Guiné > Guileje > 1967 > Foto aérea do aquartelamento e tabanca. © José Neto (2005)
Publica-se a 10ª (e última) parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado) (1).
Recorde-se a justificação que ele deu para partilhar connosco as suas memórias de Guileje:
"Depois de muito meditar cheguei à conclusão de que, pelo menos tu, mereces a minha confiança para partillhar contigo uma parte muito significativa das memórias da minha vida militar. São trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265 que fui escrevendo ao correr da pena para responder a milhentas perguntas que o meu neto Afonso, um jovem de 17 anos, que pensava que o avô materno andou em África só a matar pretos enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo). Coisas de família"...
Esta confiança, em mim e na nossa tertúlia, eu tenho que a agradecer ao camarada Zé Neto. Faço votos para que este fim seja apenas um até breve, até ao meu regresso... LG
O descanso em Buba
Ao fim de cerca de onze meses chegou a ordem para rodarmos para uma outra posição onde a nossas tropa pudesse recuperar do tremendo desgaste, reconhecido por vários relatórios médicos apresentados ao comando.
Fomos destinados a companhia de apoio ao comando do nosso Batalhão, em Buba.
A CAÇ 2316, do Capitão Vasconcelos, veio do Mejo ocupar o nosso aquartelamento por fases e do mesmo modo as minhas tropas iam a Gadamael embarcar para Buba.
Eu fui o último a abandonar Guileje, porque, mais uma vez, a entrega do património parecia um negócio de ciganos.
O 1º sargento da CCAÇ 2316, um tal José Jorge de seu nome completo, e um furriel do QP cujo nome esqueci, estavam apostados em fazer-me a vida negra.
Eram de Infantaria, mas parecia que tinham estudado pela cartilha do RAP 2 (1).
Mossa aqui, parafuso a menos ali, dentes de garfo tortos acolá, acabei por sair de Guileje com uma pasta bem recheada de anotações nas Guias de Entrega.
Mossa aqui, parafuso a menos ali, dentes de garfo tortos acolá, acabei por sair de Guilege com uma pasta bem recheada de anotações nas Guias de Entrega.
O tal José Jorge tratava comigo de cima para baixo do alto das suas quatro divisas (eu só tinha três) e dum modo despeitado porque eu não lhe cedi o meu quarto fortificado, a que ele se achava com direito. Tinha alguma razão, mas eu argumentava que foram os meus homens que o reconstruíram e que não faltava espaço nem material para que os dele fizessem outro ao lado.
Nas suas gabarolices não se cansava de proclamar que em breve ia para o curso de oficiais, pois, tal como eu, tinha feito as provas de admissão “escalonamento” e já sabia, por contactos confidenciais com altas fontes, que era o número seis da lista.
O que eu me ri quando, mais tarde, foi publicada a classificação e vi que os seus altos informadores se esqueceram de lhe dizer que a seguir ao primeiro seis ainda havia mais dois algarismos iguais, ou seja, era o número 666 da lista.
Pelo meu lado, a classificação, não sendo brilhante, era animadora. Fiquei no 285º lugar… entre 1048 aprovados, o que dava para prever que daí a três ou quatro anos iria ao Curso de Oficiais.
Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968 > Um DO (Dornier) na pista de aviação. © José Neto (2005)
Em fins de Maio, num breve salto de avião, fui juntar-me à minha companhia em Buba.
Para sossego das minhas preocupações, ao chegar, tive a grata notícia de que o Celestino estava em Aldeia Formosa a comandar uma operação. Comandar…
Foi então que o grande comandante que saltava a pé juntos para cima duma mesa (2) se revelou.
Guiné > Guileje > 1968 >Espigueiros do milho na tabanca. © José Neto (2005)
Numa altura em que o quartel de Aldeia Formosa se encontrava com o mínimo de pessoal, apenas para manter a segurança, entrou por ali dentro um nativo a gritar que os turras estavam a atacar o povo de Xitole.
O alferes da CART 1612. ali aquartelada, desconfiou da tramóia, já que não se tinha ouvido fogo para aqueles lados, mas o Celestino tomou conta do caso e ordenou-lhe que arrebanhasse de entre os mecânicos, rádio-telefonistas, cozinheiros, milícias e tudo que encontrasse para ir em socorro do aldeamento.
Montados em dois Unimog lá seguiram e… poucos quilómetros andaram.
Os turras tinham preparado uma forte emboscada e quase dizimaram os desgraçados. Mataram quatro soldados, capturaram (apanhados à mão) um 1º cabo mecânico e sete soldados, destruíram o Unimog da frente e apanharam quase todo o armamento. Por sorte a segunda viatura tinha ficado a meio caminho avariada.
Dos prisioneiros, o mecânico e o condutor auto nem eram daquela guerra pois pertenciam à CCS e estavam em Aldeia Formosa em apoio de serviços e não propriamente de combate. Quando a notícia chegou a Bissau, o General Spínola meteu-se no helicóptero e foi ouvir, com os seus ouvidos, o relato dos poucos sobreviventes.
Foi o bastante para punir o tenente-coronel com dez dias de prisão disciplinar e ordenar-lhe que seguisse com ele para Bissau e dali para a Metrópole.
Todo o Batalhão rejubilou com a notícia, mas… poucos, muito poucos, tiveram a coragem de enfrentar a besta enquanto reinou.
Eu mentia se dissesse que não senti uma satisfação cá muito íntima, porém, ao mesmo tempo, tive pena do senhor porque afinal ele e mais três da mesma patente que o General do monóculo despachou para a Metrópole duma assentada, não passavam de peças anquilosadas duma engrenagem que mandava para o combate desigual que é a guerrilha estes marqueses de parada e gabinete.
O Major Carvalho Pereira, 2º Comandante, assumiu o comando do Batalhão até ao fim da comissão.
A minha companhia estava agora no descanso em Buba, com dois Gr Combate destacados, um Nhala e outro em Cumbijã (onde já estivera no ano anterior).
E aqui termino o extracto de dezoito páginas em letra mais miudinha, das memórias que escrevi em jeito de contar aos meus netos as vicissitudes por que passou o avô.
FIM (*)
_________
Notas do autor
(1) A referência à Cartilha do RAP 2, nossa unidade mobilizadora, vem do facto de que nos entregaram uma arrecadação de material completa, muito bem arrumada, mas com muitos artigos em mau estado disfarçados. Ao receberem o mesmo material de volta, no fim da recruta, os artigos foram passados a pente fino e anotadas deficiências que tinham de ser pagas pelo pessoal. E o negócio continuava com a companhia seguinte, tal como já sucedera com a anterior.
(2) Incrivelmente aquela bola de carne tinha a habilidade de, a pés juntos e sem balanço, saltar do chão para o tampo duma mesa normal. Os alferes, quando queriam divertimento, apostavam uma rodada de whisky em como ele, comandante, nesse dia ia falhar. Nunca falhou nem se deu conta da figura de palhaço que fizera…
(*) Vd posts anteriores:
16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (9): a Operação Bola de Fogo
" (...) Resta um pormenor que revela a grandeza dos homens quando confrontados com situações extremas. Aquando do regresso desta última operação os tempos calculados para o trajecto modificaram-se devido à forte concentração de fogo do IN, com as consequências que já descrevi, e o Capitão Corvacho tinha a certeza que, se permanecessem na mata depois do sol-posto, poucos sairiam dali com vida. As viaturas rodavam em marcha lenta porque havia que inspeccionar cada metro da picada. A certa altura veio um grito da frente da coluna:-Mina!" (...)
14 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (8): Gazela com chouriço à moda do Celestino
"O ano de 1968 entrou com uma novidade. O esforço sobre o corredor de Guilege diminuiu de intensidade e a actividade operacional concentrou-se mais para a zona da fronteira, com a prioridade de manter seguro o itinerário Gadamael Porto – Guilege. Estavam para chegar as CAÇ 2316 e 2317 que iam acantonar, em condições precárias, no Mejo e em Guilege com vista a qualquer acção em grande que estava no segredo dos Deuses de Bissau" (...).
11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXI: Memórias de Guileje (Zé Neto, 1967/68) (7): Francesinho e Cavaco, o belo e o monstro
"Com pouco mais de metro e meio de altura, franzino, quase imberbe, era um poço de força, energia e boa disposição que a todos espantava.Geralmente, quando o pessoal regressava das duras caminhadas pelas matas e bolanhas vinha estafado e atirava-se para cima do catre para descansar. Essa não era a prática do Francesinho. Tomava um duche, ficava como novo e, com a sua concertina algo desafinada, espalhava alegria por toda a tabanca e arredores" (...).
8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (6): dos Lordes e das bestas
" (...) Ganhou alguma notoriedade o diálogo entre o Celestino (1) e o Capitão Cadete. Numa operação em que as nossas tropas pretendiam desmantelar a fortificação que os turras tinham implantado em Salancaúr, o Celestino comandava comodamente instalado num avião Dornier. A companhia do Capitão Cadete estava, a pouco mais de duzentos metros do objectivo, a ser fustigada por fogo de canhão sem recuo do IN e o Celestino berrava pela rádio: -Avance! Organize o assalto pelo flanco esquerdo!!!
"O Capitão, homem experiente, sabia que era de todo impossível dar mais um passo em direcção ao objectivo, estrategicamente defendido pelos lodaçais e, perante a insistência, gritou pelo microfone: -Venha cá abaixo e enterre o seu focinho na bolanha, seu..." (...)
3 de Fevereiro de 2006> Guiné 63/74 - CDXCVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (5): ecumenismo e festa do fanado
"Uma das boas características do meu pessoal era a de que não gostavam de estar parados nos intervalos das operações. Cada um, nas suas profissões ou aptidões, ia bulindo e foi assim que se reconstruíram e melhoraram abrigos, se implantou uma horta que aproveitava a água, depois de decantada, dos chuveiros das praças e se construiu a obra mais emblemática que deixámos em Guileje: a Capela" (...)
23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (4): os azares dos sargentos
"O abrigo subterrâneo que nós, os sargentos, mais utilizávamos situava-se a meia dúzia de passos do coberto da messe, dado que parecia que os turras esperavam que acabássemos de jantar para abrir fogo. O acesso ao amplo salão enterrado era feito através dum pequeno poço para onde saltavam os que não tinham posto de combate definido e dali para o dito salão. A abertura era estreita e, se havia muita afluência, tornava-se necessário esperar vez para entrar, o que não deixava de provocar alguma confusão. Foi numa dessas confusões que levei com um furriel em cima do meu pé esquerdo. Andei mais de um mês com a perna engessada" (...).
21 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (3): Dauda, o Viegas
" (...) Este menino, na altura com onze, doze meses de idade, era filho da Sona, uma jovem de Cacine, comprada pelo alfaiate de Guileje para ser a sua terceira esposa. Tinha o nome de Dauda, mas era tratado por todos nós por Viegas, apelido do pai, capitão que comandara a companhia de Cacine. Ainda hoje, quando revejo as dezenas de fotografias que fiz do garoto, acho que poderíamos anteceder Silva a Viegas" (...).
13 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (2): Ordem de marcha
"Nos primeiros dias de Julho de 1967 recebemos ordem para marchar para Guileje, a fim de rendermos a CCAÇ 1477. Nas conversas do Café Bento, em Bissau, apelidado de 5ª repartição por ser ali que se sabiam todos os acontecimentos ocorridos na Província, o nome de Guileje era citado frequentemente como uma região onde havia porrada da grossa. As contingências da sorte ditaram que a CART 1613 fosse verificar in loco a veracidade das informações veiculadas na dita repartição" (...).
10 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (1): Prelúdio(s)
"Nas páginas que deixo para trás, respeitantes à Guiné, descrevo a maneira atribulada, para não dizer trapalhona, como o meu Batalhão, e por arrasto a minha Companhia, CART 1613, foi parar àquela Província Ultramarina e os remendos que se seguiram" (...)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 25 de fevereiro de 2006
Guiné 63/74 - P567: BCAV 2867, o Batalhão do Horácio Ramos? (José Martins)
Caro Luís e Fernando:
É reconfortante saber que os filhos dos nossos camaradas tentam saber algo sobre o período de história que os pais viveram, a procura de dados que os esclareça sobre os ÚLTIMOS SOLDADOS DO IMPÉRIO.
Com os dados existentes no mail procurei alguma coisa, que, como dizes, podem
ser uma falsa pista.
Em anexo segue o que consegui nos meus arquivos [dados sobre o Batalhão de Cavalaria 2867, a que pertenciam as CCAV 2482, 2483 e 2484], mas vou continuar à procura de mais elementos.
Ao Fernando sugiro que procure no espólio do pai a caderneta militar. Se a caderneta existir e estiver actualizada, à data da saída do exército, poderá lá encontrar elementos que ajudem nesta pesquisa.
Se não tiver a tal caderneta - um livrinho pequeno com capa preta - poderá obter elementos junto do Arquivo Geral do Exército, que fica na Estrada de Chelas em Lisboa.
Com o nome, data de nascimento e pouco mais, esses serviços costumam fazer milagres. Foi lá que obtive a cópia das notas de assentos do meu avô materno e de um tio paterno, ambos combatentes da I Grande Guerra.
Claro que para isso o melhor é um pedido pessoal e presencial. Quando o Fernando vier a Lisboa tratar de algum assunto da sua empresa de reparações de automóveis e máquinas agrícolas, é destinar um pouco de tempo para este assunto.
Caro Fernando: Não nos conhecemos, mas habituamo-nos a pesquisar, e por isso descobri a localização da Casa Fraquito em Colos - Odemira. O que a Net nos proporciona!
Vamos mantendo o contacto, pois pode ser que a curiosidade presente nos traga mais elementos, não só para o Fernando Martinho, mas também para a nossa tertúlia.
Um forte abraço do camarada e amigo,
José Martins
______________
Este batalhão foi formado no Regimento de Cavalaria 3 em Estremoz e era composto, além da Companhia de Comando e Serviços [CSS], pelas Companhias de Cavalaria 2482, 2483 e 2484.
Estas unidades chegaram à Guiné em Março de 1969 e terminaram a comissão em Dezembro de 1970.
Localização das unidades:
O Batalhão permaneceu em TITE durante toda a sua comissão.
CCAV 2482 – Esteve em TITE desde a chegada até Junho de 1969 indo para FULACUNDA.
CCAV 2483 – Iniciou a comissão em NOVA SINTRA, sendo transferida em Setembro de 1970 para TITE.
CCAV 2484 – Iniciou a comissão em CACHEU e foi transferida para BULA em Agosto de 1969.
Carta de Situação reportada a 3 de Agosto de 1969, no Sector S1 (Sul) (cerca de 5 meses após a chegada):
Indica que, além do Batalhão de Cavalaria e das 3 companhias operacionais, estavam estacionadas mais 1 Companhia de Caçadores, 1 Pelotão de Morteiros, 1 Pelotão de Artilharia de Campanha, 1 Pelotão de Reconhecimento (carros de combate) e 1 Companhia de Milícias. Estava também estacionado na zona, como reserva do Comando- Chefe, 1 Companhia de Comandos.
Carta de Situação reportada a 2 de Agosto de 1970, o Sector S1 (Sul) (cerca de 5 meses antes do regresso):
Indica que, além do batalhão de cavalaria e das 3 companhias operacionais, estavam estacionadas mais 1 Companhia de Cavalaria, 1 Pelotão de Morteiros, 1 Pelotão de Artilharia de Campanha, 1 Pelotão de Reconhecimento (carros de combate) e 4 Companhias de Milícias.
Evolução no Sector S1, entre as duas Cartas de Situação:
É substituída a Companhia de Caçadores por outra de Cavalaria e é reforçada com 3 Companhias de Milícias.
Fonte: © Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 3º Volume – Dispositivo das Nossas Forças - Guiné
É reconfortante saber que os filhos dos nossos camaradas tentam saber algo sobre o período de história que os pais viveram, a procura de dados que os esclareça sobre os ÚLTIMOS SOLDADOS DO IMPÉRIO.
Com os dados existentes no mail procurei alguma coisa, que, como dizes, podem
ser uma falsa pista.
Em anexo segue o que consegui nos meus arquivos [dados sobre o Batalhão de Cavalaria 2867, a que pertenciam as CCAV 2482, 2483 e 2484], mas vou continuar à procura de mais elementos.
Ao Fernando sugiro que procure no espólio do pai a caderneta militar. Se a caderneta existir e estiver actualizada, à data da saída do exército, poderá lá encontrar elementos que ajudem nesta pesquisa.
Se não tiver a tal caderneta - um livrinho pequeno com capa preta - poderá obter elementos junto do Arquivo Geral do Exército, que fica na Estrada de Chelas em Lisboa.
Com o nome, data de nascimento e pouco mais, esses serviços costumam fazer milagres. Foi lá que obtive a cópia das notas de assentos do meu avô materno e de um tio paterno, ambos combatentes da I Grande Guerra.
Claro que para isso o melhor é um pedido pessoal e presencial. Quando o Fernando vier a Lisboa tratar de algum assunto da sua empresa de reparações de automóveis e máquinas agrícolas, é destinar um pouco de tempo para este assunto.
Caro Fernando: Não nos conhecemos, mas habituamo-nos a pesquisar, e por isso descobri a localização da Casa Fraquito em Colos - Odemira. O que a Net nos proporciona!
Vamos mantendo o contacto, pois pode ser que a curiosidade presente nos traga mais elementos, não só para o Fernando Martinho, mas também para a nossa tertúlia.
Um forte abraço do camarada e amigo,
José Martins
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BATALHÃO DE CAVALARIA 2867
Este batalhão foi formado no Regimento de Cavalaria 3 em Estremoz e era composto, além da Companhia de Comando e Serviços [CSS], pelas Companhias de Cavalaria 2482, 2483 e 2484.
Estas unidades chegaram à Guiné em Março de 1969 e terminaram a comissão em Dezembro de 1970.
Localização das unidades:
O Batalhão permaneceu em TITE durante toda a sua comissão.
CCAV 2482 – Esteve em TITE desde a chegada até Junho de 1969 indo para FULACUNDA.
CCAV 2483 – Iniciou a comissão em NOVA SINTRA, sendo transferida em Setembro de 1970 para TITE.
CCAV 2484 – Iniciou a comissão em CACHEU e foi transferida para BULA em Agosto de 1969.
Carta de Situação reportada a 3 de Agosto de 1969, no Sector S1 (Sul) (cerca de 5 meses após a chegada):
Indica que, além do Batalhão de Cavalaria e das 3 companhias operacionais, estavam estacionadas mais 1 Companhia de Caçadores, 1 Pelotão de Morteiros, 1 Pelotão de Artilharia de Campanha, 1 Pelotão de Reconhecimento (carros de combate) e 1 Companhia de Milícias. Estava também estacionado na zona, como reserva do Comando- Chefe, 1 Companhia de Comandos.
