estava aqui.
Já nada se ouve, apenas o sono. Acordo da minha saudade. Amanhã não tenho trabalho, é o meu dia de folga. Como se aqui houvesse dias de trabalho e de folga, mas enfim, levantar-me-ei mais tarde, puxarei a corda do regador, a água duma vez por mim abaixo, rexina, água outra vez no regador, corda nele, secar, fresco para o almoço, limpo deste suor pegajoso, disposto a aguentar as conversas do capitão Galo à mesa. A minha mulher dá aulas, diz que não tem tempo para se dedicar à nossa filha, como desejava, escreve-me isto, a mim que estou aqui tão longe, vejam lá! Conta-nos outra vez a sua vida, que não foi feito para isto, já a ouvi não me lembro quantas vezes.
O senhor é profissional, ofereceu-se voluntário, foi para cavalaria, a especialidade de carros de combate vê-se no seu peito, para quê esse emblema aqui? Esses queixumes não têm direito na sua boca, apetece-me dizer-lhe. Sei que estou errado, ele é novo como nós, nem trinta tem, também tem direito a dizer mal disto.
Faz-me bem escrever, às vezes não consigo, saem-me palavras sem nexo. Também não sou um Pasternak! Tenho pensado muito, o ambiente é propício. Espero dias mais claros, menos nevoentos. Sinto-me mais leve, mais bem disposto, depois de falar comigo!
5. ENTRE FAQUINA FULA E FAQUINA MANDINGA
Meu capitão, um dia destes vou sair com o pelotão. Ai vai, para onde? Para onde costumamos ir, Faquinas, Sitató, para esses lados!
Tem mas é juízo, pá, o Didi logo. Já tivemos Comos que nos chegasse, não precisamos de mais sarilhos! A paz nesta zona foi conquistada por nós e, se eles passam sem problemas, nós também não os temos tido. Convém às duas partes, é bom não esquecer. Cuidado, meu capitão!
Guiné > Bissau > 1965 > O palácio do Governador Geral em dia de festa.
© Virgínio Briote (2005)
O pessoal, alferes Duarte, está cá há muitos meses, demasiados, falta-lhe pouco tempo para regressar a Bissau e embarcar para a metrópole. Precisa mais de quem o proteja do que gente que o meta ao barulho…
Mas Cuntima é uma pista desimpedida para eles, para meterem minas e armas no Oio, são trilhos pisados de fresco, passam todos os dias…
A minha ideia? Sair daqui sem espalhafato, a outras horas, permanecer na zona até eles aparecerem. Se vamos sempre para o mesmo sítio montar emboscadas, se nunca os encontramos e se o caminho está sempre pisado de fresco, só não os apanhamos se não quisermos, ou então se formos aselhas…
Ao princípio da tarde numa conversa com o furriel Poças, escolheu-se quem deveria sair. A seguir reuniu-se o pelotão na presença do capitão, que fez questão de assistir à partida. Vamos dar uma volta por aí, quem quer vir?
Voluntários, só voluntários, o capitão a atalhar, e o pelotão todo a dizer, eu vou.
Tu, tem mas é juízo! Mas eu também quero ir, meu capitão, o soldado a insistir! Dos furriéis só não foi o Palhares porque lhe doía a perna, que chatice logo hoje, além disso, parecia-lhe também que estava com paludismo. 22 mais um guia indígena e 5 auxiliares nativos.
Saíram da zona em viaturas, em direcção à fronteira. Minutos depois, apearam-se e internaram-se no mato, por um caminho que mal se via, de há tanto tempo não passar ali ninguém. Foram andando com cuidado, devagar, mais separados uns dos outros, sem grandes barulhos. Afinal, o pessoal sabe andar no mato. Avistaram a tabanca de Faquina Mandinga, abandonada há muito. Chegados perto do local onde costumavam emboscar-se, prosseguiram pelas margens do trilho, até à fronteira.
Para os lados de Sitató , quase em frente a Koldá, no Senegal, viram um local descampado. Os trilhos todos marcados com pegadas recentes. Esconderam-se atrás de arbustos, de pequenos baga-baga, e prepararam-se para o que desse e viesse.
Uma volta pelo pessoal para ajustar algumas posições individuais. Estabeleceram uma frente de cerca de 100 metros, ao longo do trilho que vinha do Senegal, com a bolanha em frente, um ângulo de visão de mais de 180 graus. Todos na expectativa, prontos para o que desse e viesse. E dispostos a esperar, pelo menos até ao meio-dia do dia seguinte. Mas eles devem aparecer antes…
Deitou-se com a G3 ao lado, tirou do casaco a Agfa que recebera de Angra uns dias antes, para o caso de haver motivos. Eram para aí 17, 17 e 30, quando ouviu uma voz muito baixa dizer, atenção malta, vêm aí os gajos!
É agora, o coração a dizer-lhe conta comigo. No meio de um silêncio enorme, uma culatra puxada atrás, um barulho que até eles devem ter ouvido! Agora? A que propósito? Uns tiros, uma rajada, depois uma girândola de rajadas para o descampado em frente, tudo em pouco mais de um minuto.
Coluna de carregadores do PAIGC
Foto: © Agência de Notícias Xinhua (1972).
Sacos pelo chão, gritaria, um preto a mancar com uma bicicleta ao lado, a tentar montar para cima dela, uns tipos caídos a gemer, um não se mexia, os valentes alentejanos pareciam que estavam a jogar rugby, todos ao monte para cima deles, para aí 5 ou 6, filhos desta e daquela. Eram poucos para tantos sacos, de arroz, sal e cola, duas bicicletas, granadas, duas caixas com munições, uma Mauser, portuguesa em tempos, livros de leitura em português, correspondência… Uma pequena secção de reabastecimento do PAIGC posta fora de combate em pouco mais de meia hora.
Um trabalhão pegar naqueles alentejanos e pô-los de regresso, com os prisioneiros feridos em padiolas improvisadas. Levou mais tempo a regressarem do que a irem, está bom de ver. Iam fazendo perguntas aos infelizes que tinham sido apanhados, para onde tanto arroz, para família, e livros, para meninos da família aprender a ler, cola para a família também, e que família é essa? É uma família muito grande, não é?
E quem foi o artolas que resolveu puxar a culatra atrás? Quem usa Mauser aqui, os milícias, quem havia de ser! Tinha que ser, meu alfero, os turras vinham de lá! Mas porquê, logo quando eles estavam a entrar na zona de morte?
Este sim, foi um baptismo de fogo ! Era assim que gostaria que fosse sempre, apanhá-los à sorrelfa, sem darem por ela.
Avistaram Cuntima ao longe, a noite já fechada, os petromaxes acesos, e, junto ao arame farpado, militares e a população civil em peso.
O Galo ao encontro deles, então?
Eu não lhe dizia que era uma questão de horário, meu capitão?
Tudo bem, parabéns, mas queira Deus que este episódio não nos traga problemas. Vá-me dando pormenores, vamos para o posto de rádio, vá falando.
Uma desorganização total, meu capitão. Cada um a fazer o que lhe deu na mona, a abrirem fogo quando lhes apeteceu, a correrem todos a monte, sem segurança nenhuma, o gajo da culatra…
Espera-lhe pela volta, Gil, o Didi a virar costas, quem havia de ser?
Mas a guerra, de facto, tomou conta de Cuntima. Foi como se tivessem mexido num enxame de abelhas. Uma ou duas semanas mais tarde, a outras horas, nova emboscada, e desta vez ninguém puxou a culatra antes. Depois, umas minas, a seguir um ataque a Cuntima. Nunca mais houve paz ali.
A fronteira ali tinha sido riscada num mapa, era mais administrativa que outra coisa, não correspondia a nenhuma divisão real entre as pessoas ou etnias. Familiares viviam de um lado e do outro, às vezes mudavam-se com as famílias todas atrás.
Em Cuntima fazia-se muita psicossocial. O médico, um açoriano da Terceira, era um homem bom, com espírito muito prático, não protestava com as condições precárias. Era preciso, fazia-se. Sempre disposto a dar uma ajuda àquelas populações, não interessava a que horas. Mais que uma vez, o doutor tivera que ir ao Senegal ver gente doente. A tropa conduzia-o até à fronteira, depois entregava-o aos guardas senegaleses que o acompanhavam até à tabanca dos doentes.
No passado, aquela gente nunca tinha tido um apoio tão grande como agora. Ajudavam-se os nativos na construção das casas, providenciavam-se mosquiteiros, faziam-se desinfestações, capinavam-se picadas, limpavam-se caminhos, abriam-se outros. Nunca faltavam voluntários para ajudar. Nem precisavam de arregaçar as mangas, andavam quase todos em tronco nu. De facto, naqueles dois ou três anos, desde que o PAIGC tinha iniciado a guerrilha, estava a fazer-se mais por aquela gente do que nos outros anos todos para trás. Isto se se levasse em conta o que se via feito até então. Quase nada. A guerra tem destas coisas.
A companhia militar estacionada em Cuntima, Colina do Norte como era agora chamada, tinha um efectivo a rondar os 150 homens, a esmagadora maioria já a poucos meses de regressar à metrópole. Alguns, muito poucos, estavam lá em rendição individual, para tapar as falhas que ocorrem sempre. Esse era o caso do Gil. Os outros alferes, o Didi e o Ribeiro tinham partido de Estremoz com o batalhão 490.
O Didi tinha o tamanho de um português, um ar de bem-nascido, com o sotaque do Rio, muito pronunciado. Totalmente contra, insinuava estar tão próximo dos guerrilheiros como das tropas que comandava. Um bom coração para as questões humanitárias, sempre pronto a ajudar, quase sempre de má vontade para tudo o que fosse acção ofensiva contra a guerrilha.
O Ribeiro mantinha-se ao largo destas discussões, não se manifestava, por cansaço, ou por outro motivo. Falava da namorada e da mãe, com os olhos brilhantes para as fotos ao lado da cama. Tinha ganho no Como a imagem do alferes mais operacional da companhia, os soldados falavam dele com respeito, via-se que tinha ascendente.
O Gil acreditava no Império, em Portugal do Minho a Timor. De mãos dadas com as populações, de arma na mão contra os que se opunham. Impensável, não via como podiam ter entre eles quem pensasse como o Didi!
Tanto choque de pontos de vista em tão pouco tempo, a guerra deixou de ser motivo de conversa, evitavam-na. Limitaram-se a conviver o resto do tempo que permaneceram juntos. Quando, por qualquer motivo, um deles insistia na conversa da guerra, o outro, como se tivessem combinado antes, punha-se a falar do Benfica e do Sporting…
O capitão tinha um ar blasé. Sobre o alto, magro, uma cara fina e os olhos de medo. Os galões dele mandavam naquela tropa e as coisas andavam por si. Via-se nele o desejo de acabar a comissão o mais depressa possível, sem mais chatices, o que não era nada fácil com um Coronel daqueles.
O doutor falava dos doentes e de Angra, a cidade onde nascera. Agora que tinha ali um recém-chegado da sua terra, puxava-lhe pela língua. Conheceste o quê? O Monte Brasil e as Lajes, claro, a Praia da Vitória, a Terra Chã, a Serreta, os Biscoitos, e que mais? Visitaste o Palácio dos Capitães-Generais, o Outeiro da Memória, a Igreja da Misericórdia, os Impérios, o Algar do Carvão? E que gente conheceste? Em que café paravas? Horas e horas de conversa, perguntas atrás de perguntas. E a namorada terceirense, que tal? Aquela que te escreve, julgas que não sei? Ora, pelo endereço, calhou, só isso, mais nada. Por acaso conheço a família dela, e a ela também, cheguei até a ver-lhe a garganta!
6.VEM MESMO A CALHAR, MORREU-ME UM GAJO ONTEM
Dói-te um dente, aonde, ora deixa ver. Nada que eu possa fazer aqui, porra, estes gajos pensam que vêm para aqui tratar os dentes, mal vai a guerra quando já mandam pessoal com defeito, rosnou. Farim! Quando for dia de dentista, sei lá quando!
Sentado debaixo de um enorme poilão, em Farim, à espera da vez, enquanto o enfermeiro militar percorria a fila dos sofredores, picando este e aquele. De alicate na mão o dentista chegou-se. Abra mais a boca! Ora deixe ver, onde lhe dói, aqui? Não posso fazer isto aqui, não tenho condições, só em Bissau. E tem que tomar um antibiótico, primeiro.
Bissau outra vez. Dente arrancado, aguardava transporte de regresso a Cuntima. No QG, à porta da 1ª Rep, esperava pela guia de marcha de regresso a Farim. Nisto, vê um jeep a estacionar com estardalhaço, dois tipos a saltarem, um alferes e um tenente com um saco de serapilheira na mão, escadas acima. Farda de terylene amarela, lenços no pescoço, emblema dos comandos nos ombros, no jeep também.
Minutos depois descem, sorridentes. Gil Duarte, apresenta-se. Comandos, que tropa é a vossa, que tipo de trabalho fazem?
Porque quer saber? Pormenores? Quer mesmo saber? Então suba!
Saltou para trás, curvado para a frente, a ouvir as respostas. Golpes de mão , guia, turra de preferência, é só o que precisamos. Operações curtas, surpresa, bater e fugir, castigá-los nas costas, fazer guerrilha! Regressar a Bissau, dormir, banho, um frango assado no Fonseca, uma gaja boa e um banho a seguir. Uma guerra limpa, interessa-lhe?
Convém que se decida depressa, ainda ontem me morreu um gajo, o curso começa daqui a 2 semanas, temos 4 vagas para comandantes de grupo e ainda só temos 9 inscritos. Na formação, vai sempre alguém abaixo, sabe como é, temos que ter mais pessoal. Decida-se, tem ainda as provas de selecção, físicas e psíquicas. Conversa com o psiquiatra do Hospital é só blá-blá, claro. Material sempre às costas, mil metros, 20 flexões de braços, 20 suspensões da barra, 100 metros velocidade, cangurus, provas de tiro, tudo seguido sem intervalos, que mais pá, coisas assim, quer concorrer? Vai pensar? Ah, então interessa-nos. Porquê? Porque pensa, porra! Pensar é uma grande forma de selecção, desde que decida bem, claro.
Encontramo-nos então amanhã em Brá, 9 horas é uma hora boa.
Uns minutos para respirar, já só faltam os 1000 metros, mais um pequeno esforço, meu alferes, disse o Moita, o furriel instrutor. Como contamos a distância? Fácil, o meu alferes corre, nós vamos à frente no jeep, quando passar 1 km no conta-quilómetros, corta a meta. Menos de 4 minutos, ganha uma cerveja, menos de 3 minutos e meio uma grade, menos de 1 minuto a fábrica. Não, não me recordo, estou aqui desde a abertura do Centro, nunca ninguém ganhou a grade, que me lembre, pois não ó Mirandela?
Guiné > O "roteiro turístico" do comando Briote (1965/67)
© Virgínio Briote (2005)
A correr por ali fora, para os lados do aeroporto, a força do calor na estrada, botas a pegarem-se ao alcatrão, 1, 2, 3 km, sabia lá! Sentado na berma da estrada, esforçava-se em manter os pulmões dentro da caixa.
De regresso a Brá, apresentado ao major M. Dias, assinou os papéis. À noite, quando o largaram na Amura estava mais morto que vivo.
