1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2014:
Queridos amigos,
Aprecio a literatura desopilante, bem urdida, com boa trama e que me agarre de principio ao fim.
Leio Mickey Spillane desde a adolescência, sempre que possível banho-me nesta prosa de mestre, onde se mesclam o policiário, as aventuras e a espionagem e delicio-me à brava, confesso. É possível encontrar Spillane nas Edições Livro do Brasil, uma editora que está no ocaso e que já foi uma referência incontornável no panorama português, lembrem-se da Coleção Miniatura, da Coleção Vampiro, da Coleção Argonauta, de grandes autores e de grandes obras universais, teve gráficos espantosos como Cândido da Costa Pinto, Lima de Freitas, Bernardo Marques e Infante do Carmo. Procurem Spillane e terão férias ainda mais retemperadoras.
Um abraço do
Mário
Biblioteca em férias (3)
O meu nome é Mike Hammer
Beja Santos
Estamos em 1947, os EUA são assumidamente uma superpotência, a sua influência política, económica e financeira é incontestável, em nome do Ocidente declarou Guerra Fria ao bloco soviético. Os EUA exportam mercadorias que todo o mundo cobiça, incluindo literatura. Nesse ano, irá despontar um escritor que trará certezas à superpotência, certezas de que o império americano está na vanguarda do progresso e é o facho das liberdades. Falamos de Mickey Spillane e o do seu herói Mike Hammer. Tratou-se de um sucesso que nunca foi ultrapassado. Este herói encarnou o espírito da época. O primeiro livro intitulava-se “I the jury”, venderam-se seis milhões de cópias. Seguir-se-ão seis títulos até 1952 (nesse ano, os sete livros de Spillane figuravam na lista das dez maiores vendas de livros do século XX, nos EUA), nenhum outro escritor irá conseguir este impressionante número de vendas. Spillane só concorreu com o Spillane.
Acontece que Mickey Spillane [foto à direita] caiu de paraquedas no mundo literário, não tinha os pergaminhos de um Scott Fitzgerald, John Steinbeck ou William Faulkner. Nascido em Brooklyn em 1918, Spillane passou a sua infância nos bairros pobres de uma pequena cidade da Nova Jérsia. Enquanto estudava, vendeu colaboração ao Capitão Marvel e ao Capitão América. Veio a guerra e Spillane combateu na Força Aérea. Trabalhou também para o FBI.
O que carateriza Mike Hammer, o herói de Spillane? É um duro, um arquétipo, o ideal do individualismo norte-americano. É justiceiro por conta própria, executa os chefes das máfias, os espiões do Kremlin, os narcotraficantes, e até os mandantes dos chefes. Editado em Portugal por Livros do Brasil, tanto na coleção Vampiro como numa coleção dedicada a Spillane, ganhou as simpatias do público mas nunca esteve na lista dos escritores mais populares do policiário, da literatura de aventuras e de espionagem, no fundo os três géneros interpolados em que se movimentam estas obras de um Mike Hammer corajoso, patriota, fiel aos seus amigos e às suas convicções de ética, é o eterno apaixonado de Velda, a sua secretária, será assim durante mais de cinquenta anos…
Hammer é um detetive particular, é amigo do capitão Pat Chambers, da polícia de Nova Iorque. É chamado quando começam a aparecer cadáveres, escapa sempre milagrosamente em todos os tiroteios e atentados à bomba, tem um faro especial para descobrir que o seu automóvel está ligado a explosivos. Por vezes, Hammer vai convalescer de certos ferimentos e reaparece imprevistamente. Spillane notabilizou-se pelas atmosferas de borrasca iminente, maneja os parágrafos curtos, possui uma linguagem sensorial onde as cores, os sons (que podem ser gritos, passos, interjeições), a pregnância das atmosferas, a brutalidade com pancadaria e estampidos das armas, tudo se equilibra numa trama turbilhonante, sem tempos mortos. E o fato é que as dezenas de milhões de exemplares vendidos em todo o mundo não podem esconder o fato de Spillane escrever bem a ponto de ter criado uma elevada confiança nos leitores neste duro um tanto romântico, e na tradição da linhagem dos grandes detetives.
Nas minhas incursões pela Feira da Ladra, de vez em quando compro um Spillane para matar saudades. Por 50 cêntimos, comprei o Beco Negro, número 598 da coleção Vampiro, pasme-se escrito em 1996, tempo em que Spillane já era um nome bastante esquecido e tentava desesperadamente dar um novo fôlego a Hammer. Fiquei satisfeito, embora a arquitetura da obra fosse a mesma de há décadas, continuava a ser fulgente, saída de um grande mestre:
“O telefone tocou.
Era uma coisa que tinha estado ali, preta e silenciosa como uma arma de fogo no coldre, não vinha na lista, desconhecida de toda a gente, utilizada apenas para fazer chamadas, e, quando ativada, tinha o som suave, abafado, de uma automática com silenciador. O primeiro toque foi com um som de advertência. O segundo seria um telefonema de Morte.
Oito meses atrás, eu chegara à Florida para morrer. As duas balas que recebera durante a troca de tiros no West Side Drive haviam-se introduzido em áreas do corpo que não existiam para ser violadas assim, e o sangue que brotara de mim fora excessivo. Pelo que os outros – o ferido que ainda andava e o reparável – mereceram a primazia dos poucos médicos que acudiram ao campo de batalha mais cedo. Os mortos e moribundos foram afastados para o lado ou isolados na seção sem regresso.
A temperatura era de seis graus abaixo de zero e impediu-me de morrer ali mesmo porque o sangue coagulou em áreas hediondas de roupa e pele e as dores ainda não tinham começado, pelo que, quando o homenzinho viu os meus olhos abertos e ainda brilhantes me afastou da carnificina quase mergulhou no estado de choque de que eu me aproximava. Mas ninguém ligava. Estava bêbado. E eu quase morto”.
É quase uma ressurreição. O médico, Ralph Morgan, também vai ressurgir. São dois quase mortos que regressam à vida. Aparece Pat Chambers para lhe comunicar que um amigo está nas vascas da agonia e quer fazer uma confidência a Hammer. E que confidência! Milhares de milhões de dólares estão escondidos, um mafioso arguto montou uma marosca, os bandos desconfiam, mas ninguém sabe o paradeiro daquela fortuna. São sete cães a um osso. O amigo de Mike Hammer morreu dizendo-lhe que ele podia descobrir o local onde se encontrava a mega fortuna. Começa aqui a caça ao tesouro, o detetive umas vezes expõe-se claramente quando necessita de falar com os mafiosos, outras vezes trabalha na sombra, esgueira-se como uma enguia.
O amor eterno por Velda, que conheço desde os romances dos anos 40, vem também aqui à baila, é poção que nunca se perde:
“Sorriu e levantou-se, deixando o roupão oscilar à sua volta, enquanto eu refletia que, um dia, tudo aquilo me pertenceria:
- Que destino tencionas dar-me?
- Tens duas opções, boneca. Vou proporcionar uma noite de repouso ao ferimento que ainda não sarou totalmente. Por conseguinte, escolhe: ou te vestes e regressas a casa ou dormes no sofá. Sem companhia.
- Estás mesmo empenhado em destruir a tua reputação, hem?
Proferiu as palavras como uma afirmação solene, mas o sorriso privou-as de agressividade”.
Lá anda Mike Hammer cheio de dores à traulitada, e a sua excitação cresce, como se lê: “Apesar de não ter sido disparado qualquer tiro, a excitação nervosa resultante do fato de Ugo e Howie Drago quase me terem abatido iniciara uma reação nas minhas entranhas, e sentia as agulhas da dor a começarem a atuar em lugares sensíveis, até que terminariam por se converter em espigões de ferro em brasa”.
Numa atmosfera de astúcia, prossegue a caça ao tesouro, mais emboscadas, até ao confronto final com Ugo Ponti. Importa não esquecer Mike Hammer é um cavaleiro irrepreensível. Tudo termina em bem Mike e Velda tecem juras de amor, ele vai-se tratar, continua muito ferido, a seu tempo casarão. Como é que é possível resistir a estas histórias tão bem contadas, a esta narrativa que não nos concede pausas, tão luminosa?
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Nota do editor
Último poste da série de 6 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13468: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (2): "Poesia africana di rivolta!", por Giuseppe Tavani - Poesia de revolta dos tempos anticoloniais, em português
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 13 de agosto de 2014
Guiné 63/74 - P13490: Blogpoesia (387): Manchas e nódoas... (J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)
Manchas e nódoas…
por J. L. Mendes Gomes
Não deixam de ser glaciares
Aquelas montanhas de neve
Que cobrem os polos da Terra,
Com algumas refegas negras.
Não deixa de ser azul
O céu,
Com algumas nuvens voando.
Nem o mar sereno
Com alguns arrufos
De tempestade.
Não se perde um concerto ao piano,
Tocado por mãos divinas,
Se houver uma nota em falso.
E a felicidade que nos banha a alma,
Com uma névoa de dor no corpo.
E um copo de vinho bom,
Mesmo que lhe caia dentro
um cisco…
O bem é bem, porque o mal existe…
Senão, tudo seria igual.
Que seria das montanhas belas
Se tudo fosse uma planície verde?
E do arroz de forno
Que não deixa esturro?
A harmonia total
Nunca existiu
Nem existirá…
Calor sem frio…
O que seria?
Não há alegria perene
Sem uma mancha de tristeza.
Quão enssonsa seria a vida
Se não tivesse dias de alguma angústia…
Como é bom chegar a casa
Depois duma longa ausência!…
Mafra, 26 de Julho e 2014
7h51m
Joaquim Luís Mendes Gomes
_______________
Nota do editor
Último poste da série > 12 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13487: Blogpoesia (386): A mordaça (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381)
por J. L. Mendes Gomes
Não deixam de ser glaciares
Aquelas montanhas de neve
Que cobrem os polos da Terra,
Com algumas refegas negras.
Não deixa de ser azul
O céu,
Com algumas nuvens voando.
Nem o mar sereno
Com alguns arrufos
De tempestade.
Não se perde um concerto ao piano,
Tocado por mãos divinas,
Se houver uma nota em falso.
E a felicidade que nos banha a alma,
Com uma névoa de dor no corpo.
E um copo de vinho bom,
Mesmo que lhe caia dentro
um cisco…
O bem é bem, porque o mal existe…
Senão, tudo seria igual.
Que seria das montanhas belas
Se tudo fosse uma planície verde?
E do arroz de forno
Que não deixa esturro?
A harmonia total
Nunca existiu
Nem existirá…
Calor sem frio…
O que seria?