Carta de Situação reportada a 2 de Agosto de 1970, o Sector S1 (Sul) (cerca de 5 meses antes do regresso):
Indica que, além do batalhão de cavalaria e das 3 companhias operacionais, estavam estacionadas mais 1 Companhia de Cavalaria, 1 Pelotão de Morteiros, 1 Pelotão de Artilharia de Campanha, 1 Pelotão de Reconhecimento (carros de combate) e 4 Companhias de Milícias.
Evolução no Sector S1, entre as duas Cartas de Situação:
É substituída a Companhia de Caçadores por outra de Cavalaria e é reforçada com 3 Companhias de Milícias.
Fonte: © Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 3º Volume – Dispositivo das Nossas Forças - Guiné
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Guiné 63/74 - P566: Sobre a procura do Fernando do rasto da memória do camarada Horácio (João Tunes)
1. Texto do João Tunes (entre muitas outras coisas, foi ex-alf mil transmissões da CCS do BCAÇ 2884, Pelundo, 1969/70; mas acabou, com uma porrada, em Catió, noutra CCS, noutro Batalhão, mas no final saiu pela porta grande, com louvor com distinção...). Aproveito para lhe mandar um alfa bravo.
João: recebi o teu abraço (um); mandei-te dois, de volta, pela tua simpática esposa que tive o privilégio de conhecer esta manhã, na minha tabanca...
Quanto à almoçarada, terá que ser quanto antes... Pelo menos, antes que o futuro novo inquilino do palácio cor de rosa decrete o estado de sítio ou de emergência (os juristas não se entendem sobre a figura jurídica adequada) por causa da gripe pandémica que aí vem... Daqui a seis meses, ou daqui a seis anos, garante(m) a(s) autoridade(s) de saúde: o prazo já não conta... Ou melhor: o problema não é a incerteza sobre quando e como ela, a dita, a pandemia, há-de chegar, terrível e vingadira... Mas talvez sobre o tabu... do estado de sítio ou de emergência... O tabu é que vai atrair as atenções do Zé Povinho. Ele está-se mas tintas para o resto. Ele quer é saber se o novo comandante-chefe das forças armadas, a ser empossado dentro em breve, nos vai pôr a todos de quarentena... Tu, abafa-te, abifa-te... L.G.
Aqui vai, por fim, a prosa do João (inconfundível, incorrigível, inigualável):
Num Batalhão já tão avantajado que o Major General Luís para aqui mobilizou, eu não acredito que ele seja capaz, apesar dos seus inegáveis méritos de comando, de meter compostura na formatura. Duvido até que no toque a reunir ele consiga formar o maralhal na parada devidamente ataviado, barbeado e com os cinturões, armas e demais atavios prontos a dispararar, segundo os regulamentos e a ordem estabelecida, a pensar que, mais uma vez, se vai purgar o patriotismo que nos levou às bolanhas no levantar e arrear da nossa querida bandeira.
Para mais, agora quando findou o Euro 2004 lá se foi o fanatismo com as bandeiras e, nessa guerra, fomos vice-campeões, disso não passando. E talvez aí é que a porca torça o rabo, esta nossa vocação de nos esfalfarmos, esfolarmos, deixando juízo e tripas, darmos o litro, para, afinal, acabarmos vice-campeões. Bolas, cada um de nós, os que estivemos nas três frentes da guerra colonial, somos todos "vices" - na Guiné, só perdemos na final contra o PAIGC; em Moçambique idem com a Frelimo; em Angola, perdemos aos penalties com o MPLA. É sina, será? E esta dúvida, sistémica ou sismada, é um elogio (ao Luís e ao blogue), nada que se pareça a uma proposta de qualquer insurreição, indisciplina e, muito menos, levantamento de rancho (isso seria um absurdo porque rancho ainda não vi que acontecesse, e quem é que levanta o que ainda não tem ou já teve e vai falecendo pela lei da vida?).
Eu digo isto a inventar paródia, se calhar de mau gosto, para com coisas sérias porque estou para aqui, velho tonto e feito merda, a disfarçar uma espécie de intróito a fingir enxugar muita água salgada vinda de dentro dos olhos ao ler o mais sentido e pungente texto jamais publicado neste blogue.
Falo da mensagem do Fernando Martinho à procura do Batalhão, referências e camaradas do seu Pai e nosso camarada Horácio Martinho Ramos, infelizmente já desaparecido no combate contra a vida. Dando-nos esses enigmas para decifrar - período 1968/70, Bissorã, Bafatá, Tite, lema Somos como Somos e os números 2483 e 2484, falando depois em memórias transmitidas de amor à Guiné e uma vontade grande de lá voltar e as pistas encontradas num pai doente entre as tatuagens no braço.
Eu não te vou ajudar, Fernando. Andei por outras bandas e outras Companhias, não as do meu camarada e teu Pai Horácio. Mas, descansa, há-de aparecer por aí, tarda nada, quem com ele tenha feito escaramuças, dando e levando no coco, e com ele se tenha entretido (todos os guerreiros têm o seu repouso) com bajudas lindas de espevitar e chorar por mais.
Mas, nada te ajudando, sempre te digo: se não ajudo à localização da camaradagem e das raízes que, na Guiné, o teu Pai deixou, pelos meros desencontros do acaso (vê lá que fui no mesmo cruzeiro no Niassa para a Guiné com o camarada Luís e ainda não lhe (re)conheço a fronha respeitável e generalíssima no alto da sua vetusta e veneranda figura de Major General e Comandante em Chefe das batalhas deste blogue), digo-te isto e assim termino para não chatear mais: tomara eu que os meus filhos, e um que fosse me bastava, um dia que não muito deve tardar, me fizesse a honra de pós-memória para com o meu penar e amor pela Guiné da mesma ou aproximada forma, tão sentida e tão bonita, como tu procuras as raízes da memória de perda do teu pai, meu, nosso camarada. Não desistas.
E leva daqui um abraço.
João: recebi o teu abraço (um); mandei-te dois, de volta, pela tua simpática esposa que tive o privilégio de conhecer esta manhã, na minha tabanca...
Quanto à almoçarada, terá que ser quanto antes... Pelo menos, antes que o futuro novo inquilino do palácio cor de rosa decrete o estado de sítio ou de emergência (os juristas não se entendem sobre a figura jurídica adequada) por causa da gripe pandémica que aí vem... Daqui a seis meses, ou daqui a seis anos, garante(m) a(s) autoridade(s) de saúde: o prazo já não conta... Ou melhor: o problema não é a incerteza sobre quando e como ela, a dita, a pandemia, há-de chegar, terrível e vingadira... Mas talvez sobre o tabu... do estado de sítio ou de emergência... O tabu é que vai atrair as atenções do Zé Povinho. Ele está-se mas tintas para o resto. Ele quer é saber se o novo comandante-chefe das forças armadas, a ser empossado dentro em breve, nos vai pôr a todos de quarentena... Tu, abafa-te, abifa-te... L.G.
Aqui vai, por fim, a prosa do João (inconfundível, incorrigível, inigualável):
Num Batalhão já tão avantajado que o Major General Luís para aqui mobilizou, eu não acredito que ele seja capaz, apesar dos seus inegáveis méritos de comando, de meter compostura na formatura. Duvido até que no toque a reunir ele consiga formar o maralhal na parada devidamente ataviado, barbeado e com os cinturões, armas e demais atavios prontos a dispararar, segundo os regulamentos e a ordem estabelecida, a pensar que, mais uma vez, se vai purgar o patriotismo que nos levou às bolanhas no levantar e arrear da nossa querida bandeira.
Para mais, agora quando findou o Euro 2004 lá se foi o fanatismo com as bandeiras e, nessa guerra, fomos vice-campeões, disso não passando. E talvez aí é que a porca torça o rabo, esta nossa vocação de nos esfalfarmos, esfolarmos, deixando juízo e tripas, darmos o litro, para, afinal, acabarmos vice-campeões. Bolas, cada um de nós, os que estivemos nas três frentes da guerra colonial, somos todos "vices" - na Guiné, só perdemos na final contra o PAIGC; em Moçambique idem com a Frelimo; em Angola, perdemos aos penalties com o MPLA. É sina, será? E esta dúvida, sistémica ou sismada, é um elogio (ao Luís e ao blogue), nada que se pareça a uma proposta de qualquer insurreição, indisciplina e, muito menos, levantamento de rancho (isso seria um absurdo porque rancho ainda não vi que acontecesse, e quem é que levanta o que ainda não tem ou já teve e vai falecendo pela lei da vida?).
Eu digo isto a inventar paródia, se calhar de mau gosto, para com coisas sérias porque estou para aqui, velho tonto e feito merda, a disfarçar uma espécie de intróito a fingir enxugar muita água salgada vinda de dentro dos olhos ao ler o mais sentido e pungente texto jamais publicado neste blogue.
Falo da mensagem do Fernando Martinho à procura do Batalhão, referências e camaradas do seu Pai e nosso camarada Horácio Martinho Ramos, infelizmente já desaparecido no combate contra a vida. Dando-nos esses enigmas para decifrar - período 1968/70, Bissorã, Bafatá, Tite, lema Somos como Somos e os números 2483 e 2484, falando depois em memórias transmitidas de amor à Guiné e uma vontade grande de lá voltar e as pistas encontradas num pai doente entre as tatuagens no braço.
Eu não te vou ajudar, Fernando. Andei por outras bandas e outras Companhias, não as do meu camarada e teu Pai Horácio. Mas, descansa, há-de aparecer por aí, tarda nada, quem com ele tenha feito escaramuças, dando e levando no coco, e com ele se tenha entretido (todos os guerreiros têm o seu repouso) com bajudas lindas de espevitar e chorar por mais.
Mas, nada te ajudando, sempre te digo: se não ajudo à localização da camaradagem e das raízes que, na Guiné, o teu Pai deixou, pelos meros desencontros do acaso (vê lá que fui no mesmo cruzeiro no Niassa para a Guiné com o camarada Luís e ainda não lhe (re)conheço a fronha respeitável e generalíssima no alto da sua vetusta e veneranda figura de Major General e Comandante em Chefe das batalhas deste blogue), digo-te isto e assim termino para não chatear mais: tomara eu que os meus filhos, e um que fosse me bastava, um dia que não muito deve tardar, me fizesse a honra de pós-memória para com o meu penar e amor pela Guiné da mesma ou aproximada forma, tão sentida e tão bonita, como tu procuras as raízes da memória de perda do teu pai, meu, nosso camarada. Não desistas.
E leva daqui um abraço.
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006
Guiné 63/74 - P565: A morte, às 6 da manhã, em Ponta Coli (Sousa de Castro, CART 3494)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime> 1972: Brasão da CART 3494, pertencente ao BART 3873 (1972/74) © Sousa de Castro (2005)
Texto do Sousa de Castro:
Acabei de ler as últimas do blogue em que o nosso novo tertuliano António Duarte fez uma breve resenha daquilo que foi a sua estadia em Mansambo, na CART 3493, e no Xime, na CCAÇ 12 (1).
Recordou o seu camarada de especialidade em Vendas Novas, o Furriel Miliciano Manuel Bento como sendo o primeiro morto em combate do BART 3873. É verdade.
Posso dizer-vos também que em Junho 1999 num almoço/convívio da CART 3494 a que ele pertenceu, realizado pelos ex-Fur Mil Carda e Godinho (que se calhar o A. Duarte conhece), em Ponte de Sor, prestámos-lhe uma digna homenagem com uma coroa de flores na campa do cemitério local onde está sepultado:
Manuel da Rocha Bento. Fur Mil Art NM 00171671 foi morto em combate na Ponta Coli - Guiné (2) no dia 22 de Abril de 1972.
Rezava assim o relatório: Em 22 de Abril de 1972, às 6h00, um grupo IN emboscou a segurança da Ponta COLI (1 Gr Comb da CART 3494). As NT e a Artilharia do XiME pôs o IN em fuga. Sofremos 1 morto (Furriel), 7 feridos Graves e 12 ligeiros.
Sousa de Castro
(ex-1º cabo de transmissões da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)
_____
Nota de L.G.
(1) Vd posts de:
18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXI: Um periquito da CCAÇ 12 (António Duarte / Sousa de Castro)
20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXVIII: Notícias da CART 3493 (Mansambo, 1972) e da CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973/74) (António Duarte)
(2) Entre o Xime e Amedalai (vd. mapa do Xime)
Guiné 63/74 - P564: Em busca de... À procura de camaradas do meu pai, Horácio Martinho Ramos (conhecido por Papel)
1. Mensagem de Fernando M. Fraquito:
Assunto - Da parte de um falecido combatente
Caro Sr. Luis Graça:
É com as lágrimas nos olhos que estou a escrever estas linhas na esperança de encontrar nem sei bem o quê.
O meu nome é Fernando Martinho, tenho 33 anos e o meu pai, já falecido, foi combatente na Guiné nos anos de 1968/1970. Faleceu em 1996, com 48 anos, vítima de cancro, vulgo doença prolongada.
Foi com enorme prazer e admiração que encontrei este espaço sobre a Guerra Colonial e desde já lhe dou os meus sinceros parabéns pela iniciativa e pelo tempo que parece disponibilizar para manter este espaço actualizado e vivo.
A passagem do meu falecido pai pela Guiné é um facto que me enche de orgulho, admiração e curiosidade, a maneira como ele falava da Guiné fez crescer em mim uma admiração pela terra e pelas gentes.
Infelizmente não tenho muitos dados concretos sobre a unidade do meu pai, tenho muitas fotografias, penso que em Bassorá e Bissau, não sei ao certo.
O meu pai chamava-se Horácio Martinho Ramos e era conhecido pelo Papel, anexim colocado na Guiné.
Tenho tambem uma pequena bandeira, que penso ser da companhia do meu pai, onde ainda se notam as seguintes inscrições:
Ao centro: "Somos como somos"; aos cantos inferiores: 2483 - 2484.
Será que estas inscrições podem levar á identificação da unidade do meu pai? Gostaria que me fornecesse informações sobre essa unidade e os lugares onde esteve.
Poderei, se estiver interessado, fornecer fotografias do espólio de meu pai.
Fico a aguardar contacto.
Com os meus melhores cumprimentos
Fernando M. Fraquito
Casa Fraquito Lda
2. Resposta de L.G.:
Fernando:
Vamos tentar ajudá-lo a descobrir onde esteve o seu querido pai, na época de 1968/70, com a ajuda de mais de uma meia centena de camaradas que estiveram por todos os sítios da Guiné…
O seu pai deve ter estado em Bissorã, e não em Bassorá (que fica no Iraque)… Ele devia pertencer a um batalhão de que faziam parte as companhias de cavalaria 2483 e 2484…
A Companhia de Cavalaria 2484 estava em Jabadá, em 1969, e publicava um jornal chamado Dragões de Jabadá, cujo director era o capitão de cavalaria José Guilherme P. F. Durão.
Mas Jabadá ficava na região de Quínara (Tite) já no sul... E Bissorã fica na região do Oio, no centro norte...
… Vamos continuar a pesquisar, vou pedir aos meus camaradas uma ajudinha… E você, Fernando, veja lá se consegue saber qual era a companhia ou o batalhão do seu pai… Os números que me mandou (2483, 2484) são apenas uma pista, mas podem ser enganadores…
Força! Os meus respeitos pelos seu pai, que era do meu tempo (estive ma Guiné, em Bmbadinca, entre 1969 e 1971).
3. Nova mensagem do Fernando:
Caro Sr. Graça:
Muito obrigado pela rápida resposta e peço desculpa pelo engano no nome Bassorá, o que eu queria mesmo dizer era Bissorã e também Bafatá.
O meu pai falava também muito em Tite.
Não disponho de mais dados concretos, apenas o que já disse, o lema da companhia: "SOMOS COMO SOMOS" e os números 2483 e 2484. O meu pai tinha isto tatuado no braço direito.
Sei também que ele desempenhou o serviço de mecânico de automóveis e viaturas militares, afinal era esta a sua profissão de sempre.
Em meados da comissão teve um acidente, caiu de um Unimog e a roda do Unimog passou-lhe por cima do torax, teve algum tempo hospitalizado em Bissau.
Ao visitar o seu espaço, é com muita saudade que recordo as palavras do meu pai sobre a Guiné e como ele acalentava o desejo de lá voltar um dia. Infelizmente não conseguiu concretizar aquele desejo.
Gostava muito de encontrar alguns dos ex-camaradas do meu pai na Guiné. Assim que possa vou enviar algumas fotografias.
Assunto - Da parte de um falecido combatente
Caro Sr. Luis Graça:
É com as lágrimas nos olhos que estou a escrever estas linhas na esperança de encontrar nem sei bem o quê.
O meu nome é Fernando Martinho, tenho 33 anos e o meu pai, já falecido, foi combatente na Guiné nos anos de 1968/1970. Faleceu em 1996, com 48 anos, vítima de cancro, vulgo doença prolongada.
Foi com enorme prazer e admiração que encontrei este espaço sobre a Guerra Colonial e desde já lhe dou os meus sinceros parabéns pela iniciativa e pelo tempo que parece disponibilizar para manter este espaço actualizado e vivo.
A passagem do meu falecido pai pela Guiné é um facto que me enche de orgulho, admiração e curiosidade, a maneira como ele falava da Guiné fez crescer em mim uma admiração pela terra e pelas gentes.
Infelizmente não tenho muitos dados concretos sobre a unidade do meu pai, tenho muitas fotografias, penso que em Bassorá e Bissau, não sei ao certo.
O meu pai chamava-se Horácio Martinho Ramos e era conhecido pelo Papel, anexim colocado na Guiné.
Tenho tambem uma pequena bandeira, que penso ser da companhia do meu pai, onde ainda se notam as seguintes inscrições:
Ao centro: "Somos como somos"; aos cantos inferiores: 2483 - 2484.
Será que estas inscrições podem levar á identificação da unidade do meu pai? Gostaria que me fornecesse informações sobre essa unidade e os lugares onde esteve.
Poderei, se estiver interessado, fornecer fotografias do espólio de meu pai.
Fico a aguardar contacto.
Com os meus melhores cumprimentos
Fernando M. Fraquito
Casa Fraquito Lda
2. Resposta de L.G.:
Fernando:
Vamos tentar ajudá-lo a descobrir onde esteve o seu querido pai, na época de 1968/70, com a ajuda de mais de uma meia centena de camaradas que estiveram por todos os sítios da Guiné…
O seu pai deve ter estado em Bissorã, e não em Bassorá (que fica no Iraque)… Ele devia pertencer a um batalhão de que faziam parte as companhias de cavalaria 2483 e 2484…
A Companhia de Cavalaria 2484 estava em Jabadá, em 1969, e publicava um jornal chamado Dragões de Jabadá, cujo director era o capitão de cavalaria José Guilherme P. F. Durão.
Mas Jabadá ficava na região de Quínara (Tite) já no sul... E Bissorã fica na região do Oio, no centro norte...
… Vamos continuar a pesquisar, vou pedir aos meus camaradas uma ajudinha… E você, Fernando, veja lá se consegue saber qual era a companhia ou o batalhão do seu pai… Os números que me mandou (2483, 2484) são apenas uma pista, mas podem ser enganadores…
Força! Os meus respeitos pelos seu pai, que era do meu tempo (estive ma Guiné, em Bmbadinca, entre 1969 e 1971).
