Septuagésimo quinto episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.
Dia 6 de Julho de 2014
Era manhã quando deixámos a cidade de Whitehorse,
onde se encontra o “Historic Milepost 918”, na província
do Yukon, o trajecto que iríamos percorrer, pelo menos até
à cidade de Calgary, na província de Alberta, era o mesmo
que fizemos na viagem de ida e, que já explicámos em
textos anteriores.
Depois de algumas horas com algumas paragens, umas
vezes por animais na estrada, outras por obras de
manutenção, pois nesta zona do interior do “Alaska
Highway”, portanto longe do início ou do fim desta
histórica estrada, não existem obras de alteração, é só
obras de manutenção, outras vezes ajudando outros
veículos com problemas, parámos na povoação de Teslin,
que marca o “Historic Milepost 777”, na povoação de
Watson Lake, que marca o “Historic Milepost 635”, na
povoação de Liard River, que marca o “Historic Milepost
496” e, viemos, neste dia dormir no parque de campismo,
junto ao Muncho Lake, que marca o “Historic Milepost
456”, com um “cenário de um milhão de dolares”, que
também já explicámos em textos anteriores, onde depois
de passar um pequeno período de tempo em que choveu,
grelhámos o resto do salmão que tínhamos pescado no
“Russian River”, lá no estado do Alasca.
Neste dia, não tivémos qualquer ploblema com o Jeep e a
caravana, que sempre se adaptaram ao terreno, por
vezes acidentado, com alguma lama, quando houve
período de chuva, percorremos mais ou menos 490
milhas, com preço da gasolina a variar entre $1.82 e
$1.91 o litro.
No próximo dia, era madrugada, lavámos a cara na água
fria e pura do Muncho Lake, continuámos a nossa
jornada, rumo ao leste, parámos para ceder a gasolina, de
um dos nossos tanques extras, a um casal aflito, oriundo
do estado do Arizona, que andava em “lua de mel”,
viajando numa pick-up, que rebocava uma caravana muito
parecida com a nossa, seguindo-nos depois, até à
povoação de Fort Nelson, que marca o “Historic Milepost
300”, aqui parámos por algum tempo, comprámos
gasolina, café, água e fruta.
De novo na estrada, um camião, em sentido contrário,
faz-nos sinal de luzes por diversas vezes, avisando-nos
de algo, depois de uma extensa subida, deparámos com a
estrada completamente ocupada por búfalos que
teimavam em não se mover do local, passámos muito
devagar, não buzinámos, mas olhávam-nos com olhos de
repreenção, pois o local era deles, nós é que somos os
“intrusos”, ocupámos a sua área, ocupámos o seu
“quintal”.
Seguimos em frente, a povoação de Fort St. John, era
próxima, que marca o “Historic Milepost 47” e, finalmente,
sem qualquer outro incidente, chegámos ao ponto de
partida do, como já mencionámos por diversas vezes,
histórico “Alaska Highway”, que é a cidade de Dawson
Creek, onde se encontra o marco do “Historic Milepost 0”.
Fomos de novo visitar o Centro de Turismo, tirámos as
últimas fotos no local que marca o início do “Alaska
Highway”, tomando de seguida a estrada número 43 até
à cidade de Grande Praire, que é uma pequena
“metrópole” no deserto, onde, depois de procurar hotel de
acordo com a nossa condição financeira, pois havia por
onde escolher, fomos dormir, comendo ainda o resto do
salmão, que ia na caixa frigorífica.
Neste dia, saímos do “Alaska Highway”, sem problemas
no Jeep ou na caravana, percorremos 598 milhas, com o
preço da gasolina a variar entre $1.82 e $1.92 o litro.
No dia seguinte, pela manhã, procurámos uma oficina
especializada, nesta pequena “metrópole”, que é a cidade
de Grande Praire, trocámos o óleo do motor, fazendo uma
pequena revisão por baixo do Jeep e da caravana, tudo
em ordem, continuámos o mesmo trajecto da viagem de
ida, até às proximidades da cidade de Edmonton,
continuando depois pela estrada número 2, que já é
rápida em algumas zonas, até à cidade de Calgary, na
província de Alberta, depois de passar a cidade,
continuando na estrada número 2, sempre em direcção ao
sul, tentando percorrer a maior distância possível, em
direcção à fronteira. Já era noite, mesmo noite, pois já
tínhamos passado a zona do paralelo 48, começamos a
ouvir o som de chuva, de encontro ao vidro da frente, mas
não era chuva, eram mosquitos, que de encontro ao vidro
morriam, o mecanismo de limpeza do vidro ainda sujava
mais, começou a faltar a visibilidade, parávamos de
quinze em quinze minutos, para limpar o vidro com o
equipamento que levávamos, que era um tanque de água,
com algum sabão e um limpa neve, quando saíamos fora
do Jeep, era uma “praga” de mosquitos a morder. Na
primeira povoação que encontrámos, procurámos onde
dormir, não havia, depois de pedirmos água para
continuar com a limpeza do vidro, nos disseram que
possívelmente na vila de Graum, mais ao sul, devíamos encontrar. Desesperados, seguimos em frente, sempre com a
mesma situação, finalmente surgiu a vila de Granum,
onde um simpático empregado do Lazzy Motel, vendo-nos
desesperados, embora não tivesse vagas, por favor nos
deixou dormir num quarto, que possivelmente era para
ele. Saímos do Jeep, trancámos as portas, correndo para
dentro do Motel, com o que levávamos vestido.
Explicáram-nos que nesta altura do ano, principalmente
de noite, esta área é o “paraíso” dos mosquitos, pela
zona de terreno ser de origem alagadiça.
Neste dia percorremos 726 milhas, com o preço da
gasolina variando entre $1.53 e $1.57 o litro.
Tony Borie.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 15 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13897: Bom ou mau tempo na bolanha (74): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (15) (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 22 de novembro de 2014
Guiné 63/74 - P13927: Ser solidário (174): Vamos ajudar o nosso camarada João Maximiano, que encontrei em Leiria, ex-sold cond auto da CCAÇ 3490 (Saltinho), que continua a sofrer com as recordações da terrível emboscada de que foi vítima no Quirafo, em 17/4/1972... (Juvenal Amado, ex-1º cabo cond auto, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74)
1. Mensagem do Juvenal Amado [ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74], com data de 7 do corrente:
Venho a chegar de Leiria onde dei uma vista de olhos pelo Fórum Leiria e acabei por encontrar um camarada do Saltinho [, CCAÇ 3490,] dos que caiu na emboscada do Quirafo [, em 17 de abril de 1972].
Era o condutor da segunda viatura e também fiquei a saber que o condutor da GMC que caiu mesmo dentro da área de morte [, vd.fotos abaixo], é aqui de Reguengos de Porto de Mós.
Mas o camarada [João] Maximiano, o que eu encontrei, está a sofrer de stress pós-traumático e não consegue dormir e passa a vida nos médicos. Quando ele lhes diz que esteve na Guiné e lhes conta os pesadelos, eles tem uma atitude de muita compreensão, mas dão-lhe a entender que pouco ou nada podem fazer.
Agora a pergunta que urge... há malta do blogue que sabe onde se deve ele dirigir? Como proceder?
Olha eu tenho o nº de telemóvel dele e fiquei de lhe telefonar entretanto. Gostava de lhe dizer alguma coisa que o confortasse, se isso for possível.
Um abraço.
Juvenal.
2. Resposta no mesmo dia, do nosso editor L.G.:
Era o condutor da segunda viatura e também fiquei a saber que o condutor da GMC que caiu mesmo dentro da área de morte [, vd.fotos abaixo], é aqui de Reguengos de Porto de Mós.
Mas o camarada [João] Maximiano, o que eu encontrei, está a sofrer de stress pós-traumático e não consegue dormir e passa a vida nos médicos. Quando ele lhes diz que esteve na Guiné e lhes conta os pesadelos, eles tem uma atitude de muita compreensão, mas dão-lhe a entender que pouco ou nada podem fazer.
Agora a pergunta que urge... há malta do blogue que sabe onde se deve ele dirigir? Como proceder?
Olha eu tenho o nº de telemóvel dele e fiquei de lhe telefonar entretanto. Gostava de lhe dizer alguma coisa que o confortasse, se isso for possível.
Um abraço.
Juvenal.
2. Resposta no mesmo dia, do nosso editor L.G.:
A Associação Apoiar dá ajuda, gratuita, à malta com problemas de stresse pós-traumático de guerra, ou vítimas de stresse de guerra... O problema é que fica em Lisboa... É sempre a mesma história, ou cada vez pior, com a litoralização do país...
Tens aqui o contacto [, telemóvel e emaill.] do Mário Gaspar, que foi cofundador e diretor da Apoiar... (publicou agora o livro "O Corredor da Morte", deves-te lembrar dele do nosso último encontro em Monte Real...).
Aquele abraço.
Luís
3. Nova mensagem do Juvenal Amado, com data de ontem:
Caro Luís, Carlos e demais camaradas da Tabanca Grande
Há dias encontrei o João [Maximiano] que foi condutor da companhia do Saltinho.
Falamos um bocado onde ele me confidenciou que estava com problemas de saúde. Acabou por acrescentar que a sua saúde hoje era reflexo de ter caído na emboscada do Quirafo, pois era ele o condutor da segunda viatura.
O tempo não deu para falarmos, como eu gostaria, mas mesmo assim fiquei com a impressão que os distúrbios de que padece são ao nível de stress pós-traumático, o que não será para admirar.
Mas eu não sou médico nem técnico dessa área e, após informação do Luís Graça, acabei por encaminhar para associação Apoiar e para a Liga dos Combatentes em Leiria.
Este é mais um caso de alguém que, passados tantos anos, passa sofrer com as recordações.
Também fiquei a saber que o condutor da primeira viatura vive em Reguengos do Fetal, que é aqui perto de Fátima. Vou tentar juntar os dois, pois por mais que se fale daquilo, é sempre pela boca de quem lá chegou depois.
Outra noticia que me deu foi que a companhia [, a CCAÇ 3490,] se reúne todos anos.
Um abraço.
Juvenal
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Picada de Quirafo > Fevereiro de 2005 > Restos da GMC da CCAÇ 3490 (Saltinho, 1972/74), que transportava um grupo de combate reforçado, comandado pelo alf mil Armandino, e que sofreu uma das mais terríveis emboscadas de que houve memória na guerra da Guiné (1963/74)...