Não há alegria perene
Sem uma mancha de tristeza.
Quão enssonsa seria a vida
Se não tivesse dias de alguma angústia…
Como é bom chegar a casa
Depois duma longa ausência!…
Mafra, 26 de Julho e 2014
7h51m
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor
Último poste da série > 12 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13487: Blogpoesia (386): A mordaça (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381)
terça-feira, 12 de agosto de 2014
Guiné 63/74 - P13489: Convívios (616): VI Encontro do pessoal da CART 6254/72, dia 13 de Setembro de 2014, em Paramos - Espinho (Manuel Castro)
1. Mensagem do nosso camarada Manuel Castro (ex-Fur Mil Mec Auto da CART 6254 (Os Presentes do Olossato), Olossato, 1973/74), com data de 10 de Agosto de 2014:
Meu caro Carlos Vinhal,
Os ex-combatentes que fizeram parte da CART 6254/72, que esteve sediada no Olossato e depois no Dugal, vão levar a cabo, no dia 13 Setembro de 2014, o seu 6.º almoço/convívio.
O recepção será, às 10 horas, no Regimento de Engenharia n.º 3.
Pedia-te o favor de publicitares o nosso almoço, no site do Luís Graça.
Anexo o respectivo programa.
Contactos: Ex-Furriel Figueiredo (Seringas) 967 090 603 - Porto
Ex-Furriel Castro (Rodinhas) 962 471 506 - 258 731 207 - E-Mail: casadolaranjal@gmail.com
Carvalho e Sá (M.A.R.) 917 611 175 / 220 812 480
Um grande abraço e muito obrigado pela atenção
Manuel Castro
Ex-Fur Mil da CART 6254
casadolaranjal@gmail.com
____________
Nota do editor
Último poste da série de 19 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13418: Convívios (615): I Encontro de Paraquedistas do Oeste, dia 6 de Setembro de 2014, no Vimeiro (Lourinhã)
Meu caro Carlos Vinhal,
Os ex-combatentes que fizeram parte da CART 6254/72, que esteve sediada no Olossato e depois no Dugal, vão levar a cabo, no dia 13 Setembro de 2014, o seu 6.º almoço/convívio.
O recepção será, às 10 horas, no Regimento de Engenharia n.º 3.
Pedia-te o favor de publicitares o nosso almoço, no site do Luís Graça.
Anexo o respectivo programa.
Contactos: Ex-Furriel Figueiredo (Seringas) 967 090 603 - Porto
Ex-Furriel Castro (Rodinhas) 962 471 506 - 258 731 207 - E-Mail: casadolaranjal@gmail.com
Carvalho e Sá (M.A.R.) 917 611 175 / 220 812 480
Um grande abraço e muito obrigado pela atenção
Manuel Castro
Ex-Fur Mil da CART 6254
casadolaranjal@gmail.com
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Nota do editor
Último poste da série de 19 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13418: Convívios (615): I Encontro de Paraquedistas do Oeste, dia 6 de Setembro de 2014, no Vimeiro (Lourinhã)
Guiné 63/74 - P13488: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte VI: Julho de 1972: o insólito rapto, no dia 24, às 9h00 da noite, de 25 rapazes e 8 raparigas da tabanca balanta de Mero, nas proximidades de Bambadinca, efetuado um grupo IN estimado em 30 elementos
Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mero, Santa Helena ou Nhabijoes > c. 1970 > Bajuda balanta. Estas povoações, de população balanta, eram consaideradas "sob duplo controlo", ao tempo da do BCAÇ 2852 (1968/70) e da CCAÇ 12 (1969/71)
Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mero > Ponta Brandão > c. 1970 > Na foto, dois velhos balantas, um deles cego, que é conduzido por outro completamente nu (apenas com um rudimentar tapa-sexo).
Fotos do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-fur mil io esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Fotos: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados [Ediçãoe legendagem: LG]
Fotos: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados [Ediçãoe legendagem: LG]
1. Continuação da publicação da história da unidade - BART 3873 (Bambadinca, 1972/74). Cópia digitalizada, em formato pdf, gentilmente disponibilizada pelo António Duarte.
[António Duarte, ex-fur mil da CART 3493, companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972/74; foi voluntário para a CCAÇ 12 (em 1973/74); economista, bancário reformado, foto atual à esquerda].
Destaque, no mês de julho de 1972, para o insólito rapto, no dia 24, às 9h00 da noite, de 25 rapazes e 8 raparigas da tabanca balanta de Mero, nas proximidiades de Bambadinca, efetuado um grupo IN estimado em 30 elementos. Mero sempre considerada, desde o início da guerra, como sendo uma população sob duplo controlo. Ficava nas proximiddaes de Bambadinca, na margem esquerda do Rio Geba Estreito. (LG)
Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Carta de Bambadinca (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Nhabijões, Mero e Santa Helena, três tabancas consideradas, desde o início da guerra, como estando "sob duplo controlo", ou seja, com população (maioritariamente balanta) que tinha parentes no mapa, controlada pelo PAIGC... Em Finete, Missirá e Fá Mandinga havia destacamentos nossos.
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014).
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Nota do editor
5 de agosto 2014 > Guiné 63/74 - P13464: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte V: Junho de 1972: Tentativa frustrad de golpe de mão do Xitole, por parte do IN... Por sua vez, o gen Spínola preside á cermónia de encerramento do 2º turnmo de instrução de milícias...
5 de agosto 2014 > Guiné 63/74 - P13464: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte V: Junho de 1972: Tentativa frustrad de golpe de mão do Xitole, por parte do IN... Por sua vez, o gen Spínola preside á cermónia de encerramento do 2º turnmo de instrução de milícias...
Guiné 63/74 - P13487: Blogpoesia (386): A mordaça (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381)
1. Em mensagem do dia 5 de Agosto de 2014, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos este belíssimo poema:
Tempo de férias – tempo para dar asas ao pensamento e escrever.
Abraço e boas férias
José Teixeira
A mordaça
Silencia-se o passado.
Encobre-se as suas memórias,
Frustrações.
Contam-se “estórias”,
Pintam-se factos.
Criam-se heróis.
Justificam-se acontecimentos.
Causas reais, para o mundo apodrecer.
Silencia-se o presente,
Escondem-se os “sem-abrigo”,
Continuamente a crescer.
Destrói-se a estratosfera,
Sem “ninguém” saber.
Nos solos deitam-se químicos,
Para mais rápido enriquecer.
E envenena-se, assim, o vivo SER.
A vida não tem valor,
Importa apenas o TER.
Silencia-se o futuro,
Nesta forma de crescer,
Enriquecer,
De alguns, muitos, talvez,
À custa das gerações que hão de vir.
E rouba-se-lhes o direito a viver.
E é uma tentação.
Queimamos, destruímos, exploramos
Em demasia a riqueza,
Que a alguns enriquece.
Dom de Deus, a Natureza,
Se esgota e murcha e desaparece.
José Teixeira
____________
Nota do editor
Último poste da série de 7 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13471: Blogpoesia (385): É preciso libertar o homem (José Teixira, ex-1.º Cabo Aux Enf)
Tempo de férias – tempo para dar asas ao pensamento e escrever.
Abraço e boas férias
José Teixeira
A mordaça
Silencia-se o passado.
Encobre-se as suas memórias,
Frustrações.
Contam-se “estórias”,
Pintam-se factos.
Criam-se heróis.
Justificam-se acontecimentos.
Causas reais, para o mundo apodrecer.
Silencia-se o presente,
Escondem-se os “sem-abrigo”,
Continuamente a crescer.
Destrói-se a estratosfera,
Sem “ninguém” saber.
Nos solos deitam-se químicos,
Para mais rápido enriquecer.
E envenena-se, assim, o vivo SER.
A vida não tem valor,
Importa apenas o TER.
Silencia-se o futuro,
Nesta forma de crescer,
Enriquecer,
De alguns, muitos, talvez,
À custa das gerações que hão de vir.
E rouba-se-lhes o direito a viver.
E é uma tentação.
Queimamos, destruímos, exploramos
Em demasia a riqueza,
Que a alguns enriquece.
Dom de Deus, a Natureza,
Se esgota e murcha e desaparece.
José Teixeira
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Nota do editor
Último poste da série de 7 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13471: Blogpoesia (385): É preciso libertar o homem (José Teixira, ex-1.º Cabo Aux Enf)
Guiné 63/74 - P13486: Os nossos seres, saberes e lazeres (72): Nas noites de Agosto recordando a minha aldeia (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)
1. Texto do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviado em mensagem com data de 7 de Agosto de 2014:
Árvores estranhas, onde todos os seus ramos se erguem na vertical, como que a rezar a um deus desconhecido. Mais altas, outro andar, acima do prédio de 5 andares, perto do qual foram plantadas, num pequeno espaço ajardinado no topo sul. Sentado na varanda da minha casa, na procura de algum ar noturno mais fresco, observo a dança suave que a aragem marítima, o mar está a um quilómetro, provoca nos dois ramos centrais, tão iguais que parecem gémeos, que o vento vai unindo e separando. As árvores são duas, bastante próximas, com a mesma altura, com os mesmos dois ramos fortes que se formam do tronco principal que se divide, a dois metros de altura depois de emergir do solo.
Noite quente que aquece o corpo e relaxa o cérebro e dispersa o pensamento e a memória. Estas árvores, que à frente e atrás rodeiam o prédio onde moro, árvores que não conheço, tal como as da maioria da cidade e das quais ninguém me sabe dizer um nome. Dão tanta sombra e tanta vida à cidade mas a maioria são tratadas como coisas de cimento e tijolo sem o nome que todos os seres vivos que nascem, crescem, vivem e morrem, têm e merecem..
Na pequena aldeia onde nasci e onde me criaram, todas as árvores, arbustos, animais, pessoas, montes, vales, planícies, campos de cultivo, florestas, plantações, tudo tinha nome e à medida que íamos crescendo, íamo-nos familiarizando com esses nomes.
Aprendíamos a conhecer todo esse mundo que nos rodeava e éramos também, desde cedo, conhecidos por todos.
Há muitos anos, sendo eu já adulto, a viver na cidade grande, uma amiga da cidade, disse-me que gostaria de ter uma aldeia como eu. Talvez essa amiga se tenha apercebido do aconchego que nos dá uma aldeia onde há uma tão grande comunhão entre a natureza e os seus habitantes, onde todos se conhecem, se respeitam e onde a maioria se trata por tu.