Na outra manhã quando tomava o café na messe, o tenente Tomás da PM sentou-se na mesa dele. Eh, Gil, grande guerreiro, coisa e tal! Os tambores tinham sido mais rápidos que ele. Porquê os comandos, o Tomás curioso. Dentro de 3 ou 4 meses o 490 vem para Bissau, o Coronel vai colocar o pessoal no ar condicionado, a aguardar, tranquilo, os meses que faltam. Porquê os comandos, chiça?
Difícil explicar agora. Nem Gil sabia bem porquê. Também não tinha muito tempo para conversas, o jeep para o aeroporto estava à espera.
Ao princípio da tarde estava em Cuntima. Encontraram-se todos na pista e foram para a sombra, gozar a calmaria do resto da tarde. Um estouro forte interrompeu as conversas, parou tudo.
Para os lados de Jumbembem (2), não? Um macaco que pisou uma anti-pessoal, se calhar, diz um.
Ou uma mina numa viatura, diz outro.
É melhor alguém sair e ir ver o que se passou.
Para quê, a esta hora, é quase noite!
Uma coluna que vinha de Farim, uma mina numa Fox , aqui perto, na estrada de Jumbembem para aqui, perto da curva da morte, parece que há feridos, o capitão Galo a correr para eles, aos gritos, não sei se devemos ir ao encontro, ou se será melhor esperar…que dizem?
Depressa, uma coluna para lá, ao encontro deles, antes que seja noite, meu capitão, um logo!
É melhor esperarmos! Arrancar já, porquê? Sabemos lá o que se está a passar, insiste o Didi.
É pá, não podemos ficar aqui a ver passar os comboios, o rebentamento foi aqui perto, temos que ir ver o que se passa, prestar auxílio, porra!
Depois de muita hesitação, o Galo decide-se, arranca o pelotão mais folgado.
Cuidado, muita atenção, nada de loucuras por aí fora, sempre a abrir, nada disso, ouviu? Tome-me conta destes gajos, falta-lhes pouco tempo! Conte com chocolate , mais que certo uma emboscada no caminho, talvez também uma mina, ouviu?
Bem pensado, a mina na Fox, a viatura destruída, a maralha embrulhada com os feridos à espera de socorros, estes a irem em socorro, de Cuntima no caso, uma mina à espera destes na picada e uma emboscada, não há dúvida, se for assim é bem pensado!
Cuidados redobrados, picadores à frente, todo o pessoal a pé, as viaturas cheias de sacos de areia só com os motoristas, uma eternidade até encontrarem a coluna. Estes, lixados com tamanho atraso, receberam-nos como se estivessem a vê-los regressar da praia.
Enfim, porra! Se não fosse a malta de Jumbembem, os feridos já tinham morrido, que caraças!
Realmente, Jumbembem também estava próximo, mas compreende-se o desespero do comandante da coluna atingida.
O Coronel é que não tinha achado graça nenhuma, mandou um rádio ao Galo, a exigir explicações. A coluna ficara imobilizada, pedira apoio a Cuntima e Jumbembem, porque é que a sua companhia só chegou uma hora depois da outra? Explique-se, estou no rádio à espera da sua resposta.
Que fora só o tempo de preparar um pelotão, mais o tempo da deslocação, as precauções que exigira do comandante do pelotão, até não fora demasiado!
O Coronel com o copo a deitar por fora há muito, deve ter dito borda fora com o Galo, vou mandá-lo pregar para outra freguesia. Foi o que fez, um auto de averiguações, corpo de delito a seguir, uns dias de prisão. Que fizesse o espólio e tomasse a próxima Dornier para o QG, que, de certo, lhe arranjaria um destino mais conveniente.
O capitão Galo, desesperado, defendeu-se por escrito, meteu testemunhas e tudo, Gil à cabeça, solidário com o seu capitão naquele caso. A demora podia ter sido menor, se pusesse as viaturas a esgalhar. No caso, não deu por qualquer perda de tempo, não se puseram a jogar as cartas, tinham percorrido a estrada com cuidado, mas nada de excessivo. Devia haver uma história qualquer por trás.
Na noite da mina, ao jantar, a saída do Gil para os comandos foi mais um assunto para a conversa. Levara-lhes uma garrafa de uísque, abriram-na, cada um falou, do mais novo ao mais antigo.
Esta companhia anda com galo, mas anda mesmo! A sina tem sido a deserção, uns por doenças, coitados, outros nem sabem porquê, grandes sacanas!
Dêsaprôvo totalmentche, prôtesto contra esse pessoau! Vi-os no Como, uns gajos horríveis, sem maneiras de lidar com as pêssoas, quanto mais com a pópulação! Só querem saber da guerra, como dar tiro no coitado do negrão, mais nada! Vou-me rêtirá, tchau, o Didi!
Até ao nosso regresso a Bissau, despediram-se oficialmente, digamos assim.
O Coronel não gostava, nem dos atrasos dos outros nem dos dele. Na primeira oportunidade, mandou preparar uma coluna e pôs-se à frente, rumo a Cuntima.
Ora chegue-se aqui, o alferes Gil está cá há quanto tempo, pouco, não é? Não teve tempo ainda de reparar que não tinha um comandante, mas apenas um capitão? E pôs-se a assinar por baixo, a dizer que gosta?
Passou uns dias à espera que o Coronel desse o ok à sua saída, o que aconteceu logo que chegou o novo capitão. Este a sair da Do, o Gil a entrar, mal deu tempo para se falarem.
© Virgínio Briote (2005)
(ex-Alf Mil Comando, Brá, 1965/67)
_________
(1) Colina do Norte > A nordeste de Farim, junto à fronteira com o Senegal (vd. carta da Guiné, 1961)
(2) Jumbembem > A meio caminho entre Farim e Colina do Norte
quarta-feira, 7 de dezembro de 2005
Guiné 63/74 - P328: Cancioneiro de Mansoa (3): um mosquiteiro barato para um pira... (Magalhães Ribeiro)
Dos "cadernos" (agora rebaptizados como Cancioneiro de Mansoa) do Magalhães Ribeiro, o Ranger:
UM MOSQUITEIRO BARATO...
Uma das características na Guiné é a variação bidiária da sua área total de território seco de 31 800 Km2 - devido à subida das águas do mar, nas marés altas -, para cerca de 28 000 Km2. Isto acontece devido a dois factos: a cota territorial média que é muito baixa e a existência de múltiplos rios.
Por isso, durante a maré baixa, ficam a descoberto, mais ou menos 3 800 Km2 de zonas pantanosas que, localmente, se designa por “bolanhas”.
Ora, este é o habitat natural da mosquitada, que por ali prolifera aos milhões e se espalha por todo o lado em busca de alimento. Um dos seus “pratos” favoritos é o sangue humano (1).
Durante a Guerra do Ultramar as vítimas preferidas por estes parasitos incomodativos e asquerosos, eram sem dúvida os incautos periquitos ou piras (nome dado pelos tropas velhinhos aos recém-chegados à Guiné).
Dizia a sabedoria destes velhinhos - talvez com alguma razão -, que os mosquitos eram atraídos, pelo tom de pele branquinha e/ou pelo sangue fresco e puro dos periquitos. E, acrescentavam mais:
-Do nosso sangue, envenenado e apanhado pelo clima como está, os mosquitos até fogem!.
Acredite-se ou não nesta teoria, a verdade, é que de cada vez que um pira se expunha à fúria daquela praga com asas ficava completamente crivado das picadelas.
Estas picadas além de dolorosas e irritantes eram temidas porque através delas se transmite ao ser humano, o paludismo, uma doença muito debilitante fisicamente e, consequentemente, muito perigosa.
Em Mansoa, quando entrei pela primeira vez na camarata verifiquei que nas cabeceiras das camas todos tinham, de maior ou menor tamanho, ventoínhas, e adaptadas nas armações das camas encontravam-se estruturas de tubos e verguinhas metálicas, com cerca de 0,75 metros de altura, todas revestidas até ao chão com redes de malha muito fininha.
O velhinho e meu grande amigo Furriel Ranger Marques, com a sua calma e longa experiência de vinte e muitos meses deu-me, então, uma lição sobre “Como dormir sem zumbidos nem picadas dos mosquitos na Guiné”, assim:
1º - Não se faz mal às osguinhas e salamandras que deslizam ali no tecto - estavam lá três de vários tamanhos -, apesar do seu aspecto repelente elas são nossas amigas, e ajudam-nos a eliminar os mosquitos que, à noite, abundam e atacam muito mais, comendo-os.
2º - O "aparelho de ar condicionado" está com problemas de falta de ar e foi para consertar para o continente há onze anos, pelo que, para dormir fresquinho só com as janelas todas abertas. Mas em contrapartida os mosquitos entram e picam-te durante toda a noite.
3º - Evitas os mosquitos e as respectivas picadelas, fechando todas as janelas e frinchas, mas ficas sujeito a morrer aqui abafado.
4º - Pedes para ir a Bissau, compras o material (verguinha de aço, e rede ou tule) e constróis um mosquiteiro.
5º - Como estou para ir embora, podes fazer como eu fiz quando cá cheguei, compras a um de nós o mosquiteiro e só pagas o material, com desconto e tudo. Olha, o meu está bem conservado !?... Novo custou 570$00, mas devido ao uso e tal, vendo-to por 350$00.
Os mosquitos continuavam à minha volta a comer-me vivo! Que fazia no meu lugar?...
Eu também fiz! Comprei logo!
RANGER Magalhães Ribeiro - Furriel Miliciano da CCS do Batalhão 4612/74 - Guiné/Mansoa
_____
Nota de .G.
(1) Trinta anos depois, as consequências do paludismo na Guiné-Bissau são trágicas. Segunndo as autoridades sanitárias do país, e nomeafdamente dos Responsáveis Nacionais do Programa de Luta Contra o Paludismo, há uma situação endémica que se traduz por estes números alarmantes:
(i) 20% da letalidade hospitalar de crianças menores de 5 anos e 70% das consultas nos Centros de Saúde;
(ii) 250.000 casos notificados entre crianças menores de 5 anos de 2002 a 2003 e 150.000 entre os maiores de 5 anos;
(iii) 1000 mortes entre crianças menores de 5 anos (2002 - 2003).
Fonte: WHO / AFRO > OMS / Guiné-Bissau > OMS/BISSAU apoia o Governo na advocacia poara a iniciativa "Fazer Recuar o Paludismo"
UM MOSQUITEIRO BARATO...
Uma das características na Guiné é a variação bidiária da sua área total de território seco de 31 800 Km2 - devido à subida das águas do mar, nas marés altas -, para cerca de 28 000 Km2. Isto acontece devido a dois factos: a cota territorial média que é muito baixa e a existência de múltiplos rios.
Por isso, durante a maré baixa, ficam a descoberto, mais ou menos 3 800 Km2 de zonas pantanosas que, localmente, se designa por “bolanhas”.
Ora, este é o habitat natural da mosquitada, que por ali prolifera aos milhões e se espalha por todo o lado em busca de alimento. Um dos seus “pratos” favoritos é o sangue humano (1).
Durante a Guerra do Ultramar as vítimas preferidas por estes parasitos incomodativos e asquerosos, eram sem dúvida os incautos periquitos ou piras (nome dado pelos tropas velhinhos aos recém-chegados à Guiné).
Dizia a sabedoria destes velhinhos - talvez com alguma razão -, que os mosquitos eram atraídos, pelo tom de pele branquinha e/ou pelo sangue fresco e puro dos periquitos. E, acrescentavam mais:
-Do nosso sangue, envenenado e apanhado pelo clima como está, os mosquitos até fogem!.
Acredite-se ou não nesta teoria, a verdade, é que de cada vez que um pira se expunha à fúria daquela praga com asas ficava completamente crivado das picadelas.
Estas picadas além de dolorosas e irritantes eram temidas porque através delas se transmite ao ser humano, o paludismo, uma doença muito debilitante fisicamente e, consequentemente, muito perigosa.
Em Mansoa, quando entrei pela primeira vez na camarata verifiquei que nas cabeceiras das camas todos tinham, de maior ou menor tamanho, ventoínhas, e adaptadas nas armações das camas encontravam-se estruturas de tubos e verguinhas metálicas, com cerca de 0,75 metros de altura, todas revestidas até ao chão com redes de malha muito fininha.
O velhinho e meu grande amigo Furriel Ranger Marques, com a sua calma e longa experiência de vinte e muitos meses deu-me, então, uma lição sobre “Como dormir sem zumbidos nem picadas dos mosquitos na Guiné”, assim:
1º - Não se faz mal às osguinhas e salamandras que deslizam ali no tecto - estavam lá três de vários tamanhos -, apesar do seu aspecto repelente elas são nossas amigas, e ajudam-nos a eliminar os mosquitos que, à noite, abundam e atacam muito mais, comendo-os.
2º - O "aparelho de ar condicionado" está com problemas de falta de ar e foi para consertar para o continente há onze anos, pelo que, para dormir fresquinho só com as janelas todas abertas. Mas em contrapartida os mosquitos entram e picam-te durante toda a noite.
3º - Evitas os mosquitos e as respectivas picadelas, fechando todas as janelas e frinchas, mas ficas sujeito a morrer aqui abafado.
4º - Pedes para ir a Bissau, compras o material (verguinha de aço, e rede ou tule) e constróis um mosquiteiro.
5º - Como estou para ir embora, podes fazer como eu fiz quando cá cheguei, compras a um de nós o mosquiteiro e só pagas o material, com desconto e tudo. Olha, o meu está bem conservado !?... Novo custou 570$00, mas devido ao uso e tal, vendo-to por 350$00.
Os mosquitos continuavam à minha volta a comer-me vivo! Que fazia no meu lugar?...
Eu também fiz! Comprei logo!
RANGER Magalhães Ribeiro - Furriel Miliciano da CCS do Batalhão 4612/74 - Guiné/Mansoa
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Nota de .G.
(1) Trinta anos depois, as consequências do paludismo na Guiné-Bissau são trágicas. Segunndo as autoridades sanitárias do país, e nomeafdamente dos Responsáveis Nacionais do Programa de Luta Contra o Paludismo, há uma situação endémica que se traduz por estes números alarmantes:
(i) 20% da letalidade hospitalar de crianças menores de 5 anos e 70% das consultas nos Centros de Saúde;
(ii) 250.000 casos notificados entre crianças menores de 5 anos de 2002 a 2003 e 150.000 entre os maiores de 5 anos;
(iii) 1000 mortes entre crianças menores de 5 anos (2002 - 2003).
Fonte: WHO / AFRO > OMS / Guiné-Bissau > OMS/BISSAU apoia o Governo na advocacia poara a iniciativa "Fazer Recuar o Paludismo"
Guiné 63/74 - P327: CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74) (Sousa de Castro)
O Sousa de Castro mandou-me recentemente mais umas fotos do tempo dele, da sua CART 3494.
Uma delas é do brasão que ficou em Mansambo. Recorde-se que a CART 3494, pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca, esteve originalmente aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74). No Xime foi substituída pela CCAÇ 12 (no final do 1º trimestre de 1973).
Repare-se no mapa do Sector L1, da Zona leste, com as nossas posições devidamnete assinaladas: Bambadinca e Xime, junto ao Rio Geba (e ainda o Enxalé, a norte); o Xitole, junto ao Rio Corubal; e, entre Bambadinca e Xitole, Mansambo.
© Sousa de Castro (2005)
A outra imagem é relativa a diverso material apreendido ao PAIGC numa operação, levada a cabo pela CART 3494, em 1973. Fico na dúvida se já em Mansambo ou ainda no Xime.