Tens aqui o contacto [, telemóvel e emaill.] do Mário Gaspar, que foi cofundador e diretor da Apoiar... (publicou agora o livro "O Corredor da Morte", deves-te lembrar dele do nosso último encontro em Monte Real...).
Aquele abraço.
Luís
3. Nova mensagem do Juvenal Amado, com data de ontem:
Caro Luís, Carlos e demais camaradas da Tabanca Grande
Há dias encontrei o João [Maximiano] que foi condutor da companhia do Saltinho.
Falamos um bocado onde ele me confidenciou que estava com problemas de saúde. Acabou por acrescentar que a sua saúde hoje era reflexo de ter caído na emboscada do Quirafo, pois era ele o condutor da segunda viatura.
O tempo não deu para falarmos, como eu gostaria, mas mesmo assim fiquei com a impressão que os distúrbios de que padece são ao nível de stress pós-traumático, o que não será para admirar.
Mas eu não sou médico nem técnico dessa área e, após informação do Luís Graça, acabei por encaminhar para associação Apoiar e para a Liga dos Combatentes em Leiria.
Este é mais um caso de alguém que, passados tantos anos, passa sofrer com as recordações.
Também fiquei a saber que o condutor da primeira viatura vive em Reguengos do Fetal, que é aqui perto de Fátima. Vou tentar juntar os dois, pois por mais que se fale daquilo, é sempre pela boca de quem lá chegou depois.
Outra noticia que me deu foi que a companhia [, a CCAÇ 3490,] se reúne todos anos.
Um abraço.
Juvenal
Foram utilizados LGFog e Canhão s/r. Houve 11 militares mortos, 1 desaparecido... Houve ainda 5 milícias mortos mais um número indeterminado de baixas, entre os civis, afectos à construção da picada Quirafo-Foz do Cantoro. A brutal violência da emboscada ainda era visível, em fevereiro de 2005, mais de três décadas, nas imagens dramáticas obtidas pelo Paulo Santiago e seu filho João, na viagem de todas as emoções que eles fizeram à Guiné-Bissau.
Fotos: © Paulo e João Santiago (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]
4. Poema de Juvenal Amado:
João Maximiano, sobrevivente do Quirafo 1972 (**)
A Paz não está ao alcance de todos.
Devagar,
Insidiosamente,
As recordações são viscosas,
Enleiam-se em ti.
És devorado sem saber,
Revives pela milionésima vez,
As tripas contorcem-se.
Fotos: © Paulo e João Santiago (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]
4. Poema de Juvenal Amado:
João Maximiano, sobrevivente do Quirafo 1972 (**)
A Paz não está ao alcance de todos.
Devagar,
Insidiosamente,
As recordações são viscosas,
Enleiam-se em ti.
És devorado sem saber,
Revives pela milionésima vez,
As tripas contorcem-se.
João, ali está a curva fatídica,
Violência que esperou por ti há hora marcada,
Foste poupado, para seres esmagado agora,
Saídas ensurdecedoras, impactos cavos e subterrâneos,
Martelo de dois tons,
Temores há muito esquecidos,
Regressam todas as noites.
Sem ser convidados.
Os fantasmas relembram medos passados.
Não tens defesa contra a guerra
Que te visita 40 anos passados.
Não há G3 que te valha.
O terror, esse, é real
E povoa-te o sono,
Acordas mas não te livras do pesadelo,
Antidepressivos são hoje a tua ração de combate.
Regressaste, passaste pelos corpos dos teus camaradas,
Não os reconheceste,
Eles visitam-te agora,
Persiste o odor acre e a dor.
Ficaram sempre jovens,
Com a farda com que embarcaram.
Estás refém da memória que te esmaga,
Foste para a guerra
E na verdade nunca regressaste dela.
Quem te escolheu o caminho?
A Paz nunca ficará ao teu alcance.
____________
Violência que esperou por ti há hora marcada,
Foste poupado, para seres esmagado agora,
Saídas ensurdecedoras, impactos cavos e subterrâneos,
Martelo de dois tons,
Temores há muito esquecidos,
Regressam todas as noites.
Sem ser convidados.
Os fantasmas relembram medos passados.
Não tens defesa contra a guerra
Que te visita 40 anos passados.
Não há G3 que te valha.
O terror, esse, é real
E povoa-te o sono,
Acordas mas não te livras do pesadelo,
Antidepressivos são hoje a tua ração de combate.
Regressaste, passaste pelos corpos dos teus camaradas,
Não os reconheceste,
Eles visitam-te agora,
Persiste o odor acre e a dor.
Ficaram sempre jovens,
Com a farda com que embarcaram.
Estás refém da memória que te esmaga,
Foste para a guerra
E na verdade nunca regressaste dela.
Quem te escolheu o caminho?
A Paz nunca ficará ao teu alcance.
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 17 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9763: In Memoriam (117): Recordando o dia 17 de Abril de 1972 e a trágica emboscada de Quirafo (Juvenal Amado)
Ainda sobre a emboscada de Quirafo, entre outros, vd. postes do Paulo Santiago:
15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1077: A tragédia do Quirafo (Parte V): eles comem tudo! (Paulo Santiago)
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)
26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)
25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)
23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)
(*) Vd. poste de 17 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9763: In Memoriam (117): Recordando o dia 17 de Abril de 1972 e a trágica emboscada de Quirafo (Juvenal Amado)
Ainda sobre a emboscada de Quirafo, entre outros, vd. postes do Paulo Santiago:
15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1077: A tragédia do Quirafo (Parte V): eles comem tudo! (Paulo Santiago)
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)
26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)
25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)
23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)
(**) Último poste da série > 16 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13902: Ser solidário (173):1ª Conferência Internacional de Arquitetura e Urbanismo na Guiné-Bissau, Bissau, 26-29 de novembro de 2014: adiada para data a anunciar, por razões de força maior (epidemia de ébola e dificuldades com as ligações aéreas) (NUGAU - Núcleo Guineense de Arquitetura e Urbanismo, Odivelas)
Marcadores:
Associação Apoiar,
CCAÇ 3490,
emboscadas,
João Maximino,
Juvenal Amado,
Mário Gaspar,
poesia,
Quirafo,
Saltinho,
ser solidário,
stresse pós-traumático
Guiné 63/74 - P13926: (Ex)citações (251): as viagens no Geba Estreito, entre Setembro de 1968 e Novembro de 1969 (Beja Santos)
Guiné > Zona leste > Bambadinca > c. 1914 > Ponte-cais de Bambadinca
"O relatório de Vasco Calvet de Magalhães, administrador da Circuncrição de Geba, datado de 1914, é, a diferentes títulos, um documento excepcional: afoita-se por domínios até então inexplorados ou mal ventilados; propõe estradas e fala do respectivo traçado; queixa-se e denuncia funcionários corruptos; abalança-se a falar da origem dos fulas, apresenta soluções para o assoreamento do Geba,é uma incursão com pretensões literárias e algumas ambições políticas. Foi neste documento que encontrei esta preciosidade,um porto de Bambadinca que nenhum de nós conheceu..." (BS) [Poste P3091]
Foto (e legenda): Beja Santos (2008). Imagem do domínio público.
1. Mensagem do Beja Santos, a quem pedi que comentasse o poste P9600 (*) e outros mais recentes sobre as viagens de barcos civis até Bambadinca (**)... Aproveita-se para se publicar também um excerto de um poste, mais antigo, sobre um ataque a um comboio de batelões na Ponta Varela.
Data: 20 de Novembro de 2014 às 15:30
Assunto: As viagens no Geba Estreito, entre Setembro de 1968 e Novembro de 1969
Luís, pelos mails recebidos, penso que me estás a incentivar a falar das embarcações e circunstâncias daquela navegação, no Geba Estreito, ao tempo em que eu ia com uma assiduidade quase diária a Mato de Cão, ida e volta.
Eu próprio viajei num batelão azulado, com toldo, deram-me um garrafão de água e uma ração de combate em Bissau, despejaram-me no Pindjiquiti com dois caixotes e uma mala. Batelão cheio de seres humanos e mercadoria. Uma criança ia-me referenciado os locais: ali ao fundo é Jabadá, ali pode ver o Cumeré, estamos a chegar a Porto Gole, confirmo o que tu dizes sobre a imagem, um ancoradouro e um casario um pouco mais alto, depois seguimos até ao Enxalé, começava a escurecer, o patrão pedia aos militares do Enxalé celeridade, ainda não se tinha passado ao largo de Ponta Varela, aí a criança disse-me que tínhamos que ir acocorados, podia haver roquetadas, mais adiante, quase ciciando, disse-me que passávamos por Mato de Cão, espreitei no negrume da noite, é estranho silêncio, ouvia-se o rufar da casa das máquinas e eu via vegetação densa e margens enlameadas. E assim chegámos a Bambadinca, com aquela gerigonça a guinar dentro do Geba Estreito.
A missão principal que tive no Cuor era a vigilância em Mato de Cão. Naquele tempo, e por razões logísticas que desconheço, não havia semana que não passasse por ali uma LDM, de dia ou de noite, consoante as marés. De dia, se eu precisasse de me abastecer em Bambadinca, pedia boleia a civis e militares. Houve momentos caricaturais, recordo uma série de batelões, vinham amarrados uns aos outros, eu estava de pé num pontão em madeira, os soldados desataram a correr, o patrão pensou que era um ataque do PAIGC, pôs-se aos gritos, os passageiros gritavam espavoridos.
Não é por acaso que o Geba é o rio da minha vida, por ali andei em todos os segundos do dia, tantas vezes com a barriga a bater horas quando as embarcações ficavam atoladas, era preciso esperar pela enchente, muitas horas depois. Por ironia, tudo mudou quando passei do Cuor a Bambadinca, o Xime tornou-se na artéria femoral do abastecimento militar, mas os batelões continuaram a viajar pelo Geba Estreito.
A missão principal que tive no Cuor era a vigilância em Mato de Cão. Naquele tempo, e por razões logísticas que desconheço, não havia semana que não passasse por ali uma LDM, de dia ou de noite, consoante as marés. De dia, se eu precisasse de me abastecer em Bambadinca, pedia boleia a civis e militares. Houve momentos caricaturais, recordo uma série de batelões, vinham amarrados uns aos outros, eu estava de pé num pontão em madeira, os soldados desataram a correr, o patrão pensou que era um ataque do PAIGC, pôs-se aos gritos, os passageiros gritavam espavoridos.