Das grandes penas que trouxe e conservo da minha passagem por terras da Guiné é não ter conhecido melhor os seus povos e as suas árvores. Neste mês quente de Agosto em que parece que a solidão e o passado nos assombram mais, parece-me sentir ecoar pelos montes da minha aldeia e das próximas o som do Tango dos Barbudos, que transmitido do alto daqueles altifalantes parecidos grandes funis, abria sempre os arraiais das festas populares.
Tango que abre com rajadas de metralhadora que causam arrepios, alertam para o perigo mas também despertam o instinto guerreiro que existe mais adormecido ou desperto em todo o homem.
Mais tarde já com alguns conhecimentos de música clássica imaginei esses montes a repercutir os sons da Abertura 1812 de Tchaikovsky, a ecoar por montes e vales as badaladas dos sinos de Moscovo, o hino da marselhesa e os canhões do exército de Napoleão.
Imaginava eu que seria uma música mais adequada à beleza e à imponência dos montes onde fui criado. Os meus olhos foram educados na visão desses montes altos, baixos. arredondadados, aguçados e vales mais largos ou mais profundos, nessa paisagem tão agitada que parece um mar ondulado. O resto do mundo que vim conhecer foi sempre no confronto com aquele pequeno mundo que a mim sempre me pareceu tão grande. Teve já alguns grandes escritores que o souberam retratar. Nunca teve um grande poeta que o soubesse cantar, nem nunca teve um grande pintor que lhe soubesse transmitir a forma e o caracter que a minha sensibilidade artistica exige, sem que a saiba exprimir. Não sou poeta, não sou pintor, mas reconheceria esse poema e essa pintura se alguém soubesse reproduzir o que eu sinto.
Um grande abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
____________
Nota do editor
Último poste da série de 1 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13223: Os nossos seres, saberes e lazeres (71): O Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes visitou o Comando da Zona Marítima do Norte, instalado em Leça da Palmeira (Carlos Vinhal)
Árvores estranhas, onde todos os seus ramos se erguem na vertical, como que a rezar a um deus desconhecido. Mais altas, outro andar, acima do prédio de 5 andares, perto do qual foram plantadas, num pequeno espaço ajardinado no topo sul. Sentado na varanda da minha casa, na procura de algum ar noturno mais fresco, observo a dança suave que a aragem marítima, o mar está a um quilómetro, provoca nos dois ramos centrais, tão iguais que parecem gémeos, que o vento vai unindo e separando. As árvores são duas, bastante próximas, com a mesma altura, com os mesmos dois ramos fortes que se formam do tronco principal que se divide, a dois metros de altura depois de emergir do solo.
Noite quente que aquece o corpo e relaxa o cérebro e dispersa o pensamento e a memória. Estas árvores, que à frente e atrás rodeiam o prédio onde moro, árvores que não conheço, tal como as da maioria da cidade e das quais ninguém me sabe dizer um nome. Dão tanta sombra e tanta vida à cidade mas a maioria são tratadas como coisas de cimento e tijolo sem o nome que todos os seres vivos que nascem, crescem, vivem e morrem, têm e merecem..
Brunhoso - Foto: Brunhoso Mogadouto, com a devida vénia
Na pequena aldeia onde nasci e onde me criaram, todas as árvores, arbustos, animais, pessoas, montes, vales, planícies, campos de cultivo, florestas, plantações, tudo tinha nome e à medida que íamos crescendo, íamo-nos familiarizando com esses nomes.
Aprendíamos a conhecer todo esse mundo que nos rodeava e éramos também, desde cedo, conhecidos por todos.
Há muitos anos, sendo eu já adulto, a viver na cidade grande, uma amiga da cidade, disse-me que gostaria de ter uma aldeia como eu. Talvez essa amiga se tenha apercebido do aconchego que nos dá uma aldeia onde há uma tão grande comunhão entre a natureza e os seus habitantes, onde todos se conhecem, se respeitam e onde a maioria se trata por tu.
Das grandes penas que trouxe e conservo da minha passagem por terras da Guiné é não ter conhecido melhor os seus povos e as suas árvores. Neste mês quente de Agosto em que parece que a solidão e o passado nos assombram mais, parece-me sentir ecoar pelos montes da minha aldeia e das próximas o som do Tango dos Barbudos, que transmitido do alto daqueles altifalantes parecidos grandes funis, abria sempre os arraiais das festas populares.
Tango que abre com rajadas de metralhadora que causam arrepios, alertam para o perigo mas também despertam o instinto guerreiro que existe mais adormecido ou desperto em todo o homem.
Mais tarde já com alguns conhecimentos de música clássica imaginei esses montes a repercutir os sons da Abertura 1812 de Tchaikovsky, a ecoar por montes e vales as badaladas dos sinos de Moscovo, o hino da marselhesa e os canhões do exército de Napoleão.
Imaginava eu que seria uma música mais adequada à beleza e à imponência dos montes onde fui criado. Os meus olhos foram educados na visão desses montes altos, baixos. arredondadados, aguçados e vales mais largos ou mais profundos, nessa paisagem tão agitada que parece um mar ondulado. O resto do mundo que vim conhecer foi sempre no confronto com aquele pequeno mundo que a mim sempre me pareceu tão grande. Teve já alguns grandes escritores que o souberam retratar. Nunca teve um grande poeta que o soubesse cantar, nem nunca teve um grande pintor que lhe soubesse transmitir a forma e o caracter que a minha sensibilidade artistica exige, sem que a saiba exprimir. Não sou poeta, não sou pintor, mas reconheceria esse poema e essa pintura se alguém soubesse reproduzir o que eu sinto.
Um grande abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13223: Os nossos seres, saberes e lazeres (71): O Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes visitou o Comando da Zona Marítima do Norte, instalado em Leça da Palmeira (Carlos Vinhal)
segunda-feira, 11 de agosto de 2014
Guiné 63/74 - P13485: Blogoterapia (258): Palavras (Ernesto Duarte, ex-Fur Mil da CCAÇ 1421)
1. Mensagem do dia 5 de Agosto de 2014, do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67):
Olá Carlos, Olá Luís
Tudo de bom para vocês.
O meu modesto contributo, para quem está de Oficial Amanuense dia, poder dizer recebi mais um email!
Pois a pobreza aqui não é fruto da crise!
Palavra!
Palavras, há quem diga que são fios de ouro do pensamento!
Eu direi pepitas, pepitas grandes, gigantes!
Jóias raras, de uma grandeza que hipnotizam!
Lindas mesmo!
Ditas aqui com um sentido, ouvidas ali com outro!
Férias!
É uma dessas palavras!
Linda, mesmo muito linda!
Mas tão diferente!
Não só de lugar para lugar!
Mas de fulano para fulano!
E com a féria a ditar leis!
Como ela é importante e fundamenta!
Eu sou daqueles jovens que em teoria vou de férias!
Sim porque da nossa juventude, a grande maioria já está sempre de férias!
Tento ter o espírito da época!
Não perder tempo!
Ouvir o mundo à minha volta!
Mas continuar a pô-lo em causa!
Já tenho a noite na alma mas sem beijos de socorro, resta-me dançar com as árvores sem forma!
Estou assim como que perdido neste jardim de flores pretas e secas, e palavras, palavras que se não entendem!
Desculpem eu esquecia-me que sou daltónico, que sofro de miopia e de surdez!
Não me perdi nas matas misteriosas!
Nas bolanhas e rios sem fundo!
Nos caminhos cheios de lama!
Nos caminhos cheios de um pó que sufocava, e que em cada curva era retraçado o meu destino!
Contra minha vontade comecei em guerra, e vou acabar em guerra!
As armas são outras!
Muito mais difíceis de manusear!
Já não encontro os velhos da minha terra!
Sensação estranha sobe-me a coluna vertebral, o velho sou eu e os da minha idade!
Encontramo-nos, sentimos alegria!
As conversas são tão diferentes!
Os netos são o tudo!
Depois vem a nossa parte cultural!
Sim porque estamos muito mais cultos!
Sabemos algo de culinária!
Conhecemos alguns vinhos!
Mas o nosso forte é medicina e industria farmacêutica!
Conhecemos tanto médico!
Conhecemos hospitais!
Conhecemos e sabemos de exames médicos!
Sabemos o nome de tanto medicamento!
Já vamos sabendo nomes de lares!
Não é pessimismo é realidade!
As férias dos jovens da nossa idade, sejam elas com muita ou pouca féria, passadas no Polo Sul, ou no Polo Norte, as palavras diferem pouco!
Mais confusos!
Palavras mais confusas!
Fruto do tempo!
O tempo é outro, isso não há a mínima dúvida!
Um muito grande abraço para ti Carlos
Um muito grande abraço para ti Luís
E muito boas férias
Ernesto Duarte
____________
Nota do editor
Último poste da série de 2 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13456: Blogoterapia (257): Julgo que pelo menos a maioria de nós tínhamos medo, eu tinha, e às vezes muito, mas procurava não mostrar (Manuel Carvalho)
Olá Carlos, Olá Luís
Tudo de bom para vocês.
O meu modesto contributo, para quem está de Oficial Amanuense dia, poder dizer recebi mais um email!
Pois a pobreza aqui não é fruto da crise!
Palavra!
Palavras, há quem diga que são fios de ouro do pensamento!
Eu direi pepitas, pepitas grandes, gigantes!
Jóias raras, de uma grandeza que hipnotizam!
Lindas mesmo!
Ditas aqui com um sentido, ouvidas ali com outro!
Férias!
É uma dessas palavras!
Linda, mesmo muito linda!
Mas tão diferente!
Não só de lugar para lugar!
Mas de fulano para fulano!
E com a féria a ditar leis!
Como ela é importante e fundamenta!
Eu sou daqueles jovens que em teoria vou de férias!
Sim porque da nossa juventude, a grande maioria já está sempre de férias!
Tento ter o espírito da época!
Não perder tempo!
Ouvir o mundo à minha volta!
Mas continuar a pô-lo em causa!
Já tenho a noite na alma mas sem beijos de socorro, resta-me dançar com as árvores sem forma!
Estou assim como que perdido neste jardim de flores pretas e secas, e palavras, palavras que se não entendem!
Desculpem eu esquecia-me que sou daltónico, que sofro de miopia e de surdez!
Não me perdi nas matas misteriosas!
Nas bolanhas e rios sem fundo!
Nos caminhos cheios de lama!
Nos caminhos cheios de um pó que sufocava, e que em cada curva era retraçado o meu destino!
Contra minha vontade comecei em guerra, e vou acabar em guerra!
As armas são outras!
Muito mais difíceis de manusear!
Já não encontro os velhos da minha terra!
Sensação estranha sobe-me a coluna vertebral, o velho sou eu e os da minha idade!