3. Nova mensagem do Fernando:
Caro Sr. Graça:
Muito obrigado pela rápida resposta e peço desculpa pelo engano no nome Bassorá, o que eu queria mesmo dizer era Bissorã e também Bafatá.
O meu pai falava também muito em Tite.
Não disponho de mais dados concretos, apenas o que já disse, o lema da companhia: "SOMOS COMO SOMOS" e os números 2483 e 2484. O meu pai tinha isto tatuado no braço direito.
Sei também que ele desempenhou o serviço de mecânico de automóveis e viaturas militares, afinal era esta a sua profissão de sempre.
Em meados da comissão teve um acidente, caiu de um Unimog e a roda do Unimog passou-lhe por cima do torax, teve algum tempo hospitalizado em Bissau.
Ao visitar o seu espaço, é com muita saudade que recordo as palavras do meu pai sobre a Guiné e como ele acalentava o desejo de lá voltar um dia. Infelizmente não conseguiu concretizar aquele desejo.
Gostava muito de encontrar alguns dos ex-camaradas do meu pai na Guiné. Assim que possa vou enviar algumas fotografias.
Guiné 63/74 - P563: Exposição de fotogafia e recolha de material escolar em Abrantes (Hugo Moura Ferreira)
Boas...Camarigos (como já li escrito por um de vós ).
Aqui faço constar um evento que está a decorrer em Abrantes, relacionado com a Guiné-Bissau. Pela minha parte, já que passo parte do tempo por aqueles lados, lá irei fazer uma visita. Procurarei colher algo para vos transmitir.
Um abraço.
Hugo Moura Ferreira
______
“Guiné-Bissau – Imagens e Vozes”: exposição na Biblioteca Municipal António Botto
Estará patente na Biblioteca Municipal António Botto, de 3 de Fevereiro a 10 de Março, uma exposição de fotografia, promovida pela Fundação Evangelização e Culturas, intitulada Guiné-Bissau: Imagens e Vozes.
A mostra, destinada ao público em geral, é composta por 20 painéis fotográficos, num total de 45 fotografias a retratar os costumes, tradições e paisagens guineenses. As fotografias são da autoria de:
(i) José Lopes (gestor de empresas e amante de fotografia);
(ii) Sara Ideias (técnica de reinserção de toxicodependentes e voluntária na Guiné-Bissau);
(iii) Catarina Lopes (técnica de cooperação e ex-professora);
(iv) e Filipe Barros (membro da ONGD guineense, Estrutura de Apoio à Produção Popular – EAPP, nascido e residente em Catió).
Partilhando o gosto pela fotografia, cada um procurou registar momentos daquele país.
Esta iniciativa é acompanhada de actividades paralelas, tal como a conferência “Guiné-Bissau e Cabo Verde, que relação? Educação na Guiné-Bissau”, a realizar no dia 23 de Fevereiro, às 19h00, com a presença de Rita Boavida Costa.
(...) A mostra servirá, também, de mote para a recolha de material destinado às escolas daquele país. Assim, o público que visita a exposição, pode fazer-se acompanhar de obras de referência (dicionários e enciclopédias), literatura infanto-juvenil ou manuais escolares, para ajudar na construção de um baú pedagógico para uma escola na Guiné-Bissau.
Para ver no horário de 2ª feira a 6ª feira, das 10h30 às 12h30 e das 14h30 às 19h30.
Aqui faço constar um evento que está a decorrer em Abrantes, relacionado com a Guiné-Bissau. Pela minha parte, já que passo parte do tempo por aqueles lados, lá irei fazer uma visita. Procurarei colher algo para vos transmitir.
Um abraço.
Hugo Moura Ferreira
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“Guiné-Bissau – Imagens e Vozes”: exposição na Biblioteca Municipal António Botto
Estará patente na Biblioteca Municipal António Botto, de 3 de Fevereiro a 10 de Março, uma exposição de fotografia, promovida pela Fundação Evangelização e Culturas, intitulada Guiné-Bissau: Imagens e Vozes.
A mostra, destinada ao público em geral, é composta por 20 painéis fotográficos, num total de 45 fotografias a retratar os costumes, tradições e paisagens guineenses. As fotografias são da autoria de:
(i) José Lopes (gestor de empresas e amante de fotografia);
(ii) Sara Ideias (técnica de reinserção de toxicodependentes e voluntária na Guiné-Bissau);
(iii) Catarina Lopes (técnica de cooperação e ex-professora);
(iv) e Filipe Barros (membro da ONGD guineense, Estrutura de Apoio à Produção Popular – EAPP, nascido e residente em Catió).
Partilhando o gosto pela fotografia, cada um procurou registar momentos daquele país.
Esta iniciativa é acompanhada de actividades paralelas, tal como a conferência “Guiné-Bissau e Cabo Verde, que relação? Educação na Guiné-Bissau”, a realizar no dia 23 de Fevereiro, às 19h00, com a presença de Rita Boavida Costa.
(...) A mostra servirá, também, de mote para a recolha de material destinado às escolas daquele país. Assim, o público que visita a exposição, pode fazer-se acompanhar de obras de referência (dicionários e enciclopédias), literatura infanto-juvenil ou manuais escolares, para ajudar na construção de um baú pedagógico para uma escola na Guiné-Bissau.
Para ver no horário de 2ª feira a 6ª feira, das 10h30 às 12h30 e das 14h30 às 19h30.
Guiné 63/74 - P562: Cartas da metade do céu e da metade do inferno (Luís Graça)
Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1969 > Vista aérea da cidade, junto ao rio Geba.
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)
Amigos e camaradas de tertúlia:
Depois de resolvidos uns pequenos problemas técnicos na minha enxada de trabalho, tenho a alegria (e a honra) de comunicar, em meu nome e do Humberto Reis, que passam, a partir de agora, a estar disponíveis mais umas tantas cartas da nossa querida Guiné… Entenda-se: cartas dos ex-serviços cartográficos do exército, que datam da época em que eramos meninos & moços e em que Portugal ia do Minho a Timor...
A alma deste sonho (maluco, como todos os sonhos) é o Humberto que quer ver a Guiné - leia-se a "província da Guiné" - toda digitalizada: os rios, as lalas, as bolanhas, as savanas, os mangais, os palmeirais, as pontas (ou hortas), as tabancas, as picadas, as florestas, os buracos em vivemos, gozámos, f..., amámos, morremos (alguns do corpo e outros da alma…), cagámos, cagámo-nos de medo, apanhámos bebedeiras de caixão à cova, sofremos, fomos camaradas, fomos heróis e cobardes, homens e gigantes, gritámos abaixo o RMD, contestámos a guerra, lutámos pela pátria, apanhámos paludismo e esquentamentos, passámos fome e sede, mijámos, bebemos o próprio mijo, fomos emboscados, fomos presas e predadores… (As nossas camaradas São, Paula, Zélia e as nossas demais leitoras… que me desculpem a linguagem desabrida, própria da caserna dos machos...).
Como já temos dito, a divulgação destas cartas (com mais de meio século!) não tem quaisquer propósitos comerciais ou outros, de índole lucrativa, mesmos que outros (agências de viagens, empresas organizadoras de viagens em grupo, safaris, desporto-aventura, clubes de caça e pesca, etc.) possam vir a ganhar dinheiro com o nosso trabalho (é o risco de sermos generosos).
Pretende-se apenas prestar um serviço útil a todos os ex-combatentes da guerra da Guiné (1963/74), independentemente do lado em que combateram, e nomeadamente aos membros da nossa tertúlia.
Julgamos que estes mapas (ou cartas, amplamente usadas pelas NT durante a guerra colonal, no planeamento e execução da nossa actividade operacional, cuidadosamente plastificadas) podem ser úteis também a todos os demais amigos do povo guineense e até mesmo aos próprios guineenses (que não conhecem o seu próprio país!...), se bem que as cartas estejam desactualizadas: em mais de meio século, muita água correu pelos rios Cacheu, Mansoa, Geba, Corubal, Grande de Buba, Tombali, Cumbijã, Cacine...
Além de serem um documento de interesse historiográfico, estas cartas têm um enorme valor sentimental para nós, são importantíssimas para a reconstituição da memória dos lugares e a reorganização da memória (individual e colectiva) dos ex-combatentes, portugueses e do PAIGC, que estiveram aquartelados e/ou envolvidos em operações naquele pedaço de terra, que era metade de céu e metade de inferno.
Fica também aqui a nossa homenagem aos nossos valorosos cartógrafos militares portugueses. A cartografia portuguesa deu cartas (no duplo sentido do termo) ao mundo, é bom é dizê-lo. Às vezes (muitas vezes, quase sempre) tenho orgulho de ser (por)tuga. Estas cartas da Guiné são pequenas obras-primas, resultantes do levantamento efectuado aos longo dos anos 50 pela missão geo-hidrográfica da Guiné – Comandante e oficiais do N.H. Mandovi e do N.H. Pedro Nunes. A fotografia aérea é da Aviação Naval. O trabalho de restituição foi feita pelos Serviços Cartográficos do Exército. As fotolitografias e a impressão foram feitas em várias casas, de Lisboa, Porto, V.N. Gaia. A edição é da antiga Junta das Missões Geográficas e Investigações do Ultramar, do antigo Ministério do Ultramar. Digitalização efectuada na Rank Xerox (2005 ou 2006). Eu passei cada um destes pesadíssimos ficheiros (10 ou mais MB) para outros mais leves (da ordem dos 2 MB), procurando manter a qualidade da imagem (que tem alta resolução)...
O mecenas é o maluco do Humberto Reis a quem eu presto mais uma vez a nossa (minha e da tertúlia) gratidão pela sua generosidade e a nossa homenagem ao seu carinho pela Guiné-Bissau, pelos guineenses e pelos ex-combatentes…
Há ainda outras cartas para pôr na nossa página mas ficaram cortadas na digitalização (por ex., Binta e Teixeira Pinto)… Vou ver isto com o Humberto.
Agora divirtam-se, regressando a regiões como:
Bigene, Bissau
Farim, Jumbembem, Pirada, Tite
Guiné 63/74 - P561: Corvacho, um homem com honra (João Tunes)
Post do João Tunes, membro da nossa tertúlia, publicado do seu blogue Água Lisa (5), de hoje, sob o título, altamente sugestivo, "Veneno e contra-veneno", aqui reproduzido com a devida vénia (como mandam as boas regras de respeito pela propriedade intelectual).
É também mais uma homenagem, singela, de um ex-combatente da Guiné, o João, para com outro ex-combantente, o outrora capitão Corvacho, da CART 1613 (Guileje, 1967/68), que agora trava uma outra luta, bem mais mais difícil, desigual e cruel, a luta contra a doença.
1. Ontem mesmo, aconteceu-me o que já não imaginava. Um “retornado” do meu bairro, daqueles que vieram de trambolhão de Moçambique por causa da colonização descolonizada, de que me sobravam no ouvido os falares altos da sua tertúlia com comparsas de azedumes e pragas que normalmente terminam na constatação partilhada de que "este país só de endireita com um ou dois salazares" ou "ainda diziam mal da PIDE...", ao contrário do habitual, estava sozinho lá num canto. E eu no meu.
Numa pausa em que descansei o livro que agora me ocupa, o sujeito resolve, pela primeira vez, meter-me fala: "- Já reparei que o senhor gosta de ler, tome lá, leia isto que é ligeiro" e passa-me uma meia dúzia de folhas dobradas que aceito por delicadeza e que desfolhadas e vistas em diagonal, eram afinal um miserável apanhado daquelas anedotas velhas e relhas com ranço racista sobre Samora e a Frelimo.
Aguentei uns minutos para não destrambelhar, aí o sacana do stress, aguenta, pensando que raio de fel este em que, passadas tantas décadas, ainda bolsa e se quer propagar e aliciar. E perguntando-me se, tendo feito a guerra por eles e para eles, aos colonos depois descolonizados, ainda lhes teria dívidas por saldar. Meti travões a fundo. Limitei-me a mostrar ao sujeito que vi de que se tratava mas que não lhe queria ler a sua cartilha, devolvendo-a com a máxima e possível delicadeza "- Obrigado pela atenção, mas dispenso a leitura, não sou reaça". E o "retornado moçambicano" ficou embasbacado, a olhar-me com ar de não perceber. Ou não querer. Ou nem sequer disso ser capaz.
2. É fácil denegrir. Como em tempos fizeram a Samora. Mas, de Samora, hoje não falo, porque me vem à lembrança as folhas de papel com vinagre do "retornado moçambicano", meu vizinho. Escolho falar de um "militar de Abril" (teve papel decisivo no levantamento na Região Norte e comandou as forças que ocuparam o Forte de Peniche), também muito maltratado, objecto de ódios mais que mil no turbilhão da revolução, sabe-se lá de sanados.
Trata-se de um Oficial de origem transmontana, trazendo no peito a Cruz de Guerra de 3ª Classe, o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Aviz e a Medalha de Prata de Comportamento Exemplar. Chama-se Eurico Corvacho [...]. Fiquei hoje a saber que está muito doente. E li, recompondo-me por continuar a haver homens com honra, dois depoimentos sobre ele que me reconciliam com o tempo e a memória, devolvendo a honra aos honrados - este e mais este.
João Tunes
É também mais uma homenagem, singela, de um ex-combatente da Guiné, o João, para com outro ex-combantente, o outrora capitão Corvacho, da CART 1613 (Guileje, 1967/68), que agora trava uma outra luta, bem mais mais difícil, desigual e cruel, a luta contra a doença.
1. Ontem mesmo, aconteceu-me o que já não imaginava. Um “retornado” do meu bairro, daqueles que vieram de trambolhão de Moçambique por causa da colonização descolonizada, de que me sobravam no ouvido os falares altos da sua tertúlia com comparsas de azedumes e pragas que normalmente terminam na constatação partilhada de que "este país só de endireita com um ou dois salazares" ou "ainda diziam mal da PIDE...", ao contrário do habitual, estava sozinho lá num canto. E eu no meu.
Numa pausa em que descansei o livro que agora me ocupa, o sujeito resolve, pela primeira vez, meter-me fala: "- Já reparei que o senhor gosta de ler, tome lá, leia isto que é ligeiro" e passa-me uma meia dúzia de folhas dobradas que aceito por delicadeza e que desfolhadas e vistas em diagonal, eram afinal um miserável apanhado daquelas anedotas velhas e relhas com ranço racista sobre Samora e a Frelimo.
Aguentei uns minutos para não destrambelhar, aí o sacana do stress, aguenta, pensando que raio de fel este em que, passadas tantas décadas, ainda bolsa e se quer propagar e aliciar. E perguntando-me se, tendo feito a guerra por eles e para eles, aos colonos depois descolonizados, ainda lhes teria dívidas por saldar. Meti travões a fundo. Limitei-me a mostrar ao sujeito que vi de que se tratava mas que não lhe queria ler a sua cartilha, devolvendo-a com a máxima e possível delicadeza "- Obrigado pela atenção, mas dispenso a leitura, não sou reaça". E o "retornado moçambicano" ficou embasbacado, a olhar-me com ar de não perceber. Ou não querer. Ou nem sequer disso ser capaz.
2. É fácil denegrir. Como em tempos fizeram a Samora. Mas, de Samora, hoje não falo, porque me vem à lembrança as folhas de papel com vinagre do "retornado moçambicano", meu vizinho. Escolho falar de um "militar de Abril" (teve papel decisivo no levantamento na Região Norte e comandou as forças que ocuparam o Forte de Peniche), também muito maltratado, objecto de ódios mais que mil no turbilhão da revolução, sabe-se lá de sanados.
Trata-se de um Oficial de origem transmontana, trazendo no peito a Cruz de Guerra de 3ª Classe, o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Aviz e a Medalha de Prata de Comportamento Exemplar. Chama-se Eurico Corvacho [...]. Fiquei hoje a saber que está muito doente. E li, recompondo-me por continuar a haver homens com honra, dois depoimentos sobre ele que me reconciliam com o tempo e a memória, devolvendo a honra aos honrados - este e mais este.
João Tunes
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006
Guiné 63/74 - P560: Corvacho, um capitão de Abril (A.Marques Lopes)
Caros camaradas:
O meu grande apreço e sensibilização pelas palavras do camarada José Neto para com o "seu capitão" Eurico Corvacho.
Ele foi o militar do MFA, então major, a quem Otelo Saraiva de Carvalho, no dia 16 de Abril de 1974, deu a missão de dirigir o Agrupamento Norte, "November" (CICA1, CICA2, CIOE, RI10, RI14, RAP2, RAP3...) para a revolução. E às 03H30 do dia 25 de Abril o QG da, então, Região Militar do Porto foi tomado. Foram também forças do Agrupamento Norte que cercaram o forte de Peniche.
O alferes Eurico Corvacho, um transmontano de Torre de Moncorvo, foi para Angola em Junho de 1961, onde esteve até Setembro de 1965, e aí sendo promovido a tenente e capitão. Foi para a Guiné em Novembro de 1966, até Setembro de 1968. De Setembro de 1970 a Outubro de 1972 esteve novamente em Angola. Daí regressado, foi colocado no QG da Região Militar do Porto como comandante da CCS e do Esquadrão de Polícia Militar, onde foi o primeiro a dinamizar uma nova classe de defesa pessoal, o soshinkai, de cuja associação chegou a ser presidente.
Em Janeiro de 1974 foi graduado no posto de Major e, após o 25 de Abril, foi nomeado Chefe do Estado-Maior da Região Militar do Porto, tendo sido graduado em coronel em Dezembro de 1974. Assumiu o Comando Interino dessa Região Militar em Abril de 1975, altura em que foi graduado em brigadeiro. Foi desgraduado destas funções em Setembro de 1975, durante as convulsões preparatórias do 25 de Novembro. Passou à reserva a 24 de Janeiro de 1981 e à reforma em Janeiro de 1992.
É condecorado com a Cruz de Guerra de 3ª Classe, com o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Aviz e com a Medalha de Prata de Comportamento Exemplar.
Dou estes dados para complementar a "fotografia" tão fielmente tirada pelo José Neto. E ele sempre mostrou aquilo que este nosso camarada viu nele. Eurico Corvacho foi sempre um homem coerente, frontal nas suas opiniões, com um humanismo e uma honestidade a toda a prova e um combatente empenhado pelos ideais do 25 de Abril. Por isso, é verdade, foi um homem controverso para todos os que não apreciavam a sua coerência e honestidade.
Acrescento a minha simpatia e admiração por esta figura, infelizmente, agora, com saúde débil.
Abraços
A. Marques Lopes
Comentário de L.G.:
O meu obrigado (meu, mas também nosso, da nossa tertúlia), ao Zé Neto e ao A. Marques Lopes, pelo depoimento sobre uma extraordinário e discreto camarada da Guiné que honrou as melhores tradições das forças armadas portugueses e foi um exemplo de verticalidade moral, competência profissional e honestidade intelectual. Se ele nos puder ler (ou se alguém puder transmitir-lhe os nossos desejos), aqui vão as nossas melhores saudações e votos de coragem para enfrentrar mais esta dura batalha contra a doença... É bom que ele saiba que há camaradas que com ele privaram e que muito o admiram e estimam.