Não é por acaso que o Geba é o rio da minha vida, por ali andei em todos os segundos do dia, tantas vezes com a barriga a bater horas quando as embarcações ficavam atoladas, era preciso esperar pela enchente, muitas horas depois. Por ironia, tudo mudou quando passei do Cuor a Bambadinca, o Xime tornou-se na artéria femoral do abastecimento militar, mas os batelões continuaram a viajar pelo Geba Estreito.
Há fotografias no blogue, que tirei de revistas antigas em que se vê pequenas embarcações à vela em direção a Bafatá, não nos podemos esquecer que a Aldeia do Cuor, em frente à bolanha de Santa Helena, teve ancoradouro devido ao comércio do Gambiel.
Espero ter sido útil, e obrigado por teres posto novamente as imagens daquela Bambadinca do nosso tempo, hoje praticamente reduzida a pó, a começar pelo porto, há para aí as imagens do que sobreviveu em 2010, quando lá estive. (***)
Um abraço do Mário
Um abraço do Mário
Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > c. 1969 >O Rio Geba, entre o Xime (margem esquerda) e o Enxalé (margem direita), numa foto de Carlos Marques dos Santos, ex-furriel miliciano da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), afecta ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Aqui começava o Geba Estreito... Mas antes tinha que se passar pela mítica Ponta Varela, entre a Foz do Rio Corubal e o Xime...
Foto: © Carlos Marques Santos (2005). Todos os direitos reservados
2. Excerto do poste P1927 (****)
As danações de Ponta Varela
por Beja Santos
Chegou o terror sanguinolento ao Geba, para lá do Xime.
É um amanhecer luminoso e do planalto de Chicri avista-se um [Rio] Geba de prata, estuante, quase genesíaco. É um tempo invulgar para esta época das chuvas, mas desde ontem que a Mãe Natureza parece querer advertir-nos que vem aí outro tempo, de calor persistente.
Olho o relógio, o comboio de batelões já devia ter passado há cerca de meia hora, de novo assesto os binóculos para o fim do horizonte, nada, nenhum ponto se avista, certamente que houve algum atraso na saída de Bissau. Tenho um mau presságio, parece que para lá do Xime se ouvem obuses, talvez o som dilacerante dos rockets. Interpelo Mamadu Camará acerca deste fogo e ele responde que sim, é para lá do Xime, talvez uma emboscada, talvez uma flagelação, pode ser mesmo um reconhecimento de obus, são sons cavos que a distância não permite identificar. Segue-se o silêncio, sufocante. Depois olho para a estrada que bordeja toda a vareda do rio e se perde ao fundo, onde eu sei estar o que resta de Saliquinhé.
Sinto uma enorme atracção por voltar ao Enxalé, para quem não sabe, caso não houvesse esta guerra, o burrinho em cerca de hora e meia chegaria a Bissau, depois de passar pelo Enxalé, Porto Gole, Nhacra. É a mesma estrada que para cima leva ao Gambiel, e depois a Geba e a Bafatá. A minha ansiedade cresce enquanto o Geba refulge os tons de prata, para lá de Madina ouvem-se uns tiros esparsos como se nos avisassem que há território hostil à nossa espera.
É então que assoma uma embarcação ziguezagueante, estranhamente morosa. Dirijo-me, intrigado, para o ancoradouro e depois de meia hora de espera díficil, o contramestre fala comigo com o horror estampado nos olhos. Uma coluna de 5 batelões, aproveitando a correnteza do Corubal aproximara-se do Geba estreito perto de Ponta Varela. Súbito, várias roquetadas atingiram a casa das máquinas deste barco e ele mostra-me os estilhaços, os vidros partidos, vestígios de algum sangue, um dos feridos vinha ao leme. O terceiro barco foi atingido nas máquinas, vem agora rebocado ao segundo barco, vem lentamente, quase encostado a esta berma do rio. Suplica-me que não me vá embora, que espere por eles, os feridos mais graves vão já para Bambadinca.
E, de facto, quase uma hora depois o pequeno comboio de barcos atacados chega a Mato de Cão. Há sinais de pavor, dou comigo a pensar se a estratégia da guerrilha não mudou radicalmente, Ponta Varela agora é o local temível da destruição, não sei medir as consequências, mas sinto que é necessário rever a protecção desta margem do rio, mesmo em frente a Ponta Varela. Seguimos no último barco, quero ir relatar este episódio ao 2º Comandante. (...)
_____________
Notas do editor:
(*) 12 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9600: Álbum fotográfico de João Martins (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69) (2): Ainda a viagem, de LDG, em setembro de 1968, de Bissau a Bambadinca, com o meu Pel Art a caminho de Piche
(**) Vd. poste de 19 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13918: (Ex)citações (249): Quando os barcos chegavam ao porto fluvial de Bambadinca: fotos de Jaime Machado e legendas de Beja Santos
(***) +Ultimo poste da série > 21 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13924: (Ex)citações (250): a autogrua Galion e o cais de Bambadinca, quatro anos depois, em novembro de 1973
(****) Vd. poste de 6 de julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1927: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (53): Ponta Varela e Mato Cão: Terror no Geba
(****) Vd. poste de 6 de julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1927: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (53): Ponta Varela e Mato Cão: Terror no Geba
sexta-feira, 21 de novembro de 2014
Guiné 63/734 - P13925: Convívios (642): Histórico dos encontros anuais da CART 3494 - Parte I (Jorge Araújo/Sousa de Castro)
1. O nosso camarada Sousa de Castro, que foi 1º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74, enviou-nos um histórico dos convívios da sua unidade, descrito pelo Jorge Araújo, que foi Fur Mil Op Esp/Ranger, também da mesma CART e que passamos a publicar em duas partes:
HISTÓRICO DOS ENCONTROS ANUAIS DA CART 3494 - PARTE 1
CONVÍVIOS 24º, 25º E 26º
Caríssimos Camaradas Luís Graça e restantes Tabanqueiros,
Não sei se o Jorge Araújo enviou este trabalho… Gostaria de o ver publicado no maior e mais completo blogue sobre a guerra colonial na Guiné, assim sendo se acharem do interesse geral.
Um abraço,
Sousa de Castro
Caríssimo Camarada Sousa de Castro
Como sabes, um dos temas abordados no nosso último almoço/convívio, realizado em São Pedro de Moel, andou à volta do historial dos Encontros da CART 3494 em particular dos detalhes que antecederam a sua institucionalização anual. Falou-se dos pioneiros e da importância de se reconstituir/reorganizar um Histórico, na medida em que cada um de nós entrou em momentos [anos] diferentes neste processo de reagrupar as/os tropas.
Nesse sentido, e em função dos meus dados disponíveis, aqui vai um modesto contributo para esse efeito.
I– ANTECEDENTES HISTÓRICOS
Depois de cumprida a Comissão de Serviço Obrigatório no CTIGuiné,que contabilizouvinte e sete meses e uma semana [29Dez1971 a3Abr1974 = 827 dias], período que acabariapor ficar na história daquele Teatro de Operaçõescomo o tempo máximo [record] de permanência de uma Companhia Operacional Metropolitana, os jovens militaresmilicianos constituintes do contingente da CART 3494[aliás,como os demais…] regressaram às suas origens.
Concretizado o reencontro com os familiares mais próximos, deu-se início, como seria natural e normal, a uma nova etapa das nossas vidas, tendo no horizonte temporala operacionalização dos diferentes projectos, alguns deles mantidos em segredo no pensamento e outrosjá partilhados com os camaradas do abrigo, do GComb e/ou da Especialidade, durante o período da campanha ultramarina, mesmo sabendo-se que todos os contextos de então eram de elevado risco, carregados de imprevisibilidades, incertezas e sobressaltos, fazendo apelo permanente a uma escala desucessivas transcendências, pois [estupidamente] o futuro de cada um de nós… era apenasuma partícula do presente.
Por essa razão, do ponto de vista sociológico, refizeram-se famílias e nasceram outras dando lugar a novas experiências, por efeito do desempenho de outros papéiscomo foi o caso da paternidade. Retomaram-se os antigos projectos profissionais e/ou equacionaram-senovas possibilidades, no País ou além-fronteiras. Desenharam-se novos percursos académicos que, entretanto, tinham ficado incompletos ou adiada a sua conclusão.
Com o «25 de Abril de 1974», acontecimento que tivemos o privilégio de assistir três semanas após o nosso regresso, fez-se jus ao lema do BART 3873 [CART 3494] «Na Guerra Construindo a Paz», e quase tudo mudou nas nossas vidas, ajudando a sarar algumas das feridas daqueles dois anos da nossa juventude.
Cada um seguiu o seu itinerário, em função das dinâmicas de cada momento, e a “família militar” da CART 3494 desorganizou-se durante uns tempos, até que:
II– O [RE]AGRUPAR DAS/DOS TROPAS
Segundo sabemos de fonte fidedigna e privilegiada, o movimento de reorganização das/dos tropas da CART 3494 iniciou-se dez anos depois da sua chegada a Lisboa [1984] por iniciativa do camarada Lúcio Monteiro da Silva [ex-1ºC.], também conhecido por «Vizela», e residente em Moreira de Cónegos, Guimarães.
Durante dois anos [1984-1986] procurou organizar uma base de dados que permitisse estabelecer contactos entre os elementos listados no sentido de se recuperarem os laços de amizade construídos na Guiné e que pudessem, a curto prazo ou logo que possível, levar à realização de um Encontro/Convívio anual.
Percorreu centenas de quilómetros entre diferentes localidades do Norte e Centro do País, particularmente no Minho e Douro, de onde a maioria do contingente era natural.E eis que em 14 de Junho de 1986, sábado, ainda que com reduzida participação, os pioneiros deste movimento de reorganização das/dos tropas se reuniram naquele que é considerado o 1.º almoço/convívio dos ex-militares constituintes da CART 3494. O evento decorreu no Restaurante O Frangueiro, em Aver-o-Mar [Póvoa do Varzim], pertença do camarada João Machado [cozinheiro], com a presença do Júlio Peixoto [condutor], Alcides Castro [cantineiro] e Lúcio Monteiro [1.º cabo atirador], entre outros [vd. P184].
A concentração teve lugar na Praça de Touros da Póvoa de Varzim.