Encontramo-nos, sentimos alegria!
As conversas são tão diferentes!
Os netos são o tudo!
Depois vem a nossa parte cultural!
Sim porque estamos muito mais cultos!
Sabemos algo de culinária!
Conhecemos alguns vinhos!
Mas o nosso forte é medicina e industria farmacêutica!
Conhecemos tanto médico!
Conhecemos hospitais!
Conhecemos e sabemos de exames médicos!
Sabemos o nome de tanto medicamento!
Já vamos sabendo nomes de lares!
Não é pessimismo é realidade!
As férias dos jovens da nossa idade, sejam elas com muita ou pouca féria, passadas no Polo Sul, ou no Polo Norte, as palavras diferem pouco!
Mais confusos!
Palavras mais confusas!
Fruto do tempo!
O tempo é outro, isso não há a mínima dúvida!
Um muito grande abraço para ti Carlos
Um muito grande abraço para ti Luís
E muito boas férias
Ernesto Duarte
____________
Nota do editor
Último poste da série de 2 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13456: Blogoterapia (257): Julgo que pelo menos a maioria de nós tínhamos medo, eu tinha, e às vezes muito, mas procurava não mostrar (Manuel Carvalho)
Guiné 63/74 - P13484: Notas de leitura (621): “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, por Artu Augusto da Silva (2) Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Fevereiro de 2014:
Queridos amigos,
Deplorando sempre não lhe terem dado condições para um trabalho de equipa, Artur Augusto da Silva, além de jurista emérito, por sua conta e risco procedeu a inúmeras deslocações para conhecer in loco o seu objeto de estudo, parece que tudo o interessava: os Balantas, os Sôssos, os Fulas, os Mandingas, os Felupes. Sente-se o grande prazer que ele teve neste trabalho pioneiro sobre o Felupes, trabalho que ele abre com um provérbio deste povo: “O burro e a lebre têm ambos orelhas grandes mas não são irmãos um do outro”. Trata-se de uma revelação surpreendente de um povo de que se fala com tanto preconceito e de que se desconhece quase tudo.
Um abraço do
Mário
Direitos civil e penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau (2)
Beja Santos
Artur Augusto da Silva [foto à direita], não é de mais insistir, foi um investigador por conta própria, sempre apelou ao trabalho de equipa, que não veio, e deixou trabalhos jurídicos e um apreciável número de obras de imenso valor no campo da etnologia, da etnografia e do direito costumeiro. Se se pedisse uma prova eloquente das suas preocupações rigorosas como cientista social e investigador solitário, probo e meticuloso, não hesitaria em pôr à frente este trabalho sobre o direito dos Felupes (“Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, 4.ª edição, DEDILD, Bissau 1983). Em jeito introdutório, o autor recrimina aqueles que vêm apressadamente até África para produzir algo sem se preocupar em conhecer a essência do africano, assim: “Quem queira compreender a África Negra na sua verdadeira realidade, não pode fazer fé na maioria dos trabalhos publicados porque eles são o resultado de uma interpretação, de uma projeção da psicologia europeia sobre aquele continente, e não uma radiografia da alma africana.
Mesmo discutindo ou conversando com reputados etnólogos de diversos países, chegámos à conclusão que eles afloraram a realidade mas não conseguiram penetrar no âmago da psicologia do afro-negro que permanece, para eles, um ser estranho.
Duas razões justificam o facto: por um lado, sendo profissionais, precisam de publicar trabalhos e é vê-los, mal chegados ao campo de operações, indagando, medindo, pesando e analisando, sem que primeiro tenham procurado, através de um prolongado estágio, fazer esquecer o que sabiam para que pudessem captar a psicologia daqueles com quem estavam em contacto.
Por outro lado, não conseguindo pôr de parte dois mil anos de cultura que, embora não tragam nas malas, trazem no espírito, reduzem tudo ao padrão europeu e procuram encontrar a sua lógica por toda a parte, impõem-na aos outros e não concebem que possam existir outros modos de pensar e agir.
Daqui resulta que a maioria dos estudos sobre os negros são mais uma projeção da mentalidade europeia deformada do que uma análise objetiva desses povos".
Cético em considerar que os Felupes pertencem ao ramo sudanês, refere os escritores portugueses que desde o século XV mencionam os Felupes, localizando-os onde ainda hoje habitam. Por exemplo, Lemos Coelho (Duas Descrições Seiscentistas da Guiné, escritas em 1669 e 1684) refere-se detidamente a estes povos, como escreveu: “Saindo do rio da Gâmbia pela costa abaixo… está logo o rio S. João… a gente são falupos”. Acrescenta: “… da banda no norte do rio de Casamansa tudo são falupos”. Esclarece: “Passando o rio de Jame o que se segue é o de Cacheu. Toda a costa são falupos”. Os Felupes posicionavam-se desde o rio Gâmbia até ao sul do rio Cacheu, pouco penetrando para o interior. Viviam na costa, junto aos inúmeros esteiros, rios e riachos que cortam a Senegâmbia e a região Susana-Varela. Tiveram grandes hostilidades com os Mandingas, estes, em maior número e grandes guerreiros, queriam cativar os Felupes e vendê-los como escravos. Não se deixaram islamizar, coisa que aconteceu com o ramo Banhum. Mesmo antes da luta armada iniciou-se um processo lento de muçulmanização.
Em termos históricos, a palavra Felupe foi usada desde o século XV pelos portugueses generalizou-se a outras tribos: Buramos, Cassamgas, Banhuns, Arriatas, Jabundos e Baiotes, hoje estas etnias estão bem demarcadas.
Para os Felupes a vida é um todo, a unidade dos preceitos reguladores da atividade dos homens é completa. Todos os fenómenos da vida são determinados pela vontade das forças sobrenaturais, os homens são simples agentes passivos dessa vontade. O mundo dos Felupes é governado pelas “forças deuses”, cada uma dessas forças possui uma virtude própria e o seu contrário: os deuses que podem produzir a morte podem, também, curar os homens. Este mundo religioso está intimamente articulado com o quotidiano e a sua plenitude de atividades. Como o autor escreve: “Há uma refeição sagrada que os Felupes celebram familiarmente quando colhem o primeiro arroz, este arroz simboliza a palingenesia de tudo o que existe – tudo nasce, cresce, desaparece e torna a nascer – e simboliza a comunhão do povo do espírito dos primeiros Felupes que cultivaram arroz”. É um mundo religioso determinado por forças incorpóreas, onde há intermediários divinatórios e onde há o tchina grande, a autoridade suprema. O sentido coletivo pesa e a opinião do Conselho dos Anciãos é determinante.
Para surpresa do autor, encontrou palavras Felupes derivadas do português: carafa (garrafa), papé (papai), biber (bebida), cagana (caganeira). A família Felupe, em sentido restrito, é um conjunto de indivíduos ligados por laços de sangue e que vivem debaixo da autoridade de um chefe. Quando um Felupe fala na sua família, tem em mente só aqueles que vivem debaixo da autoridade do seu pai, avô, tio ou irmão, que habitam na mesma tabanca e descendem de um antepassado comum. Os Felupes desconhecem a instituição servil: nunca tiveram escravos e não os têm. Quando, nalguma guerra, faziam prisioneiros, ou os negociavam ou os comiam. A antropofagia praticada pelos Felupes desde tempos muito recuados está em vias de desaparecimento. O trabalho debruça-se sobre o casamento, a filiação, as cerimónias fúnebres. Passando para os direitos reais, o autor recorda que o Felupe vive em regime comunitário, não se concebe que alguém se intitule dono daquilo que não produziu. E escreve: “O gado e as bolanhas são a expressão mais acabada do orgulho de uma família Felupe. O número das cabeças de gado e a extensão e produtividade das bolanhas são o padrão demonstrativo do zelo e amor pelo trabalho, não só do chefe de família como de todos os seus membros. Além disso, põem-nos ao abrigo dos maus anos que falta arroz. Não há uma família Felupe que não tenha, no fim das colheitas, nos seus celeiros dentro de casa, uma suficiente reserva de arroz, bastando no geral, para alimentá-la durante dois anos”.
O autor analisa também os diferentes contratos da sociedade Felupe e o direito de sucessões dizendo: “O princípio dominante em todo o capítulo das sucessões é o de que sendo a família quem possui as casas e os terrenos de lavor, não lugar à transmissão dos bens mas unicamente a transferência de administrador desses bens”.
Quanto ao direito penal, o autor recorda que o social e religioso estão interligados. O crime, para os Felupes, não implica, em princípio, atos volitivos porque se refere aos resultados e não à intensão, os Felupes distinguem perfeitamente o homicídio voluntário do involuntário. Elenca as interdições e atos desaconselhados e um vasto leque de sansões na ordem familiar e na ordem coletiva. E no termo do seu ensaio, Artur Augusto da Silva deixa-nos uma curiosidade que seguramente surpreenderá o leitor: “Os Felupes usam a mesma palavra para designar paz, felicidade e liberdade, facto de uma importância transcendente para a compreensão da filosofia prática desta etnia. Os três conceitos são, na vida de um povo, inteiramente insolúveis e bom seria para a humanidade que, em todas as línguas, estas três palavras fossem rigorosamente sinónimas…”
____________
Nota do editor
Último poste da série de 8 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13474: Notas de leitura (620): “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, por Artur Augusto da Silva (1) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Deplorando sempre não lhe terem dado condições para um trabalho de equipa, Artur Augusto da Silva, além de jurista emérito, por sua conta e risco procedeu a inúmeras deslocações para conhecer in loco o seu objeto de estudo, parece que tudo o interessava: os Balantas, os Sôssos, os Fulas, os Mandingas, os Felupes. Sente-se o grande prazer que ele teve neste trabalho pioneiro sobre o Felupes, trabalho que ele abre com um provérbio deste povo: “O burro e a lebre têm ambos orelhas grandes mas não são irmãos um do outro”. Trata-se de uma revelação surpreendente de um povo de que se fala com tanto preconceito e de que se desconhece quase tudo.
Um abraço do
Mário
Direitos civil e penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau (2)
Beja Santos
Artur Augusto da Silva [foto à direita], não é de mais insistir, foi um investigador por conta própria, sempre apelou ao trabalho de equipa, que não veio, e deixou trabalhos jurídicos e um apreciável número de obras de imenso valor no campo da etnologia, da etnografia e do direito costumeiro. Se se pedisse uma prova eloquente das suas preocupações rigorosas como cientista social e investigador solitário, probo e meticuloso, não hesitaria em pôr à frente este trabalho sobre o direito dos Felupes (“Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, 4.ª edição, DEDILD, Bissau 1983). Em jeito introdutório, o autor recrimina aqueles que vêm apressadamente até África para produzir algo sem se preocupar em conhecer a essência do africano, assim: “Quem queira compreender a África Negra na sua verdadeira realidade, não pode fazer fé na maioria dos trabalhos publicados porque eles são o resultado de uma interpretação, de uma projeção da psicologia europeia sobre aquele continente, e não uma radiografia da alma africana.