Guiné 63/74 - P559: O meu capitão, o capitão Corvacho da CART 1613 (1966/68) (Zé Neto)
Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Regresso ao quartel de uma operação, com o Cap Corvalho à frente, seguido pelo Costa da Bazuca. © José Neto (2005)
Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho
Nota prévia: O texto que segue é, apenas e só, destinado à difusão no Blogue-fora-nada. O autor.
Creio que é esta a primeira vez que alguém traz ao blogue uma figura concreta dum comandante da campanha da Guiné. Não se trata dum vulgar panegírico, que seria natural nas palavras do seu primeiro-sargento, mas sim duma homenagem devida ao Homem que transformou e comandou a CART 1613/BART 1896, desde 25 de Dezembro de 1966 até duas semanas depois de 9 de Setembro de 1968.
Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.
Na nossa primeira noite de Natal, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João, um soldado nosso matou, a tiros de G3, o comandante da companhia.
No dia 25 de Dezembro vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia.
Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM e dum sistema de detecção de velocidade discutível.
O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BEng [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária.
Estas conclusões não foram do agrado do comandante. Atirou o processo para as mãos do Capitão e ordenou-lhe que reformulasse os autos porque me queria punir.
O Corvacho voltou a pôr o processo em cima da secretária do comandante e disse-lhe que a única solução era ele nomear um oficial (teria de ser o 2º comandante) para lhe instaurar, a ele Capitão, outro processo, este por desobediência, porque se negava, terminantemente, a alterar uma vírgula que fosse no que ali estava escrito.
Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Retrato de família...
© José Neto (2005)
Este gesto valeu-lhe a inscrição na lista dos coirões mal-amados do comandante, onde já figuravam, desde fins de Maio, a 2ª Companmhia de Instrução do RAP 2 (mais tarde CART 1613) no seu todo, o seu falecido comandante e este vosso modesto escriba.
O primeiro acto de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:
- Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.
Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.
Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o sector da alimentação com os desvarios que o Furriel vaguemestre tinha apontado na reunião.
Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no sector administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.
Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Um secretaria improvisada no mato... © José Neto (2005)
Em princípios de Janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do comando-chefe, era outra.
Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.
Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a “minha tropa” foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:
- O nosso comandante / é o capitão Corvacho.
Com a voz embargada pela comoção o Capitão Corvacho disse-lhes:
- Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.
Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3.
Seguiu-se um período de cerca de quatro meses de “vai e volta”. A companhia, aquartelada em Brá, era mandada para os mais diferentes pontos do território, andava por lá dez, quinze dias, e voltava estoirada, mas com um sentimento de dever cumprido cuja expressão máxima era o uso, em qualquer dos uniformes, do Lenço Verde que nos tinha calhado em sorte ainda em Viana do Castelo (todas as companhias do batalhão tinham o seu, de cores diferentes).
Foi numa dessas operações, na área de Pelundo/Jolmete, zona de responsabilidade dum Batalhão de Cavalaria sediado em Teixeira Pinto, que a CART 1613 mais se notabilizou, tendo o comandante do BCAV atribuído ao Cap Corvacho um extenso louvor que deu origem à condecoração com a Medalha de Cruz de Guerra de 2ª Classe.
Ironicamente, saliento que o "meu Capitão” tinha a postura característica do anti-herói que o cinema nos impinge e afinal a Pátria consagrou-o como Herói.
E para adensar a narrativa acrescento que o Cap Corvacho estava, nessa altura, em litígio com as chefias militares, porque no dia em que completou oito anos de serviço como oficial, requereu, ao abrigo do EOE (Estatuto do Oficial do Exército), a sua passagem ao escalão de Complemento (milicianos) desligando-se assim da actividade militar.
Com “torneados e floreados” foi-lhe indeferida a pretensão. Só eu e poucos graduados tínhamos conhecimento desta faceta.
Este revés provocou-lhe uma imensa raiva interior, mas em nada buliu na sua condição de militar e o pessoal continuou a seguir o seu capitão até às profundezas do inferno se tal fosse necessário e a cantar, quase como hino, “Eles comem tudo/Eles comem tudo/Eles comem tudo/E não deixam nada - a canção Os Vampiros do Zeca Afonso, proibida no Chiado e arredores, mas difundida em alto som em Guilege, onde “morámos e combatemos” cerca de um ano.
Podia terminar aqui a minha narrativa.
Porém, falta esclarecer o motivo porque, no princípio, eu escrevo os limites temporais do seu comando entre 25 de Dezembro de 1966 e 9 de Setembro de 1968 e mais duas semanas.
O dia 9 de Setembro de 1968 foi o do embarque de regresso da CART 1613. Nessa altura nós ainda andávamos às voltas com a liquidação das três cargas de materiais à nossa responsabilidade. Uma deixada em Colibuia para entregar a quem aparecesse; outra entregue aos nossos substitutos de Guilege, cheia de “falta isto, falta aquilo”; e a última a de Buba e destacamentos de Nhala e Chamarra. Até das Mauser entregues à população em auto defesa éramos responsáveis sem nunca as termos visto.
Perante a situação de eu ir ficar sozinho com 124 (cento e vinte e quatro) autos de ruína, extravio, etc. em curso, e alguns a elaborar, pois o reles 1º sargento das cargas, na Bolola, tinha o prazer sádico de ir descobrir mais uma ficha que não estava a zero e chapar-ma na cara, em face disto, dizia, o Capitão Corvacho resolver adoecer e faltar ao embarque.
Usando a sua influência junto dos seus conhecidos (por sorte o chefe do Serviço de Material tinha sido seu condiscípulo na Academia Militar) em dez ou onze dias coleccionamos os carimbos, vistos e despachos para, posteriormente, ficar tudo a zero, com algum ressabiamento do “reles da Bolola”.
Duas semanas depois o Niassa voltou e levou o “meu Capitão”.
Eu fiquei até meados de Outubro, dependente do fecho de contas do CA (Conselho Administrativo) do BART 1896 nas quais a minha (conta da CART 1613) estava incluída.
Este, embora descrito a traços largos e descoloridos, foi o Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho, ainda hoje o meu Capitão. O seu envolvimento no 25 de Abril de 1974 e período subsequente (1), considerado, por muitos, algo controverso, para mim foi absolutamente coerente, não obstante o meu modo de ver possa não coincidir com o meu modo de ser.
Nos dias que correm o meu Capitão emprega a sua enorme coragem na luta contra uma doença grave.
No passado dia 4 de Junho de 2005, amparado pelo nosso grande amigo Dr. Joaquim de Oliveira Martins, o ex-Alferes Médico do Batalhão que preferia estar connosco em Guilege em vez da ainda calma Buba, não deixou de ir almoçar a Braga com os seus homens. Vi muitos ex-soldados a disfarçar os soluços ao verem a dificuldade de locomoção do Homem que, nos seus imaginários, era o primeiro a avançar lá longe nas matas da Guiné.
José Afonso da Silva Neto
____________
Nota de L.G.:
(1) Foi brigadeiro graduado em 1975, tendo estado à frente da região Militar do Norte.
Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho
Nota prévia: O texto que segue é, apenas e só, destinado à difusão no Blogue-fora-nada. O autor.
Creio que é esta a primeira vez que alguém traz ao blogue uma figura concreta dum comandante da campanha da Guiné. Não se trata dum vulgar panegírico, que seria natural nas palavras do seu primeiro-sargento, mas sim duma homenagem devida ao Homem que transformou e comandou a CART 1613/BART 1896, desde 25 de Dezembro de 1966 até duas semanas depois de 9 de Setembro de 1968.
Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.
Na nossa primeira noite de Natal, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João, um soldado nosso matou, a tiros de G3, o comandante da companhia.
No dia 25 de Dezembro vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia.
Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM e dum sistema de detecção de velocidade discutível.
O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BEng [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária.
Estas conclusões não foram do agrado do comandante. Atirou o processo para as mãos do Capitão e ordenou-lhe que reformulasse os autos porque me queria punir.
O Corvacho voltou a pôr o processo em cima da secretária do comandante e disse-lhe que a única solução era ele nomear um oficial (teria de ser o 2º comandante) para lhe instaurar, a ele Capitão, outro processo, este por desobediência, porque se negava, terminantemente, a alterar uma vírgula que fosse no que ali estava escrito.
Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Retrato de família...
© José Neto (2005)
Este gesto valeu-lhe a inscrição na lista dos coirões mal-amados do comandante, onde já figuravam, desde fins de Maio, a 2ª Companmhia de Instrução do RAP 2 (mais tarde CART 1613) no seu todo, o seu falecido comandante e este vosso modesto escriba.
O primeiro acto de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:
- Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.
Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.
Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o sector da alimentação com os desvarios que o Furriel vaguemestre tinha apontado na reunião.
Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no sector administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.
Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Um secretaria improvisada no mato... © José Neto (2005)
Em princípios de Janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do comando-chefe, era outra.
Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.
Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a “minha tropa” foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:
- O nosso comandante / é o capitão Corvacho.
Com a voz embargada pela comoção o Capitão Corvacho disse-lhes:
- Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.
Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3.
Seguiu-se um período de cerca de quatro meses de “vai e volta”. A companhia, aquartelada em Brá, era mandada para os mais diferentes pontos do território, andava por lá dez, quinze dias, e voltava estoirada, mas com um sentimento de dever cumprido cuja expressão máxima era o uso, em qualquer dos uniformes, do Lenço Verde que nos tinha calhado em sorte ainda em Viana do Castelo (todas as companhias do batalhão tinham o seu, de cores diferentes).
Foi numa dessas operações, na área de Pelundo/Jolmete, zona de responsabilidade dum Batalhão de Cavalaria sediado em Teixeira Pinto, que a CART 1613 mais se notabilizou, tendo o comandante do BCAV atribuído ao Cap Corvacho um extenso louvor que deu origem à condecoração com a Medalha de Cruz de Guerra de 2ª Classe.
Ironicamente, saliento que o "meu Capitão” tinha a postura característica do anti-herói que o cinema nos impinge e afinal a Pátria consagrou-o como Herói.
E para adensar a narrativa acrescento que o Cap Corvacho estava, nessa altura, em litígio com as chefias militares, porque no dia em que completou oito anos de serviço como oficial, requereu, ao abrigo do EOE (Estatuto do Oficial do Exército), a sua passagem ao escalão de Complemento (milicianos) desligando-se assim da actividade militar.
Com “torneados e floreados” foi-lhe indeferida a pretensão. Só eu e poucos graduados tínhamos conhecimento desta faceta.
Este revés provocou-lhe uma imensa raiva interior, mas em nada buliu na sua condição de militar e o pessoal continuou a seguir o seu capitão até às profundezas do inferno se tal fosse necessário e a cantar, quase como hino, “Eles comem tudo/Eles comem tudo/Eles comem tudo/E não deixam nada - a canção Os Vampiros do Zeca Afonso, proibida no Chiado e arredores, mas difundida em alto som em Guilege, onde “morámos e combatemos” cerca de um ano.
Podia terminar aqui a minha narrativa.
Porém, falta esclarecer o motivo porque, no princípio, eu escrevo os limites temporais do seu comando entre 25 de Dezembro de 1966 e 9 de Setembro de 1968 e mais duas semanas.
O dia 9 de Setembro de 1968 foi o do embarque de regresso da CART 1613. Nessa altura nós ainda andávamos às voltas com a liquidação das três cargas de materiais à nossa responsabilidade. Uma deixada em Colibuia para entregar a quem aparecesse; outra entregue aos nossos substitutos de Guilege, cheia de “falta isto, falta aquilo”; e a última a de Buba e destacamentos de Nhala e Chamarra. Até das Mauser entregues à população em auto defesa éramos responsáveis sem nunca as termos visto.
Perante a situação de eu ir ficar sozinho com 124 (cento e vinte e quatro) autos de ruína, extravio, etc. em curso, e alguns a elaborar, pois o reles 1º sargento das cargas, na Bolola, tinha o prazer sádico de ir descobrir mais uma ficha que não estava a zero e chapar-ma na cara, em face disto, dizia, o Capitão Corvacho resolver adoecer e faltar ao embarque.
Usando a sua influência junto dos seus conhecidos (por sorte o chefe do Serviço de Material tinha sido seu condiscípulo na Academia Militar) em dez ou onze dias coleccionamos os carimbos, vistos e despachos para, posteriormente, ficar tudo a zero, com algum ressabiamento do “reles da Bolola”.
Duas semanas depois o Niassa voltou e levou o “meu Capitão”.
Eu fiquei até meados de Outubro, dependente do fecho de contas do CA (Conselho Administrativo) do BART 1896 nas quais a minha (conta da CART 1613) estava incluída.
Este, embora descrito a traços largos e descoloridos, foi o Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho, ainda hoje o meu Capitão. O seu envolvimento no 25 de Abril de 1974 e período subsequente (1), considerado, por muitos, algo controverso, para mim foi absolutamente coerente, não obstante o meu modo de ver possa não coincidir com o meu modo de ser.
Nos dias que correm o meu Capitão emprega a sua enorme coragem na luta contra uma doença grave.
No passado dia 4 de Junho de 2005, amparado pelo nosso grande amigo Dr. Joaquim de Oliveira Martins, o ex-Alferes Médico do Batalhão que preferia estar connosco em Guilege em vez da ainda calma Buba, não deixou de ir almoçar a Braga com os seus homens. Vi muitos ex-soldados a disfarçar os soluços ao verem a dificuldade de locomoção do Homem que, nos seus imaginários, era o primeiro a avançar lá longe nas matas da Guiné.
José Afonso da Silva Neto
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Nota de L.G.:
(1) Foi brigadeiro graduado em 1975, tendo estado à frente da região Militar do Norte.
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006
Guiné 63/74 - P558: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte
Guiné > Canjadude > 1974 > Posto de controlo do PAIGC, vendo-se um grupo de guerrilheiros aramados de kalash e de RPG-7.
Fonte: João Carvalho / Wikipédia > Guerra do Ultramar (2006) . O João Carvalho, ex-furriel miliciano enfermeiro da CCAÇ 5 (1973/74), é hoje farmacêutico e membro da nossa tertúlia.
Inicimos hoje a publicação de um importante texto, inédito, do historiador guineense, Leopoldo Amado, doutorando em história contempânea pela Universidade Clássica de Lisboa e membro da nossa tertúlia, sobre o significado dos acontecimentos de 3 de Agosto de 1959, na perspectiva da luta, mais recente, de libertação nacional, liderada pelo PAIGC, e da tradição, mais antiga, de resistência dos guinéus à colonização europeia (incluindo a portuguesa).
Devido à sua extensão, o texto teve de ser repartido em várias partes. Apesar de assoberbado com os preparativos para a defesa da sua tese de doutoramento, o nosso amigo Leopoldo quis ter connosco uma especial atenção, o que muito nos honra.
Não temos dúvida, que este seu paper, alicerçado em minuciosa investigação empírica, baseada em documentação de arquivo (incluindo os ficheiros da PIDE/DGS) e em entrevistas a actores-chaves, vem fazer luz sobre uma parte da nossa história comum recente assim muito mal conhecida, contada, analisada e explicada. Obrigado, Leopoldo! (LG).
_______________
Caro Mário Dias,
Caro Luís Graça,
Restantes tertulianos,
Amigos e camaradas,
Como prometi, segue em anexo o meu comentário sobre o testemunho presencial de Mário Dias, à propósito de Pindjiguiti. Estou aberto a qualquer reparo, chamada de atenção, troca de ideias e experiências, caso houverem.
Seguem também, igualmente em anexo, duas ou três fotos (bom, mais imagens que fotos) que se reportam ao Pindjiguiti. Infelizmente, todos em ficheiros Word, mas o Luís Graça (ou alguém da Tertúlia) certamente saberá os converter em ficheiros normais de imagem, se se entender publicar o meu texto, apesar do seu desmedido tamanho. Uma sugestão: talvez se deva publica-lo no Blogue, mas em formato PDF, devido aos itálicos, palavras entre comas/aspas e sobretudo devido as notas de rodapé.
Peço entetanto ao Luís que me faça o favor enviar o texto de volta, depois de composto e introduzido as imagens que não consigo converter em ficheiros normais de imagem, a fim de que o possa publicar nos meus blogues:
Lamparam I
Lamparam II
Um abraço e boa semana de trabalho a todos
Leopoldo Amado
Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau
(Leopoldo Amado) - I Parte
O testemunho presencial de Mário Dias é sem dúvida uma peça imprescindível para um melhor enquadramento da historiografia da guerra colonial “versus” guerra de libertação, de resto, algo que enquadra perfeitamente no significativo esforço que a Tertúlia tem vindo a desenvolver de forma empenhada, entre outras plausíveis razões, porque todos estão profundamente conscientes – penso eu – de que os povos sobrevivem sempre às turbulências próprias de uma guerra, qualquer que ela seja, donde a importância do estabelecimento da necessária ponte de ligação com as novas gerações, através da memória histórica.
Porém, apesar de muito limitada no tempo (11 anos) e no espaço (cerca de pouco mais de 30.000 Km2), as malhas históricas em que se processou e se desenvolveu a guerra colonial e/ou guerra de libertação, conforme o lado dos contendores onde nos posicionamos, a mesma revela-se de uma profunda complexidade, tanto pelo potencial de estandardização factual que a sua evolução comporta, como pelas intrincadas conexões que os acontecimentos ou episódios inerentes apresentam, aconselhando este estado actual dos conhecimentos a espécie de humilde resignação metodológica ante a evidência, de resto compreensível, das eventuais ou prováveis obliterações decorrentes do eventual défice de objectividade ou não com que a temática é aqui e acolá aflorada, contanto nos convençamos de que tanto as abordagens que procurem explanar uma visão de conjunto (aparentemente, a mais cómoda) como as parcelares (aparentemente, a mais trabalhosa) afiguram-se por um lado autonomamente importantes e, por outro, altamente complementares aos esforços tendentes a uma mais cabal e bem sucedida reconstituição histórica.
Assim, o justamente ou o impropriamente denominado Massacre de Pindjiguiti (abstemo-nos metodicamente, pelo menos por agora, a tecer juízos de valor), apresenta-nos como bom exemplo para se ilustrar a complexidade referida, na medida em que, não obstante inéditos e importantes, os factos relatados como fazendo parte da sua decorrência apresenta-se-nos também, à jusante e montante da ocorrência, como factores limitativos à uma abordagem com horizontes mais abrangentes.
Guiné-Bissau > Luís Cabral, o primeiro presidente da República da Guiné-Bissau (1974-1980). Fonte: desconhecida.