© Sousa de Castro (2005)
Com a ajuda do nosso consultor militar, o Coronel A. Marques Lopes, podemos identificar alguns brinquedos, usados pelos guerrilheiros do PAIGC, que nos eram familiares:
"As armas são Kalashnikov (a do meio tem apoio de mão);
"Os tubos dos lados parece-me que são de acondicionamento de granada de canhão-sem-recuo (pelo menos os nossos eram parecidos...);
"Há duas granadas de RPG7;
"As duas caixas no chão, uma aberta e outra meio aberta, creio que são minas anti-pessoal de 400 gramas PMD 6;
"Outras coisas não te sei dizer, mas penso que por trás há caixas de munições e há vário material do equipamento individual do guerrilheiro espalhado no chão".
Uma delas é do brasão que ficou em Mansambo. Recorde-se que a CART 3494, pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca, esteve originalmente aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74). No Xime foi substituída pela CCAÇ 12 (no final do 1º trimestre de 1973).
Repare-se no mapa do Sector L1, da Zona leste, com as nossas posições devidamnete assinaladas: Bambadinca e Xime, junto ao Rio Geba (e ainda o Enxalé, a norte); o Xitole, junto ao Rio Corubal; e, entre Bambadinca e Xitole, Mansambo.
© Sousa de Castro (2005)
A outra imagem é relativa a diverso material apreendido ao PAIGC numa operação, levada a cabo pela CART 3494, em 1973. Fico na dúvida se já em Mansambo ou ainda no Xime.
© Sousa de Castro (2005)
Com a ajuda do nosso consultor militar, o Coronel A. Marques Lopes, podemos identificar alguns brinquedos, usados pelos guerrilheiros do PAIGC, que nos eram familiares:
"As armas são Kalashnikov (a do meio tem apoio de mão);
"Os tubos dos lados parece-me que são de acondicionamento de granada de canhão-sem-recuo (pelo menos os nossos eram parecidos...);
"Há duas granadas de RPG7;
"As duas caixas no chão, uma aberta e outra meio aberta, creio que são minas anti-pessoal de 400 gramas PMD 6;
"Outras coisas não te sei dizer, mas penso que por trás há caixas de munições e há vário material do equipamento individual do guerrilheiro espalhado no chão".
Guiné 63/74 - P326: Manjacos, balantas, fulas, papéis, felupes... manga de bom pessoal (Luís Graça)
Queridos amigos & camaradas:
Aí vão mais uns nacos de prosa para se entreterem no feriado…
O Sousa de Castro mandou-me uma peça (deliciosa), retirado de uma brochura do exército colonial, de 1971, com laivos de “cultura antropológica” sobre os povos da Guiné… Seria interessante fazer uma análise crítica desses estereótipos, ideias feitas ou preconceitos que nos inculcaram sobre as diferentes etnias que habitavam o território, uns de sinal positivo, outros de sinal negativo: por exemplo, falava-se do balanta como valente e ladrão; do felupe como caçador de cabeças; do fula como leal e preguiçoso…
Enfim, muitos desses estereótipos ainda estão nas nossas cabeças, infelizmente… E ás vezes, subrepticiamente, aparecem no nosso discurso…
Muitos de nós (Carlos Fortunato, A. Marques Lopes, eu, o Humberto, o Levezinho, o Monteiro, etc.) estivemos em companhias que pertenciam à "nova força africana", no tempo do Spínola (caso da CCAÇ 3, CCAÇ 11, CCAÇ 12, CCAÇ 13…). Ou, muito antes, em 1964/66, tivemos camaradas quer da Metrópole quer da Guiné, voluntários, nos nossos grupos de tropa especial, como foi o caso dos primeiros comandos (caso do VB, do Mário Dias, do Parreira, etc.).
Algumas das nossas unidades eram "etnicamente homogéneas" (como, por exemplo, CCAÇ 12) e isso não acontecia por acaso… Tratava-se de dividir para reinar e sobretudo de criar um sentimento forte de pertença ao "chão": os fulas combatiam em casa, na defesa do "chão fula" (actuais regiões de Bafatá e do Gabu)…
Pessoalmente sou contra o label, a catalogação das pessoas em função de uma particularidade: a cor dos olhos, do cabelo ou da pele; mas também da etnia (já não digo raças, por que esse conceito é anticientífico, não há raças humanas…). A pertença a um dado grupo étnico é, todavia, importante, por causa das questões da cultura, da saudável e riquíssima diversidade cultural do Homo Sapiens Sapiens …
Mas às vezes é perigoso insistir em (ou até evocar) essas diferenças… O colonialismo utilizou o conhecimento antropológico ou etnológico para esse fim, para dividir, dominar e reinar… Temos, por isso, de ser cautelosos na leitura e análise de textos de antologia como aquele que foi publicado ontem, e que me foi enviado pelo Sousa de Castro…
Dito isto, nada nos impede de expor as nossas ideias e sobretudo relatar a nossa experiência de convivência e até de amizade com balantas, manjacos, fulas ou felupes… Há algum risco de ferir as susceptibilidades dos nossos amigos de ontem e de hoje… Mas, por favor, não façamos generalizações abusivas…
A Guiné-Bissau, tal como muitos outros países africanos, é ainda hoje vítima do "demónio étnico", como muito bem denunciava há dias o nosso amigo Pepito (aliás, Carlso Schwarz)…
Um abraço multicultural a todos vós.
Bom feriado, para os tugas…
Aí vão mais uns nacos de prosa para se entreterem no feriado…
O Sousa de Castro mandou-me uma peça (deliciosa), retirado de uma brochura do exército colonial, de 1971, com laivos de “cultura antropológica” sobre os povos da Guiné… Seria interessante fazer uma análise crítica desses estereótipos, ideias feitas ou preconceitos que nos inculcaram sobre as diferentes etnias que habitavam o território, uns de sinal positivo, outros de sinal negativo: por exemplo, falava-se do balanta como valente e ladrão; do felupe como caçador de cabeças; do fula como leal e preguiçoso…
Enfim, muitos desses estereótipos ainda estão nas nossas cabeças, infelizmente… E ás vezes, subrepticiamente, aparecem no nosso discurso…
Muitos de nós (Carlos Fortunato, A. Marques Lopes, eu, o Humberto, o Levezinho, o Monteiro, etc.) estivemos em companhias que pertenciam à "nova força africana", no tempo do Spínola (caso da CCAÇ 3, CCAÇ 11, CCAÇ 12, CCAÇ 13…). Ou, muito antes, em 1964/66, tivemos camaradas quer da Metrópole quer da Guiné, voluntários, nos nossos grupos de tropa especial, como foi o caso dos primeiros comandos (caso do VB, do Mário Dias, do Parreira, etc.).
Algumas das nossas unidades eram "etnicamente homogéneas" (como, por exemplo, CCAÇ 12) e isso não acontecia por acaso… Tratava-se de dividir para reinar e sobretudo de criar um sentimento forte de pertença ao "chão": os fulas combatiam em casa, na defesa do "chão fula" (actuais regiões de Bafatá e do Gabu)…
Pessoalmente sou contra o label, a catalogação das pessoas em função de uma particularidade: a cor dos olhos, do cabelo ou da pele; mas também da etnia (já não digo raças, por que esse conceito é anticientífico, não há raças humanas…). A pertença a um dado grupo étnico é, todavia, importante, por causa das questões da cultura, da saudável e riquíssima diversidade cultural do Homo Sapiens Sapiens …
Mas às vezes é perigoso insistir em (ou até evocar) essas diferenças… O colonialismo utilizou o conhecimento antropológico ou etnológico para esse fim, para dividir, dominar e reinar… Temos, por isso, de ser cautelosos na leitura e análise de textos de antologia como aquele que foi publicado ontem, e que me foi enviado pelo Sousa de Castro…
Dito isto, nada nos impede de expor as nossas ideias e sobretudo relatar a nossa experiência de convivência e até de amizade com balantas, manjacos, fulas ou felupes… Há algum risco de ferir as susceptibilidades dos nossos amigos de ontem e de hoje… Mas, por favor, não façamos generalizações abusivas…
A Guiné-Bissau, tal como muitos outros países africanos, é ainda hoje vítima do "demónio étnico", como muito bem denunciava há dias o nosso amigo Pepito (aliás, Carlso Schwarz)…
Um abraço multicultural a todos vós.
Bom feriado, para os tugas…
Guiné 63/74 - P325: Respeito pelos manjacos, se faz favor! (João Tunes)
Guiné > Pelundo > Dezembro de 1969 > João Tunes (no jipe, do lado esquerdo), na altura Alferes Miliciano de Transmissões da CCS do BCAÇ 2884... e baby sitter, em pleno chão manjaco (1).
© João Tunes (2005)
Caro Camarada Luís,
[A brincar é que a gente se entende. Ou disfarça. Porra, se um gajo leva tudo a sério, fica tão velho que perde a noção que já envelheceu e arma-se em "ginja".] Fiquei petrificado, termo suave, ao ler hoje no blogue a notícia trans-étnica de que resolveste adoptar o Nino Vieira como manjaco.
Li e dei dois murros na parede, uma cabeçada no armário e atirei-me para o chão (porque, entretanto, o meu filho mais novo foi buscar leite ao frigorífico e ao fechar a porta do electrodoméstico me pareceu que o gajo - o morteiro - estava a sair da boca do tubo e vinha a caminho). E diga-se em teu abono, que desta última tu não tens culpa, mas sim o tal Nino que me deixou ressonâncias de sons inconvenientes na cabeça lá do nosso convívio em Catió, Cacine, Gadamael e Guileje.
Desculpado estando tu quando à cena do frigorífico, não escapas ao ónus dos murros na parede e da cabeçada no armário. Sabes, julgo que sabes, o especial carinho de memória que tenho pelos manjacos e que, no meu curto conhecimento, era uma etnia com uma das culturas mais ricas e polifacetadas entre as várias (não conheci todas) com que convivi (forma de expressão) na Guiné. Devo isso, em particular, a um mestre muito querido que tive em Teixeira Pinto, o major Pereira da Silva, "doutorado", por força das funções, em cultura manjaca (como sabes, foi um dos três majores, jntamente com um alferes miliciano, depois massacrados em 1970 em Jolmete-Pelundo). Passei horas no quartel de Teixeira Pinto a ouvir o meu querido e saudoso amigo Pereira da Silva, ele fascinava-se com a narração riquíssima dos usos e costumes manjacos e eu, ficava feito papalvo, a ouvi-lo e a admirá-lo, a ele e aos manjacos.
Para europeus, como nós, era fascinante como eles desenvolveram e consolidaram códigos de ética próprios e os metiam em forma de "lei", não pela imposição bruta, mas pela sua sueprioridade de etnia refinada e sofisticada. Muito do que aprendi com o major Pereira da Silva sobre os manjacos foi-se nas brumas da memória (não tomava apontamentos, só me restavam os olhos e os ouvidos que as garrafas entornadas da "chicória americana com alcool" iam deixando em lucidez entaramelada). Mas aquele homem, lembro-me dos seus bigodes de sábio e a sua bóina mal metida no seu cocuruto de oficial intelectual, era não só um poço de cultura como um óasis de saber, aprender e ensinar naquela guerra de merda.
Eu ouvia o major Pereira da Silva em Teixeira Pinto e julgava-me na Sorbonne, em Nanterre ou em Oxford, perante um Mestre e a esquecer que estava no cú de judas, fodido dos cornos porque estava numa guerra estúpida e deslocada no tempo e na razão, capaz de abusar ("comer", dizia-se e diz-se na linguagem canibal do sexo) uma bajuda que se pusesse a jeito ou batendo punhetas a pensar numa branca lá longe (fosse ela a prima mais feia, mesmo com bigode, que nos tivesse calhado na rifa da família), disposto a espetar uma rajada de G3 num qualquer cabrão de um preto que me assustasse, metendo o capelão do meu batalhão a soprar, perdido de bêbado, em preservativos transformados em balões que se dão aos meninos quando fazem anos, dando-nos o gozo da blasfémia (não nossa, mas do pobre capelão).
Pois, o meu saudoso major Pereira da Silva deu-me aulas infindáveis sobre a cultura manjaca. Já disse que a maioria do que me ensinou, eu esqueci, porque quando penso nele o que vem à ideia é imaginá-lo fodido a rajadas de kalash e acabado retalhado à catanada, como se fosse um cão, a que não assisti, quando aconteceu já eu estava em Catió, mas sei-o contado por quem lhe viu os restos feitos em merda de matadouro.
Mas lembro-me de uma particularidade que me ficou na memória. Que, os manjacos, quando havia uma infidelidade conjugal da parte feminina (e, para haver esta regra, é porque elas não deviam ser poucas, honra pois à mulher manjaca!), a mulher adúltera não era imediatamente rejeitada mas antes submetida à prova de um ritual - todos os adultos da tabanca iam para um cruzamento de caminhos, e aí, perante todos, o marido decidia publicamente se perdoava o adultério ou não. Em conformidade, se o encornado perdoava, o casal reconstituía-se e não havia lugar á mais pequena futura crítica dos patrícios. Se o encornado não aceitava a reconciliação, ou a adúltera persistia na diferença de escolha, cada um ia às suas. Ou seja, não havia nem fofocas nem dichotes, a decisão, desde que pública e asumida perante toda a tribo, isentava cada um de responsabilidades privadas e anteriores.
O que os manjacos não perdoavam era o acto clandestino da traição. Claro que isto só se entendia, não só á luz de um código ético altamente elaborado, como também (julgo) uma transição recente de um período de domínio matriarcal que permitia às mulheres manjacas um estatuto que era invulgar entre as mulheres africanas.
Pois era muito amigo do major Pereira da Silva, mais ainda do major Passos Ramos (sempre o imaginei à frente do MFA; no 25 A e depois, eu via aquela gajada - sem ofensa - na Junta e na Coordenadora do MFA, e dizia para comigo: "porra! falta ali o Passos Ramos!"), também do major Osório, embora esse fosse mais para a porrada e para as guerras (e eu, sabes, sempre fui, como guerreiro, um civil mal fardado).
E acima de nós todos, guerreiros coloniais a mais numa guerra estúpida, eu admirava os manjacos, sobretudo pela sua cultura e ética riquíssima (e esses estavam na sua terra e na sua guerra, como eu estaria se os espanhóis me entrassem no meu Trás-os-Montes natal dentro, fodia-os a todos ou fodia-me a mim!).
Voltando à minha zanga contigo. Então tu decidiste (com que autoridade???) meter esse sacripanta do Nino (à parte os seus méritos guerreiros, que os teve e muitos, tantos até que ele já os deve ter esquecido), um "papel", como "manjaco"? Meu deus: "Nino Manjaco"? Por este caminho, ainda, um dia destes, dizes por aí que o Major Valentim Loureiro (um amigo do Nino) é fula ou mandinga. Meu deus! Meu deus! Meu deus! (se Pedro negou Cristo três vezes, eu pago-lhe a conta, pela afirmativa, também em triplicado).
Respeita os manjacos, camarada Luís! (desculpa-me a ironia amiga, não a leves a mal, mas foi a forma de disfarçar uma lágrima que se me escapou pois li-te a chamar manjaco ao Nino, as entranhas começaram em revolta e lembrei-me do Pereira da Silva, foi o que foi, já passou!).
Abraço grande para ti e do mesmo tamanho para todos os camaradas tertulianos.