Mesmo discutindo ou conversando com reputados etnólogos de diversos países, chegámos à conclusão que eles afloraram a realidade mas não conseguiram penetrar no âmago da psicologia do afro-negro que permanece, para eles, um ser estranho.
Duas razões justificam o facto: por um lado, sendo profissionais, precisam de publicar trabalhos e é vê-los, mal chegados ao campo de operações, indagando, medindo, pesando e analisando, sem que primeiro tenham procurado, através de um prolongado estágio, fazer esquecer o que sabiam para que pudessem captar a psicologia daqueles com quem estavam em contacto.
Por outro lado, não conseguindo pôr de parte dois mil anos de cultura que, embora não tragam nas malas, trazem no espírito, reduzem tudo ao padrão europeu e procuram encontrar a sua lógica por toda a parte, impõem-na aos outros e não concebem que possam existir outros modos de pensar e agir.
Daqui resulta que a maioria dos estudos sobre os negros são mais uma projeção da mentalidade europeia deformada do que uma análise objetiva desses povos".
Cético em considerar que os Felupes pertencem ao ramo sudanês, refere os escritores portugueses que desde o século XV mencionam os Felupes, localizando-os onde ainda hoje habitam. Por exemplo, Lemos Coelho (Duas Descrições Seiscentistas da Guiné, escritas em 1669 e 1684) refere-se detidamente a estes povos, como escreveu: “Saindo do rio da Gâmbia pela costa abaixo… está logo o rio S. João… a gente são falupos”. Acrescenta: “… da banda no norte do rio de Casamansa tudo são falupos”. Esclarece: “Passando o rio de Jame o que se segue é o de Cacheu. Toda a costa são falupos”. Os Felupes posicionavam-se desde o rio Gâmbia até ao sul do rio Cacheu, pouco penetrando para o interior. Viviam na costa, junto aos inúmeros esteiros, rios e riachos que cortam a Senegâmbia e a região Susana-Varela. Tiveram grandes hostilidades com os Mandingas, estes, em maior número e grandes guerreiros, queriam cativar os Felupes e vendê-los como escravos. Não se deixaram islamizar, coisa que aconteceu com o ramo Banhum. Mesmo antes da luta armada iniciou-se um processo lento de muçulmanização.
Em termos históricos, a palavra Felupe foi usada desde o século XV pelos portugueses generalizou-se a outras tribos: Buramos, Cassamgas, Banhuns, Arriatas, Jabundos e Baiotes, hoje estas etnias estão bem demarcadas.
Felupes a pescar, imagem retirada, com a devida vénia, do site:
http://actd.iict.pt/view/actd:AHUD26211
Para os Felupes a vida é um todo, a unidade dos preceitos reguladores da atividade dos homens é completa. Todos os fenómenos da vida são determinados pela vontade das forças sobrenaturais, os homens são simples agentes passivos dessa vontade. O mundo dos Felupes é governado pelas “forças deuses”, cada uma dessas forças possui uma virtude própria e o seu contrário: os deuses que podem produzir a morte podem, também, curar os homens. Este mundo religioso está intimamente articulado com o quotidiano e a sua plenitude de atividades. Como o autor escreve: “Há uma refeição sagrada que os Felupes celebram familiarmente quando colhem o primeiro arroz, este arroz simboliza a palingenesia de tudo o que existe – tudo nasce, cresce, desaparece e torna a nascer – e simboliza a comunhão do povo do espírito dos primeiros Felupes que cultivaram arroz”. É um mundo religioso determinado por forças incorpóreas, onde há intermediários divinatórios e onde há o tchina grande, a autoridade suprema. O sentido coletivo pesa e a opinião do Conselho dos Anciãos é determinante.
Para surpresa do autor, encontrou palavras Felupes derivadas do português: carafa (garrafa), papé (papai), biber (bebida), cagana (caganeira). A família Felupe, em sentido restrito, é um conjunto de indivíduos ligados por laços de sangue e que vivem debaixo da autoridade de um chefe. Quando um Felupe fala na sua família, tem em mente só aqueles que vivem debaixo da autoridade do seu pai, avô, tio ou irmão, que habitam na mesma tabanca e descendem de um antepassado comum. Os Felupes desconhecem a instituição servil: nunca tiveram escravos e não os têm. Quando, nalguma guerra, faziam prisioneiros, ou os negociavam ou os comiam. A antropofagia praticada pelos Felupes desde tempos muito recuados está em vias de desaparecimento. O trabalho debruça-se sobre o casamento, a filiação, as cerimónias fúnebres. Passando para os direitos reais, o autor recorda que o Felupe vive em regime comunitário, não se concebe que alguém se intitule dono daquilo que não produziu. E escreve: “O gado e as bolanhas são a expressão mais acabada do orgulho de uma família Felupe. O número das cabeças de gado e a extensão e produtividade das bolanhas são o padrão demonstrativo do zelo e amor pelo trabalho, não só do chefe de família como de todos os seus membros. Além disso, põem-nos ao abrigo dos maus anos que falta arroz. Não há uma família Felupe que não tenha, no fim das colheitas, nos seus celeiros dentro de casa, uma suficiente reserva de arroz, bastando no geral, para alimentá-la durante dois anos”.
O autor analisa também os diferentes contratos da sociedade Felupe e o direito de sucessões dizendo: “O princípio dominante em todo o capítulo das sucessões é o de que sendo a família quem possui as casas e os terrenos de lavor, não lugar à transmissão dos bens mas unicamente a transferência de administrador desses bens”.
Quanto ao direito penal, o autor recorda que o social e religioso estão interligados. O crime, para os Felupes, não implica, em princípio, atos volitivos porque se refere aos resultados e não à intensão, os Felupes distinguem perfeitamente o homicídio voluntário do involuntário. Elenca as interdições e atos desaconselhados e um vasto leque de sansões na ordem familiar e na ordem coletiva. E no termo do seu ensaio, Artur Augusto da Silva deixa-nos uma curiosidade que seguramente surpreenderá o leitor: “Os Felupes usam a mesma palavra para designar paz, felicidade e liberdade, facto de uma importância transcendente para a compreensão da filosofia prática desta etnia. Os três conceitos são, na vida de um povo, inteiramente insolúveis e bom seria para a humanidade que, em todas as línguas, estas três palavras fossem rigorosamente sinónimas…”
____________
Nota do editor
Último poste da série de 8 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13474: Notas de leitura (620): “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, por Artur Augusto da Silva (1) (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P13483: "Francisco Caboz", um padre franciscano, natural de Ribamar, Lourinhã, na guerra colonial (Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1913, Catió, 1967/69): Parte II: Viagem no T/T Uíge até Bissau, em setembro de 1967, e depois até Catió, de DO 27 pilotada pelo srgt Honório
Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão (CCS/BART 1913, Catiói, 1967/69).[ Foto tirada pelo nosso saudoso Victor Condeço, 1943-2010, que foi fur mil mec armam, CCS/BART 1913].
1. Continuação da publicação do testemunho do nosso camarada, o grã-tabanqueiro Horácio Fernandes.que foi alf mil capelão no BART 1913 (Catió, 1967/69) (*)
Esse tstemunho é um excerto do seu livro autobiográfico, "Francisco Caboz; a construção e a desconstrução de um padre" (Porto: Papiro Editora, 2009, pp. 127-162).
O Horácio Fernandes vive no Porto. Vestiu o hábito franciscano, tendo sido ordenado padre em 1959. Deixou o sacerdócio no início dos anos 70. É casado, tem 3 filhos. Está reformado da Inspeção Geral de Educação onde trabalhou 25 anos na zona norte. Em 2006 doutorou-se em ciências da educação pela Universidadfe de Salamanca, Espanha.
Foi o nosso camarada e amigo Alberto Branquinho quem descobriu o paradeiro do seu antigo capelão (*).Tenho a autorização verbal do autor (que de resto é meu parente e conterrâneo), dada por altura do nosso reencontro, 50 anos depois da sua missa nova (em 15 de agosto de 1959, em Ribamar, sua terra natal), para reproduzir esta parte do livro, relativa à sua experiênciade como capelão militar na Guiné, muito marcante e decisiva para o seu futuro como homem e como padre.
O Horácio Fernandes vive no Porto. Vestiu o hábito franciscano, tendo sido ordenado padre em 1959. Deixou o sacerdócio no início dos anos 70. É casado, tem 3 filhos. Está reformado da Inspeção Geral de Educação onde trabalhou 25 anos na zona norte. Em 2006 doutorou-se em ciências da educação pela Universidadfe de Salamanca, Espanha.
Foi o nosso camarada e amigo Alberto Branquinho quem descobriu o paradeiro do seu antigo capelão (*).Tenho a autorização verbal do autor (que de resto é meu parente e conterrâneo), dada por altura do nosso reencontro, 50 anos depois da sua missa nova (em 15 de agosto de 1959, em Ribamar, sua terra natal), para reproduzir esta parte do livro, relativa à sua experiênciade como capelão militar na Guiné, muito marcante e decisiva para o seu futuro como homem e como padre.
O livro já aqui foi objeto de recensão crítica por parte do nosso camarada Beja Santos (*).
Francisco Caboz é o "alter ego" do Horácio Fermandes (n. 1935, Ribamar, Lourinhã). O livro começou por ser uma tese de dissertação de mestrado em ciências da educação, pela Univeridade do Porto (1995): Francisco Caboz: de angfélico ao trânsfuga, uma autobiografia. Nesta II parte (pp. 135/139), o autor relata-nos à sua viagem até Bisssau e depois até Catió, onde foi colocado como capelão, em setembro de 1967, em rendição individual, na CCS/BART 1913.
_______________
Nota do editor:
(*) Vd. primeiro poste da série > 9 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13477: "Francisco Caboz", um padre franciscano, natural de Ribamar, Lourinhã, na guerra colonial (Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1913, Catió, 1967/69): Parte I: Passagem pela Academia militar aos 32 anos
(*) Vd. primeiro poste da série > 9 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13477: "Francisco Caboz", um padre franciscano, natural de Ribamar, Lourinhã, na guerra colonial (Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1913, Catió, 1967/69): Parte I: Passagem pela Academia militar aos 32 anos
domingo, 10 de agosto de 2014
Guiné 63/74 - P13482: Efemérides (171): Relembrando o naufrágio no Rio Geba, no dia 10 de Agosto de 1972, em que perderam a vida três camarada da CART 3494 (Jorge Araújo)
1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 8 de Agosto de 2014:
Caríssimo Camarada Carlos Vinhal
Os meus melhores cumprimentos.