Com este texto, procura-se reconstituir/reorganizar o HISTÓRICOdo caminho iniciado em 1986 pelos pioneiros, a quem estamos gratos, através da divulgação de imagens e de factos de interesse colectivo, ainda não conhecidos, de modo a perpetuar não só a amizade que nos une, mas também como elemento de cultura de uma geração que viveu, conviveu e sobreviveu, durante mais de dois anos, num contexto de “sangue, suor e lágrimas”, como foi aquele que, lamentavelmente, muitos de nós ainda tem presente.
Pelo exposto, a metodologia que iremos seguir nesta primeira narrativa iniciar-se-á com as referências mais recentes para as mais antigas, ou seja, do último Encontro [2014] para o mais antigo, que neste caso será o de 2009 [o 24.º], conforme se indica no quadro abaixo. Este procedimento será seguido nas restantes.
- DO 24.º [2014] AO 26.º [2009]
A Comissão Organizadora deste Encontro foi nomeada a 07Jun2008, no almoço/convívio da Costa da Caparica (Almada), ficando a responsabilidade distribuída por um trio de camaradas, a saber: Manuel Óscar Almeida [ex-Sold.; de Santa Catarina, Vagos], Manuel Silva Gomes (Anadia), [ex-Sold.; de Sangalhos, Anadia] e Licínio Almeida Pereira [ex-Sold.; de Bom Sucesso, Quiaios].
Para a sua realização foi escolhida a localidade de Santa Catarina, uma Freguesia do Município de Vagos, Distrito de Aveiro, e o dia 13 de Junho, sábado, como data do almoço/convívio, para o qual foi reservado oRestaurante Triacentro [vd P30+P33+P35].
No programa de apresentação do evento os organizadores referiram:
Caro amigo e companheiro, é como um grande prazer e muita amizade que uma vez mais te estamos a convidar para mais um grande convívio. Estamos a fazer tudo para que este ano seja um dos maiores de sempre mas para isso também contamos com a tua presença assim como a dos teus familiares. Cada ano que passa é menos um que nós temos para conviver, por isso não faltes. O local da concentração vai ser na Praia de Mira, junto à capela de Nossa Senhora da Conceição. Seguiremos em caravana automóvel até ao Restaurante Triacentro, em Santa Catarina, Vagos.
- Foto de Família -
A Comissão Organizadora deste Encontro foi nomeada a 13Jun2009, na reunião de Santa Catarina (Vagos), sendo essa responsabilidade atribuída à dupla de camaradas: Lúcio D. Monteiro Silva (Vizela) [ex-1.ºC.; de Moreira de Cónegos, Guimarães] e Joaquim M. LinoMonteiro [ex-Sold.; de Penamaior, Paços de Ferreira].
Para a sua realização foi escolhida a localidade de Lordelo, Freguesia do Município de Guimarães, e o dia 12 de Junho, sábado, como data do convívio a ter lugar no Restaurante Armando & Filhos [vd P61+P67].
Os organizadores escreveram no programa de apresentação do evento o seguinte:
Caro amigo ex-combatente e companheiro de armas. Tal como tem sucedido em anos anteriores vai realizar-se no dia 12 de Junho de 2010 o XXV encontro/convívio. Convidamos-te a participar, juntamente com teus familiares, nesta grandiosa festa de fraterna amizade.
Vamos confraternizar, rever amigos que de algum modo compartilharam os seus medos, sofrimentos, angústias e as incertezas! Momentos únicos que merecem ser recordados. Vais sentir-te como quando tinhas 20 e alguns anos. Trás também as tuas fotos da época, o teu diário se for o caso, para assim avaliarmos como éramos e como vivíamos naquele tempo, já lá vão 36 anos do nosso regresso.
Não podemos deixar morrer estes encontros/convívios de ex-combatentes, temos de continuar a conviver. O nosso tempo caminha a passos largos para o términos, não podemos deixar que estes eventos desapareçam, temos de manter viva a chama da amizade que nos ligou durante 27 meses, recordar toda a vivência de uma geração… que é a nossa.
A guerra colonial, ou do ultramar ou das províncias ultramarinas, conforme queiras chamar, marcou uma época, a nossa época! Por isso temos de continuar a lembrar aos nossos filhos, netos e a todas as pessoas, que essa guerra justa ou injusta, existiu e nós participámos nela, daí a razão destes encontros, por isso é fundamental a tua presença. Vem desfrutar de uma boa companhia e um fim-de-semana diferente.A concentração será em Vizela, junto ao Quartel dos Bombeiros, a partir das 10h00. Com elevada deferência.
- Foto de Família -
Aguarda-se envio de quem possua uma foto de família deste Encontro, particularmente dos seus organizadores.
A Comissão Organizadora do Encontro de Seia foi nomeada a 12Jun2010, no almoço/convívio de Lordelo (Guimarães), sendo essa responsabilidade assumida pelo camarada José E. S. Vicente[ex-Sold.Trms; de Nogueira do Cravo, Oliveira do Hospital], experiência repetida pela segunda vez [a primeira foi em 1996, no 11.ºE].
Para a sua realização foi escolhida a cidade de Seia, a maior da sub-região da Serra da Estrela e a segunda maior cidade do Distrito da Guarda.O almoço foi agendado para o dia 11 de Junho, sábado, e o local do repasto foi o Restaurante “O Pastor da Serra”.[]
Na sua mensagem de apresentação do programa, o organizador escreveu:
Caros companheiros,
Chegou a hora de mobilizar todos os Ex-Combatentes da CART 3494 para fazerem parte de um grande evento. Assim, estão convidados, juntamente com suas famílias, para participarem no XXVI Convívio, que terá lugar no dia 11 de Junho, no salão “O Pastor da Serra”, em Seia. A concentração será no Senhor das Almas (Município de Oliveira do Hospital), pelas 09h30, junto à Capela. Pelas 11h30 sairemos em caravana para o “Almoço – Vianda, Salsichas, Fiambre e Esparguete com Estilhaços”. A aldeia de Senhor das Almas fica situada junto à Estrada Nacional 17 [vd. P97+P108+P117].
- Foto de Família -
Um abraço,
Jorge Araújo.
Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494
___________
Nota de M.R.:
Vd. Também o último poste desta série em:
12 DE NOVEMBRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13876: Convívios (641): Próximo Encontro da Magnífica Tabanca da Linha, dia 20 de Novembro de 2014, no sítio do costume (José Manuel Matos Dinis)
Guiné 63/74 - P13924: (Ex)citações (250): a autogrua Galion e o cais de Bambadinca, quatro anos depois, em novembro de 1973
Foto nº 1
Foto nº 2
Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > BART 3873 (1972/74) > Porto fluvial de Bambadinca > A autogrua Galion e os barcos civis de transporte de mercadorias (e passageiros) que faziam o percurso Bissau-Bambadinca-Bissau, os chamados "barcos turras"...
A grua móvel hidráulica Galion 125 devia levantar cerca de 12,5 toneladas. Era construida pela famosa empresa norteamericana Galion Iron Works and Manufacturing Company, fundada em 1907, no Ohio. (LG)
Fotos: © Jorge Araújo (2014). Todos os direitos reservados.
1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo [ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime, Enxalé e Mansambo, 19723/74]
Data: 20 de Novembro de 2014 às 15:19
Assunto: P13918 - (Ex) citações - quando os barcos chegavam ao porto fluvial de Bambadinca...
Caro Luís,
Acabo de ler o Post em título (*). Na sequência da sua leitura, retive que em 25 de novembro de 1969 chegou ao cais de Bambadinca [, vinda do Xime, por estrada,] uma autogrua Galion... Vai fazer na próxima 3.ª feira quarenta e cinco anos!...
Considerando que em nenhuma das imagens publicadas este equipamento pesado nos aparece de forma nÍtida, tomei a liberdade de te enviar uma foto da Galion, datada de novembro de 1973. quatro anos depois da sua inauguração [, foto nº 1], e ainda uma outra do cais, com algumas das embarcações que sulcavam o Geba entre Bambadinca-Bissau e volta [,foto nº 2].
Até Breve.
Um abraço,
Jorge Araújo.
Nota do editor:
(*) Vd. poste de 19 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13918: (Ex)citações (249): Quando os barcos chegavam ao porto fluvial de Bambadinca: fotos de Jaime Machado e legendas de Beja Santos
Guiné 63/74 - P13923: Notas de leitura (652): “Quatro Rios e um Destino”, por Fernando Sousa, Chiado Editora, 2014 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Novembro de 2014:
Queridos amigos,
É um livro, a vários tipos, raro. Raro pela confidência, raro pelo filtro que o autor se impõe quanto ao sujeito da memória: a infância, a recruta, a especialidade que culmina, praticamente, com a convocatória para a guerra.
Não se sabe porquê, desembarca em Luanda e é direcionado, de supetão, para a Guiné, viaja até Bedanda.
Não se perde em considerandos nem faz crónica da guerra, regista estimas e chega depois a hora do sinistro que o transfigurou, até hoje. Impressiona quando escreve sobre os guineenses, captou-lhes a ternura, o gosto pela música, a afabilidade.
Temos aqui um livro que é também um grito de revolta, é alguém que superou o pesadelo e não o esconde. É um livro raro, encontrou um caminho inesperado depois da agonia de se ver sem duas pernas, venceu o destino.
Um abraço do
Mário
Quatro rios e um destino
Beja Santos
“Quatro Rios e um Destino”, por Fernando Sousa, Chiado Editora, 2014, é um registo de vivências singular, onde se cruzam o enaltecimento de valores e o grito de protesto pelas desumanidades que experimentou no Anexo do Hospital Militar, após o grave sinistro que teve na Guiné.
O enaltecimento de valores arranca logo com a descrição da sua infância, um texto singelo, carregado de amor familiar e telúrico, tudo contado sem arrebiques, com o gosto de confidenciar:
“Aos sete anos, já acompanhava o meu pai na colocação de armadilhas para apanhar caça, sobretudo coelhos e perdizes, que por ali havia em abundância. Porque, naquela terra, longe de tudo, era importante aprender a sobreviver (…) Aos seis anos, já calcorreava todos os caminhos e veredas que conduziam às várias propriedades da família, tendo como companhia nestas andanças uma burra, que tudo levava e tudo trazia, e muitas vezes agarrado ao rabo dela, para a poder acompanhar naquelas caminhos pedregosos, repletos de altos e baixos”.