João Tunes
Resposta do L.G.:
João:
Aqui na tertúlia todos temos o direito à... indignação!... A tua foi de tal ordem que eu ouvi o teu murro em cima da mesa!... E olha que nós não moramos tão perto um do outro quanto isso, temos pelo menos o Rio Tejo de permeio... Foi um lapsus linguae da minha parte e sobretudo fruto da minha total ignorância em relação aos manjacos. Eu devia saber que o Nino nunca poderia ser um manjaco!... Infelizmente, não convivi com os manjcos, apenas com os fulas. Resta-me pedir-te mil perdões a ti e aos nossos queridos manjacos da Guiné-Bissau. E já agora também as minhas desculpas ao Nino Vieira, que não é manjaco mas papel: o seu a seu dono. Já fiz a correcção da grossa calinada de ontem à noite... Um grande abraço. Luís
__________
(1) Vd. post de 27 Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXVI: BCAÇ 2884 (Pelundo, 1969/71), o primeiro batalhão do João Tunes
© João Tunes (2005)
Caro Camarada Luís,
[A brincar é que a gente se entende. Ou disfarça. Porra, se um gajo leva tudo a sério, fica tão velho que perde a noção que já envelheceu e arma-se em "ginja".] Fiquei petrificado, termo suave, ao ler hoje no blogue a notícia trans-étnica de que resolveste adoptar o Nino Vieira como manjaco.
Li e dei dois murros na parede, uma cabeçada no armário e atirei-me para o chão (porque, entretanto, o meu filho mais novo foi buscar leite ao frigorífico e ao fechar a porta do electrodoméstico me pareceu que o gajo - o morteiro - estava a sair da boca do tubo e vinha a caminho). E diga-se em teu abono, que desta última tu não tens culpa, mas sim o tal Nino que me deixou ressonâncias de sons inconvenientes na cabeça lá do nosso convívio em Catió, Cacine, Gadamael e Guileje.
Desculpado estando tu quando à cena do frigorífico, não escapas ao ónus dos murros na parede e da cabeçada no armário. Sabes, julgo que sabes, o especial carinho de memória que tenho pelos manjacos e que, no meu curto conhecimento, era uma etnia com uma das culturas mais ricas e polifacetadas entre as várias (não conheci todas) com que convivi (forma de expressão) na Guiné. Devo isso, em particular, a um mestre muito querido que tive em Teixeira Pinto, o major Pereira da Silva, "doutorado", por força das funções, em cultura manjaca (como sabes, foi um dos três majores, jntamente com um alferes miliciano, depois massacrados em 1970 em Jolmete-Pelundo). Passei horas no quartel de Teixeira Pinto a ouvir o meu querido e saudoso amigo Pereira da Silva, ele fascinava-se com a narração riquíssima dos usos e costumes manjacos e eu, ficava feito papalvo, a ouvi-lo e a admirá-lo, a ele e aos manjacos.
Para europeus, como nós, era fascinante como eles desenvolveram e consolidaram códigos de ética próprios e os metiam em forma de "lei", não pela imposição bruta, mas pela sua sueprioridade de etnia refinada e sofisticada. Muito do que aprendi com o major Pereira da Silva sobre os manjacos foi-se nas brumas da memória (não tomava apontamentos, só me restavam os olhos e os ouvidos que as garrafas entornadas da "chicória americana com alcool" iam deixando em lucidez entaramelada). Mas aquele homem, lembro-me dos seus bigodes de sábio e a sua bóina mal metida no seu cocuruto de oficial intelectual, era não só um poço de cultura como um óasis de saber, aprender e ensinar naquela guerra de merda.
Eu ouvia o major Pereira da Silva em Teixeira Pinto e julgava-me na Sorbonne, em Nanterre ou em Oxford, perante um Mestre e a esquecer que estava no cú de judas, fodido dos cornos porque estava numa guerra estúpida e deslocada no tempo e na razão, capaz de abusar ("comer", dizia-se e diz-se na linguagem canibal do sexo) uma bajuda que se pusesse a jeito ou batendo punhetas a pensar numa branca lá longe (fosse ela a prima mais feia, mesmo com bigode, que nos tivesse calhado na rifa da família), disposto a espetar uma rajada de G3 num qualquer cabrão de um preto que me assustasse, metendo o capelão do meu batalhão a soprar, perdido de bêbado, em preservativos transformados em balões que se dão aos meninos quando fazem anos, dando-nos o gozo da blasfémia (não nossa, mas do pobre capelão).
Pois, o meu saudoso major Pereira da Silva deu-me aulas infindáveis sobre a cultura manjaca. Já disse que a maioria do que me ensinou, eu esqueci, porque quando penso nele o que vem à ideia é imaginá-lo fodido a rajadas de kalash e acabado retalhado à catanada, como se fosse um cão, a que não assisti, quando aconteceu já eu estava em Catió, mas sei-o contado por quem lhe viu os restos feitos em merda de matadouro.
Mas lembro-me de uma particularidade que me ficou na memória. Que, os manjacos, quando havia uma infidelidade conjugal da parte feminina (e, para haver esta regra, é porque elas não deviam ser poucas, honra pois à mulher manjaca!), a mulher adúltera não era imediatamente rejeitada mas antes submetida à prova de um ritual - todos os adultos da tabanca iam para um cruzamento de caminhos, e aí, perante todos, o marido decidia publicamente se perdoava o adultério ou não. Em conformidade, se o encornado perdoava, o casal reconstituía-se e não havia lugar á mais pequena futura crítica dos patrícios. Se o encornado não aceitava a reconciliação, ou a adúltera persistia na diferença de escolha, cada um ia às suas. Ou seja, não havia nem fofocas nem dichotes, a decisão, desde que pública e asumida perante toda a tribo, isentava cada um de responsabilidades privadas e anteriores.
O que os manjacos não perdoavam era o acto clandestino da traição. Claro que isto só se entendia, não só á luz de um código ético altamente elaborado, como também (julgo) uma transição recente de um período de domínio matriarcal que permitia às mulheres manjacas um estatuto que era invulgar entre as mulheres africanas.
Pois era muito amigo do major Pereira da Silva, mais ainda do major Passos Ramos (sempre o imaginei à frente do MFA; no 25 A e depois, eu via aquela gajada - sem ofensa - na Junta e na Coordenadora do MFA, e dizia para comigo: "porra! falta ali o Passos Ramos!"), também do major Osório, embora esse fosse mais para a porrada e para as guerras (e eu, sabes, sempre fui, como guerreiro, um civil mal fardado).
E acima de nós todos, guerreiros coloniais a mais numa guerra estúpida, eu admirava os manjacos, sobretudo pela sua cultura e ética riquíssima (e esses estavam na sua terra e na sua guerra, como eu estaria se os espanhóis me entrassem no meu Trás-os-Montes natal dentro, fodia-os a todos ou fodia-me a mim!).
Voltando à minha zanga contigo. Então tu decidiste (com que autoridade???) meter esse sacripanta do Nino (à parte os seus méritos guerreiros, que os teve e muitos, tantos até que ele já os deve ter esquecido), um "papel", como "manjaco"? Meu deus: "Nino Manjaco"? Por este caminho, ainda, um dia destes, dizes por aí que o Major Valentim Loureiro (um amigo do Nino) é fula ou mandinga. Meu deus! Meu deus! Meu deus! (se Pedro negou Cristo três vezes, eu pago-lhe a conta, pela afirmativa, também em triplicado).
Respeita os manjacos, camarada Luís! (desculpa-me a ironia amiga, não a leves a mal, mas foi a forma de disfarçar uma lágrima que se me escapou pois li-te a chamar manjaco ao Nino, as entranhas começaram em revolta e lembrei-me do Pereira da Silva, foi o que foi, já passou!).
Abraço grande para ti e do mesmo tamanho para todos os camaradas tertulianos.
João Tunes
Resposta do L.G.:
João:
Aqui na tertúlia todos temos o direito à... indignação!... A tua foi de tal ordem que eu ouvi o teu murro em cima da mesa!... E olha que nós não moramos tão perto um do outro quanto isso, temos pelo menos o Rio Tejo de permeio... Foi um lapsus linguae da minha parte e sobretudo fruto da minha total ignorância em relação aos manjacos. Eu devia saber que o Nino nunca poderia ser um manjaco!... Infelizmente, não convivi com os manjcos, apenas com os fulas. Resta-me pedir-te mil perdões a ti e aos nossos queridos manjacos da Guiné-Bissau. E já agora também as minhas desculpas ao Nino Vieira, que não é manjaco mas papel: o seu a seu dono. Já fiz a correcção da grossa calinada de ontem à noite... Um grande abraço. Luís
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(1) Vd. post de 27 Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXVI: BCAÇ 2884 (Pelundo, 1969/71), o primeiro batalhão do João Tunes
terça-feira, 6 de dezembro de 2005
Guné 63/74 - P324: Antologia (31): Socioantropologia dos povos da Guiné (1971) (Sousa de Castro)
Guiné > Xime > 1972: O Sousa de Castro no seu posto de trabalho, operando o Rádio AN-GRC 9.
"O AN-GRC 9 foi o rádio com que trabalhei durante toda a comissão na Guiné em grafia... Não é para me gabar, mas eu achava-me um craque nesta matéria, trabalhar em código morse era comigo, ou não tivesse na minha caderneta a menção de TE (telegrafista especial)" (1)
© Sousa de Castro (2005)
Texto seleccionado sobre o "aspecto humano" da Guiné e enviado pelo Sousa de Castro (ex-1º cabo de transmissões, CART 3494 / BART 3873, Xime e Mansambo, Sector L1, Zona Leste, 1972/74).
Deixem-me dizer-vos que eu tenho um especial carinho pelo Castro: é o sócio-fundador desta tertúlia (2)... Sinto que às vezes não lhe dou a devida atenção! Castro, desculpa lá qualquer coisinha! L.G.
Alguns dados curiosos retirados da monografia da Guiné editados em 1971 pelo Estado-Maior do Exército com o título MISSÃO NA GUINÉ . Composto e impresso nas Oficinas Gráficas da SPEME. Sousa de Castro
O Rádio AN-GRC-9. Foto gentilmente disponibilizada pelo nosso camarada Afonso M. F. Sousa, que vive actualmente em Maceda, Ovar, ex-Furriel Miliciano de Transmissões da CART 2412; esteve na região do Cacheu (Bigene, Binta, Guidage e Barro), entre Agosto de 1968 e Maio de 1970.
ASPECTO HUMANO
População
A população da Guiné era, segundo o censo de 1960, de 544.184 habitantes o que representava um aumento de 33.407 habitantes em relação ao censo de 1950. É característica na Província a diversidade étnica dos seus habitantes (3).
Não falando já dos não autóctones – brancos, mestiços, cabo-verdianos e libaneses, na sua grande maioria – num total aproximado de 15.000, a população autóctone (nativa) guineense apresenta uma grande variedade de tipos, correspondentes a diferentes grupos étnicos (tribos), entre as quais as principais são:
- Balantas (quantitativo referido a 1962 – 150 000).
Habitam entre os rios Geba e Cacheu, com uma ramificação importante na região de Catió-Bedanda, no Sul da Província.
Dotados de boa condição física, são trabalhadores, valentes, enérgicos, com grande força de vontade e viva inteligência.
Bons agricultores, vão buscar à terra, principalmente às regiões alagadas («bolanhas»), os meios de subsistência de que necessitam. Alimentam-se de arroz, azeite de palma, milho e mandioca; apreciam muito a carne, o peixe e os mariscos.
O gado bovino que possuem destinam-no às cerimónias de sacrifício dos ritos que acompanham os funerais («choros»).
Guiné > Cacheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968> Militares, de origem balanta, pertecentes à CCAÇ 3.
© A. Marques Lopes (2005)
Condenam o celibato. Extremamente supersticiosos, acreditam na transfiguração da alma, atribuindo à feitiçaria todas as suas desgraças.
Praticam o roubo, em especial de gado, com a consciência de um acto não criminoso, mas sim revelador da perícia própria da tribo. São animistas.
- Fulas (Fulas-Forros e Fulas-Pretos) (120 000).
Povoam o Nordeste da Guiné, a região do Gabu, Bafatá e Forreá.
Os primeiros fulas a entrar na Província foram os fulas-forros, que subjugaram e escravizaram grande número de mandingas, a quem designaram por fulas-pretos.
De um modo geral, são hospitaleiros, considerando mesmo a hospitalidade como um dever sagrado.
Apesar da influência que o islamismo tem entre eles, praticam também o animismo.
Dedicam-se ao cultivo do arroz, sem grande entusiasmo, milho e amendoim e à pesca, à linha ou por envenenamento das águas.
Do gado que criam, considerando como um sinal de prestígio apenas aproveitam o leite para sua alimentação.
- Futa-Fulas (10 000).
Povoam grande parte da região do Boé.
Nos futa-fulas, originários do Futa Djalon, donde lhes veio o nome, não existe unidade de tipo, apresentando as mais diversas características, e, normalmente, a face marcada pr dupla incisão vertical que faz lembrar o n.º 11.
Consideram-se, em tudo, superiores aos restantes fulas.
De elevada estatura, argutos e inteligentes, dedicam-se à agricultura, à criação de gado e ao comércio ambulante. Alimentam-se de arroz, de «fundo» (tipo de cereal semelhante à alpista) e de toda a variedade de frutos. Comem carne, com excepção da do porco, e não bebem vinho por a sua religião (o islamismo) o não permitir.
São polígamos, embora predominem os casamentos com uma só mulher. São islamizados.
- Manjacos (65 000).
Habitam a região compreendida entre o rio Cacheu e a ria de Mansoa e as ilhas de Jeta e de Pecixe.
Um balanta (Kumba Alà) e um papel (Nino Vieira, recentemente regressado do exílio e logo a seguir eleito Presidente da República).
Foto: Blogue Africanidades, do nosso amigo © Jorge Neto (2005)
São curiosos, astutos, dedicados, hospitaleiros, com perfeita compreensão dos princípios morais e de justiça, preocupando-se em adquirir hábitos civilizados.
Têm certa tendência para o comércio e aptidão para as tarefas marítimas.
Dedicam-se ao cultivo do arroz, exploração de palmares, pesca e extracção do sal.
São animistas.
- Mandingas (60 000).
Habitam na região de Farim, Óio, Bafatá e Gabú.
São sóbrios, inteligentes, observadores, aguerridos, alegres e comunicativos.
Com preceitos morais que os colocam acima das outras tribos, admitem o regime de castas (nobres, ferreiros – com uma importância muito especial -, ourives, sapateiros, etc.). As profissões passam obrigatoriamente de pais para filhos e os casamentos só se realizam entre membros de famílias de nobres, ferreiros, ourives, sapateiros, etc.
Dedicam-se à cultura do milho, mas comercialmente o produto mais importante é a mancarra.
O islamismo não fez desaparecer entre eles as práticas animistas.
- Papéis (40 000).
Povoam a ilha de Bissau.
São aguerridos, enérgicos, decididos, desconfiados e nadas expansivos. Tal como os manjacos, têm certa aptidão para as práticas marítimas. Alimentam-se de arroz, mandioca, batata-doce, milho, «fundo» e peixe seco.
Dedicam-se à agricultura (arroz mancarra, em especial) e ao trabalho de carregador nos centros urbanos. São animistas.
- Beafadas (13 500).
Habitam a região de Quinara. Embora robustos, são indolentes por natureza. Progressivamente islamizados, mantêm-se, ainda, agarrados às práticas animistas.
- Brames (ou Mancanhas) 12 500.
Vivem nos regulados do Có e Bula, na ilha de Bissau, na ilha de Bolama e na região continental fronteira a esta ultima ilha.