Efectivamente, à jusante de todo o processo que o antecedeu, por um lado, Pindjiguiti não foi senão um marco, uma referência e, muito provavelmente, o cumulativo e o auge de um sentimento que se expressou como se expressou – violentamente é certo –, pese embora a fuzilaria e o derramamento de sangue que lamentavelmente resultou em mortes, mas em cujos acontecimentos, tanto à jusante como a montante, apresentam suficientes elementos que nos permitem, tanto quanto possível, conferir uma interpretação histórica a fenomenologia que, por comodidade, designaremos Pindjiguiti. Eis o percurso que iremos tentar delinear para doravante para situarmos a contextualização histórica de Pindjiguiti.
Convenham-nos então que Pindjiguiti, isto é, o fenómeno considerado enquanto tal, é deveras tributário de inúmeros acontecimentos que o antecederam, desde os mais longínquos aos mais próximos, uns e outros dependendo da longevidade, intensidade e/ou projecção que tiveram no imaginário colectivo guineense.
Assim, independentemente das influências exteriores e dos ulteriores desenvolvimentos no plano internacional que directa ou indirectamente desembocaram no boom das independências africanas em 1960, o povo guineense sempre resistiu à colonização. Atestam-no, entre outros aspectos, a denodada resistência oferecida a ocupação colonial portuguesa que, iniciada nos finais do século XIX, prolongaram-se praticamente até a ao início da segunda metade do século XX, mediando assim pouquíssimo espaço de tempo o final do período da resistência à ocupação e o da emergência do embrionário nacionalismo guineense que, coincidente e curiosamente, surge concomitantemente no preciso momento em que o poder colonial também tinha acabado de criar as condições para a implantação da administração e o seu domínio sobre o território.
É certo, outrossim, que acontecimentos tal como a segunda Grande Guerra e suas ressonâncias na Guiné, diminutas que sejam, contribuíram igualmente com a sua quota-parte para que o povo guineense começasse a questionar o seu papel e o seu lugar.
Aliás, Rafael Barbosa lembra-se (1) de, durante a segunda guerra mundial, os jovens em Bissau se terem se posicionado do lado dos Aliados contra a Alemanha de Hitler, seguindo com entusiasmo e acrescido interesse (sobretudo pela BBC e outras rádios internacionais) o evoluir dos acontecimentos no teatro das operações, tal a convicção da que tinham os jovens guineenses da adopção, por parte de Portugal, de uma espécie de neutralidade dúbia, apoiando subtilmente a Alemanha de Hitler, pelo que não se pode a partir destes aspectos aferir-se da crença ou da antevisão, por parte desses (ainda) imberbes nacionalistas, de que na II Grande Guerra jogava-se, de certo modo, o futuro dos povos das colónias africanas.
Estava-se na Guiné, isso sim, perante manifestações libertárias, mas algo difuso, tanto mais que junto aos grumetes e elementos da pequena burguesia local, independentemente do grau da sua justeza ou de qualquer outro juízo de valor que elas se possam fazer, pelo menos por parte de alguns desses africanos, bifurcavam-se também na vontade oculta de ascensão na sociedade e estruturas de poder coloniais.
Vivia-se, convenhamo-nos, naquilo a que hoje se convencionou de certa maneira denominar de protonacionalismo, mas de per si este facto não deixa de ser demonstrativo de que, na década de 40 do século XX, essas aspirações libertárias quase que apenas se manifestavam como contraponto da exploração imposta pelo desumano e repressivo aparelho colonial e só de forma subsidiária e residual como resultante de uma hipotética influência ou impulso importados do movimento das ideias e aspirações libertárias que já se fazia sentir no plano africano e até internacional, mormente através do movimento pan-africanista cujas ressonâncias – não obstante terem a chegado a Guiné em 1910 com a fundação da Liga Guineense –, não tiveram nem continuidade e nem expressão assinalável, tal a repressão que o temerário Teixeira Pinto (autrement conhecido pelo epíteto de “Pacificador”) engendrou contra os seus membros mais activos e que conduziu posteriormente a sua proibição em 1915.
Para lá do ambiente gerado pela longa e penosa guerra de ocupação colonial (“pacificação”) versus resistência à ocupação – que durou oficialmente até 1936 (apesar de que várias importantes revoltas foram aqui e acolá assinaladas até aproximadamente 1950), o relacionamento entre o aparelho colonial e as populações guineenses era, em geral, bastante hostil. Inclusivamente, em 1942, toda a estrada de Plubá foi aberta pelos prisioneiros que, na maior parte dos casos, eram presos porque não quiseram ou não puderam pagar a daxa ou o imposto de palhota.
Guiné > Amílcar Cabral e Nino Vieira, na época da guerrilha. Amílcar viria a ser assassinado em 1973. Nino, por sua vez, derrubará o sucessor de Amílcar, o seu meio-irmão Luís Cabral, através de um golpe de estado militar (1980). Fonte: desconhecida.
Durante todo o período que durou a II Guerra Mundial, no tempo do Governador Vaz Monteiro, havia em Bissau, Safim e Quinhamel algo que em muito imitava os campos de concentração na Alemanha do Hitler. O maior assassino era o administrador de Bissau, António Pereira Cardoso, que veio a ter aqui preso o Benjamim Correia. A partir daí, o filho da Guiné tomou consciência de que havia que lutar pela sua causa (2)".
No início, a pequena burguesia organiza-se num quadro africano, mas cujo fim não é ainda a independência nacional. Trata-se de mais um desejo confuso de encontrar o seu lugar, de emergir socialmente. Mas a dominação portuguesa não é ainda contestada, a aspiração a assimilação mantém-se, nesta etapa, largamente espalhada. Isto apesar de alguns elementos da elite guineense são já serem sensíveis a uma “reafricanização”.
A prova eloquente do acima dito é o facto de a maior parte dos "notáveis" guineenses da sociedade colonial pertencerem ao Conselho Legislativo do governo da Guiné, tais como Mário Lima Whanon (comerciante), Dr. Augusto Silva, Joaquim Viegas Graça do Espírito Santo (aposentado e comerciante residente em Bafatá), Dr. Armando Pereira (advogado), Benjamim Correia (comerciante), Carlos Domingos Gomes (comerciante) e Dr. Severino de Pina (advogado) (3).
A estes juntaram-se outros guineenses pertencentes à pequena burguesia, sendo de reparar a participação de cabo-verdianos e de portugueses que na altura eram claramente anti-situacionistas. Este grupo, que não escondia igualmente as suas pretensões de ascensão na sociedade colonial, dava também, paradoxalmente, o seu inequívoco apoio ao emergente nacionalismo guineense.
Portugal > Lisboa > s/d > Cartaz de propaganda de apoio à luta dos povos das colónias africanas portuguesas. Cartaz da UAC - Unidade Anti-Colonial.
Porém, apesar de muito limitada no tempo (11 anos) e no espaço (cerca de pouco mais de 30.000 Km2), as malhas históricas em que se processou e se desenvolveu a guerra colonial e/ou guerra de libertação, conforme o lado dos contendores onde nos posicionamos, a mesma revela-se de uma profunda complexidade, tanto pelo potencial de estandardização factual que a sua evolução comporta, como pelas intrincadas conexões que os acontecimentos ou episódios inerentes apresentam, aconselhando este estado actual dos conhecimentos a espécie de humilde resignação metodológica ante a evidência, de resto compreensível, das eventuais ou prováveis obliterações decorrentes do eventual défice de objectividade ou não com que a temática é aqui e acolá aflorada, contanto nos convençamos de que tanto as abordagens que procurem explanar uma visão de conjunto (aparentemente, a mais cómoda) como as parcelares (aparentemente, a mais trabalhosa) afiguram-se por um lado autonomamente importantes e, por outro, altamente complementares aos esforços tendentes a uma mais cabal e bem sucedida reconstituição histórica.
Assim, o justamente ou o impropriamente denominado Massacre de Pindjiguiti (abstemo-nos metodicamente, pelo menos por agora, a tecer juízos de valor), apresenta-nos como bom exemplo para se ilustrar a complexidade referida, na medida em que, não obstante inéditos e importantes, os factos relatados como fazendo parte da sua decorrência apresenta-se-nos também, à jusante e montante da ocorrência, como factores limitativos à uma abordagem com horizontes mais abrangentes.
Guiné-Bissau > Luís Cabral, o primeiro presidente da República da Guiné-Bissau (1974-1980). Fonte: desconhecida.
Efectivamente, à jusante de todo o processo que o antecedeu, por um lado, Pindjiguiti não foi senão um marco, uma referência e, muito provavelmente, o cumulativo e o auge de um sentimento que se expressou como se expressou – violentamente é certo –, pese embora a fuzilaria e o derramamento de sangue que lamentavelmente resultou em mortes, mas em cujos acontecimentos, tanto à jusante como a montante, apresentam suficientes elementos que nos permitem, tanto quanto possível, conferir uma interpretação histórica a fenomenologia que, por comodidade, designaremos Pindjiguiti. Eis o percurso que iremos tentar delinear para doravante para situarmos a contextualização histórica de Pindjiguiti.
Convenham-nos então que Pindjiguiti, isto é, o fenómeno considerado enquanto tal, é deveras tributário de inúmeros acontecimentos que o antecederam, desde os mais longínquos aos mais próximos, uns e outros dependendo da longevidade, intensidade e/ou projecção que tiveram no imaginário colectivo guineense.
Assim, independentemente das influências exteriores e dos ulteriores desenvolvimentos no plano internacional que directa ou indirectamente desembocaram no boom das independências africanas em 1960, o povo guineense sempre resistiu à colonização. Atestam-no, entre outros aspectos, a denodada resistência oferecida a ocupação colonial portuguesa que, iniciada nos finais do século XIX, prolongaram-se praticamente até a ao início da segunda metade do século XX, mediando assim pouquíssimo espaço de tempo o final do período da resistência à ocupação e o da emergência do embrionário nacionalismo guineense que, coincidente e curiosamente, surge concomitantemente no preciso momento em que o poder colonial também tinha acabado de criar as condições para a implantação da administração e o seu domínio sobre o território.
É certo, outrossim, que acontecimentos tal como a segunda Grande Guerra e suas ressonâncias na Guiné, diminutas que sejam, contribuíram igualmente com a sua quota-parte para que o povo guineense começasse a questionar o seu papel e o seu lugar.
Aliás, Rafael Barbosa lembra-se (1) de, durante a segunda guerra mundial, os jovens em Bissau se terem se posicionado do lado dos Aliados contra a Alemanha de Hitler, seguindo com entusiasmo e acrescido interesse (sobretudo pela BBC e outras rádios internacionais) o evoluir dos acontecimentos no teatro das operações, tal a convicção da que tinham os jovens guineenses da adopção, por parte de Portugal, de uma espécie de neutralidade dúbia, apoiando subtilmente a Alemanha de Hitler, pelo que não se pode a partir destes aspectos aferir-se da crença ou da antevisão, por parte desses (ainda) imberbes nacionalistas, de que na II Grande Guerra jogava-se, de certo modo, o futuro dos povos das colónias africanas.
Estava-se na Guiné, isso sim, perante manifestações libertárias, mas algo difuso, tanto mais que junto aos grumetes e elementos da pequena burguesia local, independentemente do grau da sua justeza ou de qualquer outro juízo de valor que elas se possam fazer, pelo menos por parte de alguns desses africanos, bifurcavam-se também na vontade oculta de ascensão na sociedade e estruturas de poder coloniais.
Vivia-se, convenhamo-nos, naquilo a que hoje se convencionou de certa maneira denominar de protonacionalismo, mas de per si este facto não deixa de ser demonstrativo de que, na década de 40 do século XX, essas aspirações libertárias quase que apenas se manifestavam como contraponto da exploração imposta pelo desumano e repressivo aparelho colonial e só de forma subsidiária e residual como resultante de uma hipotética influência ou impulso importados do movimento das ideias e aspirações libertárias que já se fazia sentir no plano africano e até internacional, mormente através do movimento pan-africanista cujas ressonâncias – não obstante terem a chegado a Guiné em 1910 com a fundação da Liga Guineense –, não tiveram nem continuidade e nem expressão assinalável, tal a repressão que o temerário Teixeira Pinto (autrement conhecido pelo epíteto de “Pacificador”) engendrou contra os seus membros mais activos e que conduziu posteriormente a sua proibição em 1915.
Para lá do ambiente gerado pela longa e penosa guerra de ocupação colonial (“pacificação”) versus resistência à ocupação – que durou oficialmente até 1936 (apesar de que várias importantes revoltas foram aqui e acolá assinaladas até aproximadamente 1950), o relacionamento entre o aparelho colonial e as populações guineenses era, em geral, bastante hostil. Inclusivamente, em 1942, toda a estrada de Plubá foi aberta pelos prisioneiros que, na maior parte dos casos, eram presos porque não quiseram ou não puderam pagar a daxa ou o imposto de palhota.
Guiné > Amílcar Cabral e Nino Vieira, na época da guerrilha. Amílcar viria a ser assassinado em 1973. Nino, por sua vez, derrubará o sucessor de Amílcar, o seu meio-irmão Luís Cabral, através de um golpe de estado militar (1980). Fonte: desconhecida.
Durante todo o período que durou a II Guerra Mundial, no tempo do Governador Vaz Monteiro, havia em Bissau, Safim e Quinhamel algo que em muito imitava os campos de concentração na Alemanha do Hitler. O maior assassino era o administrador de Bissau, António Pereira Cardoso, que veio a ter aqui preso o Benjamim Correia. A partir daí, o filho da Guiné tomou consciência de que havia que lutar pela sua causa (2)".
No início, a pequena burguesia organiza-se num quadro africano, mas cujo fim não é ainda a independência nacional. Trata-se de mais um desejo confuso de encontrar o seu lugar, de emergir socialmente. Mas a dominação portuguesa não é ainda contestada, a aspiração a assimilação mantém-se, nesta etapa, largamente espalhada. Isto apesar de alguns elementos da elite guineense são já serem sensíveis a uma “reafricanização”.
A prova eloquente do acima dito é o facto de a maior parte dos "notáveis" guineenses da sociedade colonial pertencerem ao Conselho Legislativo do governo da Guiné, tais como Mário Lima Whanon (comerciante), Dr. Augusto Silva, Joaquim Viegas Graça do Espírito Santo (aposentado e comerciante residente em Bafatá), Dr. Armando Pereira (advogado), Benjamim Correia (comerciante), Carlos Domingos Gomes (comerciante) e Dr. Severino de Pina (advogado) (3).
A estes juntaram-se outros guineenses pertencentes à pequena burguesia, sendo de reparar a participação de cabo-verdianos e de portugueses que na altura eram claramente anti-situacionistas. Este grupo, que não escondia igualmente as suas pretensões de ascensão na sociedade colonial, dava também, paradoxalmente, o seu inequívoco apoio ao emergente nacionalismo guineense.
Portugal > Lisboa > s/d > Cartaz de propaganda de apoio à luta dos povos das colónias africanas portuguesas. Cartaz da UAC - Unidade Anti-Colonial.
Imagem gentilmente cedida por Jorge Santos, membro da nossa tertúlia (2005).
Os notáveis desse grupo que se destacaram, tendo por isso merecido um registo das suas actividades pela PIDE, foram Eugênio Rosado Peralta (industrial de pesca), Manuel Spencer “Tuboca” (comerciante) e Fernando Lima ( comerciante). Estes membros da pequena burguesia foram acusados de fomentarem a rebeldia entre os guineenses considerados indígenas, chegando mesmo alguns deles mais tarde a aderir aos ideais de libertação, embora sem nela tomarem parte activa (4).
Com efeito, a maior parte dos povos da Ásia tornou-se independente após a II Guerra Mundial. Em Outubro de 1946, com o fim de realizar a união de todos os africanos, realizou-se lugar em Bamako (Mali) uma reunião em que se fixaram os princípios do Rassemblement Démocratique Africain (RDA), propondo-se a fusão de todos os agrupamentos e partidos democráticos de cada território num partido democrático unificado, passando o RDA a ser inicialmente dirigido por um Comité de Coordenação, apesar de que sempre se debateu ao longo dos anos com a unidade proclamada.
No decorrer deste período a acção das massas africanas, as organizações políticas e os seus dirigentes impuseram nos territórios vizinhos, sobretudo nas colónias francesas, um certo número de realizações no campo económico e social que eles próprios que eles próprios consideraram positivas, pelo que a ideia da unidade das organizações políticas africanas na luta pró-independência ganha novamente vulto entre essas mesmas massas e nas organizações não aderentes ao RDA.
As organizações que não aderiram ao RDA agrupam-se no MAS (Movimento Socialista Africano) e na Convenção Africana, esta animada por Leopoldo Sédar Senghor. Em 1957, foi criado o PAI, o qual lança a ideia da independência africana. Em Julho de 1958, verifica-se uma reunião em Paris dos principais dirigentes africanos, onde se reafirmou o principio da unidade com vista à independência. Em Maio-Junho de 1958 a França atravessou uma grande crise, retomando o destinos do país o General De Gaulle. Este desloca-se a Conakry e no decurso da sua visita declara que os povos da África sob dominação francesa podiam escolher entre responder “sim” e aceitar a sua Constituição que sob o nome da “Comunidade” substitua a chamada “União Francesa” ou responder “não” caso em que o território se tornaria independente.
A maior parte dos territórios, confiantes nas promessas feitas, votou “sim”. Só a Guiné por votação popular realizada pelo PDG respondeu “não” em 28 de Setembro de 1958 à Constituição do general De Gaulle e em 2 de Outubro a sua independência era proclamada.
Esse feito deveu-se sobretudo a acção do PDG (criado em Maio de 1947), sete meses depois do Congresso de Bamako, o qual resultou da fusão étnica das associações que na Guiné Conakry e especialmente à acção de Sékou Touré que dirigia o sindicato e era o Secretário Político do Partido.
A República da Guiné adoptou uma bandeira tricolor – vermelho, amarelo e verde em que o vermelho simboliza a determinação do povo em aceitar todos os sacrifícios até ao derramamento do sangue, o amarelo a cor do sol e das areias de África e o verde a cor da esperança e da vegetação africana, cores estas que se encontram nas bandeiras de quase todos os países do Oeste africano, diferindo apenas a disposição.
Em Março de 1952, Cabral subscreveu com outros uma exposição a Sua Excelência o Presidente da República, em que entre outras coisas, reclamavam a retirada de Portugal do Pacto do Atlântico.
Cabral desembarcou em Bissau a 20.9.52, no navio Ana Mafalda, tinha ele 34 anos. Chegou a Bissau a sua mulher a 2.11.52. Cabral foi contratado pelo Ministério do Ultramar como Adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné até 18.3.55, data em que regressou à Metrópole. Em 1952, Amílcar Cabral rumou para a Guiné colonial, após ter estado em Cabo Verde (1949), onde, segundo o próprio, fez "todas tentativas de acordar a opinião pública contra o colonialismo".
Nessa época, Portugal tinha o compromisso internacional de apresentar o Recenseamento Agrícola da Guiné e até então este trabalho não fora sequer iniciado. Depois de vários contactos de trabalho, particularmente nos momentos em que o Amílcar exercia interinamente as funções de chefe de serviço, o Governador decidiu confiar-lhe a execução daquela importante tarefa, na qual veio a ser secundado pela engenheira Maria Helena Rodrigues, sua esposa. "Em cada tabanca deixava uma palavra como ele a sabia dizer, embora o povo só viesse a interpretá-la devidamente quando lá chegasse a palavra de ordem do Partido para a luta (6)”.