O Naufrágio no Rio Geba ocorrido no dia 10AGO1972, independentemente de estar a uma distância de quarenta e dois anos – faz hoje – foi, é e continuará a ser um tema sensível no contexto dos ex-combatentes da CART 3494, do BART 3873, por ter provocado, de forma perfeitamente estúpida, o desaparecimento de três dos seus membros por afogamento.
Porque estivemos envolvidos nessa experiência de forma intensa, em que durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, como referimos na introdução, continuamos a considerar tarefa difícil fazer-se o seu luto, tão fortes foram as emoções e as tensões que ocasionaram.
Dito isto, não podia deixar de prestar, nesta data, mais uma singela homenagem aos camaradas naufragados, relembrando/recordando alguns detalhes desse evento, adicionando-lhe outros factos associados que merecem a nossa relevância social e histórica.
Eis, em anexo, mais um contributo historiográfico, para memória futura, sobre as nossas vivências no CTIG.
Obrigado.
Um forte abraço.
Jorge Araújo.
Ago2014.
I – O NAUFRÁGIO
Introdução
Em 2012, faz hoje precisamente dois anos [Vd. P10246(1)], tomei a iniciativa de divulgar, na primeira pessoa, as ocorrências relacionadas com um acontecimento que marcou a vida colectiva dos ex-combatentes da CART 3494, em particular daqueles que directamente nele estiveram envolvidos – uma secção reforçada do 1.º GComb – e que ficou conhecido, na história da Companhia e do BART 3873, como o «Naufrágio no Rio Geba».
Como referi nesse testemunho histórico, durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, sendo que este último conceito viria a aplicar-se, lamentavelmente, a três dos catorze militares que naquela 5.ª feira, 10AGO1972, faz hoje quarenta e dois anos, tinham por missão fazer a travessia entre as margens esquerda e direita do Rio Geba, por esta ordem, com o objectivo operacional de sinalizar eventuais vestígios deixados no terreno pelo IN, vulgo reconhecimento à zona circunvolvente ao Destacamento de Mato Cão.
Relembramos, neste contexto, que a travessia do Rio Geba, a iniciar-se no Cais do Xime, sito a 250/300 metros do Aquartelamento da Companhia, seria feita com recurso a um bote de fibra de vidro conhecido por Sintex, com motor fora de bordo de 50 cavalos, sendo sugerido no protocolo de utilização, como elemento de segurança, que a sua lotação não deveria ultrapassar a dezena de indivíduos, incluindo o barqueiro. Contudo o universo de efectivos militares destacados para esta missão era constituído por nove praças devidamente equipados, por mim próprio, e ainda pelo CMDT da Companhia, o ex-Cap. Pereira da Costa, pelo ex-Alf. Sousa, em situação de Estágio Operacional e pelo ex-Major de Operações Henrique Jales Moreira [o mais graduado], bem como pelo barqueiro do Sintex.
O naufrágio [relembrando alguns detalhes]
Com a navegação a cargo do barqueiro, como seria natural e normal, com o motor a desempenhar a sua função e com as águas muito agitadas por efeito do macaréu, cada um de nós não deixou de se interrogar quanto ao sucesso da «aventura» em que tínhamos embarcado e que, pouco tempo depois, deixou de ter hipóteses de retrocesso.
O pânico subia à medida que a embarcação se aproximava da cabeça do macaréu, cada vez com mais agitação e remoinhos à mistura. Naquele momento, um novo conceito surgiu no léxico dos militares, particularmente nas praças, que traduzia o sentimento que estavam a viver… “eu não sei nadar”, no princípio entredentes e depois mais audíveis e expressivos. O cenário começava, então, a ficar cinzento, deslizando para uma cor cada vez mais escura, independentemente de estar um dia óptimo, cheio de sol e com a temperatura ambiente a aumentar.
A pergunta filosófica que, certamente, cada um formulou para si, era a de saber como poderíamos sair daquele imbróglio, sãos e salvos? Entretanto, uma nova ordem foi dada, visando criar algumas réstias de esperança quanto à possibilidade e/ou às probabilidades de sobrevivência colectiva, apontando para uma “navegação o mais perto possível da margem esquerda”, ou seja, a mesma donde partíramos.
Quando nos encontrávamos a cerca de quatro/cinco metros do tarrafo – zona de lodo ainda não submersa, e onde habitualmente a comunidade de crocodilos [alfaiates; conceito militar] se organizava em frisa apanhando os seus banhos de sol [imagem acima] e, eventualmente, observava as suas presas – eis que se escuta uma nova ordem: “haja um que salte para o tarrafo levando consigo as correntes do bote com o objectivo de o poder suster”.
Olhando à minha volta, e perante a ausência de candidatos e/ou voluntários disponíveis para o cumprimento deste desiderato, eis que tomámos em mãos esse desafio. Porque a embarcação continuava instável face à movimentação das águas [imagem abaixo], o salto só poderia acontecer quando a distância entre o bote e a lodo fosse de molde a facilitar a operação proposta. Não sendo possível identificar o melhor momento para o salto, eis que no tempo «X» saltámos levando nas mãos a dita corrente já referida anteriormente. Durante o salto, feito de frente para o tarrafo, ouvimos, vindo da nossa rectaguarda, um ruído provocado pelo embate da proa do bote na parte mais alta do lodo, tendo como consequência a inclinação do mesmo projectando para a água todos os seus ocupantes.
Primeiro os que se encontravam no lado esquerdo da embarcação e depois os do lado direito, por efeito do desequilíbrio provocado pela transferência de peso que então ocorrera [lei da física].
De seguida, na água a luta era extremamente desigual entre o poder do Homem versus o poder da maré. Cada um dos militares, equipado e vestido com o seu camuflado que lhe dificultava a mobilidade no meio daquele líquido espesso e lodoso [imagem acima], procurava chegar a terra firme o mais rapidamente possível, pondo-se a salvo. E isso aconteceu a oito de um total de catorze elementos.
Dos seis em falta, três conseguiram entrar no bote: o barqueiro, o Miranda [1.º cabo de dilagramas] que, remando com a sacola das suas granadas, ajudou a recolher o ex-Major Jales Moreira em situação problemática. E os três seguiram ao sabor da corrente na direcção de Bambadinca, local onde estava sediado o Batalhão.
Os outros três elementos em falta eram: José Maria da Silva Sousa [de S. Tiago de Bougado, Trofa Velha (Santo Tirso)], Manuel Salgado Antunes [de Quimbres, São Silvestre (Coimbra)] e Abraão Moreira Rosa [da Póvoa de Varzim], que acabariam por desaparecer nas águas escuras e lodosas do Rio Geba, sem que existisse qualquer hipótese de salvamento [Vd. P10246(1)].
A recuperação dos náufragos
A angústia e a ansiedade dominaram o resto deste dia e dos subsequentes, desenvolvendo-se a crença e/ou a expectativa dos corpos dos desaparecidos poderem ser recuperados. Porém, essa crença e/ou expectativa apenas se concretizou uma vez, lamentavelmente. Decorridas mais de trinta horas após o acidente foi localizado um corpo/cadáver junto ao Cais do Xime [imagem abaixo]; era o do José Maria da Silva Sousa [o Bazuqueiro]. O seu corpo estava desnudo e em processo de transformação, como é natural neste tipo de ocorrência. O seu comprimento aumentara substancialmente, ultrapassando largamente os dois metros, assim como o seu peso, agora com valores a rondar os cento e cinquenta quilos.
Durante mais alguns dias, todos os olhares estiveram direccionados para o Rio Geba, esperando que ele nos devolvesse os outros dois corpos, mas em vão.
Em 13AGO1972, domingo, procedemos à realização do funeral do camarada José Maria da Silva Sousa, numa tarde de autêntico dilúvio [estávamos na época das Chuvas] e com direito a Honras Militares, função desempenhada pelo 3.º GComb, ficando o seu corpo sepultado no Cemitério de Bambadinca, sede do BART 3873.
Factos associados
Mesmo estando decorridos quarenta e dois anos da data desta lamentável ocorrência, continuam a persistir dúvidas a nível de alguns Quadros de Comando do BART 3873, nomeadamente quanto aos dois náufragos não recuperados. Em nome da verdade dos factos, confirmo que só um dos três corpos foi recuperado pelo contingente da CART 3494, pelo que só uma das três campas existentes no Cemitério de Bambadinca se refere ao militar metropolitano: o José M. S. Sousa.
Quanto às outras duas (?!) campas que o ex-Major Jales Moreira me informou aí existirem, em contacto recente, é de admitir, como probabilidade credível, que se refiram a dois combatentes do PAIGC, mortos no dia 01DEZ1972 na 2.ª emboscada na Ponta Coli [Vd. P9802], ou seja, três meses e meio depois do naufrágio.
Ainda hoje se não entendem as motivações que influenciaram a decisão de omitir, na HISTÓRIA DO BART 3873, este acontecimento marcante para todos nós, dele fazendo-se “tábua rasa”, nomeadamente no seu 5.º fascículo referente às actividades/acções do mês de «Agosto-1972» [pp. 77/79; pontos 35/40].
O único apontamento que conhecemos está expresso no Capítulo III – Baixas, Punições, Louvores e Condecorações [pp. 145/165]. Na pg. 149; Agosto-72; 1.Baixas; pode-se ler na alínea d) “Por Outras Causas” [nome dos três camaradas naufragados] “… todos da CART 3494, mortos por afogamento, no acidente do rio Geba, em 10AGO72”.
É inacreditável…, pois nunca houve justificação para tal.
II – HISTÓRIA DIVULGADA POR FAMILIAR DE UM NÁUFRAGO
O caso do Manuel Salgado Antunes
No dia 25 de Maio de 2013 Miguel Ribeiro Antunes, sobrinho de Manuel Salgado Antunes, na sequência de ter lido no blogue da CART 3494 a narrativa sobre o Naufrágio no Rio Geba de 10AGO1972, onde se fazia referência, justamente, aos nomes dos três náufragos [sendo um deles o de seu tio], tomou a iniciativa de nos escrever dando conta do que sabia sobre este tema.