Têm grandes afinidades com os mandingas e fulas, de quem descendem por cruzamento.
São inteligentes e assimilam com facilidade os usos e costumes dos europeus.
Consideram como delitos de somenos importância, quando não mesmo louváveis, o falso testemunho, as ofensas corporais, o estupro, a violação e o adultério. Veneram o «Irã».
Dedicam-se, sobretudo, à cultura do milho e da mancarra.
- Bijagós (12 500).
Povoam o arquipélago de Bijagós. São tímidos, belicosos e desconfiados. Vivendo constantemente no mar, são excelentes marinheiros.
Em questões de namoro e de casamento, a escolha é feita pela mulher, que os bijagós têm na conta de um ser superior.
São hábeis artistas na escultura da madeira e dedicam-se à pesca e à extracção do sal.
- Felupes (6000).
Habitam na região de Varela e Susana.
São fortes e ágeis, praticantes entusiastas do exercício físico. Bons atiradores de azagaia e flechas, cujas pontas envenenam, dedicam-se à caça. São animistas.
Consideram falta muito grave a união da mulher felupe com um nativo de tribo diferente (4).
- Baiotes (5500).
Habitam ao norte do rio Cacheu, no extremo ocidental da Província. Têm grandes afinidades com os felupes, pois constituem com eles o grupo étnico dos diolas. A diferençá-los apenas existe um dialecto diferente e a sua distribuição geográfica.
São animistas.
- Nalus (5500).
Habitam as regiões do Tombali e de Cacine.
São pouco robustos e de estatura média. Muito individualistas, recusam-se a manter relações com as tribos vizinhas. Têm um conceito perfeito da justiça. Encontram-se em grande parte islamizados.
- Sossos (2000).
Constituem um ramo dos mandingas. São islamizados e têm grandes afinidades com as populações fronteiriças.
Todos os grupos étnicos da Guiné praticam a poligamia, embora existam em maior percentagem lares monógamos. O maior número de lares monógamos encontra-se nos Felupes, Cassangas e Futa-Fulas, que atingem uma percentagem superior a 70%. As menores percentagens de lares monógamos encontram-se entre os Beafadas e os Mandingas.
A poligamia praticada incide na bigamia. São insignificantes as percentagens de lares com mais de 4 esposas.
Entre as tribos guineenses existem para cima de 20 línguas e dialectos diferentes.
Introduzido pelos primeiros colonos e aceite facilmente pelos nativos, fala-se também o crioulo, que não é mais que uma mistura de palavras portuguesas (algumas muito antigas) e palavras das línguas e dialectos locais.
O crioulo permite aos nativos entenderem-se entre si.
O povoamento da Guiné é muito irregular, verificando-se serem regiões do litoral e as regiões vizinhas de Farim e Bafatá (os dois principais centros de comunicação da Província) as mais habitadas, e as do Boé e do sueste do Óio as menos habitadas.
________
Notas de L.G.
(1) Vd post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIV: Um alfa bravo para os nossos Op TRMS (1)
(2) Vd. post de 20 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - V: Convívio de antigos camaradas de armas de Bambadinca. Eis um excerto do que então escrevi:
"Sei que o BART 2917 [Bambadinca, 1970/72] e as respectivas companhias de quadrícula[Xime, Mansambo e Xitole] foram rendidas em Janeiro de 1972. Ainda ontem recebi um e-mail de um camarada dessa época (que obviamente não conheci, já que regressei a casa em Março de 1971). Trata-se do Xime [e depois em Mansambo]. O meu Batalhão estava em Bambadinca, BART 3873 (CCS), com a CART 3494 no Xime, a CART 3493 em Mansambo e a CART 3492 no Xitole.
"No meu tempo o Xime continuava muito complicado. Como descreve no seu blogue, nas estórias de um tuga, continuamos com esta terra na cabeça, nunca mais nos sai e eu continuo buscando algo sobre aquele tempo passado relacionado com a guerra. Tenho reenviado a sua estória para colegas que estiveram na Guiné e é uma forma de dizermos que estamos vivos. Bem haja. Cumprimentos, Sousa de Castro".
"O Sousa de Castro e todos os periquitos que estiveram em Bambadinca, Xime, Mansambo ou Xitole, entre Janeiro de 1972 e Abril de 1974, serão bem vindos à nossa [CCAÇ 12 e BCAÇ 2852] festa, no dia 11 de Junho, em Faro, na Ria Formosa. Eles terão muito para nos contar: afinal, andámos todos pelos sítios, picadas, rios e bolanhas do Sector L1 da Zona Leste, desde 1968 a 1974... E quer queiramos quer não, aquela terra marcou-nos a todos, a ferro e fogo, no corpo e na alma"...
(3) Vd. Guinée-Bissau.net > le site officiel des amoureux de la Guinée-Bissau e, em especial, a página dedicada aos seus grupos étnicos (em francês) .
(4) Sobre os felupes e os balantas, ver a opinião (qaulificada) do nosso camarada Carlos Fortunato, na sua página sobre a CCAÇ 13 - Os Leões Negros (ele não esconde a sua admiração tanto por uns como por outros, mas noutra ocasião, por e-mail, referiu-me que em provas físicas, na luta corpo-a-corpo, nunca viu um balanta ganhar a um felupe):
"Adversários temíveis, os felupes possuem elevada estatura e grande robustez física. São referidos como praticantes do canibalismo no passado, são coleccionadores de cabeças dos seus inimigos que entregam ao feiticeiro e usam com extraordinária perícia arcos com setas envenenadas.
"Embora se assegure que o canibalismo pertence ao passado, não era essa a opinião das restantes etnias, as quais referem igualmente que estes fazem os seus funerais à meia noite, pendurando caveiras nas copas das árvores, e dançando debaixo delas. O felupe é conhecido como pouco hospitaleiro para com as restantes etnias, pelo que existe da parte destas um misto de animosidade e desconhecimento.
"Os felupes são igualmente grandes lutadores, fazendo da luta a sua paixão. Este desporto tão vulgarizado nesta etnia, prende-o, empolga-o, constituindo o mais desejado espectáculo.
"Este grupo de felupes é famoso pela sua combatividade, a qual não conhece fronteiras, fazendo incursões frequentes no Senegal. As notícias que chegaram depois da independência é que foram todos mortos pelo PAIGC.
"Os balantas são a principal etnia da Guiné, sendo igualmente grandes soldados, trazem consigo uma grande experiência e o conhecimento do terreno, muitos deles foram milícias durante muitos anos, outros foram carregadores, outros ainda lutaram ou lutavam no PAIGC. Possuem contudo um sentimento de lealdade e solidariedade que faz com que assumam uma posição e a mantenham, a palavra traição nunca fez parte do seu vocabulário.
"Os balantas são trabalhadores rurais, que usam enxadas em forma de de remo, são conhecidos pela sua habilidade como ladrões, actividade que faz parte da sua cultura.
"Roubar não é um crime para o balanta, mas uma prova de destreza, que todo o adulto que se preza deve fazer pelo menus uma vez na vida, e se for uma vaca é sem dúvida uma grande proeza.
"O que mais surpreende nestas pessoas, é algumas das suas capacidades, pois possuem sentidos muito desenvolvidos, tais como o cheiro, a visão e o ouvido.
"Penso que foi graças às qualidades e conhecimentos dos balantas que foi possível, conseguirmos fazer o que fizemos, com tão poucas baixas. O inimigo aqui nunca foi menosprezado.
"As capacidades dos balantas permitem-lhes fazer coisas difíceis de acreditar. Um dos casos ocorreu já em Bissorã, quando numa das operações ao Queré, um soldado acordou 2 horas depois da companhia já ter saído para o mato e conseguiu segui-la e encontrá-la, numa noite escura, tendo esta passado por mato cerrado, água, etc".
"O AN-GRC 9 foi o rádio com que trabalhei durante toda a comissão na Guiné em grafia... Não é para me gabar, mas eu achava-me um craque nesta matéria, trabalhar em código morse era comigo, ou não tivesse na minha caderneta a menção de TE (telegrafista especial)" (1)
© Sousa de Castro (2005)
Texto seleccionado sobre o "aspecto humano" da Guiné e enviado pelo Sousa de Castro (ex-1º cabo de transmissões, CART 3494 / BART 3873, Xime e Mansambo, Sector L1, Zona Leste, 1972/74).
Deixem-me dizer-vos que eu tenho um especial carinho pelo Castro: é o sócio-fundador desta tertúlia (2)... Sinto que às vezes não lhe dou a devida atenção! Castro, desculpa lá qualquer coisinha! L.G.
Alguns dados curiosos retirados da monografia da Guiné editados em 1971 pelo Estado-Maior do Exército com o título MISSÃO NA GUINÉ . Composto e impresso nas Oficinas Gráficas da SPEME. Sousa de Castro
O Rádio AN-GRC-9. Foto gentilmente disponibilizada pelo nosso camarada Afonso M. F. Sousa, que vive actualmente em Maceda, Ovar, ex-Furriel Miliciano de Transmissões da CART 2412; esteve na região do Cacheu (Bigene, Binta, Guidage e Barro), entre Agosto de 1968 e Maio de 1970.
ASPECTO HUMANO
População
A população da Guiné era, segundo o censo de 1960, de 544.184 habitantes o que representava um aumento de 33.407 habitantes em relação ao censo de 1950. É característica na Província a diversidade étnica dos seus habitantes (3).
Não falando já dos não autóctones – brancos, mestiços, cabo-verdianos e libaneses, na sua grande maioria – num total aproximado de 15.000, a população autóctone (nativa) guineense apresenta uma grande variedade de tipos, correspondentes a diferentes grupos étnicos (tribos), entre as quais as principais são:
- Balantas (quantitativo referido a 1962 – 150 000).
Habitam entre os rios Geba e Cacheu, com uma ramificação importante na região de Catió-Bedanda, no Sul da Província.
Dotados de boa condição física, são trabalhadores, valentes, enérgicos, com grande força de vontade e viva inteligência.
Bons agricultores, vão buscar à terra, principalmente às regiões alagadas («bolanhas»), os meios de subsistência de que necessitam. Alimentam-se de arroz, azeite de palma, milho e mandioca; apreciam muito a carne, o peixe e os mariscos.
O gado bovino que possuem destinam-no às cerimónias de sacrifício dos ritos que acompanham os funerais («choros»).
Guiné > Cacheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968> Militares, de origem balanta, pertecentes à CCAÇ 3.
© A. Marques Lopes (2005)
Condenam o celibato. Extremamente supersticiosos, acreditam na transfiguração da alma, atribuindo à feitiçaria todas as suas desgraças.
Praticam o roubo, em especial de gado, com a consciência de um acto não criminoso, mas sim revelador da perícia própria da tribo. São animistas.
- Fulas (Fulas-Forros e Fulas-Pretos) (120 000).
Povoam o Nordeste da Guiné, a região do Gabu, Bafatá e Forreá.
Os primeiros fulas a entrar na Província foram os fulas-forros, que subjugaram e escravizaram grande número de mandingas, a quem designaram por fulas-pretos.
De um modo geral, são hospitaleiros, considerando mesmo a hospitalidade como um dever sagrado.
Apesar da influência que o islamismo tem entre eles, praticam também o animismo.
Dedicam-se ao cultivo do arroz, sem grande entusiasmo, milho e amendoim e à pesca, à linha ou por envenenamento das águas.
Do gado que criam, considerando como um sinal de prestígio apenas aproveitam o leite para sua alimentação.
- Futa-Fulas (10 000).
Povoam grande parte da região do Boé.
Nos futa-fulas, originários do Futa Djalon, donde lhes veio o nome, não existe unidade de tipo, apresentando as mais diversas características, e, normalmente, a face marcada pr dupla incisão vertical que faz lembrar o n.º 11.
Consideram-se, em tudo, superiores aos restantes fulas.
De elevada estatura, argutos e inteligentes, dedicam-se à agricultura, à criação de gado e ao comércio ambulante. Alimentam-se de arroz, de «fundo» (tipo de cereal semelhante à alpista) e de toda a variedade de frutos. Comem carne, com excepção da do porco, e não bebem vinho por a sua religião (o islamismo) o não permitir.
São polígamos, embora predominem os casamentos com uma só mulher. São islamizados.
- Manjacos (65 000).
Habitam a região compreendida entre o rio Cacheu e a ria de Mansoa e as ilhas de Jeta e de Pecixe.
Um balanta (Kumba Alà) e um papel (Nino Vieira, recentemente regressado do exílio e logo a seguir eleito Presidente da República).
Foto: Blogue Africanidades, do nosso amigo © Jorge Neto (2005)
São curiosos, astutos, dedicados, hospitaleiros, com perfeita compreensão dos princípios morais e de justiça, preocupando-se em adquirir hábitos civilizados.
Têm certa tendência para o comércio e aptidão para as tarefas marítimas.
Dedicam-se ao cultivo do arroz, exploração de palmares, pesca e extracção do sal.
São animistas.
- Mandingas (60 000).
Habitam na região de Farim, Óio, Bafatá e Gabú.
São sóbrios, inteligentes, observadores, aguerridos, alegres e comunicativos.
Com preceitos morais que os colocam acima das outras tribos, admitem o regime de castas (nobres, ferreiros – com uma importância muito especial -, ourives, sapateiros, etc.). As profissões passam obrigatoriamente de pais para filhos e os casamentos só se realizam entre membros de famílias de nobres, ferreiros, ourives, sapateiros, etc.
Dedicam-se à cultura do milho, mas comercialmente o produto mais importante é a mancarra.
O islamismo não fez desaparecer entre eles as práticas animistas.
- Papéis (40 000).
Povoam a ilha de Bissau.
São aguerridos, enérgicos, decididos, desconfiados e nadas expansivos. Tal como os manjacos, têm certa aptidão para as práticas marítimas. Alimentam-se de arroz, mandioca, batata-doce, milho, «fundo» e peixe seco.
Dedicam-se à agricultura (arroz mancarra, em especial) e ao trabalho de carregador nos centros urbanos. São animistas.
- Beafadas (13 500).
Habitam a região de Quinara. Embora robustos, são indolentes por natureza. Progressivamente islamizados, mantêm-se, ainda, agarrados às práticas animistas.
- Brames (ou Mancanhas) 12 500.
Vivem nos regulados do Có e Bula, na ilha de Bissau, na ilha de Bolama e na região continental fronteira a esta ultima ilha.
Têm grandes afinidades com os mandingas e fulas, de quem descendem por cruzamento.
São inteligentes e assimilam com facilidade os usos e costumes dos europeus.
Consideram como delitos de somenos importância, quando não mesmo louváveis, o falso testemunho, as ofensas corporais, o estupro, a violação e o adultério. Veneram o «Irã».
Dedicam-se, sobretudo, à cultura do milho e da mancarra.
- Bijagós (12 500).
Povoam o arquipélago de Bijagós. São tímidos, belicosos e desconfiados. Vivendo constantemente no mar, são excelentes marinheiros.
Em questões de namoro e de casamento, a escolha é feita pela mulher, que os bijagós têm na conta de um ser superior.
São hábeis artistas na escultura da madeira e dedicam-se à pesca e à extracção do sal.
- Felupes (6000).
Habitam na região de Varela e Susana.
São fortes e ágeis, praticantes entusiastas do exercício físico. Bons atiradores de azagaia e flechas, cujas pontas envenenam, dedicam-se à caça. São animistas.
Consideram falta muito grave a união da mulher felupe com um nativo de tribo diferente (4).