Lembra-se das férias que passou na colónia balnear infantil de O Século, Lisboa deslumbrou-o, foi cidade que o marcou para sempre. Salta destas recordações de infância para a sua entrada no RI 14, e passar de mancebo a instruendo militar, estávamos em Outubro de 1969. Não gostou das carecadas nem das outras praxes. O comandante de pelotão é tratado como ratazana de esgoto:
“Por pura vingança desmedida, procurava os sítios onde houvesse mais água e lama, dentro e fora
do quartel, para obrigar todos a rastejar e rebolar, até que ficassem completamente encharcados e cobertos de lama, para, de seguida, se rir e gozar. Todos nós passámos um sacrifício tremendo com aquele pulha”.
Em Janeiro de 1970, veio a caminho do RI 2. Em Março, é chamado
a secretaria e informado quetinha sido mobilizado em rendição individual. Vai despedir-se dos seus a Bebeses, concelho de Penedono. Serão tempos dilacerantes, despede-se com um “até um dia destes”. Em Maio, está a caminho de Luanda, a viagem deixou-lhes as piores recordações. A experiência luandense também não foi muito feliz. É aqui que recebe guia de marcha com destino para a Guiné, paragem na ilha do Sal e depois Bissau.
Para ganhar uns cobres, desata a colorir fotografias a preto e branco. Mandam-no de viagem a Bambadinca, vai acompanhar material que foi metido num batelão. Durante a viagem ao longo do Geba, foi surpreendido por um instrumento musical que desconhecia, o korá:
“Fiquei na dúvida se seria uma cabaça redonda cortada ao meio, onde fixaram uma pele de cabra ou de outro animal para mim desconhecido. Numa das metades da dita cabaça, as cordas que serviam de fixação dessa mesma pele, da qual se repercutia o som, eram também tiras talvez desse ou outro animal, sabiamente cortadas e de forma harmoniosa fixas para manterem a pele principal devidamente esticada, onde tudo batia certo e estava perfeito, menos as cordas de produzir o som que eram fio de náilon habitualmente usado pelos pescadores, que prendiam na cabaça em algumas dessas tiras de pele ainda com pelos do animal, de forma inteligente, e no outro extremo, fixos na ponta de um bambu, como que feito à pressa, e mal conseguiam manter a tensão necessária para que o som produzido tivesse qualidade”.
Ia atento às belezas que avistava nas margens do Geba. Viu um crocodilo a apanhar sol e um pássaro às bicadas no meio dos dentes. Feita a descarga regressa a Bissau e dão-lhe como destino a CCAÇ 6, em Bedanda, ia atormentado e a viagem foi uma tormenta. Já conhecia dois rios, o Tejo e o Geba, agora vai a caminho do Cumbidjã, dali seguirão para o rio Ungauriuol, este com curvas muito apertadas e estreitas, em que os barcos quase roçavam no tarrafo.
Faz estimas, logo com o Furriel Ribeiro e o 1.º Cabo Leito, apreciou as qualidades do capitão Ayala Botto. Todas as suas descrições deste teatro de operações serão sincopadas, enxutas, fala dos seres humanos que o cativaram, caso do marido da lavadeira que o convidou para almoçar. Está polarizado os maus momentos que se seguem, aquela manhã igual a tantas outras manhãs, na encruzilhada entre o Cumbidjã e o Malamba, será ali que toda a sua vida se transfigurou, ao princípio não sentiu nada depois despertou no meio de chamas a arder:
“Ardia sobre o meu corpo retalhado, num buraco que a própria explosão cavou. Ali mesmo reconheci que já não era mais eu! Vejo que uma perna tinha pura e simplesmente desaparecido, restando dela farrapos de carne pendurados! Da outra, apenas via um osso completamente descarnado, espetado naquele chão ardido, e ao lado uma bota com um pé nela metido, pendurado por um tendão, agarrado àquele osso lambido, que, outrora, tinha feito parte integrante do meu corpo”.
Inicia-se o calvário dos tratamentos no Hospital Militar em Bissau. Ao ganhar consciência do sucedido, com todas aquelas dores como facas cravadas, amaldiçoa a sua sorte. Pede ao sargento de enfermaria para lhe pôr termo à vida. Tomba os frascos indispensáveis ao seu tratamento, é amarrado à cama. O 1.º Cabo Sousa chora copiosamente. Era um homem de fé, um homem que rezava, agora está enraivecido, aquele tempo marcou-o para sempre:
“Ainda hoje me dói o arrancar das ligaduras, das compressas, daquela carne dilacerada e queimada! O tormento de acordar de cada anestesia!”.
E passa a confrontar-se com as dores dos outros naquele espaço que ele designa por antecâmaras da morte. Um dia ganha coragem e escreve à família, carta tranquilizadora, levava 22 dias de sofrimento atroz. Suavizou-o a visita da mais velha das cinco mulheres do seu colega de Bedanda, que tanto estimava. Está impaciente para partir para Lisboa, esse dia acabou por chegar. E em Lisboa vai viver tempos terríficos. Odeia que lhe digam coisas como “Sabes meu filho, tu até tiveste muita sorte!”. Há uma atmosfera de tragédia ali à volta: “Era desgraçadamente ali que muitas namoradas, noivas e madrinhas de guerra sofriam a maior desilusão das suas vidas, ao encararem com o que restava das suas paixões, tornando seus sonhos em pesadelos!”.
Toda a sua escrita ressuma cólera não contida pelo que viu e viveu no Anexo do Hospital Militar Principal, lugar maldito, só ao fim de oito meses que cederam uma cadeira de rodas. Livro profusamente ilustrado, e escreve a legenda, estamos em 1972, vemo-lo passivo, desalentado, numa cadeira de rodas:
“A total decadência. O passar uma tormenta. O viveu num inferno. Um condenado. Um sobrevivente. Um nascido do nada. Um irreverente. Um inconformado. Um renascido para a luta. Mas sempre eu, consciente de mim, do que fui, do que era e do que teimosamente ambicionava ser”.
Aprende a outra dimensão da autonomia, a depender, com todas as suas forças de si mesmo, cria novas convicções. Volta a Bebeses, descobre que não tem ali lugar, refugia-se na cidade, transforma-se no homem que é hoje. Irá até cais de Alcântara para prestar homenagem a si mesmo, como sinal de que tinha regressado e estava vivo.
Hoje assume-se como não-crente, basta-lhe acreditar em si e em todos os homens de bem, confessa que terminou a última parte das suas recordações com dificuldade. Quer que o leitor não duvide dele: “Porque de verdade tudo isto que passei vos relato foi real. Foi mesmo assim”.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 17 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13905: Notas de leitura (651): 1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (3) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
É um livro, a vários tipos, raro. Raro pela confidência, raro pelo filtro que o autor se impõe quanto ao sujeito da memória: a infância, a recruta, a especialidade que culmina, praticamente, com a convocatória para a guerra.
Não se sabe porquê, desembarca em Luanda e é direcionado, de supetão, para a Guiné, viaja até Bedanda.
Não se perde em considerandos nem faz crónica da guerra, regista estimas e chega depois a hora do sinistro que o transfigurou, até hoje. Impressiona quando escreve sobre os guineenses, captou-lhes a ternura, o gosto pela música, a afabilidade.
Temos aqui um livro que é também um grito de revolta, é alguém que superou o pesadelo e não o esconde. É um livro raro, encontrou um caminho inesperado depois da agonia de se ver sem duas pernas, venceu o destino.
Um abraço do
Mário
Quatro rios e um destino
Beja Santos
“Quatro Rios e um Destino”, por Fernando Sousa, Chiado Editora, 2014, é um registo de vivências singular, onde se cruzam o enaltecimento de valores e o grito de protesto pelas desumanidades que experimentou no Anexo do Hospital Militar, após o grave sinistro que teve na Guiné.
O enaltecimento de valores arranca logo com a descrição da sua infância, um texto singelo, carregado de amor familiar e telúrico, tudo contado sem arrebiques, com o gosto de confidenciar:
“Aos sete anos, já acompanhava o meu pai na colocação de armadilhas para apanhar caça, sobretudo coelhos e perdizes, que por ali havia em abundância. Porque, naquela terra, longe de tudo, era importante aprender a sobreviver (…) Aos seis anos, já calcorreava todos os caminhos e veredas que conduziam às várias propriedades da família, tendo como companhia nestas andanças uma burra, que tudo levava e tudo trazia, e muitas vezes agarrado ao rabo dela, para a poder acompanhar naquelas caminhos pedregosos, repletos de altos e baixos”.
Lembra-se das férias que passou na colónia balnear infantil de O Século, Lisboa deslumbrou-o, foi cidade que o marcou para sempre. Salta destas recordações de infância para a sua entrada no RI 14, e passar de mancebo a instruendo militar, estávamos em Outubro de 1969. Não gostou das carecadas nem das outras praxes. O comandante de pelotão é tratado como ratazana de esgoto:
“Por pura vingança desmedida, procurava os sítios onde houvesse mais água e lama, dentro e fora
do quartel, para obrigar todos a rastejar e rebolar, até que ficassem completamente encharcados e cobertos de lama, para, de seguida, se rir e gozar. Todos nós passámos um sacrifício tremendo com aquele pulha”.
Em Janeiro de 1970, veio a caminho do RI 2. Em Março, é chamado
Fernando Sousa. Entrou para a Tabanca Grande em 6/8/2014 |
Para ganhar uns cobres, desata a colorir fotografias a preto e branco. Mandam-no de viagem a Bambadinca, vai acompanhar material que foi metido num batelão. Durante a viagem ao longo do Geba, foi surpreendido por um instrumento musical que desconhecia, o korá:
“Fiquei na dúvida se seria uma cabaça redonda cortada ao meio, onde fixaram uma pele de cabra ou de outro animal para mim desconhecido. Numa das metades da dita cabaça, as cordas que serviam de fixação dessa mesma pele, da qual se repercutia o som, eram também tiras talvez desse ou outro animal, sabiamente cortadas e de forma harmoniosa fixas para manterem a pele principal devidamente esticada, onde tudo batia certo e estava perfeito, menos as cordas de produzir o som que eram fio de náilon habitualmente usado pelos pescadores, que prendiam na cabaça em algumas dessas tiras de pele ainda com pelos do animal, de forma inteligente, e no outro extremo, fixos na ponta de um bambu, como que feito à pressa, e mal conseguiam manter a tensão necessária para que o som produzido tivesse qualidade”.