A residir na Suíça, onde é arquitecto, Miguel Antunes refere que nunca conheceu o seu tio, que era irmão de seu pai. Sobre este caso, afirma que a sua família nunca soube muito bem o que se passou. A sua avó morreu há dois anos [2011] e no último dia de vida perguntou-lhe o que é que eu “Manuel” [confundindo-o com o seu filho/tio] estava ali a fazer quando estivera tanto tempo sem aparecer. Para Miguel foi o seu maior desgosto por ver aquela mulher, que ele adorava, morrer sem nunca ter tido uma certeza nem um corpo para fazer um funeral. Mais estranho é o facto de no dia em que sua avó morreu, esteve um senhor na sua casa afirmando saber onde estavam os restos mortais do seu tio na Guiné, e caso estivessem interessados em tratar deste assunto, ele era um ex-combatente.
Naquele contexto de muito pesar, a sua mãe não fixou o nome do senhor ex-combatente, tendo apenas a ideia de tratar-se de alguém duma localidade perto de Quimbres, de nome Carapinheira.
Pelo exposto, acredita que é o primeiro familiar de Manuel Salgado Antunes a saber, verdadeiramente, a história de seu tio, solicitando, se possível, mais informações sobre este caso, pois mantem presente essa curiosidade, agora que estão passados tantos anos.
Ainda nesse mesmo dia, na sequência de ter recebido notícias do camarada Sousa de Castro, que agradeceu, acrescentou que este assunto sempre se falou em sua casa sem problemas, mas nunca se aprofundou muito. A incerteza quanto ao incidente era alguma, até porque outras pessoas da aldeia e arredores, ex-combatentes, contavam várias histórias diferentes e ao longo dos anos talvez a versão original se tenha dissipado.
Porque se encontra na Suíça, por ser mais um que teve de deixar o País, não pode enviar fotos do seu tio. Mas, quando vier de férias a Portugal, promete enviar algumas que tem e que estiveram escondidas durante anos, decisão tomada pelo seu pai para que a sua avó não vivesse agarrada a esse passado – histórias da vida.
Perante estes dois contactos carregados de angústia e emoção, e como resposta ao interesse demonstrado em saber algo mais, escrevi-lhe o seguinte:
Caro Miguel,
Antes de mais receba os meus melhores cumprimentos e um bem-haja pela iniciativa que tomou. Com efeito, foi uma boa notícia saber que um familiar do Manuel Antunes, a mais de dois mil quilómetros da sua terra natal, tomou conhecimento, mais de quarenta anos depois, dos factos reais relacionados com a morte de seu tio, assunto que durante todo este tempo esteve envolto em mistério, suscitando naturais dúvidas e incredulidade no seio da sua família.
Considero este seu contacto, por isso, uma recompensa à iniciativa de tornar pública essa ocorrência estúpida, como são todas aquelas que poderiam ser evitadas, e que fez com que o seu tio naufragasse naquele dia 10Ago1972, nas águas revoltas do Rio Geba, na Guiné, e de mais dois camaradas seus.
Reafirmo o que ficou expresso na minha narrativa: - os corpos dos n/ camaradas Manuel Antunes, seu tio, e o do Abraão Rosa, nunca apareceram pelo que não existem restos mortais recuperados. Daí ninguém poder afirmar que conhece as suas localizações, o que lamento e lamentam todos os ex-militares constituintes da CART 3494. Lamento, ainda, a falta de ética e moral como trataram este assunto junto dos seus familiares directos, ocultando a verdade dos factos, entretanto tornados públicos. Por via da existência deste nosso blogue, que é a expressão colectiva de todos quantos partilharam o mesmo contexto, pretendemos continuar a prestar um verdadeiro “serviço público”.
Uma vez que gostaria de voltar a este assunto, e porque certamente o Miguel já fez circular estas notícias por outros membros da sua família, muito grato ficaria se pudesse acrescentar algo mais ao que já referiu nos seus comentários, em particular a opinião de seu pai [a resposta ainda não chegou…].
J.A.
Porque este foi, é e continuará a ser um tema sensível no contexto da CART 3494, do BART 3873, os acontecimentos no Rio Geba [Xime-Bambadinca], no dia 10AGO1972, continuarão a ser relembrados/recordados… sempre, na medida em que é difícil fazer-se o seu luto.
Um grande abraço, muita saúde e boas férias.
Jorge Araújo.
10Ago2014.
____________
Nota do editor
(1) - Vd. poste de 10 DE AGOSTO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10246: Efemérides (107): Dia 10 de Agosto de 1972 - Naufrágio no Rio Geba de um sintex com pessoal da CART 3494 (Jorge Araújo)
Último poste da série de 7 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13472: Efemérides (170): João Augusto Ferreira de Almeida - o único português fuzilado na I Grande Guerra (Benjamim Durães)
Caríssimo Camarada Carlos Vinhal
Os meus melhores cumprimentos.
O Naufrágio no Rio Geba ocorrido no dia 10AGO1972, independentemente de estar a uma distância de quarenta e dois anos – faz hoje – foi, é e continuará a ser um tema sensível no contexto dos ex-combatentes da CART 3494, do BART 3873, por ter provocado, de forma perfeitamente estúpida, o desaparecimento de três dos seus membros por afogamento.
Porque estivemos envolvidos nessa experiência de forma intensa, em que durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, como referimos na introdução, continuamos a considerar tarefa difícil fazer-se o seu luto, tão fortes foram as emoções e as tensões que ocasionaram.
Dito isto, não podia deixar de prestar, nesta data, mais uma singela homenagem aos camaradas naufragados, relembrando/recordando alguns detalhes desse evento, adicionando-lhe outros factos associados que merecem a nossa relevância social e histórica.
Eis, em anexo, mais um contributo historiográfico, para memória futura, sobre as nossas vivências no CTIG.
Obrigado.
Um forte abraço.
Jorge Araújo.
Ago2014.
RELEMBRANDO O RIO GEBA E O MACARÉU
O NAUFRÁGIO NO RIO GEBA – 10AGO1972 E FACTOS ASSOCIADOS
I – O NAUFRÁGIO
Introdução
Em 2012, faz hoje precisamente dois anos [Vd. P10246(1)], tomei a iniciativa de divulgar, na primeira pessoa, as ocorrências relacionadas com um acontecimento que marcou a vida colectiva dos ex-combatentes da CART 3494, em particular daqueles que directamente nele estiveram envolvidos – uma secção reforçada do 1.º GComb – e que ficou conhecido, na história da Companhia e do BART 3873, como o «Naufrágio no Rio Geba».
Como referi nesse testemunho histórico, durante alguns minutos vivemos entre a água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, sendo que este último conceito viria a aplicar-se, lamentavelmente, a três dos catorze militares que naquela 5.ª feira, 10AGO1972, faz hoje quarenta e dois anos, tinham por missão fazer a travessia entre as margens esquerda e direita do Rio Geba, por esta ordem, com o objectivo operacional de sinalizar eventuais vestígios deixados no terreno pelo IN, vulgo reconhecimento à zona circunvolvente ao Destacamento de Mato Cão.
Relembramos, neste contexto, que a travessia do Rio Geba, a iniciar-se no Cais do Xime, sito a 250/300 metros do Aquartelamento da Companhia, seria feita com recurso a um bote de fibra de vidro conhecido por Sintex, com motor fora de bordo de 50 cavalos, sendo sugerido no protocolo de utilização, como elemento de segurança, que a sua lotação não deveria ultrapassar a dezena de indivíduos, incluindo o barqueiro. Contudo o universo de efectivos militares destacados para esta missão era constituído por nove praças devidamente equipados, por mim próprio, e ainda pelo CMDT da Companhia, o ex-Cap. Pereira da Costa, pelo ex-Alf. Sousa, em situação de Estágio Operacional e pelo ex-Major de Operações Henrique Jales Moreira [o mais graduado], bem como pelo barqueiro do Sintex.
O naufrágio [relembrando alguns detalhes]
Com a navegação a cargo do barqueiro, como seria natural e normal, com o motor a desempenhar a sua função e com as águas muito agitadas por efeito do macaréu, cada um de nós não deixou de se interrogar quanto ao sucesso da «aventura» em que tínhamos embarcado e que, pouco tempo depois, deixou de ter hipóteses de retrocesso.
O pânico subia à medida que a embarcação se aproximava da cabeça do macaréu, cada vez com mais agitação e remoinhos à mistura. Naquele momento, um novo conceito surgiu no léxico dos militares, particularmente nas praças, que traduzia o sentimento que estavam a viver… “eu não sei nadar”, no princípio entredentes e depois mais audíveis e expressivos. O cenário começava, então, a ficar cinzento, deslizando para uma cor cada vez mais escura, independentemente de estar um dia óptimo, cheio de sol e com a temperatura ambiente a aumentar.
A pergunta filosófica que, certamente, cada um formulou para si, era a de saber como poderíamos sair daquele imbróglio, sãos e salvos? Entretanto, uma nova ordem foi dada, visando criar algumas réstias de esperança quanto à possibilidade e/ou às probabilidades de sobrevivência colectiva, apontando para uma “navegação o mais perto possível da margem esquerda”, ou seja, a mesma donde partíramos.
Quando nos encontrávamos a cerca de quatro/cinco metros do tarrafo – zona de lodo ainda não submersa, e onde habitualmente a comunidade de crocodilos [alfaiates; conceito militar] se organizava em frisa apanhando os seus banhos de sol [imagem acima] e, eventualmente, observava as suas presas – eis que se escuta uma nova ordem: “haja um que salte para o tarrafo levando consigo as correntes do bote com o objectivo de o poder suster”.
Olhando à minha volta, e perante a ausência de candidatos e/ou voluntários disponíveis para o cumprimento deste desiderato, eis que tomámos em mãos esse desafio. Porque a embarcação continuava instável face à movimentação das águas [imagem abaixo], o salto só poderia acontecer quando a distância entre o bote e a lodo fosse de molde a facilitar a operação proposta. Não sendo possível identificar o melhor momento para o salto, eis que no tempo «X» saltámos levando nas mãos a dita corrente já referida anteriormente. Durante o salto, feito de frente para o tarrafo, ouvimos, vindo da nossa rectaguarda, um ruído provocado pelo embate da proa do bote na parte mais alta do lodo, tendo como consequência a inclinação do mesmo projectando para a água todos os seus ocupantes.
Primeiro os que se encontravam no lado esquerdo da embarcação e depois os do lado direito, por efeito do desequilíbrio provocado pela transferência de peso que então ocorrera [lei da física].