- Baiotes (5500).
Habitam ao norte do rio Cacheu, no extremo ocidental da Província. Têm grandes afinidades com os felupes, pois constituem com eles o grupo étnico dos diolas. A diferençá-los apenas existe um dialecto diferente e a sua distribuição geográfica.
São animistas.
- Nalus (5500).
Habitam as regiões do Tombali e de Cacine.
São pouco robustos e de estatura média. Muito individualistas, recusam-se a manter relações com as tribos vizinhas. Têm um conceito perfeito da justiça. Encontram-se em grande parte islamizados.
- Sossos (2000).
Constituem um ramo dos mandingas. São islamizados e têm grandes afinidades com as populações fronteiriças.
Todos os grupos étnicos da Guiné praticam a poligamia, embora existam em maior percentagem lares monógamos. O maior número de lares monógamos encontra-se nos Felupes, Cassangas e Futa-Fulas, que atingem uma percentagem superior a 70%. As menores percentagens de lares monógamos encontram-se entre os Beafadas e os Mandingas.
A poligamia praticada incide na bigamia. São insignificantes as percentagens de lares com mais de 4 esposas.
Entre as tribos guineenses existem para cima de 20 línguas e dialectos diferentes.
Introduzido pelos primeiros colonos e aceite facilmente pelos nativos, fala-se também o crioulo, que não é mais que uma mistura de palavras portuguesas (algumas muito antigas) e palavras das línguas e dialectos locais.
O crioulo permite aos nativos entenderem-se entre si.
O povoamento da Guiné é muito irregular, verificando-se serem regiões do litoral e as regiões vizinhas de Farim e Bafatá (os dois principais centros de comunicação da Província) as mais habitadas, e as do Boé e do sueste do Óio as menos habitadas.
________
Notas de L.G.
(1) Vd post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCIV: Um alfa bravo para os nossos Op TRMS (1)
(2) Vd. post de 20 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - V: Convívio de antigos camaradas de armas de Bambadinca. Eis um excerto do que então escrevi:
"Sei que o BART 2917 [Bambadinca, 1970/72] e as respectivas companhias de quadrícula[Xime, Mansambo e Xitole] foram rendidas em Janeiro de 1972. Ainda ontem recebi um e-mail de um camarada dessa época (que obviamente não conheci, já que regressei a casa em Março de 1971). Trata-se do Xime [e depois em Mansambo]. O meu Batalhão estava em Bambadinca, BART 3873 (CCS), com a CART 3494 no Xime, a CART 3493 em Mansambo e a CART 3492 no Xitole.
"No meu tempo o Xime continuava muito complicado. Como descreve no seu blogue, nas estórias de um tuga, continuamos com esta terra na cabeça, nunca mais nos sai e eu continuo buscando algo sobre aquele tempo passado relacionado com a guerra. Tenho reenviado a sua estória para colegas que estiveram na Guiné e é uma forma de dizermos que estamos vivos. Bem haja. Cumprimentos, Sousa de Castro".
"O Sousa de Castro e todos os periquitos que estiveram em Bambadinca, Xime, Mansambo ou Xitole, entre Janeiro de 1972 e Abril de 1974, serão bem vindos à nossa [CCAÇ 12 e BCAÇ 2852] festa, no dia 11 de Junho, em Faro, na Ria Formosa. Eles terão muito para nos contar: afinal, andámos todos pelos sítios, picadas, rios e bolanhas do Sector L1 da Zona Leste, desde 1968 a 1974... E quer queiramos quer não, aquela terra marcou-nos a todos, a ferro e fogo, no corpo e na alma"...
(3) Vd. Guinée-Bissau.net > le site officiel des amoureux de la Guinée-Bissau e, em especial, a página dedicada aos seus grupos étnicos (em francês) .
(4) Sobre os felupes e os balantas, ver a opinião (qaulificada) do nosso camarada Carlos Fortunato, na sua página sobre a CCAÇ 13 - Os Leões Negros (ele não esconde a sua admiração tanto por uns como por outros, mas noutra ocasião, por e-mail, referiu-me que em provas físicas, na luta corpo-a-corpo, nunca viu um balanta ganhar a um felupe):
"Adversários temíveis, os felupes possuem elevada estatura e grande robustez física. São referidos como praticantes do canibalismo no passado, são coleccionadores de cabeças dos seus inimigos que entregam ao feiticeiro e usam com extraordinária perícia arcos com setas envenenadas.
"Embora se assegure que o canibalismo pertence ao passado, não era essa a opinião das restantes etnias, as quais referem igualmente que estes fazem os seus funerais à meia noite, pendurando caveiras nas copas das árvores, e dançando debaixo delas. O felupe é conhecido como pouco hospitaleiro para com as restantes etnias, pelo que existe da parte destas um misto de animosidade e desconhecimento.
"Os felupes são igualmente grandes lutadores, fazendo da luta a sua paixão. Este desporto tão vulgarizado nesta etnia, prende-o, empolga-o, constituindo o mais desejado espectáculo.
"Este grupo de felupes é famoso pela sua combatividade, a qual não conhece fronteiras, fazendo incursões frequentes no Senegal. As notícias que chegaram depois da independência é que foram todos mortos pelo PAIGC.
"Os balantas são a principal etnia da Guiné, sendo igualmente grandes soldados, trazem consigo uma grande experiência e o conhecimento do terreno, muitos deles foram milícias durante muitos anos, outros foram carregadores, outros ainda lutaram ou lutavam no PAIGC. Possuem contudo um sentimento de lealdade e solidariedade que faz com que assumam uma posição e a mantenham, a palavra traição nunca fez parte do seu vocabulário.
"Os balantas são trabalhadores rurais, que usam enxadas em forma de de remo, são conhecidos pela sua habilidade como ladrões, actividade que faz parte da sua cultura.
"Roubar não é um crime para o balanta, mas uma prova de destreza, que todo o adulto que se preza deve fazer pelo menus uma vez na vida, e se for uma vaca é sem dúvida uma grande proeza.
"O que mais surpreende nestas pessoas, é algumas das suas capacidades, pois possuem sentidos muito desenvolvidos, tais como o cheiro, a visão e o ouvido.
"Penso que foi graças às qualidades e conhecimentos dos balantas que foi possível, conseguirmos fazer o que fizemos, com tão poucas baixas. O inimigo aqui nunca foi menosprezado.
"As capacidades dos balantas permitem-lhes fazer coisas difíceis de acreditar. Um dos casos ocorreu já em Bissorã, quando numa das operações ao Queré, um soldado acordou 2 horas depois da companhia já ter saído para o mato e conseguiu segui-la e encontrá-la, numa noite escura, tendo esta passado por mato cerrado, água, etc".
Guiné 63/74 - P323: O 'puto' Parreira, do grupo de comandos Apaches (1965/66) (João Parreira)
1. Texto do João Parreira:
Luís Graça:
Foi com agrado que li a tua mensagem e nela vi que fui bem recebido tal como era de esperar. O Briote já me tinha falado da tua simpatia e do blogue. Parabéns, é uma obra extraordinária. Não me canso de passar tempos infinitos a olhar para o monitor e a devorar todas as estórias, contos e tudo o mais que tens publicado. É fascinante.
De facto em Brá conheci bem o Virgínio Briote e o Mário Dias, pois muitas vezes partilhámos os bons e os maus momentos. Logo que tenha oportunidade vou enviar umas fotos. Pelo interesse que possa ter para a rapaziada o "Uva" vai preparar e enviar-te mais detalhes sobre o célebre baile da Associação que o VB tão bem soube descrever.
Um abraço.
JP [João Parreira]
2. Caro Luis e restantes camaradas:
Temos connosco o Parreira. Foi furriel-miliciano comando na Guiné e ambos pertencemos ao Grupo de Comandos "Apaches" que saiu do 2.º Curso de Comandos realizado na Guiné.
Entre nós era conhecido por "puto Parreira" pela sua aparência um pouco imberbe que, aliás, ainda hoje conserva.
O seu testemunho está correcto e a sua vinda a este blogue será certamente uma excelente contribuição.
Parreira: ficamos à espera da narração da operação em que perdeu a vida o furriel Morais, morto com um pequeno estilhaço de RPG que lhe atravessou a coluna vertebral.
Um abraço.
Mário Dias
____________
(1) Vd. post do Virgínio Briote, de 13 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVII: O 'baile dos comandos' na Associação Comercial
Luís Graça:
Foi com agrado que li a tua mensagem e nela vi que fui bem recebido tal como era de esperar. O Briote já me tinha falado da tua simpatia e do blogue. Parabéns, é uma obra extraordinária. Não me canso de passar tempos infinitos a olhar para o monitor e a devorar todas as estórias, contos e tudo o mais que tens publicado. É fascinante.
De facto em Brá conheci bem o Virgínio Briote e o Mário Dias, pois muitas vezes partilhámos os bons e os maus momentos. Logo que tenha oportunidade vou enviar umas fotos. Pelo interesse que possa ter para a rapaziada o "Uva" vai preparar e enviar-te mais detalhes sobre o célebre baile da Associação que o VB tão bem soube descrever.
Um abraço.
JP [João Parreira]
2. Caro Luis e restantes camaradas:
Temos connosco o Parreira. Foi furriel-miliciano comando na Guiné e ambos pertencemos ao Grupo de Comandos "Apaches" que saiu do 2.º Curso de Comandos realizado na Guiné.
Entre nós era conhecido por "puto Parreira" pela sua aparência um pouco imberbe que, aliás, ainda hoje conserva.
O seu testemunho está correcto e a sua vinda a este blogue será certamente uma excelente contribuição.
Parreira: ficamos à espera da narração da operação em que perdeu a vida o furriel Morais, morto com um pequeno estilhaço de RPG que lhe atravessou a coluna vertebral.
Um abraço.
Mário Dias
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(1) Vd. post do Virgínio Briote, de 13 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVII: O 'baile dos comandos' na Associação Comercial
Guiné 63/74 - P322: O melhor que Portugal nos deixou foi a língua (Pepito)
1. Texto do Carlos Schwarz (Pepito):
Prometi que voltaria ao assunto de “Guiledje ou Guileje?”, e aqui estou a dar a minha opinião, não como linguista que não sou, mas como simples utilizador da língua portuguesa.
Gosto por igual, e muito, do português quando o leio nas penas do Eça de Queiroz (Portugal), Pepetela (Angola), Jorge Amado (Brasil), Mia Couto (Moçambique) e Abdulai Silá (Guiné-Bissau). E sei que não é só um português. São vários, com um tronco comum é certo, mas mesmo assim variado na forma de escrever e falar.
Amilcar Cabral dizia que a melhor coisa que Portugal nos deixou foi a língua.
Para o bem e para o mal o português deixou de pertencer só a Portugal. É também a língua de outros povos, que dela se apropriaram e a utilizam diariamente.
Só que o processo de apropriação de algo que não é inicialmente nosso, implica a incorporação daquilo que é nosso. Senão, não há apropriação e continua a ser eternamente estrangeiro.
Quando falamos e escrevemos em português, não estamos a fazer nenhum favor a Portugal. Estamos a utilizar algo que também agora é nosso.
Quem não aprecia os fabulosos vocábulos inventados pelo Mia Couto ou a irreverência do Pepetela que começa um dos seus livros com a palavra “Portanto” (forma literariamente criticada alguns anos antes por um seu professor da Faculdade de Letras de Lisboa)?
Para mim, a lusofonia não é uma questão de se falar “bom português”, mas é um processo de exigências e concessões recíprocas na procura de caminhos solidários e cúmplices de aproximação e de desenvolvimento.
A dinâmica de incorporação de novos vocábulos é imparável. No nosso caso, na Guiné-Bissau, o grupo consonântico “dj” é utilizado por dá cá aquela palha. Dizer que se vai a Jufunco ou a Djufunco é o mesmo que ir a duas localidades diferentes.
A realidade incontornável é esta. O bico de obra, não é nosso. É dos especialistas que têm de regulamentar uma língua que, por ser viva, vai ter que aceitar o desafio de pertencer a um numero cada vez maior de pessoas.
Abraços
pepito
2. Pus de novo esta questão ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. A resposta veio lacónica:
"A nossa resposta está dada e, julgamos, suficientemente fundamentada.
"Quem tem de argumentar por que razão passou a escrever 'Guiledje', quando sempre se escreveu 'Guileje' é o seu amigo... JMC".
Prometi que voltaria ao assunto de “Guiledje ou Guileje?”, e aqui estou a dar a minha opinião, não como linguista que não sou, mas como simples utilizador da língua portuguesa.
Gosto por igual, e muito, do português quando o leio nas penas do Eça de Queiroz (Portugal), Pepetela (Angola), Jorge Amado (Brasil), Mia Couto (Moçambique) e Abdulai Silá (Guiné-Bissau). E sei que não é só um português. São vários, com um tronco comum é certo, mas mesmo assim variado na forma de escrever e falar.
Amilcar Cabral dizia que a melhor coisa que Portugal nos deixou foi a língua.
Para o bem e para o mal o português deixou de pertencer só a Portugal. É também a língua de outros povos, que dela se apropriaram e a utilizam diariamente.
Só que o processo de apropriação de algo que não é inicialmente nosso, implica a incorporação daquilo que é nosso. Senão, não há apropriação e continua a ser eternamente estrangeiro.
Quando falamos e escrevemos em português, não estamos a fazer nenhum favor a Portugal. Estamos a utilizar algo que também agora é nosso.
Quem não aprecia os fabulosos vocábulos inventados pelo Mia Couto ou a irreverência do Pepetela que começa um dos seus livros com a palavra “Portanto” (forma literariamente criticada alguns anos antes por um seu professor da Faculdade de Letras de Lisboa)?
Para mim, a lusofonia não é uma questão de se falar “bom português”, mas é um processo de exigências e concessões recíprocas na procura de caminhos solidários e cúmplices de aproximação e de desenvolvimento.
A dinâmica de incorporação de novos vocábulos é imparável. No nosso caso, na Guiné-Bissau, o grupo consonântico “dj” é utilizado por dá cá aquela palha. Dizer que se vai a Jufunco ou a Djufunco é o mesmo que ir a duas localidades diferentes.
A realidade incontornável é esta. O bico de obra, não é nosso. É dos especialistas que têm de regulamentar uma língua que, por ser viva, vai ter que aceitar o desafio de pertencer a um numero cada vez maior de pessoas.
Abraços
pepito
2. Pus de novo esta questão ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. A resposta veio lacónica:
"A nossa resposta está dada e, julgamos, suficientemente fundamentada.
"Quem tem de argumentar por que razão passou a escrever 'Guiledje', quando sempre se escreveu 'Guileje' é o seu amigo... JMC".
segunda-feira, 5 de dezembro de 2005
Guiné 63/74 - P321: Tabanca Grande: José Neto, outro senhor de Guileje (CART 1613, 1967/68)
Foto aérea de Guileje (1967).
© José Neto (2005)/ AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guiledje (2005)
1. O mundo é realmente pequeno, meus amigos e camaradas. Leiam estas palavras:
"Sou actualmente Capitão Reformado, vivo em Queluz de Baixo, Oeiras, e fui, com o posto de 2º sargento, o primeiro sargento da CART 1613 que guarneceu Guiledje nos anos de 1967/68.