O Recenseamento Agrícola acabou por permitiu a Cabral conhecer mais de perto as populações e os seus problemas, constituiu-se assim na antecâmara da mobilização urbana que se lhe seguiu.
Em 1952, Amílcar Cabral sugeriu a formação de um Clube de Futebol apenas reservado aos naturais da Guiné opinando que dentro do mesmo devia existir uma biblioteca para a elevação do nível cultural dos associados. Várias reuniões foram realizadas tendo também para a arrecadação de fundos sido efectuado um baile no bairro Chão de Papel.
Nessa altura, tentou, aparentemente sem sucesso, Amílcar Cabral quis disfarçar as actividades políticas com a criação de um clube desportivo e recreativo cujos subscritores da petição foram: o próprio Amílcar Cabral, Carlos António da Silva Júnior, João Vaz, Ricardo Teixeira, Pedro Mendes Pereira, Inácio Carvalho Alvarenga, Paulo Martins, Julião Júlio Correia, Martinho Gomes Ramos, Víctor Fernandes, Bernardo Máximo Vieira.
O aparente insucesso acabou todavia acabou por insuflar a ideia de associativismo. Segundo Luís Cabral, " (…) o projecto de associação começava a tomar corpo e a ter aceitação, enquanto o Amílcar provava não estar disposto a recuar diante das dificuldades. E a denúncia surgiu (…) (6)”.
A não admissão, neste clube, de europeus acabou por gerar dissidências deixando os propósitos do seu mentor bem à vista: lançar as bases duma organização de nativos irmanando-os na mesma fé e nos mesmos destinos. O clube não chegou a ser autorizado, mas o certo é que ficou entre os nativos a ideia duma união entre todos.
Com efeito, durante a sua permanência nesta cidade, diz uma notada PIDE, “o Eng.º Amílcar Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de actividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade de direitos dos nativos e, como método de difundir as suas ideias por meios legalizados, o Eng.º pretendeu e chegou a requerer juntamente com outros nativos, a fundação de uma agremiação desportiva e Recreativa de Bissau, não tendo o Governo autorizado (7)”.
A mesma nota dava ainda conta de que “(...) eram anti-situacionistas o João Vaz, ajudante de mecânico, de 33 anos, natural de S. Tomé, Carlos António da Silva Semedo Júnior, de 21 anos, estudante, a estudar em Lisboa; Pedro Mendes Pereira, enfermeiro de 1ª classe de 52 anos, Inácio Carvalho Alvarenga, 42 anos; Julião Júlio Correia, de 50 anos de idade, Martinho Gomes Ramos de 35 anos, Víctor Fernandes, de 30 anos Bernardo Máximo Vieira, de 33 anos, tendo esses mesmos indivíduos assinado uma petição no sentido da criação de um clube denominado Clube Desportivo e Recreativo de Bissau, destinado ao desenvolvimento de actividades nativistas, superiormente orientadas pelo engenheiro Amílcar Cabral.
As reuniões, presididas por Cabral para esse fim realizavam-se clandestinamente na casa de João da Silva Rosa (guarda livros da NOSOCO). Tomaram parte nessas reuniões o Isidoro Ramos, João Rosa, Víctor Robalo (agricultor em Bigimita), Martinho Ramos (empregado da Gouveia), José Maria Dayves, Elisée Turpin (empregado ao tempo da SCOA), Godofredo Vermão de Sousa (professor primário), Crates Nunes (carpinteiro). Para essas actividades, chegaram até de organizar um baile muito frequentado no Chão de papel, tendo Estevão da Silva (Alfaiate), na altura nomeado tesoureiro.
Os notáveis desse grupo que se destacaram, tendo por isso merecido um registo das suas actividades pela PIDE, foram Eugênio Rosado Peralta (industrial de pesca), Manuel Spencer “Tuboca” (comerciante) e Fernando Lima ( comerciante). Estes membros da pequena burguesia foram acusados de fomentarem a rebeldia entre os guineenses considerados indígenas, chegando mesmo alguns deles mais tarde a aderir aos ideais de libertação, embora sem nela tomarem parte activa (4).
Com efeito, a maior parte dos povos da Ásia tornou-se independente após a II Guerra Mundial. Em Outubro de 1946, com o fim de realizar a união de todos os africanos, realizou-se lugar em Bamako (Mali) uma reunião em que se fixaram os princípios do Rassemblement Démocratique Africain (RDA), propondo-se a fusão de todos os agrupamentos e partidos democráticos de cada território num partido democrático unificado, passando o RDA a ser inicialmente dirigido por um Comité de Coordenação, apesar de que sempre se debateu ao longo dos anos com a unidade proclamada.
No decorrer deste período a acção das massas africanas, as organizações políticas e os seus dirigentes impuseram nos territórios vizinhos, sobretudo nas colónias francesas, um certo número de realizações no campo económico e social que eles próprios que eles próprios consideraram positivas, pelo que a ideia da unidade das organizações políticas africanas na luta pró-independência ganha novamente vulto entre essas mesmas massas e nas organizações não aderentes ao RDA.
As organizações que não aderiram ao RDA agrupam-se no MAS (Movimento Socialista Africano) e na Convenção Africana, esta animada por Leopoldo Sédar Senghor. Em 1957, foi criado o PAI, o qual lança a ideia da independência africana. Em Julho de 1958, verifica-se uma reunião em Paris dos principais dirigentes africanos, onde se reafirmou o principio da unidade com vista à independência. Em Maio-Junho de 1958 a França atravessou uma grande crise, retomando o destinos do país o General De Gaulle. Este desloca-se a Conakry e no decurso da sua visita declara que os povos da África sob dominação francesa podiam escolher entre responder “sim” e aceitar a sua Constituição que sob o nome da “Comunidade” substitua a chamada “União Francesa” ou responder “não” caso em que o território se tornaria independente.
A maior parte dos territórios, confiantes nas promessas feitas, votou “sim”. Só a Guiné por votação popular realizada pelo PDG respondeu “não” em 28 de Setembro de 1958 à Constituição do general De Gaulle e em 2 de Outubro a sua independência era proclamada.
Esse feito deveu-se sobretudo a acção do PDG (criado em Maio de 1947), sete meses depois do Congresso de Bamako, o qual resultou da fusão étnica das associações que na Guiné Conakry e especialmente à acção de Sékou Touré que dirigia o sindicato e era o Secretário Político do Partido.
Fonte: Wikipedia (2006)
A República da Guiné adoptou uma bandeira tricolor – vermelho, amarelo e verde em que o vermelho simboliza a determinação do povo em aceitar todos os sacrifícios até ao derramamento do sangue, o amarelo a cor do sol e das areias de África e o verde a cor da esperança e da vegetação africana, cores estas que se encontram nas bandeiras de quase todos os países do Oeste africano, diferindo apenas a disposição.
Em Março de 1952, Cabral subscreveu com outros uma exposição a Sua Excelência o Presidente da República, em que entre outras coisas, reclamavam a retirada de Portugal do Pacto do Atlântico.
Cabral desembarcou em Bissau a 20.9.52, no navio Ana Mafalda, tinha ele 34 anos. Chegou a Bissau a sua mulher a 2.11.52. Cabral foi contratado pelo Ministério do Ultramar como Adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné até 18.3.55, data em que regressou à Metrópole. Em 1952, Amílcar Cabral rumou para a Guiné colonial, após ter estado em Cabo Verde (1949), onde, segundo o próprio, fez "todas tentativas de acordar a opinião pública contra o colonialismo".
Nessa época, Portugal tinha o compromisso internacional de apresentar o Recenseamento Agrícola da Guiné e até então este trabalho não fora sequer iniciado. Depois de vários contactos de trabalho, particularmente nos momentos em que o Amílcar exercia interinamente as funções de chefe de serviço, o Governador decidiu confiar-lhe a execução daquela importante tarefa, na qual veio a ser secundado pela engenheira Maria Helena Rodrigues, sua esposa. "Em cada tabanca deixava uma palavra como ele a sabia dizer, embora o povo só viesse a interpretá-la devidamente quando lá chegasse a palavra de ordem do Partido para a luta (6)”.
O Recenseamento Agrícola acabou por permitiu a Cabral conhecer mais de perto as populações e os seus problemas, constituiu-se assim na antecâmara da mobilização urbana que se lhe seguiu.
Em 1952, Amílcar Cabral sugeriu a formação de um Clube de Futebol apenas reservado aos naturais da Guiné opinando que dentro do mesmo devia existir uma biblioteca para a elevação do nível cultural dos associados. Várias reuniões foram realizadas tendo também para a arrecadação de fundos sido efectuado um baile no bairro Chão de Papel.
Nessa altura, tentou, aparentemente sem sucesso, Amílcar Cabral quis disfarçar as actividades políticas com a criação de um clube desportivo e recreativo cujos subscritores da petição foram: o próprio Amílcar Cabral, Carlos António da Silva Júnior, João Vaz, Ricardo Teixeira, Pedro Mendes Pereira, Inácio Carvalho Alvarenga, Paulo Martins, Julião Júlio Correia, Martinho Gomes Ramos, Víctor Fernandes, Bernardo Máximo Vieira.
O aparente insucesso acabou todavia acabou por insuflar a ideia de associativismo. Segundo Luís Cabral, " (…) o projecto de associação começava a tomar corpo e a ter aceitação, enquanto o Amílcar provava não estar disposto a recuar diante das dificuldades. E a denúncia surgiu (…) (6)”.
A não admissão, neste clube, de europeus acabou por gerar dissidências deixando os propósitos do seu mentor bem à vista: lançar as bases duma organização de nativos irmanando-os na mesma fé e nos mesmos destinos. O clube não chegou a ser autorizado, mas o certo é que ficou entre os nativos a ideia duma união entre todos.
Com efeito, durante a sua permanência nesta cidade, diz uma notada PIDE, “o Eng.º Amílcar Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de actividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade de direitos dos nativos e, como método de difundir as suas ideias por meios legalizados, o Eng.º pretendeu e chegou a requerer juntamente com outros nativos, a fundação de uma agremiação desportiva e Recreativa de Bissau, não tendo o Governo autorizado (7)”.
A mesma nota dava ainda conta de que “(...) eram anti-situacionistas o João Vaz, ajudante de mecânico, de 33 anos, natural de S. Tomé, Carlos António da Silva Semedo Júnior, de 21 anos, estudante, a estudar em Lisboa; Pedro Mendes Pereira, enfermeiro de 1ª classe de 52 anos, Inácio Carvalho Alvarenga, 42 anos; Julião Júlio Correia, de 50 anos de idade, Martinho Gomes Ramos de 35 anos, Víctor Fernandes, de 30 anos Bernardo Máximo Vieira, de 33 anos, tendo esses mesmos indivíduos assinado uma petição no sentido da criação de um clube denominado Clube Desportivo e Recreativo de Bissau, destinado ao desenvolvimento de actividades nativistas, superiormente orientadas pelo engenheiro Amílcar Cabral.
As reuniões, presididas por Cabral para esse fim realizavam-se clandestinamente na casa de João da Silva Rosa (guarda livros da NOSOCO). Tomaram parte nessas reuniões o Isidoro Ramos, João Rosa, Víctor Robalo (agricultor em Bigimita), Martinho Ramos (empregado da Gouveia), José Maria Dayves, Elisée Turpin (empregado ao tempo da SCOA), Godofredo Vermão de Sousa (professor primário), Crates Nunes (carpinteiro). Para essas actividades, chegaram até de organizar um baile muito frequentado no Chão de papel, tendo Estevão da Silva (Alfaiate), na altura nomeado tesoureiro.
Um cartoon histórico alusivo ao reconhecimento, por parte do Portugal democrático, da independência da Guiné Bissau, em 10 de Setembro de 1974.
Fonte: Gaiola Aberta. n.º 8 (1 de Outubro de 1974)
© José Vilhena (1974) (com a devida vénia). Imagem gentilmente cedida por Jorge Santos, membro da nossa tertúlia (2005).
Foi com estes fundos que se financiaram as cópias dos Estatutos que Cabral elaborou e que depois o levou a uma reunião para ser apreciado e na qual foram aprovados, secundando este acto a constituição de uma Comissão que os deveriam levar a aprovação do Governador, porquanto foram inicialmente entregues e esta entidade não o submeteu a despacho com a brevidade que os interessados então pretendiam. Que essa Comissão foi então constituída por João Rosa, Víctor Robalo e João Vaz (alfaiate) que igualmente não conseguiu aprovação do Governo, exactamente porque uma das clausulas dos Estatutos aludia ao facto de que nesta agremiação que não podiam tomar parte os europeus e caboverdianos, razão pela qual passou-se a dizer que Cabral estava feito com os grumetes.
Depois de 1954, alguns povos de África tornaram-se independente. No Sul da Guiné, mais concretamente em 1956, registaram-se no Sul da Guiné certas actividades dos nativos, nas áreas de Cacine e Bedanda a favor do chamado Rassemblement Democratique Africain, tendo-se mesmo formado o que apelidaram de “clubes de trabalho”, em quase todas as povoações vizinhas. Prenderam-se alguns responsáveis e deu-se a fuga de outros, pelo que estas acções foram desmanteladas.
Em 1955, José Ferreira de Lacerda (9), futuro patriarca e líder lendário do MLG, redigiu, a pedido de César Mário Fernandes e José Francisco Gomes (assinada por várias pessoas) uma “Representação” que foi entregue ao Presidente da República de Portugal aquando da visita deste a Província da Guiné, documento esse onde se condensava, segundo os seus subscritores, o essencial das aspirações da Guiné.
Paralelamente, nas eleições para membros do Conselho do Governo da Província da Guiné faziam parte dos elementos favoráveis aos candidatos da “oposição”, os seguintes guineenses: Benjamim Correia, Armando António Pereira (advogado de 54 anos e candidato a membro do Conselho do Governo da Província, proposto pelo grupo de Benjamim constituído pelo branco Luís Mata-Mouros Resende Costa, 36 anos de idade, natural de Bissau, que nesse processo encarregou-se de expedir circulares, em colaboração Gastão Seguy Júnior (9), 36 anos, oficial de diligências do Juízo de Direito da Comarca, natural de Bolama (10).
É igualmente digna de registo a existência, mais ou menos paralela, de outro grupo de nacionalistas que actuava sob a coordenação de Mário Lima Wanon e do qual faziam parte o Dr. Artur Augusto Silva (11), o Dr. Severino de Pina, Godofredo Vermão de Sousa, Víctor Robalo, Armando António Pereira, Manuel Spencer e Crates Nunes. Embora as acções desenvolvidas nesta fase da luta fossem poucas, devido à feroz repressão e apertada vigilância da PIDE, o certo é que contribuíram para a mobilização em Bissau, particularmente nas camadas ligadas à pequena burguesia local.
Leopoldo Amado
Fevereiro de 2005
(Continua)
_____
Notas do autor:
(1) Entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado em Bissau.
(2) Entrevista de Elisée Turpin a Leopoldo Amado.
(3) Cf. Proc. 4415 - CI (2), Arquivos da PIDE, Torre do Tombo, fls. 34
(4) Cf. Proc (Proc. 5466 - CI(2), , Arquivos da PIDE, Torre do Tombo, fls. 307
(5) Cabral, Luís, Crónica da Libertação, Edições "O Jornal", 1984, p.36
(6) Segundo Víctor Robalo (Entrevista concedida a Leopoldo Amado em Bissau) "(…)aquilo morreu mas, o Amílcar não parou. Depois, veio a ideia da criação da cooperativa, cujo nome já não me lembro. Era uma cooperativa cuja sede havia de ser na minha ponta. Foi a última tentativa para a criação de uma cooperativa agro-pecuária... Era uma cooperativa de sociedade por quotas de 500 escudos na altura. Cada cooperativista entrava com o que tivesse até completar aquilo, que era para ver se as coisas marchavam"
(7) Nota datada de 3.5.55, Proc. N.º 3589 – CI (2)9.
(8) Segundo Rafael Barbosa (entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado), José Ferreira de Lacerda estudou em Coimbra e teria sido aluno de Salazar.
(9) Gastão Seguy Júnior , como oficial de Justiça, foi acusado de propagandista quando sempre que os assuntos indígenas subiam ao poder judicial, observando-se este facto com maior clareza aquando julgamento do administrador aposentado, António Pereira Cardoso, acusado de ter praticado carnificina junto as populações indígenas.
(10) Proc. PC5519 - CI(2), 1956, fls.119-120
(11) O Dr. Artur Augusto Silva (*), pai do nosso amigo e conhecido PEPITO, foi advogado de muitos nacionalistas guineenses acusados de "subversão” e "terrorismo". Correligionário político e colega de Álvaro Cunhal durante o período de estudos em Coimbra, desempenhou um papel importantíssimo no processo de defesa e consciencialização dos guineenses.
_____
Nota de L.G.:
(*) Vd posts de:
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)
16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!
Foi com estes fundos que se financiaram as cópias dos Estatutos que Cabral elaborou e que depois o levou a uma reunião para ser apreciado e na qual foram aprovados, secundando este acto a constituição de uma Comissão que os deveriam levar a aprovação do Governador, porquanto foram inicialmente entregues e esta entidade não o submeteu a despacho com a brevidade que os interessados então pretendiam. Que essa Comissão foi então constituída por João Rosa, Víctor Robalo e João Vaz (alfaiate) que igualmente não conseguiu aprovação do Governo, exactamente porque uma das clausulas dos Estatutos aludia ao facto de que nesta agremiação que não podiam tomar parte os europeus e caboverdianos, razão pela qual passou-se a dizer que Cabral estava feito com os grumetes.
Depois de 1954, alguns povos de África tornaram-se independente. No Sul da Guiné, mais concretamente em 1956, registaram-se no Sul da Guiné certas actividades dos nativos, nas áreas de Cacine e Bedanda a favor do chamado Rassemblement Democratique Africain, tendo-se mesmo formado o que apelidaram de “clubes de trabalho”, em quase todas as povoações vizinhas. Prenderam-se alguns responsáveis e deu-se a fuga de outros, pelo que estas acções foram desmanteladas.
Em 1955, José Ferreira de Lacerda (9), futuro patriarca e líder lendário do MLG, redigiu, a pedido de César Mário Fernandes e José Francisco Gomes (assinada por várias pessoas) uma “Representação” que foi entregue ao Presidente da República de Portugal aquando da visita deste a Província da Guiné, documento esse onde se condensava, segundo os seus subscritores, o essencial das aspirações da Guiné.
Paralelamente, nas eleições para membros do Conselho do Governo da Província da Guiné faziam parte dos elementos favoráveis aos candidatos da “oposição”, os seguintes guineenses: Benjamim Correia, Armando António Pereira (advogado de 54 anos e candidato a membro do Conselho do Governo da Província, proposto pelo grupo de Benjamim constituído pelo branco Luís Mata-Mouros Resende Costa, 36 anos de idade, natural de Bissau, que nesse processo encarregou-se de expedir circulares, em colaboração Gastão Seguy Júnior (9), 36 anos, oficial de diligências do Juízo de Direito da Comarca, natural de Bolama (10).