Ia atento às belezas que avistava nas margens do Geba. Viu um crocodilo a apanhar sol e um pássaro às bicadas no meio dos dentes. Feita a descarga regressa a Bissau e dão-lhe como destino a CCAÇ 6, em Bedanda, ia atormentado e a viagem foi uma tormenta. Já conhecia dois rios, o Tejo e o Geba, agora vai a caminho do Cumbidjã, dali seguirão para o rio Ungauriuol, este com curvas muito apertadas e estreitas, em que os barcos quase roçavam no tarrafo.
Faz estimas, logo com o Furriel Ribeiro e o 1.º Cabo Leito, apreciou as qualidades do capitão Ayala Botto. Todas as suas descrições deste teatro de operações serão sincopadas, enxutas, fala dos seres humanos que o cativaram, caso do marido da lavadeira que o convidou para almoçar. Está polarizado os maus momentos que se seguem, aquela manhã igual a tantas outras manhãs, na encruzilhada entre o Cumbidjã e o Malamba, será ali que toda a sua vida se transfigurou, ao princípio não sentiu nada depois despertou no meio de chamas a arder:
“Ardia sobre o meu corpo retalhado, num buraco que a própria explosão cavou. Ali mesmo reconheci que já não era mais eu! Vejo que uma perna tinha pura e simplesmente desaparecido, restando dela farrapos de carne pendurados! Da outra, apenas via um osso completamente descarnado, espetado naquele chão ardido, e ao lado uma bota com um pé nela metido, pendurado por um tendão, agarrado àquele osso lambido, que, outrora, tinha feito parte integrante do meu corpo”.
Inicia-se o calvário dos tratamentos no Hospital Militar em Bissau. Ao ganhar consciência do sucedido, com todas aquelas dores como facas cravadas, amaldiçoa a sua sorte. Pede ao sargento de enfermaria para lhe pôr termo à vida. Tomba os frascos indispensáveis ao seu tratamento, é amarrado à cama. O 1.º Cabo Sousa chora copiosamente. Era um homem de fé, um homem que rezava, agora está enraivecido, aquele tempo marcou-o para sempre:
“Ainda hoje me dói o arrancar das ligaduras, das compressas, daquela carne dilacerada e queimada! O tormento de acordar de cada anestesia!”.
E passa a confrontar-se com as dores dos outros naquele espaço que ele designa por antecâmaras da morte. Um dia ganha coragem e escreve à família, carta tranquilizadora, levava 22 dias de sofrimento atroz. Suavizou-o a visita da mais velha das cinco mulheres do seu colega de Bedanda, que tanto estimava. Está impaciente para partir para Lisboa, esse dia acabou por chegar. E em Lisboa vai viver tempos terríficos. Odeia que lhe digam coisas como “Sabes meu filho, tu até tiveste muita sorte!”. Há uma atmosfera de tragédia ali à volta: “Era desgraçadamente ali que muitas namoradas, noivas e madrinhas de guerra sofriam a maior desilusão das suas vidas, ao encararem com o que restava das suas paixões, tornando seus sonhos em pesadelos!”.
Toda a sua escrita ressuma cólera não contida pelo que viu e viveu no Anexo do Hospital Militar Principal, lugar maldito, só ao fim de oito meses que cederam uma cadeira de rodas. Livro profusamente ilustrado, e escreve a legenda, estamos em 1972, vemo-lo passivo, desalentado, numa cadeira de rodas:
“A total decadência. O passar uma tormenta. O viveu num inferno. Um condenado. Um sobrevivente. Um nascido do nada. Um irreverente. Um inconformado. Um renascido para a luta. Mas sempre eu, consciente de mim, do que fui, do que era e do que teimosamente ambicionava ser”.
Aprende a outra dimensão da autonomia, a depender, com todas as suas forças de si mesmo, cria novas convicções. Volta a Bebeses, descobre que não tem ali lugar, refugia-se na cidade, transforma-se no homem que é hoje. Irá até cais de Alcântara para prestar homenagem a si mesmo, como sinal de que tinha regressado e estava vivo.
Hoje assume-se como não-crente, basta-lhe acreditar em si e em todos os homens de bem, confessa que terminou a última parte das suas recordações com dificuldade. Quer que o leitor não duvide dele: “Porque de verdade tudo isto que passei vos relato foi real. Foi mesmo assim”.
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13905: Notas de leitura (651): 1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (3) (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P13922: Manuscrito(s) (Luís Graça) (50): O tempo que faz em Imbecilburgo
Guiné > Zona leste >Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > 1969 > CCAÇ 12 (1969/71) > O fur mil arm pes inf Henriques junto ao cais fluvial de Bambadinca, na margem esquerda do Rio Geba Estreito (ou Xaianga)... Atracado ao cais, um dos típicos "barcos turras" que demandavam aquelas paragens, transportando pessoas e mercadorias, de e para Bissau... Não me parece que seja o "Bubaque", a antiga Lancha de Patrulha, LP4, que esteve ao serviço da Marinha, entre meados de 1963 e o 1º trimestre de 1964, antes de virem as Lanchas de Desembarque (LM)... Soube ontem, através do Manuel Lema Santos, que essas embarcações, antigas traineiras de pesca (!), eram conhecidas como as "enviadas"...
Fotos (e legendas): © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.
[Agradeço ao Jorge Canhão ter-me limpo" a foto, que estava com uma cor esquisita: "Luís, esta foto tua no blogue está com uma cor um bocado esquisita, com o tempo elas vão ficando avermelhadas, mas passando por um programa de edição de imagens fica com uma cor mais natural, Abraços".]
Senhores e senhoras,
respeitável público
do Circo de Imbecilburgo:
este homem não é um homem,
é um palhaço,
é um soldado, fardado,
de camuflado,
verde oliva, desbotado,
um número mecanográfico,
uma peça da engrenagem,
que na sua essência cumpre ordens,
às vezes com coragem,
verde oliva, desbotado,
um número mecanográfico,
uma peça da engrenagem,
que na sua essência cumpre ordens,
às vezes com coragem,
outras com lúcido medo,
é isso que lhe dói,
é isso que lhe dói,
neste cenário.
que não é cinematográfico,
mas também pouco conforme
com o Regulamento de Disciplinar Militar:
não é um mercenário,
nem um caso psiquiátrico,
não é o homem-aranha
nem o super-homem,
não é nenhum deus do Olimpo,
nem nenhum herói da resistência,
nem muito menos do 10 de junho:
saiu, de noite, (mal) armado,
com os pés descalços dos seus 'nharros',
para a impossível Missão do Sono,
em Bambadincazinha,
guardar as costas dos senhores de Bambadinca,
que dormem na cama,
que não é cinematográfico,
mas também pouco conforme
com o Regulamento de Disciplinar Militar:
não é um mercenário,
nem um caso psiquiátrico,
não é o homem-aranha
nem o super-homem,
não é nenhum deus do Olimpo,
nem nenhum herói da resistência,
nem muito menos do 10 de junho:
saiu, de noite, (mal) armado,
com os pés descalços dos seus 'nharros',
para a impossível Missão do Sono,
em Bambadincazinha,
guardar as costas dos senhores de Bambadinca,
que dormem na cama,
em lençóis lavados,
fazendo p’la sua vidinha.
fazendo p’la sua vidinha.
Voaste há dias, ai!,
sob uma mina anticarro,
à saída do reordenamento de Nhabijões,
mas estás vivo, ó 'tuga',
graças talvez à 'mezinha'
que te deu um 'mauro', um 'marabu',
em Sinchã Mamadjai...
E que melhor prenda de anos,
meu grande safado,
poderias desejar
do que estar vivo,
aos vinte meses de Guiné ?
Ah! como o tempo (não) passa
enquanto um gajo ajusta contas
com o tempo que já passou,
vinte e quatro,
contados em anos
do calendário gregoriano,
no ano da graça
de mil novecentos setenta e um.
Mas é o presente que importa
ou que importava
porque já não é mais presente
mas passado
o tempo transcorrido,
por estas terras e águas do Geba,
como reles miliciano.
Insistes no presente do indicativo
porque é o presente minuto
que 'import-export'
para a gente ainda ter tempo
de ganhar um lugar (cativo)
no futuro próximo
enquanto um gajo ajusta contas
com o tempo que já passou,
vinte e quatro,
contados em anos
do calendário gregoriano,
no ano da graça
de mil novecentos setenta e um.
Mas é o presente que importa
ou que importava
porque já não é mais presente
mas passado
o tempo transcorrido,
por estas terras e águas do Geba,
como reles miliciano.
Insistes no presente do indicativo
porque é o presente minuto
que 'import-export'
para a gente ainda ter tempo
de ganhar um lugar (cativo)
no futuro próximo
(se o houver).
Tu até podias acreditar numa 'Guiné Melhor',
no 'Her' Spínola,
nos teus 'nharros',
esses patriotas guinéus que lutam a teu lado,
Tu até podias acreditar numa 'Guiné Melhor',
no 'Her' Spínola,
nos teus 'nharros',
esses patriotas guinéus que lutam a teu lado,
ou, do outro lado,
no Cabral,
que já foi teu herói, revolucionário,
romântico 'ma non troppo',
ou no 'Nino', teu 'turra' de estimação,
vestido à 'cow-boy' e armado de RPG
no delirante imaginário dos 'tugas'.
Podias mesmo acreditar na transmigração
das almas mortas em combate,
para o Panteão Nacional,
se não fora essa ideia (fixa)
do passado, glorioso, perdido,
sabendo-se que o dinheiro
e as armas compram tudo
exceto o direito à eternidade,
e muito menos à liberdade.
Se te portares bem,
meu velho,
aos vinte e um meses de Guiné,
na reta final da tua comissão,
enquanto esperas a tua rendição individual,
ainda corres o risco de apanhar um louvor
do comandante do batalhão,
- ah!, que ironia! -
sob proposta do teu capitão,
à beira de ser promovido a major,
não por façanhas e valentia,
mas por seres o escriba-mor
da história... da tua companhia.
Bambadinca, 29/1/1971
______________
no Cabral,
que já foi teu herói, revolucionário,
romântico 'ma non troppo',
ou no 'Nino', teu 'turra' de estimação,
vestido à 'cow-boy' e armado de RPG
no delirante imaginário dos 'tugas'.