"Por interposta pessoa conheci o Engenheiro Carlos Silva, impulsionador da reconstrução do nosso "quartel" , a quem mostrei o meu album fotográfico e um extrato das minhas "Memórias para os meus netos". Parece que gostou e, no próximo dia 9 de Dezembro, vou encontrar-me com o Dr. Filipe Santos na ESEL [Escola Superior de Educação de Leiria], em Leiria , por sinal a minha terra natal, para tratarmos da digitalização de cerca de 150 slides que fiz, só daquela povoação.
"Também estive, antes, em Cabinda e, depois em Calunda (Leste, mais ao leste de Angola), mas Guiledje, talvez por ser o lugar onde "levei mais porrada", ficou-me no coração.
"Mas não foi só no meu, porque no passado dia 3 de Junho, em Braga, ainda reunimos setenta e tal elementos da Companhia [ a CART 1613,] e a "velhada" continua a nutrir um carinho muito especial por aquele cantinho de África.
"Bom. Mas o que me traz aqui é repor um pormenor. A foto aérea de Guiledje é minha... e, se quiser, do 1º sargento piloto do Dornier da FAP (cujo nome esqueci) a quem pedi para me colocar num ângulo favorável para o efeito.
"Por agora, resta-me felicitá-lo pelo excelente blogue e confessar que nestas coisas de informática ainda vou na pré-primária.
"Aceite um abraço do
José Afonso da Silva Neto
2. Resposta minha (L.G.):
Camarada Zé Neto:
Obrigado pelo contacto e pelos parabéns ao blogue que é obra colectiva (temos um tertúlia que já chega a 50 membros e que alimenta o blogue).
© José Neto (2005) / AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guiledje (2005)
Vou, logo que puder, corrigir o erro (ou omissão) em relação à autoria da foto aérea de Guileje. A foto foi-nos cedida gentilmente pelo Carlos Schwarz (Pepito), da AD, que também é membro da nossa tertúlia. Temos vindo a publicitar o seu Projecto Guileje.
Vou inserir o teu texto no blogue, se não te importares. Tu serás bem vindo a esta tertúlia: se quiseres manda-me uma foto tua, digitalizada, de ontem e de hoje, para pormos no fotogaleria. Na tertúlia, tratamo-nos por tu.
Também vou, com alguma frequência, à tua terra, Leiria, onde tenho amigos, e nomeadamente da Gândara dos Olivais. Um grande abraço.
PS 1 - O nosso amigo Pepito (Carlos Schwarz) acaba de me confirmar que "a foto em causa foi-me efectivamente cedida pelo José Neto".
PS 2 - Ponham lá nos vossos cadernos de memórias da Guiné as duas companhias que estiveram aquarteladas em Guileje e que passam a estar representadas na nossa tertúlia:
CART 1613 (1967/68) (ex-2º sargento, hoje capitão na reforma);
CCAV 8350 (1972/73) (ex-furriel miliciano de operações especiais Casimiro Carvalho).
Temos também conhecimento da CCAÇ 3325 (1) e da CCAÇ 2617 (1970/71), a companhia do português Abílio Alberto Pimentel da Assunção, que é um dos dois militares fotogrados junto ao obus 140 (vd. Luís Graça & Camaradas > Subsídios para a história da guerra colonial > Guiné (13) > Guileje).
Mas ainda antes do Zé Neto, passou por Guileje o Capitão de Artilharia e comando Nuno Rubim, autor de uma planta do quartel, de 1966, já por nós publicada.
________________
(1) Vd. post de 2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73) . Não sabemos em que ano(s) lá esteve, em Guileje.
© José Neto (2005)/ AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guiledje (2005)
1. O mundo é realmente pequeno, meus amigos e camaradas. Leiam estas palavras:
"Sou actualmente Capitão Reformado, vivo em Queluz de Baixo, Oeiras, e fui, com o posto de 2º sargento, o primeiro sargento da CART 1613 que guarneceu Guiledje nos anos de 1967/68.
"Por interposta pessoa conheci o Engenheiro Carlos Silva, impulsionador da reconstrução do nosso "quartel" , a quem mostrei o meu album fotográfico e um extrato das minhas "Memórias para os meus netos". Parece que gostou e, no próximo dia 9 de Dezembro, vou encontrar-me com o Dr. Filipe Santos na ESEL [Escola Superior de Educação de Leiria], em Leiria , por sinal a minha terra natal, para tratarmos da digitalização de cerca de 150 slides que fiz, só daquela povoação.
"Também estive, antes, em Cabinda e, depois em Calunda (Leste, mais ao leste de Angola), mas Guiledje, talvez por ser o lugar onde "levei mais porrada", ficou-me no coração.
"Mas não foi só no meu, porque no passado dia 3 de Junho, em Braga, ainda reunimos setenta e tal elementos da Companhia [ a CART 1613,] e a "velhada" continua a nutrir um carinho muito especial por aquele cantinho de África.
"Bom. Mas o que me traz aqui é repor um pormenor. A foto aérea de Guiledje é minha... e, se quiser, do 1º sargento piloto do Dornier da FAP (cujo nome esqueci) a quem pedi para me colocar num ângulo favorável para o efeito.
"Por agora, resta-me felicitá-lo pelo excelente blogue e confessar que nestas coisas de informática ainda vou na pré-primária.
"Aceite um abraço do
José Afonso da Silva Neto
2. Resposta minha (L.G.):
Camarada Zé Neto:
Obrigado pelo contacto e pelos parabéns ao blogue que é obra colectiva (temos um tertúlia que já chega a 50 membros e que alimenta o blogue).
© José Neto (2005) / AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guiledje (2005)
Vou, logo que puder, corrigir o erro (ou omissão) em relação à autoria da foto aérea de Guileje. A foto foi-nos cedida gentilmente pelo Carlos Schwarz (Pepito), da AD, que também é membro da nossa tertúlia. Temos vindo a publicitar o seu Projecto Guileje.
Vou inserir o teu texto no blogue, se não te importares. Tu serás bem vindo a esta tertúlia: se quiseres manda-me uma foto tua, digitalizada, de ontem e de hoje, para pormos no fotogaleria. Na tertúlia, tratamo-nos por tu.
Também vou, com alguma frequência, à tua terra, Leiria, onde tenho amigos, e nomeadamente da Gândara dos Olivais. Um grande abraço.
PS 1 - O nosso amigo Pepito (Carlos Schwarz) acaba de me confirmar que "a foto em causa foi-me efectivamente cedida pelo José Neto".
PS 2 - Ponham lá nos vossos cadernos de memórias da Guiné as duas companhias que estiveram aquarteladas em Guileje e que passam a estar representadas na nossa tertúlia:
CART 1613 (1967/68) (ex-2º sargento, hoje capitão na reforma);
CCAV 8350 (1972/73) (ex-furriel miliciano de operações especiais Casimiro Carvalho).
Temos também conhecimento da CCAÇ 3325 (1) e da CCAÇ 2617 (1970/71), a companhia do português Abílio Alberto Pimentel da Assunção, que é um dos dois militares fotogrados junto ao obus 140 (vd. Luís Graça & Camaradas > Subsídios para a história da guerra colonial > Guiné (13) > Guileje).
Mas ainda antes do Zé Neto, passou por Guileje o Capitão de Artilharia e comando Nuno Rubim, autor de uma planta do quartel, de 1966, já por nós publicada.
________________
(1) Vd. post de 2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73) . Não sabemos em que ano(s) lá esteve, em Guileje.
Guiné 63/74 - P320: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' de Paulo Salgado) (7): Suleiman Seidi
Camaradas e Amigos!
Desculpai-me todos! Ainda não comecei o segundo capítulo das estórias que desejo narrar - o primeiro diria respeito à chegada de quatro cooperantes na área da Saúde, e estadia de um ano, pelo menos (já deviamos ter juízo na cabeça para andar nestas andanças, pois já passámos ou estamos a passar os 60!).
Nem é hoje que vou começar... porque...
Sinto-me triste, muito triste. A morte do Suleiman Seidi, meu irmão, meu amigo, comandante de milícia, lá no Olossato (1), aconteceu. Foi um pedaço de mim que me fugiu.
Da última vez que o vi, em Abril, foi ao virar a esquina de um alpendre do Hospital Simão Mendes: vinha acompanhado de um dos filhos, muito abatido. Esteve internado. Fiz o que pude (terei feito?) mas melhorou muito e até tirámos uma foto (foi a última...).
Lá no caminho de Bissancage (quem conhece este trilho, quem se lembra dele, bem poucos certamente), empurrou-me para o chão quando vislumbrou, bem perto, o IN (seis elementos que dispararam tiros de rajada sobre a nossa fila de pirilau). Salvou-me a vida. De outra vez: na marcha pela mata, parou, porque roçou com um dos pés uma mina anti-pessoal em pleno mato. Poderia ser eu a pisá-la, pois vinha a seguir. Salvou-me.
Foram o seu carinho, a sua amizade, o seu zelo, e, agora, o seu contentamento brilhando nos olhos envelhecidos,por me rever, que me marcaram. Chorei porque perdi um irmão, acreditai.
Ainda ouço o martelar das suas palavras - já perdido de saúde e ainda pensando como antigamente:
- Alferes Salgado, leva-me para Portugal! - Como se eu fosse a sua tábua de salvação!
Que Alá te dê um bom descanso, meu Irmão!
Luís Graça, mais uma vez, desculpa. Põe lá esta mensagem, se achares bem.
Paulo Salgado
______
(1) O Olossato fica entre Bissorã e Farim, na região do Óio.
Desculpai-me todos! Ainda não comecei o segundo capítulo das estórias que desejo narrar - o primeiro diria respeito à chegada de quatro cooperantes na área da Saúde, e estadia de um ano, pelo menos (já deviamos ter juízo na cabeça para andar nestas andanças, pois já passámos ou estamos a passar os 60!).
Nem é hoje que vou começar... porque...
Sinto-me triste, muito triste. A morte do Suleiman Seidi, meu irmão, meu amigo, comandante de milícia, lá no Olossato (1), aconteceu. Foi um pedaço de mim que me fugiu.
Da última vez que o vi, em Abril, foi ao virar a esquina de um alpendre do Hospital Simão Mendes: vinha acompanhado de um dos filhos, muito abatido. Esteve internado. Fiz o que pude (terei feito?) mas melhorou muito e até tirámos uma foto (foi a última...).
Lá no caminho de Bissancage (quem conhece este trilho, quem se lembra dele, bem poucos certamente), empurrou-me para o chão quando vislumbrou, bem perto, o IN (seis elementos que dispararam tiros de rajada sobre a nossa fila de pirilau). Salvou-me a vida. De outra vez: na marcha pela mata, parou, porque roçou com um dos pés uma mina anti-pessoal em pleno mato. Poderia ser eu a pisá-la, pois vinha a seguir. Salvou-me.
Foram o seu carinho, a sua amizade, o seu zelo, e, agora, o seu contentamento brilhando nos olhos envelhecidos,por me rever, que me marcaram. Chorei porque perdi um irmão, acreditai.
Ainda ouço o martelar das suas palavras - já perdido de saúde e ainda pensando como antigamente:
- Alferes Salgado, leva-me para Portugal! - Como se eu fosse a sua tábua de salvação!
Que Alá te dê um bom descanso, meu Irmão!
Luís Graça, mais uma vez, desculpa. Põe lá esta mensagem, se achares bem.
Paulo Salgado
______
(1) O Olossato fica entre Bissorã e Farim, na região do Óio.
Guine 63/74 - P319: Tabanca Grande: Luís Rainha - Com imensas saudades daquela terra maravilhosa
1. Recebi um e-mail de mais outro camarada dos velhos Comandos de 1964/66: trata-se do Luís Manuel Nobreza D'Almeida Rainha, hoje com sessenta e quatro anos:
"Serve esta para vos dar a conhecer um ex-comando da Guiné e que foi comandante do Grupo de Comandos "CENTURIÕES". Fui camarada de Virginio Briote que já é vosso conhecido. Tenho imensas saudades daquela Terra maravilhosa onde passei bons e maus momentos, mas nos quais sobressaem os bons.
"A minha presença naquelas paragens foi um amealhar de recordações, e hoje tenho uma saudade enorme dos meus antigos Camaradas (...).
"A minha actual direcção vai aqui:
[...]
2. Comentário do Virgínio Briote:
O Luís Rainha foi o comandante dos "Centuriões", um grupo que deu que fazer ao Pansau Na Ina, um dos adjuntos do Nino. Um dia, ou uma madrugada não sei, entrou-lhe tão sorrateiro no acampamento que teve tempo de apanhar o boné que o Pansau tinha trazido de Pequim. E a pistola também, uma bela arma, nacarada, que, pelo que sei, muitos anos depois lhe veio a trazer problemas. Nem a cruz de guerra o salvou!
Um abraço,
vb
"Serve esta para vos dar a conhecer um ex-comando da Guiné e que foi comandante do Grupo de Comandos "CENTURIÕES". Fui camarada de Virginio Briote que já é vosso conhecido. Tenho imensas saudades daquela Terra maravilhosa onde passei bons e maus momentos, mas nos quais sobressaem os bons.
"A minha presença naquelas paragens foi um amealhar de recordações, e hoje tenho uma saudade enorme dos meus antigos Camaradas (...).
"A minha actual direcção vai aqui:
[...]
2. Comentário do Virgínio Briote:
O Luís Rainha foi o comandante dos "Centuriões", um grupo que deu que fazer ao Pansau Na Ina, um dos adjuntos do Nino. Um dia, ou uma madrugada não sei, entrou-lhe tão sorrateiro no acampamento que teve tempo de apanhar o boné que o Pansau tinha trazido de Pequim. E a pistola também, uma bela arma, nacarada, que, pelo que sei, muitos anos depois lhe veio a trazer problemas. Nem a cruz de guerra o salvou!
Um abraço,
vb
domingo, 4 de dezembro de 2005
Guiné 63/74 - P318: A vingança da PIDE (Manuel Domingues)
Caro Luís Graça.
Obrigado pelas referências ao livro Uma campanha na Guiné, que, como é explicado na Introdução, destinava-se fundamentalmente a antigos combatentes que integraram o BCAÇ 1856 (1).
No entanto acabou por interessar outros segmentos, o que para um trabalho sem qualquer suporte de divulgação ou promoção é sempre motivador.
Confesso que fiquei surpreendido pelo trabalho e abrangência do vosso blogue e, por desafio do Cor. Marques Lopes, junto envio um primeiro texto, baseado numa vivência pesssoal, que adaptei do meu livro recém publicado de Estórias Etnográficas "O Pegureiro e o Lobo - Estórias de Castro Laboreiro".
A finalidade é apenas chamar a atenção para um sistema de controlo das vidas dos jovens de então, mesmo quando não eram "revolucionários " nem comunistas e se limitavam a cumprir as normas estabelecidos pelo regime (RDM). É uma amostra do conflito latente entre os militares,sobretudo os profissionais que temiam, mais do que respeitavam, a influência da PIDE, cujo controlo poderia influenciar as respectivas carreiras profissionais.
Não bastava ser bom militar. Era também necessário estar nas boas graças da PIDE.
A maior parte dos oficiais milicianos, que não aspiravaa ser funcionário público, podia encontrar refúgio na sua condição temporária de militar, mas à saída, a PIDE esperava por ele para acertar contas!
Com os melhores cumprimentos
Manuel Domingues (2)
A Vingança da PIDE
Como oficial de informações todas as manhãs, às 07h00, a primeira tarefa era analisar as actividades operacionais e de informações ocorridas nas últimas 24 horas no Batalhão e na Zona, e elaborar o relatório diário, SITREP, a enviar ao Comando em Bissau, como aliás todas a unidades estacionadas na Guiné. O Comando sintetizava os aspectos considerados mais importantes, e distribuía a todas as unidades, semanalmente, uma síntese dos factos através do PERINTREP.