É igualmente digna de registo a existência, mais ou menos paralela, de outro grupo de nacionalistas que actuava sob a coordenação de Mário Lima Wanon e do qual faziam parte o Dr. Artur Augusto Silva (11), o Dr. Severino de Pina, Godofredo Vermão de Sousa, Víctor Robalo, Armando António Pereira, Manuel Spencer e Crates Nunes. Embora as acções desenvolvidas nesta fase da luta fossem poucas, devido à feroz repressão e apertada vigilância da PIDE, o certo é que contribuíram para a mobilização em Bissau, particularmente nas camadas ligadas à pequena burguesia local.
Leopoldo Amado
Fevereiro de 2005
(Continua)
_____
Notas do autor:
(1) Entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado em Bissau.
(2) Entrevista de Elisée Turpin a Leopoldo Amado.
(3) Cf. Proc. 4415 - CI (2), Arquivos da PIDE, Torre do Tombo, fls. 34
(4) Cf. Proc (Proc. 5466 - CI(2), , Arquivos da PIDE, Torre do Tombo, fls. 307
(5) Cabral, Luís, Crónica da Libertação, Edições "O Jornal", 1984, p.36
(6) Segundo Víctor Robalo (Entrevista concedida a Leopoldo Amado em Bissau) "(…)aquilo morreu mas, o Amílcar não parou. Depois, veio a ideia da criação da cooperativa, cujo nome já não me lembro. Era uma cooperativa cuja sede havia de ser na minha ponta. Foi a última tentativa para a criação de uma cooperativa agro-pecuária... Era uma cooperativa de sociedade por quotas de 500 escudos na altura. Cada cooperativista entrava com o que tivesse até completar aquilo, que era para ver se as coisas marchavam"
(7) Nota datada de 3.5.55, Proc. N.º 3589 – CI (2)9.
(8) Segundo Rafael Barbosa (entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado), José Ferreira de Lacerda estudou em Coimbra e teria sido aluno de Salazar.
(9) Gastão Seguy Júnior , como oficial de Justiça, foi acusado de propagandista quando sempre que os assuntos indígenas subiam ao poder judicial, observando-se este facto com maior clareza aquando julgamento do administrador aposentado, António Pereira Cardoso, acusado de ter praticado carnificina junto as populações indígenas.
(10) Proc. PC5519 - CI(2), 1956, fls.119-120
(11) O Dr. Artur Augusto Silva (*), pai do nosso amigo e conhecido PEPITO, foi advogado de muitos nacionalistas guineenses acusados de "subversão” e "terrorismo". Correligionário político e colega de Álvaro Cunhal durante o período de estudos em Coimbra, desempenhou um papel importantíssimo no processo de defesa e consciencialização dos guineenses.
_____
Nota de L.G.:
(*) Vd posts de:
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)
16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!
Guiné 63/74 - P557: A morte a caminho de Mondajane, com os madeirenses da CCAÇ 2446 (Carlos Marques dos Santos)
Texto do Carlos Marques dos Santos (ex-furriel miliciano da CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69):
Humberto:
Há dias evocaste aqui uma companhia de madeirenses, que levou porrada em Madina Xaquili, no subsector de Galomaro, com vocês, da CCAÇ 12 (1).
Eu também estive em reforço a Galomaro e disso já dei referência e andei por Dulombi e Mondajane, Madina Xaquili, etc. Essa história está, por mim, contada no blogue salvo erro com o título um mês a feijão frade (2).
Referiste os madeirenses e presumo que são os mesmos que, em treino operacional, andaram comigo.
Esses factos não estão descritos na história da minha Companhia, mas eu tenho-os registados nas minhas notas pessoais diárias que elaborei enquanto estive na Guiné.
Há poucos dias, com o Luís, que estava em trabalho em Coimbra, pude com o Victor David recordar factos de Galomaro e Dulombi.
Lembro-me que em coluna para Mondajane, onde eu iria estar em reforço da CCAÇ 2405, a coluna sofreu o rebentamento de uma mina (a/c ?) na viatura que seguia ao meu lado (nós estávamos apeados) e desse rebentamento um soldado madeirense, pela acção da mina, desintegrou-se. Esta mina rebentou a cerca de 12 metros de mim e felizmente nada sofri.
O Luís perguntava: então o lenço que estaria mais tarde e durante algum tempo pendurado numa árvore nesse itinerário seria dele? (4)
Presumo que sim, pois bocados desse soldado, o relógio, roupa, etc… ficaram agarrados à árvore.
Seria essa a Companhia a que te referes?
Se foi, parece que não entraram na guerra com sorte e também não a tiveram depois. Consegues referenciar no tempo esse ataque? (4)
Poderei a partir daí confrontar as minhas notas, desconhecendo no entanto a denominação da tal Companhia.
Um abraço,
Carlos Marques dos Santos
Cart 2339 – Mansambo, sempre em diligências solitárias
___________
Notas de L.G.
(1) Vd post de 14 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIII: Portugal, tabanca grande (Humberto Reis e Paulo Raposo)
(2) Vd post de 24 de Janeiro de 2004 > Guiné 63/74 - CDLXXVI: Um mês a feijão frade... e desenfiado (Mondajane, Dulombi, Galomaro, 1969)
(3) O tristemente famoso lenço pendurado numa árvore localizava-se algures no troço da Estrada Bambadinca-Mansambo, e não no subsector de Galomaro, na estrada para Mondajane, como suegere o CMS:
Vd post de 8 de Dezembro de 2005, no Blogue-Fora-Nada... e Vão Dois > Quinta-
Blogantologia(s) II - (22): Esquecer a Guiné
"(...) Um lenço de pescoço,
Desbotado, pelo sol, no ramo de uma árvore.
Um homem, um picador,
Que se desintegrou com uma mina à cabeça.
Uma mina anticarro.
Sobrou o lenço, vermelho,
Que ficou pendurado no alto de uma árvore.
Na estrada para Mansambo.
Eu costumava olhar para o teu lenço,
Picador e guia das nossas tropas,
Sempre que fazia segurança
Às colunas de reabastecimento
Que se dirigiam a Mansambo, Xitole e Saltinho.
Nunca soube o teu nome.
Nunca perguntei pelo teu nome.
Nunca me interessei por saber o teu nome.
Sei apenas que nesse dia
Ias ganhar manga de patacão
Por detectares e desmontares
Uma mina anticarro" (...).
(4) Vd post de 29 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVIII: O baptismo de fogo da CCAÇ 12, em farda nº 3, em Madina Xaquili (Julho de 1969)
" (...) Seria, aliás, em Madina Xaquili que a CCAÇ 12 teria o seu baptismo de fogo. Os três Gr Comb haviam regressado, em 24 [de Julho de 1969], à tarde, dum patrulhamento ofensivo na região de Padada, tendo ficado dois dias emboscados no mato (Op Elmo Torneado), quando Madina Xaquili foi atacada ao anoitecer por um grupo IN que muito provavelmente veio no seu encalce.
"0 ataque deu-se no momento em que dois Gr Comb da CCAÇ 2446 que vinha render a CCAÇ 12, saíram da tabanca a fim de se emboscarem. [Esta companhia madeirense teve dois mortos e vários feridos].
"0 IN utilizou mort 60, lança-rockets e armas ligeiras, tendo danificado uma viatura e causado vári¬os feridos às NT. O primeiro ferido da CCAÇ 12 foi o soldado Sori Jau, do 3º GR Comb, evacuado no dia seguinte para o HM [Hospital Militar] 241 [Bissau] (...)".
Humberto:
Há dias evocaste aqui uma companhia de madeirenses, que levou porrada em Madina Xaquili, no subsector de Galomaro, com vocês, da CCAÇ 12 (1).
Eu também estive em reforço a Galomaro e disso já dei referência e andei por Dulombi e Mondajane, Madina Xaquili, etc. Essa história está, por mim, contada no blogue salvo erro com o título um mês a feijão frade (2).
Referiste os madeirenses e presumo que são os mesmos que, em treino operacional, andaram comigo.
Esses factos não estão descritos na história da minha Companhia, mas eu tenho-os registados nas minhas notas pessoais diárias que elaborei enquanto estive na Guiné.
Há poucos dias, com o Luís, que estava em trabalho em Coimbra, pude com o Victor David recordar factos de Galomaro e Dulombi.
Lembro-me que em coluna para Mondajane, onde eu iria estar em reforço da CCAÇ 2405, a coluna sofreu o rebentamento de uma mina (a/c ?) na viatura que seguia ao meu lado (nós estávamos apeados) e desse rebentamento um soldado madeirense, pela acção da mina, desintegrou-se. Esta mina rebentou a cerca de 12 metros de mim e felizmente nada sofri.
O Luís perguntava: então o lenço que estaria mais tarde e durante algum tempo pendurado numa árvore nesse itinerário seria dele? (4)
Presumo que sim, pois bocados desse soldado, o relógio, roupa, etc… ficaram agarrados à árvore.
Seria essa a Companhia a que te referes?
Se foi, parece que não entraram na guerra com sorte e também não a tiveram depois. Consegues referenciar no tempo esse ataque? (4)
Poderei a partir daí confrontar as minhas notas, desconhecendo no entanto a denominação da tal Companhia.
Um abraço,
Carlos Marques dos Santos
Cart 2339 – Mansambo, sempre em diligências solitárias
___________
Notas de L.G.
(1) Vd post de 14 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIII: Portugal, tabanca grande (Humberto Reis e Paulo Raposo)
(2) Vd post de 24 de Janeiro de 2004 > Guiné 63/74 - CDLXXVI: Um mês a feijão frade... e desenfiado (Mondajane, Dulombi, Galomaro, 1969)
(3) O tristemente famoso lenço pendurado numa árvore localizava-se algures no troço da Estrada Bambadinca-Mansambo, e não no subsector de Galomaro, na estrada para Mondajane, como suegere o CMS:
Vd post de 8 de Dezembro de 2005, no Blogue-Fora-Nada... e Vão Dois > Quinta-
Blogantologia(s) II - (22): Esquecer a Guiné
"(...) Um lenço de pescoço,
Desbotado, pelo sol, no ramo de uma árvore.
Um homem, um picador,
Que se desintegrou com uma mina à cabeça.
Uma mina anticarro.
Sobrou o lenço, vermelho,
Que ficou pendurado no alto de uma árvore.
Na estrada para Mansambo.
Eu costumava olhar para o teu lenço,
Picador e guia das nossas tropas,
Sempre que fazia segurança
Às colunas de reabastecimento
Que se dirigiam a Mansambo, Xitole e Saltinho.
Nunca soube o teu nome.
Nunca perguntei pelo teu nome.
Nunca me interessei por saber o teu nome.
Sei apenas que nesse dia
Ias ganhar manga de patacão
Por detectares e desmontares
Uma mina anticarro" (...).
(4) Vd post de 29 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVIII: O baptismo de fogo da CCAÇ 12, em farda nº 3, em Madina Xaquili (Julho de 1969)
" (...) Seria, aliás, em Madina Xaquili que a CCAÇ 12 teria o seu baptismo de fogo. Os três Gr Comb haviam regressado, em 24 [de Julho de 1969], à tarde, dum patrulhamento ofensivo na região de Padada, tendo ficado dois dias emboscados no mato (Op Elmo Torneado), quando Madina Xaquili foi atacada ao anoitecer por um grupo IN que muito provavelmente veio no seu encalce.
"0 ataque deu-se no momento em que dois Gr Comb da CCAÇ 2446 que vinha render a CCAÇ 12, saíram da tabanca a fim de se emboscarem. [Esta companhia madeirense teve dois mortos e vários feridos].
"0 IN utilizou mort 60, lança-rockets e armas ligeiras, tendo danificado uma viatura e causado vári¬os feridos às NT. O primeiro ferido da CCAÇ 12 foi o soldado Sori Jau, do 3º GR Comb, evacuado no dia seguinte para o HM [Hospital Militar] 241 [Bissau] (...)".
terça-feira, 21 de fevereiro de 2006
Guiné 63/74 - P556: Pidjiguiti: Comentando a versão do Luís Cabral (Mário Dias)
1. Pedido feito ao Mário:
Gostava que comentasses as afirmações do Luís Cabral sobre a "caça ao preto" no dia 3 de Agosto de 1959...São afirmações graves, que eu desconhecia... Não sei se queres acrescentar mais alguma coisa sobre o Pidjiguiti... O teu depoimento foi importante. Obrigado. L.G.
2. Primeiro texto do Mário Dias, antes de ler o post do A. Marques Lopes:
Caro Luis:
Desconheço as afirmações do Luis Cabral sobre a "caça ao preto" no dia 3 de Agosto de 1959. Creio que elas devem ter sido ditas em sentido figurado e no contexto da fraseologia própria dos seguidores do PAIGC que não contesto e compreendo. Aliás, neste tipo de guerra, o aproveitamente de qualquer ocorrência com fins de propaganda favorável à causa defendida por cada uma das partes, é prática corrente. Como é costume dizer-se, está nos livros.
O que sei a respeito da revolta no Pidjiguiti é aquilo que narrei. Como referi, quando a tropa lá chegou já a polícia tinha dominado a situação. Não vi os acontecimentos anteriores nem após a nossa chegada houve perseguição aos elementos revoltosos.
O que narrei sobre o início da revolta e a forma como a mesma foi reprimida, é fruto dos comentários por mim colhidos nos dias imediatos junto de pessoas que a tudo assistiram, principalmente muitos amigos, familiares incluidos, da firma Eduardo Guedes, Lda., que mais tarde veio a unir-se à Ultramarina e que, muitos se devem lembrar, tinha uma vista privilegiada sobre o local onde tudo aconteceu. Também ouvi alguns marinheiros dos barcos pertencentes à NOSOCO, empresa onde eu trabalhava antes da minha incorporação militar, e que me narraram o sucedido.
Nos dias imediatos, Bissau regressou à calma e não se notava qualquer sentimento de mal-estar. Aparentemente, tudo parecia sanado. Digo aparentemente porque nos meios clandestinos que desde o ocorrido se tornaram muito activos, certamente os ânimos estariam mais exaltados. E é o desconhecimento do que se passou nesses meios que nos impede de fazer uma análise mais correcta dos factos. Porque, desses factos, apenas sei o que vi e me foi contado.
Em breve seguirão mais algumas memórias da Guiné dos tempos antigos de antes da guerra.
Um abraço
Mário Dias
3. Segundo texto do Mário, depois de ler o post de 18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLVII: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (Luís Cabral)
Caro Luis
Acabo de ler o post que referes e que me havia escapado. Imperdoável!...
Ainda bem que o nosso camarada A. Marques Lopes se refere a massacres e outros desnecessários excessos cometidos pelos portugueses e que devem ser trazidos ao conhecimento de todos. É bom que tudo seja revelado com a isenção de espírito que a distância temporal dos acontecimentos nos proporciona.
Infelizmente, em qualquer guerra e, mais ainda, nas guerras do tipo daquela que enfrentámos em África, existem excessos (autênticos crimes) que nem sequer o ambiente de nervosismo ou insegurança justificam. Isto, aplica-se a ambos os lados embora a história tenha a tendência de endeusar os vencedores e diabolizar os vencidos.
Quanto ao texto do Luis Cabral, exceptuando alguns pequenos mas importantes pormenores, ele não difere muito, na sua essência, do que por mim foi descrito. As divergências principais são as seguintes:
- Os militares não participaram nos disparos pois nem se encontravam lá quando estes ocorreram. Quando os militares chegaram (eu fui um deles) já não havia tiros e, além do mais, nem tínhamos munições. Estavamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local.
- O Luis Cabral refere que as tropas estavam armadas com armas automáticas modernas, o que não é verdade. A polícia tinha armas de repetição Lee-Enfield 7,7 mm que datavam da 1ª Guerra Mundial. Os militares estavam armados com as velhas Mauser 7,9 mm.
- Refere ainda que alguns civis se juntaram "com as suas armas pessoais, que depois se vangloriaram da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto". Embora não pretendendo desmentir pois não assisti ao início dos acontecimentos, parece-me pouco plausível que tenha acontecido.
- Outro ponto de divergência é o que se refere ao modo como ocorreu o "tiroteio" que lamentavelmente vitimou tanta gente e que começou apenas quando os revoltosos se dirigiam ameaçadoramente armados de paus e remos, já no exterior do Pidjiguiti, para a Casa Gouveia. Foi o próprio comandante militar quem deu ordem de fogo, junto à estátua de Nuno Tristão. Custa-me um pouco acreditar que um polícia se disponha a fazer fogo (tipo tiro ao alvo) sobre um indefeso homem que tenta escapar a nado tratando-se, sobretudo, de um seu conterrâneo. Que monstro cometeria tão bárbara acção?
- Quanto às vítimas, foram 16 que, de novo o digo, são muitas. Uma que fosse seria demais. As 50 fazem parte do natural exagero, com fins propagandísticos, que os movimentos de libertação sempre utilizaram. Por exemplo, as 10.000 da Baixa do Cassange segundo a versão do MPLA; ou as propaladas e estrondosas vitórias da FRELIMO sobre as nossas tropas em Moçambique que, numa emissão da Rádio da Tanzânia, conseguiu, num só dia, abater mais aviões que o total existente em Moçambique.
- A versão dos acontecimentos que chegou às emissoras enviada, segundo o próprio Luis Cabral, por Fernando Fortes, chefe da Estação Postal e um dos fundadores do PAIGC, foi de certo e compreensivelmente empolada.
O resto do texto, que muito apreciei e me fez recordar tantas pessoas - conheci todas as que lá estão referidas - está bem concebido mas não deixa de nele transparecer a fraseologia e os chavões (nós também tínhamos os nossos) próprios da propaganda mentalizadora em que o PAIGC era perito. Do mesmo modo, e analisando bem, se chega à conclusão que, embora, segundo o autor, já existesse alguma acção clandestina de aliciamento não refere que a "organização" da ocorrência tenha sido preparada pelo PAIGC.
Já me alonguei em demasia, o que não era meu propósito, tudo porque, sem enjeitar as responsabilidades que, enquanto militar e combatente, possam ser atribuídas a Portugal, me custa verificar que se relatem os acontecimentos de uma forma parcial e "partidária".
Um abraço do
Mário Dias
Gostava que comentasses as afirmações do Luís Cabral sobre a "caça ao preto" no dia 3 de Agosto de 1959...São afirmações graves, que eu desconhecia... Não sei se queres acrescentar mais alguma coisa sobre o Pidjiguiti... O teu depoimento foi importante. Obrigado. L.G.
2. Primeiro texto do Mário Dias, antes de ler o post do A. Marques Lopes:
Caro Luis:
Desconheço as afirmações do Luis Cabral sobre a "caça ao preto" no dia 3 de Agosto de 1959. Creio que elas devem ter sido ditas em sentido figurado e no contexto da fraseologia própria dos seguidores do PAIGC que não contesto e compreendo. Aliás, neste tipo de guerra, o aproveitamente de qualquer ocorrência com fins de propaganda favorável à causa defendida por cada uma das partes, é prática corrente. Como é costume dizer-se, está nos livros.