Podias mesmo acreditar na transmigração
das almas mortas em combate,
para o Panteão Nacional,
se não fora essa ideia (fixa)
do passado, glorioso, perdido,
sabendo-se que o dinheiro
e as armas compram tudo
exceto o direito à eternidade,
e muito menos à liberdade.
Se te portares bem,
meu velho,
aos vinte e um meses de Guiné,
na reta final da tua comissão,
enquanto esperas a tua rendição individual,
ainda corres o risco de apanhar um louvor
do comandante do batalhão,
- ah!, que ironia! -
sob proposta do teu capitão,
à beira de ser promovido a major,
não por façanhas e valentia,
mas por seres o escriba-mor
da história... da tua companhia.
Bambadinca, 29/1/1971
Nota do editor:
Último poste da série > 20 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13919: Manuscrito(s) (Luís Graça) (49): Homenagem à Magnífica Tabanca da Linha
Último poste da série > 20 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13919: Manuscrito(s) (Luís Graça) (49): Homenagem à Magnífica Tabanca da Linha
Guiné 63/74 - P13921: Agenda cultural (359): Convite para a apresentação do livro "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: um Roteiro", da autoria de Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, dia 26 de Novembro, pelas 18h30, na Livraria Barata, em Lisboa
____________
Nota do editor
Último poste da série de 18 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13911: Agenda cultural (358): Lançamento do 15.º livro da colecção Fim do Império "O General Ramalho Eanes e a História Recente de Portugal", de Vieira Pinto, dia 25 de Novembro de 2014, pelas 15h00, no IASFA/CASOeiras, Auditório Princesa Benedita (Manuel Barão da Cunha)
Nota do editor
Último poste da série de 18 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13911: Agenda cultural (358): Lançamento do 15.º livro da colecção Fim do Império "O General Ramalho Eanes e a História Recente de Portugal", de Vieira Pinto, dia 25 de Novembro de 2014, pelas 15h00, no IASFA/CASOeiras, Auditório Princesa Benedita (Manuel Barão da Cunha)
quinta-feira, 20 de novembro de 2014
Guiné 63/74 - P13920: Blogoterapia (263): O Homem entre o Amor e a Guerra (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)
1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 13 de Novembro de 2014:
A adolescência é uma fase difícil da vida, em que o homem procura construir uma identidade com bases sólidas que lhe dêem segurança para o futuro. Nesse tempo sofri bastante sobretudo por duas causas: Sendo o tempo de despertar para o amor e para o sexo e eu como a maioria dos rapazes do meu tempo estava mal preparado para enfrentar esse choque originado pela transformação física e psíquica que ocorre. A atração súbita pelo outro sexo vai alterar toda a nossa rotina de vida de conversas, pensamentos e passatempos que vínhamos mantendo com amigos e colegas, sem sobressaltos desde meninos. Até esse despertar as raparigas eram-nos indiferentes pois elas tinham outras brincadeiras e outros interesses.
Pouco habituado a ter conversas com elas e cheio de preconceitos e tabus, fruto da sociedade conservadora, patriarcal, autoritária, religiosa e obediente a todas as regras proclamadas pela Igreja Católica quando senti urgência em me aproximar delas não sabia muito bem como o fazer, pois elas sempre me pareceram pertencer a outro mundo.
Essas paixões platónicas pelas raparigas paralisavam-me e dificultavam-me uma abordagem descontraída sobre esses temas mesmo quando por alguns sinais eu suspeitava que elas estavam à espera duma iniciativa nesse sentido. Cheguei a criar ilusões numa ou outra rapariga com declarações que em tom brincalhão lhes fazia, com todo o à-vontade, pois por essas não sentia atração. Nesse tempo vivi eu e muitos outros, segundo me parece, em silêncio, paixões arrasadoras. Também é verdade que no geral as raparigas, bastante tímidas e reservadas, não davam qualquer ajuda, lançavam uns olhos meigos ou brilhantes que nos incendiavam as noites os dias e era tudo. Nesse tempo vi olhos muito lindos e faiscantes, os olhos das raparigas brilham mais.
Quando me despedi em Vila Real da minha mãe, irmãs e irmãos, que estavam lá a estudar, levei comigo na memória para a Guiné além das lágrimas da minha mãe e dos meus irmãos, uns olhos verdes, duma colega duma irmã minha. Olhos tão verdes e tão lindos como Almeida Garret esse escritor romântico descobriu no vale de Santarém, nas Viagens da Minha Terra.
"Olhos verdes!...
"Joaninha tem os olhos verdes.
"Não se reflete neles a pura luz do céu, como nos olhos azuis.
"Nem o fogo - e o fumo das paixões, como nos pretos.
"Mas o viço do prado, a frescura e animação do bosque a flutuação e a transparência do mar...
"Tudo está naqueles olhos verdes.
"Joaninha, por que tens tu os olhos verdes? "
Almeida Garrett"
Porém fui para a Guiné, cansado de amores intocáveis e à distância, não quis deixar namorada, correspondente ou madrinha de guerra. Na altura, já numa fase mais racional da minha vida, achei que uma fidelidade tão longa seria demasiado exigente, como longos e exigentes são em amor, envolvimento e carinho os vinte anos de ambos os sexos.
A curiosidade intelectual revela-se no homem pouco depois de começar a falar e acentua-se nos primeiros anos da meninice. É a idade dos porquês, que todos os pais conhecem. Quando chega a adolescência, o homem já com mais conhecimentos e uma inteligência mais desenvolvida, na solidão da sua mente, faz perguntas mais elaboradas e com outro alcance que têm a ver com os mistérios da existência, da morte, da terra do universo etc.
Tantas duvidas tantas perguntas, algumas que se repetem tanto, noite e dia numa intermitência capaz de enlouquecer qualquer ser bem pensante. Até a um termo em que a terra acaba e o mar começa e ficamos sós e pensativos entre a imensidão dos céus que nos cobrem e o abismo do mares profundos que se alargam em horizontes sem fim. Sós perante as perguntas primordiais. PORQUE? PARA QUÊ? É um caminho dialético e difícil, que cria em nós essa ilusão que sendo superiores em inteligência aos outros animais, tão próximos dos deuses que nos criaram, seremos capazes de decifrar os grandes mistérios da vida. No final ficamos perdidos e sós entre esse céu e esse oceano que nos esmagam pela sua imponência e que não nos dão um tratamento diferente do que dão às aves ou aos peixes
Como romeiros pelas estradas de Santiago, chegamos a Compostela levados por essas estradas da terra e da mente já cansados e doridos no corpo e na alma e depois dessa longa caminhada descobrimos que só nos resta a fé para nos salvarmos do vazio a que nos conduziu a nossa longa caminhada. Como num sonho confuso não sabemos se devemos recolher-nos na Catedral de Santiago ou caminhar pelo mar na esperança que algum Deus separe as águas para nos salvar ou que nos deixe dormir em paz sob esse grande lençol de água imenso, tão liquido e aconchegante como o ventre da nossa mãe que nos deu a vida.
A minha santa mãe, durante muito tempo pensei que era a melhor do mundo, já tarde apercebi-me que as mães dos outros também eram as melhores. Mãe que me ensinou a rezar e que tinha uma crença religiosa mais sólida do que as largas paredes da igreja da paróquia não me conseguiu transmitir essas verdades.
Nunca consegui resolver essa equação tão difícil que reside entre o mistério da vida e da morte. Nascemos do nada? Morremos para voltar a esse nada?
Revi recentemente num canal de televisão as batalhas cruéis que se desenrolaram tanto na 1.ª como na 2.ª Guerra Mundial, em que milhões de jovens, dum lado e do outro do conflito, foram empurrados para uma morte certa, como se fossem carne para canhão.
Pensando no mistério da vida da morte, eu, um não crente, apiedado por tantos mortos, tão jovens e transbordantes de energia e entusiasmo, sou quase levado a crer, como alguns muçulmanos, que eram esperados nos céus por 30 virgens
No final das guerras há sempre conversações para restabelecer a paz e dividir as riquezas das nações, com prejuízo naturalmente para os beligerantes derrotados. Depois do renascimento, do século da luzes, do aufklarung alemão, depois da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, porque é que os países não discutiram as formas de evitar essas guerras terríveis em que o homem deixa de ser um ser humano civilizado para passar a ser a besta do Apocalipse. Desde a 2.ª Guerra Mundial até hoje, os setenta anos já passados, são muito pouco tempo em termos históricos para haver uma alteração de mentalidade do homem.
Na opinião de outros não há cultura, tratados ou proclamações de direitos que curem o homem do seu instinto guerreiro e destrutivo, pois esse instinto reside na parte mais antiga e funda do seu cérebro que a razão não consegue dominar. São tempos terríveis em que o homem se transforma na fera que terá sido nos primórdios da sua existência, e semeia a morte e destruição à sua volta.
A harmonia do universo, essa verdade proclamada por alguns teólogos e filósofos, no que concerne ao planeta Terra, é desmentida pelo espectáculo de devastação, destruição e morticínio que aconteceram um pouco por toda a Terra nas duas últimas grandes guerras. As guerras são uma constante histórica de todas as civilizações se fizermos um estudo do passado do homem.
A Bíblia, que é uma história da humanidade, segundo alguns bastante fantasiada, que usa muito a parábola, ainda antes de Jesus Cristo, que foi um mestre no uso dessa figura de estilo, conta a morte de Abel por seu irmão Caim por ciumes, quando a terra imensa, ainda era só deles. Se quisermos ser pessimistas e olhar para a História pelo seu lado mais negro, chegaremos à conclusão que o homem é o mais bruto e selvagem de todos os animais, pois as guerras por toda a terra têm-se sucedido a um ritmo impressionante.
Será a guerra inevitável? Iremos morrer todos numa 3.ª guerra mundial?
Está provado que o homem tem aprendido pouco com a História e estão sempre a surgir loucos destruidores e sedentos de sangue.
Segundo alguns, na idade moderna os políticos que declararam as guerras e os generais que as comandaram, no geral ficavam sempre protegidos na comodidade dos seus luxuosos gabinetes na retaguarda, o que terá provocado um maior número de mortos. Esses generais e políticos davam aguardente, rum ou zurrapa aos soldados para mais alegremente morrerem por uma pátria, por uma bandeira, onde eles afinal não passavam de escravos ao serviço dos grandes senhores.