O SITREP, relatório diário, assentava nas informações recolhidas pelas subunidades do Batalhão no terreno, e no sistema de informações instituído. Era prática, recomendada pelo Comando Chefe de Bissau, a partilha de informação com a subdelegação da PIDE existente em Nova Lamego [Gabu], funcionando na Administração do Concelho, e apenas com um Agente.
Através dos relatórios semanais do Comando Chefe constatei a existência de muitas referências e informações sobre a região Leste, onde o Batalhão actuava, como sendo originárias da PIDE, quando afinal eram de origem militar e que o referido Agente obtinha-as mediante o acesso ao centro nevrálgico do Comando do Batalhão, transmitindo-as como sendo resultantes do seu trabalho, influenciando a actividade do Batalhão, pois era com base em informações que o Comando sugeria ou determinava operações no terreno.
Perante tal abuso, e obtido o acordo do Comandante, transmiti ao Agente que dada a situação do território, sob comando militar, e o facto de ele pertencer a uma instituição civil, não poderia ter acesso directo à referida Sala, sem prejuízo de ser informado dos factos com interesse para a sua actividade. Perante a eminência de ver a sua fonte secar fez várias ameaças, mais ou menos veladas, mas de facto a situação mudou, e a contribuição do referido Agente ficou reduzida ao seu trabalho próprio, quase nulo, dada a realidade existente na região.
Já neste contexto, uma manhã deparei com uma mensagem de uma das companhias, estacionada em Buruntuma, informando ter capturado dois prisioneiros, identificados como estrangeiros, e que iria remeter nessa tarde para o Comando do Batalhão para interrogatório mais detalhado. Assim aconteceu. Ao princípio da tarde e com recurso a um militar nativo, fula, como intérprete, porque dominava bem o português e a língua dos prisioneiros, concluiu-se o interrogatório.
Ainda o Relatório não estava feito quando o agente da PIDE irrompeu pela Sala de Operações reclamando a entrega imediata dos prisioneiros por se tratar de mestrangeiros, cuja competência era exclusivamente dos seus serviços. Calmamente tentei explicar-lhe que, pelo facto de a Província estar sob domínio militar, competia a este, em primeiro lugar, averiguar do interesse dos capturados e só depois decidir o seu destino
No caso concreto já concluíra pela entrega à entidade civil porque não apresentavam grande interesse militar. No entanto e apesar de escassos 50 metros separarem as instalações do Quartel e da Administração Civil, os prisioneiros seriam entregues segundo as normas militares, ou seja com uma Guia de Entrega.
O Homem mandou-se ao ar dizendo nunca tal ter acontecido, passando a constituir um precedente grave de desconfiança num elemento da PIDE, ainda para mais da parte de um oficial miliciano. Nunca receberia os prisioneiros em tais condições e assim iria ter de justificar tal atitude perante o Comando de Bissau, que ele alertaria de imediato através do seu Subdirector.
Mal o Agente abandonou as instalações encarreguei o Sargento de Informações de preencher as Guias de Entrega e levar os prisioneiros para o edifício da Administração, com ordens expressas de só os entregar se o Agente assinasse as respectivas guias. Caso contrário trazia-os de volta. Passados 15 minutos o referido Furriel voltou com a indicação de o Agente se manter intransigente e só aceitar os dois homens sem Guia.
Perante esta situação falei com o Comandante a quem expliquei a relutância em prescindir do formalismo, porque em tempos o referido Agente se gabara de ter feito desaparecer prisioneiros sem deixar rasto. Mais tarde poderíamos ser responsabilizados se eventualmente a PIDE os fizesse desaparecer.
O Comandante mandou chamar o Agente e tentou fazer-lhe compreender a situação e que o meu procedimento estava de acordo com as normas em vigor. O Agente hesitou mas como já tinha enviado um rádio para a Subdirectoria em Bissau, decidiu não voltar atrás na sua decisão.
Embora criando uma situação insólita, sugeri ao Comandante o envio dos prisioneiros por via aérea para Bissau à ordem do Comando Chefe, com a indicação dos motivos, ou seja, a recusa do agente da PIDE em assinar a respectiva Guia de Entrega, que mereceu a sua concordância.
Passadas duas semanas o Agente desapareceu, deixando o recado de que alguém iria pagar caro pela sua saída. Dois meses após o regresso da Guiné, em Julho de 1967, e já desmobilizado, requeri o passaporte no Governo Civil de Lisboa, a fim de regressar a Paris, para continuar a minha vida profissional.
Para grande surpresa foi-me recusado. Ao fim de varias diligências, consegui que me dissessem que o motivo tinha sido a informação negativa da PIDE!
Não queria acreditar! Quatro anos antes, já apurado para todo o serviço militar, tinham-me autorizado a ir estudar no estrangeiro e agora, depois de o ter cumprido, negavam-me esse direito. Era a tal vingança anunciada pelo Agente! Revoltado com a injustiça, um dia resolvi ir à sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, pedir explicações.
O Agente porteiro depois de me perguntar o que pretendia mirou-me de alto a baixo, foi a uma casota telefonar e mandou-me subir ao andar superior onde outro Agente me encafuou numa pequena sala interior, mandando-me esperar.
Ao fim de mais de trinta longos minutos apareceu um inspector perguntando-me qual a razão da vinda ali. Expliquei que pretendia saber a razão da informação negativa relativamente ao meu pedido de passaporte. O Inspector olhou-me com ar de sobranceria e perguntou-me:
— É a primeira vez que vem aqui?
— É sim.
— Então fique a saber: aqui só vem quem nós chamamos! E foi-se embora.
Meio aparvalhado, desci as escadas e o porteiro, com ar trocista, deu-me as boas tardes. Na rua ia pensando como eram grandes os tentáculos de uma organização, decidindo sobre o futuro das pessoas, mesmo quando se limitavam a cumprir as leis que o próprio sistema criara.
(Adaptado, pelo Autor, do seu livro O Pegureiro e o Lobo – Estórias de Castro Laboreiro - 2005)
________
(1) Vd. post de A. Marques Lopes, de 18 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXI: Bibliografia de uma guerra (5)
(2) O autor frequentou o Curso de Rangers e fez parte do BCAÇ 1856 (1965/67). Como Alferes Mil foi Comandante do Pelotão de Reconhecimento e Informação, tendo desempenhado as funções de oficial de Informações e, durante alguns meses, a de Oficial de Operações.
O BCAÇ 1856 esteve no Leste, Sector L3, com o Comando e CCS sediados em Nova Lamego [Gabu]; e as companhias operacionais em Madina do Boé (CCAÇ 1416, com um destacamento em Béli; , em Bajocunda (CCAÇ 1417, com um destacamento em Copá); e em Buruntuma (CCAÇ 1418, com um destacamento em Ponte Caiúm).
Obrigado pelas referências ao livro Uma campanha na Guiné, que, como é explicado na Introdução, destinava-se fundamentalmente a antigos combatentes que integraram o BCAÇ 1856 (1).
No entanto acabou por interessar outros segmentos, o que para um trabalho sem qualquer suporte de divulgação ou promoção é sempre motivador.
Confesso que fiquei surpreendido pelo trabalho e abrangência do vosso blogue e, por desafio do Cor. Marques Lopes, junto envio um primeiro texto, baseado numa vivência pesssoal, que adaptei do meu livro recém publicado de Estórias Etnográficas "O Pegureiro e o Lobo - Estórias de Castro Laboreiro".
A finalidade é apenas chamar a atenção para um sistema de controlo das vidas dos jovens de então, mesmo quando não eram "revolucionários " nem comunistas e se limitavam a cumprir as normas estabelecidos pelo regime (RDM). É uma amostra do conflito latente entre os militares,sobretudo os profissionais que temiam, mais do que respeitavam, a influência da PIDE, cujo controlo poderia influenciar as respectivas carreiras profissionais.
Não bastava ser bom militar. Era também necessário estar nas boas graças da PIDE.
A maior parte dos oficiais milicianos, que não aspiravaa ser funcionário público, podia encontrar refúgio na sua condição temporária de militar, mas à saída, a PIDE esperava por ele para acertar contas!
Com os melhores cumprimentos
Manuel Domingues (2)
A Vingança da PIDE
Como oficial de informações todas as manhãs, às 07h00, a primeira tarefa era analisar as actividades operacionais e de informações ocorridas nas últimas 24 horas no Batalhão e na Zona, e elaborar o relatório diário, SITREP, a enviar ao Comando em Bissau, como aliás todas a unidades estacionadas na Guiné. O Comando sintetizava os aspectos considerados mais importantes, e distribuía a todas as unidades, semanalmente, uma síntese dos factos através do PERINTREP.
O SITREP, relatório diário, assentava nas informações recolhidas pelas subunidades do Batalhão no terreno, e no sistema de informações instituído. Era prática, recomendada pelo Comando Chefe de Bissau, a partilha de informação com a subdelegação da PIDE existente em Nova Lamego [Gabu], funcionando na Administração do Concelho, e apenas com um Agente.
Através dos relatórios semanais do Comando Chefe constatei a existência de muitas referências e informações sobre a região Leste, onde o Batalhão actuava, como sendo originárias da PIDE, quando afinal eram de origem militar e que o referido Agente obtinha-as mediante o acesso ao centro nevrálgico do Comando do Batalhão, transmitindo-as como sendo resultantes do seu trabalho, influenciando a actividade do Batalhão, pois era com base em informações que o Comando sugeria ou determinava operações no terreno.
Perante tal abuso, e obtido o acordo do Comandante, transmiti ao Agente que dada a situação do território, sob comando militar, e o facto de ele pertencer a uma instituição civil, não poderia ter acesso directo à referida Sala, sem prejuízo de ser informado dos factos com interesse para a sua actividade. Perante a eminência de ver a sua fonte secar fez várias ameaças, mais ou menos veladas, mas de facto a situação mudou, e a contribuição do referido Agente ficou reduzida ao seu trabalho próprio, quase nulo, dada a realidade existente na região.
Já neste contexto, uma manhã deparei com uma mensagem de uma das companhias, estacionada em Buruntuma, informando ter capturado dois prisioneiros, identificados como estrangeiros, e que iria remeter nessa tarde para o Comando do Batalhão para interrogatório mais detalhado. Assim aconteceu. Ao princípio da tarde e com recurso a um militar nativo, fula, como intérprete, porque dominava bem o português e a língua dos prisioneiros, concluiu-se o interrogatório.
Ainda o Relatório não estava feito quando o agente da PIDE irrompeu pela Sala de Operações reclamando a entrega imediata dos prisioneiros por se tratar de mestrangeiros, cuja competência era exclusivamente dos seus serviços. Calmamente tentei explicar-lhe que, pelo facto de a Província estar sob domínio militar, competia a este, em primeiro lugar, averiguar do interesse dos capturados e só depois decidir o seu destino
No caso concreto já concluíra pela entrega à entidade civil porque não apresentavam grande interesse militar. No entanto e apesar de escassos 50 metros separarem as instalações do Quartel e da Administração Civil, os prisioneiros seriam entregues segundo as normas militares, ou seja com uma Guia de Entrega.
O Homem mandou-se ao ar dizendo nunca tal ter acontecido, passando a constituir um precedente grave de desconfiança num elemento da PIDE, ainda para mais da parte de um oficial miliciano. Nunca receberia os prisioneiros em tais condições e assim iria ter de justificar tal atitude perante o Comando de Bissau, que ele alertaria de imediato através do seu Subdirector.
Mal o Agente abandonou as instalações encarreguei o Sargento de Informações de preencher as Guias de Entrega e levar os prisioneiros para o edifício da Administração, com ordens expressas de só os entregar se o Agente assinasse as respectivas guias. Caso contrário trazia-os de volta. Passados 15 minutos o referido Furriel voltou com a indicação de o Agente se manter intransigente e só aceitar os dois homens sem Guia.
Perante esta situação falei com o Comandante a quem expliquei a relutância em prescindir do formalismo, porque em tempos o referido Agente se gabara de ter feito desaparecer prisioneiros sem deixar rasto. Mais tarde poderíamos ser responsabilizados se eventualmente a PIDE os fizesse desaparecer.
O Comandante mandou chamar o Agente e tentou fazer-lhe compreender a situação e que o meu procedimento estava de acordo com as normas em vigor. O Agente hesitou mas como já tinha enviado um rádio para a Subdirectoria em Bissau, decidiu não voltar atrás na sua decisão.
Embora criando uma situação insólita, sugeri ao Comandante o envio dos prisioneiros por via aérea para Bissau à ordem do Comando Chefe, com a indicação dos motivos, ou seja, a recusa do agente da PIDE em assinar a respectiva Guia de Entrega, que mereceu a sua concordância.
Passadas duas semanas o Agente desapareceu, deixando o recado de que alguém iria pagar caro pela sua saída. Dois meses após o regresso da Guiné, em Julho de 1967, e já desmobilizado, requeri o passaporte no Governo Civil de Lisboa, a fim de regressar a Paris, para continuar a minha vida profissional.
Para grande surpresa foi-me recusado. Ao fim de varias diligências, consegui que me dissessem que o motivo tinha sido a informação negativa da PIDE!
Não queria acreditar! Quatro anos antes, já apurado para todo o serviço militar, tinham-me autorizado a ir estudar no estrangeiro e agora, depois de o ter cumprido, negavam-me esse direito. Era a tal vingança anunciada pelo Agente! Revoltado com a injustiça, um dia resolvi ir à sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, pedir explicações.
O Agente porteiro depois de me perguntar o que pretendia mirou-me de alto a baixo, foi a uma casota telefonar e mandou-me subir ao andar superior onde outro Agente me encafuou numa pequena sala interior, mandando-me esperar.
Ao fim de mais de trinta longos minutos apareceu um inspector perguntando-me qual a razão da vinda ali. Expliquei que pretendia saber a razão da informação negativa relativamente ao meu pedido de passaporte. O Inspector olhou-me com ar de sobranceria e perguntou-me:
— É a primeira vez que vem aqui?
— É sim.
— Então fique a saber: aqui só vem quem nós chamamos! E foi-se embora.
Meio aparvalhado, desci as escadas e o porteiro, com ar trocista, deu-me as boas tardes. Na rua ia pensando como eram grandes os tentáculos de uma organização, decidindo sobre o futuro das pessoas, mesmo quando se limitavam a cumprir as leis que o próprio sistema criara.
(Adaptado, pelo Autor, do seu livro O Pegureiro e o Lobo – Estórias de Castro Laboreiro - 2005)
________
(1) Vd. post de A. Marques Lopes, de 18 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXI: Bibliografia de uma guerra (5)
(2) O autor frequentou o Curso de Rangers e fez parte do BCAÇ 1856 (1965/67). Como Alferes Mil foi Comandante do Pelotão de Reconhecimento e Informação, tendo desempenhado as funções de oficial de Informações e, durante alguns meses, a de Oficial de Operações.
O BCAÇ 1856 esteve no Leste, Sector L3, com o Comando e CCS sediados em Nova Lamego [Gabu]; e as companhias operacionais em Madina do Boé (CCAÇ 1416, com um destacamento em Béli; , em Bajocunda (CCAÇ 1417, com um destacamento em Copá); e em Buruntuma (CCAÇ 1418, com um destacamento em Ponte Caiúm).
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