O que sei a respeito da revolta no Pidjiguiti é aquilo que narrei. Como referi, quando a tropa lá chegou já a polícia tinha dominado a situação. Não vi os acontecimentos anteriores nem após a nossa chegada houve perseguição aos elementos revoltosos.
O que narrei sobre o início da revolta e a forma como a mesma foi reprimida, é fruto dos comentários por mim colhidos nos dias imediatos junto de pessoas que a tudo assistiram, principalmente muitos amigos, familiares incluidos, da firma Eduardo Guedes, Lda., que mais tarde veio a unir-se à Ultramarina e que, muitos se devem lembrar, tinha uma vista privilegiada sobre o local onde tudo aconteceu. Também ouvi alguns marinheiros dos barcos pertencentes à NOSOCO, empresa onde eu trabalhava antes da minha incorporação militar, e que me narraram o sucedido.
Nos dias imediatos, Bissau regressou à calma e não se notava qualquer sentimento de mal-estar. Aparentemente, tudo parecia sanado. Digo aparentemente porque nos meios clandestinos que desde o ocorrido se tornaram muito activos, certamente os ânimos estariam mais exaltados. E é o desconhecimento do que se passou nesses meios que nos impede de fazer uma análise mais correcta dos factos. Porque, desses factos, apenas sei o que vi e me foi contado.
Em breve seguirão mais algumas memórias da Guiné dos tempos antigos de antes da guerra.
Um abraço
Mário Dias
3. Segundo texto do Mário, depois de ler o post de 18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLVII: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (Luís Cabral)
Caro Luis
Acabo de ler o post que referes e que me havia escapado. Imperdoável!...
Ainda bem que o nosso camarada A. Marques Lopes se refere a massacres e outros desnecessários excessos cometidos pelos portugueses e que devem ser trazidos ao conhecimento de todos. É bom que tudo seja revelado com a isenção de espírito que a distância temporal dos acontecimentos nos proporciona.
Infelizmente, em qualquer guerra e, mais ainda, nas guerras do tipo daquela que enfrentámos em África, existem excessos (autênticos crimes) que nem sequer o ambiente de nervosismo ou insegurança justificam. Isto, aplica-se a ambos os lados embora a história tenha a tendência de endeusar os vencedores e diabolizar os vencidos.
Quanto ao texto do Luis Cabral, exceptuando alguns pequenos mas importantes pormenores, ele não difere muito, na sua essência, do que por mim foi descrito. As divergências principais são as seguintes:
- Os militares não participaram nos disparos pois nem se encontravam lá quando estes ocorreram. Quando os militares chegaram (eu fui um deles) já não havia tiros e, além do mais, nem tínhamos munições. Estavamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local.
- O Luis Cabral refere que as tropas estavam armadas com armas automáticas modernas, o que não é verdade. A polícia tinha armas de repetição Lee-Enfield 7,7 mm que datavam da 1ª Guerra Mundial. Os militares estavam armados com as velhas Mauser 7,9 mm.
- Refere ainda que alguns civis se juntaram "com as suas armas pessoais, que depois se vangloriaram da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto". Embora não pretendendo desmentir pois não assisti ao início dos acontecimentos, parece-me pouco plausível que tenha acontecido.
- Outro ponto de divergência é o que se refere ao modo como ocorreu o "tiroteio" que lamentavelmente vitimou tanta gente e que começou apenas quando os revoltosos se dirigiam ameaçadoramente armados de paus e remos, já no exterior do Pidjiguiti, para a Casa Gouveia. Foi o próprio comandante militar quem deu ordem de fogo, junto à estátua de Nuno Tristão. Custa-me um pouco acreditar que um polícia se disponha a fazer fogo (tipo tiro ao alvo) sobre um indefeso homem que tenta escapar a nado tratando-se, sobretudo, de um seu conterrâneo. Que monstro cometeria tão bárbara acção?
- Quanto às vítimas, foram 16 que, de novo o digo, são muitas. Uma que fosse seria demais. As 50 fazem parte do natural exagero, com fins propagandísticos, que os movimentos de libertação sempre utilizaram. Por exemplo, as 10.000 da Baixa do Cassange segundo a versão do MPLA; ou as propaladas e estrondosas vitórias da FRELIMO sobre as nossas tropas em Moçambique que, numa emissão da Rádio da Tanzânia, conseguiu, num só dia, abater mais aviões que o total existente em Moçambique.
- A versão dos acontecimentos que chegou às emissoras enviada, segundo o próprio Luis Cabral, por Fernando Fortes, chefe da Estação Postal e um dos fundadores do PAIGC, foi de certo e compreensivelmente empolada.
O resto do texto, que muito apreciei e me fez recordar tantas pessoas - conheci todas as que lá estão referidas - está bem concebido mas não deixa de nele transparecer a fraseologia e os chavões (nós também tínhamos os nossos) próprios da propaganda mentalizadora em que o PAIGC era perito. Do mesmo modo, e analisando bem, se chega à conclusão que, embora, segundo o autor, já existesse alguma acção clandestina de aliciamento não refere que a "organização" da ocorrência tenha sido preparada pelo PAIGC.
Já me alonguei em demasia, o que não era meu propósito, tudo porque, sem enjeitar as responsabilidades que, enquanto militar e combatente, possam ser atribuídas a Portugal, me custa verificar que se relatem os acontecimentos de uma forma parcial e "partidária".
Um abraço do
Mário Dias
Guiné 63/74 - P555: Abrir os cadeados da nossa memória (João Tunes)
Guiné > Região de Tombali (Catió) > Rio Cumbijã > Junho de 1970
© João Tunes (2005)
Guiné > Região de Tombali (Catió) > Rio Cumbijã > Maio de 1970 © João Tunes (2005)
Ai, camarada Luís, que a sabes toda. Quanta manha sábia nessa tua forma discreta e estética como nos abres nos nossos tabus armazenados na memória, sabendo que o tempo e a idade nos tornaram aptos à grande e completa catarse. E é disso que mais precisamos, malta nos sessenta ou à volta dela, a preparar uma suave (e demorada) paz na preparação da viagem para a cova.
Porque o pior na memória da guerra são esses malditos cadeados com que fechámos aquilo que não nos queremos lembrar. Umas vezes os sons (cabrão do Nino, são os sons das morteiradas dele em Catió, em Cacine, em Gadamael e em Guileje, os que ainda hoje me lixam os cornos, me fodem a cabeça quando oiço o som seco da porta do frigorífico a fechar-se, num eco repetido que ameaça ser-me perpétuo), outras imagens (de tanta nobreza camarada e de tanta miséria da dimensão humana dos limites da resistência de pessoas não feitas para a guerra, e então não me sai da cabeça a imagem do meu camarada e amigo alferes das viaturas, engenheiro mecânico já formado, e que, quando as morteiradas começavam a assobiar, sem ter função nem ponto de abrigo, se encafuava junto ao cão do quartel na sua pequena casota, reduzindo-se a uma igual condição de cão com medo), incluindo, pelo meio, o espanto de encontrar vocação guerreira insuspeita quando, a caminho de Jolmete, encontrei, na prevenção de eventual emboscada, um meu camarada, bom camarada, da luta antifascista e anticolonial e agora ele ali fardado de furriel dos comandos a proteger do ... PAIGC, mijando-nos os dois a rir, quando o abraço esmoreceu, daquela cena de reencontro depois do tanto que havíamos partilhado, no Porto, de fugas da polícia de choque e fintas aos pides que não queriam que abríssemos o bico contra o escroque do Salazar, e agora os dois ali, na mata entre Pelundo e Jolmete, um na tropa macaca e outro na elite dos comandos, às ordens do mesmo cabrão velho e teimoso que estava a foder a história de todo um povo, o nosso, mostrando o pueril absurdo da nossa vontade de fazer a contra-história, sacando o país dos pântanos do fascismo e do colonialismo.
Já falámos do sexo, começando a romper o tabu das incontornáveis história da nossa líbido na guerra. Mais haverá muito ainda para contar e podemos contá-las todas, sem rodeios, como velhos que falam do passado das suas grandes tesões. Agora vens com essa dos copos. E os copos eram outra âncora e que âncora. E quanto a copos só te digo, vos digo, que foi pelos copos que cometi a minha maior cobardia na aversão à guerra, aquela guerra. Lembro-me bem e mantem-se como mancha maior de prova da minha inaptidão para ser guerreiro. E, por isso, é um ferro em brasa que me aquece a memória.
Lá para Julho de 69, o meu batalhão foi encaminhado de Bissau para o Pelundo, espalhando ainda companhias em Có e em Jolmete. Fizémos o trajecto na descoberta do mato. Quando albergámos em Có, na passagem e largando uma das companhias, periquitos e veteranos misturados, deu-me uma imensa depressão pela descoberta de que tinha entrado no miolo da guerra, agora é que elas iam morder, não havia ou podia haver retorno, os camaradas veteranos, hospitaleiros e alegres por serem rendidos, deram-nos festa de recepção com fados e copos. E eu, a pensar em Lisboa, a merda de Lisboa não me saindo da ideia, e pensava e repensava na mulher (estava casadinho de fresco), baldei-me da Guiné em pensamento e emborquei um copo de penalty cheio de whisky solo até às bordas, assim de seguida e de um único gole. Caí de borco e em coma, em processo de desidratação súbita, valendo-me que o camarada médico, meu amigo e compincha, estava menos bêbado que eu e rápido me acudiu.
Não sei como, no espaço de uma hora, pôs-me conforme o RDM e apresentável como Oficial e já pronto a disparar. Como disse, foi a minha maior cobardia na guerra, daí para a frente sempre soube dosear o uso das munições, nunca parando de disparar. Hoje, felizmente, continuo a apreciar disparos mas já só lá vou espaçado e sempre com um pouco de água lisa.
Abraços para todos os estimados tertulianos.
Para ti, Luís, o meu sempre repetido obrigado.
João Tunes
(i) Ex-Alf Mil Transmissõe > Pelundo (1969/70) e Catió (1970/71) (Recusa-se a identificar os dois batalhões por onde andou: vd. posts de 25 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXI: Pelundo: Nº do batalhão ? Não sei, não me lembro (João Tunes)
(ii) Blogador-mor, cavaleiro andante, solidário, transmontano e dinamarquês, benfiquista dos quatro costados...
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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006
Guiné 63/74 - P554: Sete mortos civis no ataque ao Xime (Dezembro de 1973) (J.C. Mussa Biai)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > Vista aérea (1969 ou 1970) . Imagem (diapositivo digitalizado) do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)
Guiné > Bambadinca > 1969 > A escola do posto administrativo: que eu me lembre, era a única povoação, na região, que tinha uma professora branca... pelo menos no tempo em que por lá andou a CCAÇ 12 (1969/71). Noutros postos escolares, como o Xime, os professores eram militares... (LG)
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)
Caro Luís
Acabo de ler o relato do António Duarte sobre o trágico acontecimento que ocorreu em Xime (1).
Devo dizer que, apesar de ser criança à época, ainda me lembro porque afinal morreram sete pessoas nesse ataque, para além das mortes serem a menos de cinco metros da casa onde eu dormia.
Ainda por cima morreram lá duas pessoas (João Jorge e o irmão mais novo) com os quais eu e mais outras crianças à época estavamos a brincar. Só que a avó deles foi buscá-los para irem dormir e passados mais ou menos 30 minutos eu tabém fui dormir.
Antes de adormecer ouviu-se um estondo enorme de uma granada de canhão em cima da casa deles e eles começaram a gritar, passados talvez 2 ou 3 minutos caiu um segunda granada canhão e foi o silêncio total. Passados mais uns 2 ou 3 minutos caiu uma terceira granada a talvez 50 - 100 metros para a frente.
Depois disso não se ouviu mais nada e mais ninguém dormiu. Daquela família, dos que estavam em Xime, só se salvaram três pessoas. O chefe de família que tinha pernoitado no mar (na pesca) e a filha mais velha e a filha desta, porque estavam de zanga e tinham-se mudado para a casa duma outra família.
Esse acontecimento foi dos que mais mais me marcaram pela negativa. Nessa altura já tinha consciência que havia uma gerra, as razões desconhecia-as.Talvez seja próprio da infância, o certo é que pereceram amigos de brincadeira e vizinhos...
As datas não sei, mas os factos ocorridos são esses (2).
José Carlos Mussá Biai
________
Notas de L.G.
(1) Vd post de hoje > Guiné 63/74 - DLXVIII: Notícias da CART 3493 (Mansambo, 1972) e da CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973/74) (António Duarte)
(2) Recorde-se que o nosso amigo e tertuliano José Carlos é natural do Xime, e era menino no tempo em que por lá passaram a CART 1746 (1968/69), a CART 2520 (1969/71), CART 2715 (1970/72), a CART 3494 (1972/73) e a CCAÇ 12 (1973/74)...
Lembra-se de ter tido, como professores, no Posto Escolar Militar nº 14, o furriel miliciano enfermeiro Carvalhido da Ponte, da CART 3494, e o furriel Osório, da CCAÇ 12 (que dava aulas juntamente com a esposa).
O José Carlos aprendeu a ler e a escrever português debaixo de fogo. Nascido em 1963, o José Carlos devia ter já 10 anos, aquando do ataque ao aquartelamento e tabanca do Xime, em 1 de Dezembro de 1973 (segundo relata o António Duarte), do qual resultaram sete vítimas mortais entre a população civil, incluindo dois amigos de infância e vizinhos do Mussá Biai...
Já aqui dissemos que um dos seus irmãos, o Braima, era guia e picador das NT. Por sua vez, o seu pai, um homem grande, mandinga, do Xime, era o chefe religioso da comunidade islâmica local (um almanu).
A vida não foi fácil para eles. A família teve problemas depois da independência devida à colaboração com as NT. Teve irmãos que fizeram o serviço militar em Farim e que depois foram presos (3).
O José Carlos foi para Bissau fazer o liceu. Foi cinco anos professor, até vir para Lisboa e obter uma bolsa de estudo da Fundação Gulbenkian. Hoje é formado em engenharia florestal. É casado. A sua mulher é natural do Xitole, filha de um comerciante conhecido dos tugas, o Braima.
Trabalha e vive em Portugal, no Instituto de Geográfico Português. Mas nunca mais voltou a encontrar os seus professores do Xime.
Também já o dissémos e voltamos a repetir: o José Carlos é um exemplo de tenacidade, coragem, determinação e nobreza que honra qualquer ser humano. Que nos honra a nós e ao povo da Guiné-Bissau a que ele continua a pertencer, apesar de ter optado pela nacionalidade portuguesa e de viver em Portugal.
(3) Vd post de 20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXII: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)
© Humberto Reis (2006)
Guiné > Bambadinca > 1969 > A escola do posto administrativo: que eu me lembre, era a única povoação, na região, que tinha uma professora branca... pelo menos no tempo em que por lá andou a CCAÇ 12 (1969/71). Noutros postos escolares, como o Xime, os professores eram militares... (LG)
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)
Caro Luís
Acabo de ler o relato do António Duarte sobre o trágico acontecimento que ocorreu em Xime (1).
Devo dizer que, apesar de ser criança à época, ainda me lembro porque afinal morreram sete pessoas nesse ataque, para além das mortes serem a menos de cinco metros da casa onde eu dormia.
Ainda por cima morreram lá duas pessoas (João Jorge e o irmão mais novo) com os quais eu e mais outras crianças à época estavamos a brincar. Só que a avó deles foi buscá-los para irem dormir e passados mais ou menos 30 minutos eu tabém fui dormir.
Antes de adormecer ouviu-se um estondo enorme de uma granada de canhão em cima da casa deles e eles começaram a gritar, passados talvez 2 ou 3 minutos caiu um segunda granada canhão e foi o silêncio total. Passados mais uns 2 ou 3 minutos caiu uma terceira granada a talvez 50 - 100 metros para a frente.
Depois disso não se ouviu mais nada e mais ninguém dormiu. Daquela família, dos que estavam em Xime, só se salvaram três pessoas. O chefe de família que tinha pernoitado no mar (na pesca) e a filha mais velha e a filha desta, porque estavam de zanga e tinham-se mudado para a casa duma outra família.
Esse acontecimento foi dos que mais mais me marcaram pela negativa. Nessa altura já tinha consciência que havia uma gerra, as razões desconhecia-as.Talvez seja próprio da infância, o certo é que pereceram amigos de brincadeira e vizinhos...
As datas não sei, mas os factos ocorridos são esses (2).
José Carlos Mussá Biai
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Notas de L.G.
(1) Vd post de hoje > Guiné 63/74 - DLXVIII: Notícias da CART 3493 (Mansambo, 1972) e da CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973/74) (António Duarte)
(2) Recorde-se que o nosso amigo e tertuliano José Carlos é natural do Xime, e era menino no tempo em que por lá passaram a CART 1746 (1968/69), a CART 2520 (1969/71), CART 2715 (1970/72), a CART 3494 (1972/73) e a CCAÇ 12 (1973/74)...
Lembra-se de ter tido, como professores, no Posto Escolar Militar nº 14, o furriel miliciano enfermeiro Carvalhido da Ponte, da CART 3494, e o furriel Osório, da CCAÇ 12 (que dava aulas juntamente com a esposa).
O José Carlos aprendeu a ler e a escrever português debaixo de fogo. Nascido em 1963, o José Carlos devia ter já 10 anos, aquando do ataque ao aquartelamento e tabanca do Xime, em 1 de Dezembro de 1973 (segundo relata o António Duarte), do qual resultaram sete vítimas mortais entre a população civil, incluindo dois amigos de infância e vizinhos do Mussá Biai...
Já aqui dissemos que um dos seus irmãos, o Braima, era guia e picador das NT. Por sua vez, o seu pai, um homem grande, mandinga, do Xime, era o chefe religioso da comunidade islâmica local (um almanu).
A vida não foi fácil para eles. A família teve problemas depois da independência devida à colaboração com as NT. Teve irmãos que fizeram o serviço militar em Farim e que depois foram presos (3).
O José Carlos foi para Bissau fazer o liceu. Foi cinco anos professor, até vir para Lisboa e obter uma bolsa de estudo da Fundação Gulbenkian. Hoje é formado em engenharia florestal. É casado. A sua mulher é natural do Xitole, filha de um comerciante conhecido dos tugas, o Braima.
Trabalha e vive em Portugal, no Instituto de Geográfico Português. Mas nunca mais voltou a encontrar os seus professores do Xime.
Também já o dissémos e voltamos a repetir: o José Carlos é um exemplo de tenacidade, coragem, determinação e nobreza que honra qualquer ser humano. Que nos honra a nós e ao povo da Guiné-Bissau a que ele continua a pertencer, apesar de ter optado pela nacionalidade portuguesa e de viver em Portugal.
(3) Vd post de 20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXII: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)
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