De seguida, na água a luta era extremamente desigual entre o poder do Homem versus o poder da maré. Cada um dos militares, equipado e vestido com o seu camuflado que lhe dificultava a mobilidade no meio daquele líquido espesso e lodoso [imagem acima], procurava chegar a terra firme o mais rapidamente possível, pondo-se a salvo. E isso aconteceu a oito de um total de catorze elementos.
Dos seis em falta, três conseguiram entrar no bote: o barqueiro, o Miranda [1.º cabo de dilagramas] que, remando com a sacola das suas granadas, ajudou a recolher o ex-Major Jales Moreira em situação problemática. E os três seguiram ao sabor da corrente na direcção de Bambadinca, local onde estava sediado o Batalhão.
Os outros três elementos em falta eram: José Maria da Silva Sousa [de S. Tiago de Bougado, Trofa Velha (Santo Tirso)], Manuel Salgado Antunes [de Quimbres, São Silvestre (Coimbra)] e Abraão Moreira Rosa [da Póvoa de Varzim], que acabariam por desaparecer nas águas escuras e lodosas do Rio Geba, sem que existisse qualquer hipótese de salvamento [Vd. P10246(1)].
A recuperação dos náufragos
A angústia e a ansiedade dominaram o resto deste dia e dos subsequentes, desenvolvendo-se a crença e/ou a expectativa dos corpos dos desaparecidos poderem ser recuperados. Porém, essa crença e/ou expectativa apenas se concretizou uma vez, lamentavelmente. Decorridas mais de trinta horas após o acidente foi localizado um corpo/cadáver junto ao Cais do Xime [imagem abaixo]; era o do José Maria da Silva Sousa [o Bazuqueiro]. O seu corpo estava desnudo e em processo de transformação, como é natural neste tipo de ocorrência. O seu comprimento aumentara substancialmente, ultrapassando largamente os dois metros, assim como o seu peso, agora com valores a rondar os cento e cinquenta quilos.
Durante mais alguns dias, todos os olhares estiveram direccionados para o Rio Geba, esperando que ele nos devolvesse os outros dois corpos, mas em vão.
Em 13AGO1972, domingo, procedemos à realização do funeral do camarada José Maria da Silva Sousa, numa tarde de autêntico dilúvio [estávamos na época das Chuvas] e com direito a Honras Militares, função desempenhada pelo 3.º GComb, ficando o seu corpo sepultado no Cemitério de Bambadinca, sede do BART 3873.
Factos associados
Mesmo estando decorridos quarenta e dois anos da data desta lamentável ocorrência, continuam a persistir dúvidas a nível de alguns Quadros de Comando do BART 3873, nomeadamente quanto aos dois náufragos não recuperados. Em nome da verdade dos factos, confirmo que só um dos três corpos foi recuperado pelo contingente da CART 3494, pelo que só uma das três campas existentes no Cemitério de Bambadinca se refere ao militar metropolitano: o José M. S. Sousa.
Quanto às outras duas (?!) campas que o ex-Major Jales Moreira me informou aí existirem, em contacto recente, é de admitir, como probabilidade credível, que se refiram a dois combatentes do PAIGC, mortos no dia 01DEZ1972 na 2.ª emboscada na Ponta Coli [Vd. P9802], ou seja, três meses e meio depois do naufrágio.
Ainda hoje se não entendem as motivações que influenciaram a decisão de omitir, na HISTÓRIA DO BART 3873, este acontecimento marcante para todos nós, dele fazendo-se “tábua rasa”, nomeadamente no seu 5.º fascículo referente às actividades/acções do mês de «Agosto-1972» [pp. 77/79; pontos 35/40].
O único apontamento que conhecemos está expresso no Capítulo III – Baixas, Punições, Louvores e Condecorações [pp. 145/165]. Na pg. 149; Agosto-72; 1.Baixas; pode-se ler na alínea d) “Por Outras Causas” [nome dos três camaradas naufragados] “… todos da CART 3494, mortos por afogamento, no acidente do rio Geba, em 10AGO72”.
É inacreditável…, pois nunca houve justificação para tal.
II – HISTÓRIA DIVULGADA POR FAMILIAR DE UM NÁUFRAGO
O caso do Manuel Salgado Antunes
No dia 25 de Maio de 2013 Miguel Ribeiro Antunes, sobrinho de Manuel Salgado Antunes, na sequência de ter lido no blogue da CART 3494 a narrativa sobre o Naufrágio no Rio Geba de 10AGO1972, onde se fazia referência, justamente, aos nomes dos três náufragos [sendo um deles o de seu tio], tomou a iniciativa de nos escrever dando conta do que sabia sobre este tema.
A residir na Suíça, onde é arquitecto, Miguel Antunes refere que nunca conheceu o seu tio, que era irmão de seu pai. Sobre este caso, afirma que a sua família nunca soube muito bem o que se passou. A sua avó morreu há dois anos [2011] e no último dia de vida perguntou-lhe o que é que eu “Manuel” [confundindo-o com o seu filho/tio] estava ali a fazer quando estivera tanto tempo sem aparecer. Para Miguel foi o seu maior desgosto por ver aquela mulher, que ele adorava, morrer sem nunca ter tido uma certeza nem um corpo para fazer um funeral. Mais estranho é o facto de no dia em que sua avó morreu, esteve um senhor na sua casa afirmando saber onde estavam os restos mortais do seu tio na Guiné, e caso estivessem interessados em tratar deste assunto, ele era um ex-combatente.
Naquele contexto de muito pesar, a sua mãe não fixou o nome do senhor ex-combatente, tendo apenas a ideia de tratar-se de alguém duma localidade perto de Quimbres, de nome Carapinheira.
Pelo exposto, acredita que é o primeiro familiar de Manuel Salgado Antunes a saber, verdadeiramente, a história de seu tio, solicitando, se possível, mais informações sobre este caso, pois mantem presente essa curiosidade, agora que estão passados tantos anos.
Ainda nesse mesmo dia, na sequência de ter recebido notícias do camarada Sousa de Castro, que agradeceu, acrescentou que este assunto sempre se falou em sua casa sem problemas, mas nunca se aprofundou muito. A incerteza quanto ao incidente era alguma, até porque outras pessoas da aldeia e arredores, ex-combatentes, contavam várias histórias diferentes e ao longo dos anos talvez a versão original se tenha dissipado.
Porque se encontra na Suíça, por ser mais um que teve de deixar o País, não pode enviar fotos do seu tio. Mas, quando vier de férias a Portugal, promete enviar algumas que tem e que estiveram escondidas durante anos, decisão tomada pelo seu pai para que a sua avó não vivesse agarrada a esse passado – histórias da vida.
Perante estes dois contactos carregados de angústia e emoção, e como resposta ao interesse demonstrado em saber algo mais, escrevi-lhe o seguinte:
Caro Miguel,
Antes de mais receba os meus melhores cumprimentos e um bem-haja pela iniciativa que tomou. Com efeito, foi uma boa notícia saber que um familiar do Manuel Antunes, a mais de dois mil quilómetros da sua terra natal, tomou conhecimento, mais de quarenta anos depois, dos factos reais relacionados com a morte de seu tio, assunto que durante todo este tempo esteve envolto em mistério, suscitando naturais dúvidas e incredulidade no seio da sua família.
Considero este seu contacto, por isso, uma recompensa à iniciativa de tornar pública essa ocorrência estúpida, como são todas aquelas que poderiam ser evitadas, e que fez com que o seu tio naufragasse naquele dia 10Ago1972, nas águas revoltas do Rio Geba, na Guiné, e de mais dois camaradas seus.
Reafirmo o que ficou expresso na minha narrativa: - os corpos dos n/ camaradas Manuel Antunes, seu tio, e o do Abraão Rosa, nunca apareceram pelo que não existem restos mortais recuperados. Daí ninguém poder afirmar que conhece as suas localizações, o que lamento e lamentam todos os ex-militares constituintes da CART 3494. Lamento, ainda, a falta de ética e moral como trataram este assunto junto dos seus familiares directos, ocultando a verdade dos factos, entretanto tornados públicos. Por via da existência deste nosso blogue, que é a expressão colectiva de todos quantos partilharam o mesmo contexto, pretendemos continuar a prestar um verdadeiro “serviço público”.
Uma vez que gostaria de voltar a este assunto, e porque certamente o Miguel já fez circular estas notícias por outros membros da sua família, muito grato ficaria se pudesse acrescentar algo mais ao que já referiu nos seus comentários, em particular a opinião de seu pai [a resposta ainda não chegou…].
J.A.
Porque este foi, é e continuará a ser um tema sensível no contexto da CART 3494, do BART 3873, os acontecimentos no Rio Geba [Xime-Bambadinca], no dia 10AGO1972, continuarão a ser relembrados/recordados… sempre, na medida em que é difícil fazer-se o seu luto.
Um grande abraço, muita saúde e boas férias.
Jorge Araújo.
10Ago2014.
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Nota do editor
(1) - Vd. poste de 10 DE AGOSTO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10246: Efemérides (107): Dia 10 de Agosto de 1972 - Naufrágio no Rio Geba de um sintex com pessoal da CART 3494 (Jorge Araújo)
Último poste da série de 7 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13472: Efemérides (170): João Augusto Ferreira de Almeida - o único português fuzilado na I Grande Guerra (Benjamim Durães)
Guiné 63/74 - P13481: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XX: a festa dos meus 25 anos, em Farim (Carlos Simões, ex-fur mil op esp. 1º pelotão)
1. Histórias da CCAÇ 2533 > Parte XX (Carlos Simões, ex-fur mil op esp, 1º pelotão):
Continuamos a publicar as "histórias da CCAÇ 2533", a partir do documento editado pelo ex-1º cabo quarteleiro, Joaquim Lessa, e impresso na Tipografia Lessa, na Maia (115 pp. + 30 pp, inumeradas, de fotografias). (*)
Desta vez, o Carlos Simões conta-nos como é que passou o seu 25º aniversário natalício, em Farim... Não foi diferente de outars festas de anos, passadas no mato, ao longop de toda a guerra... Com muito álcool... Este episódio vem contadao na primeira pessoa, a pp. 77, do livrinho em questão... Boa continuação das férias para os nossos leitores...LG
Desta vez, o Carlos Simões conta-nos como é que passou o seu 25º aniversário natalício, em Farim... Não foi diferente de outars festas de anos, passadas no mato, ao longop de toda a guerra... Com muito álcool... Este episódio vem contadao na primeira pessoa, a pp. 77, do livrinho em questão... Boa continuação das férias para os nossos leitores...LG
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Nota do editor:
Guiné 63/74 - P13480: Parabéns a você (769): Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63) e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Cond Auto da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13476: Parabéns a você (768): Anselmo Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 2315 (Guiné, 1968)
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