A minha homenagem a todos esses jovens condenados e sacrificados, dentre eles aos 7000 portugueses que morreram na Flandres na 1.ª Guerra Mundial.
"Nos campos da Flandres crescem papoilas
Entre as cruzes que, fila a fila,
Marcam o nosso lugar; e no céu
As cotovias, ainda corajosamente a cantar, voam
Escassas, fazendo-se ouvir entre as armas abaixo.
Nós somos os Mortos.
Há poucos dias atrás
Vivíamos, sentíamos o amanhecer, éramos amados; agora repousamos
Nos campos da Flandres.
Tomem a nossa guerra com o inimigo
A vós entregamos, das nossas mãos moribundas,
A tocha; que seja vossa, para que a mantenhais ao alto.
Se traírdes a nossa fé, dos que morremos,
Jamais dormiremos, ainda que cresçam papoilas
Nos campos da Flandres."
John McCrae
Um abraço a todos
Francisco Baptista
____________
Nota do editor
Último poste da série de 7 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13582: Blogoterapia (262): Algo de estranho e sinistro (Amado Juvenal, ex-1.º Cabo Cond Auto do BCAÇ 3872)
A adolescência é uma fase difícil da vida, em que o homem procura construir uma identidade com bases sólidas que lhe dêem segurança para o futuro. Nesse tempo sofri bastante sobretudo por duas causas: Sendo o tempo de despertar para o amor e para o sexo e eu como a maioria dos rapazes do meu tempo estava mal preparado para enfrentar esse choque originado pela transformação física e psíquica que ocorre. A atração súbita pelo outro sexo vai alterar toda a nossa rotina de vida de conversas, pensamentos e passatempos que vínhamos mantendo com amigos e colegas, sem sobressaltos desde meninos. Até esse despertar as raparigas eram-nos indiferentes pois elas tinham outras brincadeiras e outros interesses.
Pouco habituado a ter conversas com elas e cheio de preconceitos e tabus, fruto da sociedade conservadora, patriarcal, autoritária, religiosa e obediente a todas as regras proclamadas pela Igreja Católica quando senti urgência em me aproximar delas não sabia muito bem como o fazer, pois elas sempre me pareceram pertencer a outro mundo.
Essas paixões platónicas pelas raparigas paralisavam-me e dificultavam-me uma abordagem descontraída sobre esses temas mesmo quando por alguns sinais eu suspeitava que elas estavam à espera duma iniciativa nesse sentido. Cheguei a criar ilusões numa ou outra rapariga com declarações que em tom brincalhão lhes fazia, com todo o à-vontade, pois por essas não sentia atração. Nesse tempo vivi eu e muitos outros, segundo me parece, em silêncio, paixões arrasadoras. Também é verdade que no geral as raparigas, bastante tímidas e reservadas, não davam qualquer ajuda, lançavam uns olhos meigos ou brilhantes que nos incendiavam as noites os dias e era tudo. Nesse tempo vi olhos muito lindos e faiscantes, os olhos das raparigas brilham mais.
Quando me despedi em Vila Real da minha mãe, irmãs e irmãos, que estavam lá a estudar, levei comigo na memória para a Guiné além das lágrimas da minha mãe e dos meus irmãos, uns olhos verdes, duma colega duma irmã minha. Olhos tão verdes e tão lindos como Almeida Garret esse escritor romântico descobriu no vale de Santarém, nas Viagens da Minha Terra.
"Olhos verdes!...
"Joaninha tem os olhos verdes.
"Não se reflete neles a pura luz do céu, como nos olhos azuis.
"Nem o fogo - e o fumo das paixões, como nos pretos.
"Mas o viço do prado, a frescura e animação do bosque a flutuação e a transparência do mar...
"Tudo está naqueles olhos verdes.
"Joaninha, por que tens tu os olhos verdes? "
Almeida Garrett"
Porém fui para a Guiné, cansado de amores intocáveis e à distância, não quis deixar namorada, correspondente ou madrinha de guerra. Na altura, já numa fase mais racional da minha vida, achei que uma fidelidade tão longa seria demasiado exigente, como longos e exigentes são em amor, envolvimento e carinho os vinte anos de ambos os sexos.
A curiosidade intelectual revela-se no homem pouco depois de começar a falar e acentua-se nos primeiros anos da meninice. É a idade dos porquês, que todos os pais conhecem. Quando chega a adolescência, o homem já com mais conhecimentos e uma inteligência mais desenvolvida, na solidão da sua mente, faz perguntas mais elaboradas e com outro alcance que têm a ver com os mistérios da existência, da morte, da terra do universo etc.
Tantas duvidas tantas perguntas, algumas que se repetem tanto, noite e dia numa intermitência capaz de enlouquecer qualquer ser bem pensante. Até a um termo em que a terra acaba e o mar começa e ficamos sós e pensativos entre a imensidão dos céus que nos cobrem e o abismo do mares profundos que se alargam em horizontes sem fim. Sós perante as perguntas primordiais. PORQUE? PARA QUÊ? É um caminho dialético e difícil, que cria em nós essa ilusão que sendo superiores em inteligência aos outros animais, tão próximos dos deuses que nos criaram, seremos capazes de decifrar os grandes mistérios da vida. No final ficamos perdidos e sós entre esse céu e esse oceano que nos esmagam pela sua imponência e que não nos dão um tratamento diferente do que dão às aves ou aos peixes
Como romeiros pelas estradas de Santiago, chegamos a Compostela levados por essas estradas da terra e da mente já cansados e doridos no corpo e na alma e depois dessa longa caminhada descobrimos que só nos resta a fé para nos salvarmos do vazio a que nos conduziu a nossa longa caminhada. Como num sonho confuso não sabemos se devemos recolher-nos na Catedral de Santiago ou caminhar pelo mar na esperança que algum Deus separe as águas para nos salvar ou que nos deixe dormir em paz sob esse grande lençol de água imenso, tão liquido e aconchegante como o ventre da nossa mãe que nos deu a vida.
A minha santa mãe, durante muito tempo pensei que era a melhor do mundo, já tarde apercebi-me que as mães dos outros também eram as melhores. Mãe que me ensinou a rezar e que tinha uma crença religiosa mais sólida do que as largas paredes da igreja da paróquia não me conseguiu transmitir essas verdades.
Nunca consegui resolver essa equação tão difícil que reside entre o mistério da vida e da morte. Nascemos do nada? Morremos para voltar a esse nada?
Revi recentemente num canal de televisão as batalhas cruéis que se desenrolaram tanto na 1.ª como na 2.ª Guerra Mundial, em que milhões de jovens, dum lado e do outro do conflito, foram empurrados para uma morte certa, como se fossem carne para canhão.
Pensando no mistério da vida da morte, eu, um não crente, apiedado por tantos mortos, tão jovens e transbordantes de energia e entusiasmo, sou quase levado a crer, como alguns muçulmanos, que eram esperados nos céus por 30 virgens
No final das guerras há sempre conversações para restabelecer a paz e dividir as riquezas das nações, com prejuízo naturalmente para os beligerantes derrotados. Depois do renascimento, do século da luzes, do aufklarung alemão, depois da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, porque é que os países não discutiram as formas de evitar essas guerras terríveis em que o homem deixa de ser um ser humano civilizado para passar a ser a besta do Apocalipse. Desde a 2.ª Guerra Mundial até hoje, os setenta anos já passados, são muito pouco tempo em termos históricos para haver uma alteração de mentalidade do homem.
Na opinião de outros não há cultura, tratados ou proclamações de direitos que curem o homem do seu instinto guerreiro e destrutivo, pois esse instinto reside na parte mais antiga e funda do seu cérebro que a razão não consegue dominar. São tempos terríveis em que o homem se transforma na fera que terá sido nos primórdios da sua existência, e semeia a morte e destruição à sua volta.
A harmonia do universo, essa verdade proclamada por alguns teólogos e filósofos, no que concerne ao planeta Terra, é desmentida pelo espectáculo de devastação, destruição e morticínio que aconteceram um pouco por toda a Terra nas duas últimas grandes guerras. As guerras são uma constante histórica de todas as civilizações se fizermos um estudo do passado do homem.
A Bíblia, que é uma história da humanidade, segundo alguns bastante fantasiada, que usa muito a parábola, ainda antes de Jesus Cristo, que foi um mestre no uso dessa figura de estilo, conta a morte de Abel por seu irmão Caim por ciumes, quando a terra imensa, ainda era só deles. Se quisermos ser pessimistas e olhar para a História pelo seu lado mais negro, chegaremos à conclusão que o homem é o mais bruto e selvagem de todos os animais, pois as guerras por toda a terra têm-se sucedido a um ritmo impressionante.
Será a guerra inevitável? Iremos morrer todos numa 3.ª guerra mundial?
Está provado que o homem tem aprendido pouco com a História e estão sempre a surgir loucos destruidores e sedentos de sangue.
Segundo alguns, na idade moderna os políticos que declararam as guerras e os generais que as comandaram, no geral ficavam sempre protegidos na comodidade dos seus luxuosos gabinetes na retaguarda, o que terá provocado um maior número de mortos. Esses generais e políticos davam aguardente, rum ou zurrapa aos soldados para mais alegremente morrerem por uma pátria, por uma bandeira, onde eles afinal não passavam de escravos ao serviço dos grandes senhores.
A minha homenagem a todos esses jovens condenados e sacrificados, dentre eles aos 7000 portugueses que morreram na Flandres na 1.ª Guerra Mundial.
"Nos campos da Flandres crescem papoilas
Entre as cruzes que, fila a fila,
Marcam o nosso lugar; e no céu
As cotovias, ainda corajosamente a cantar, voam
Escassas, fazendo-se ouvir entre as armas abaixo.
Nós somos os Mortos.
Há poucos dias atrás
Vivíamos, sentíamos o amanhecer, éramos amados; agora repousamos
Nos campos da Flandres.
Tomem a nossa guerra com o inimigo
A vós entregamos, das nossas mãos moribundas,
A tocha; que seja vossa, para que a mantenhais ao alto.
Se traírdes a nossa fé, dos que morremos,
Jamais dormiremos, ainda que cresçam papoilas
Nos campos da Flandres."
John McCrae
Um abraço a todos
Francisco Baptista
____________
Nota do editor
Último poste da série de 7 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13582: Blogoterapia (262): Algo de estranho e sinistro (Amado Juvenal, ex-1.º Cabo Cond Auto do BCAÇ 3872)
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