sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13922: Manuscrito(s) (Luís Graça) (50): O tempo que faz em Imbecilburgo




Guiné > Zona leste >Região de Bafatá >  Setor L1 > Bambadinca > 1969 >  CCAÇ 12 (1969/71) > O fur mil arm pes inf Henriques junto ao cais fluvial de Bambadinca, na margem esquerda do Rio Geba Estreito (ou Xaianga)... Atracado ao cais, um dos típicos "barcos turras" que demandavam aquelas paragens, transportando pessoas e mercadorias, de e para Bissau... Não me parece que seja o "Bubaque", a antiga Lancha de Patrulha, LP4, que esteve ao serviço da Marinha, entre meados de 1963 e o 1º trimestre de 1964, antes de virem as Lanchas de Desembarque (LM)... Soube ontem, através do Manuel Lema Santos, que essas embarcações, antigas traineiras de pesca (!), eram conhecidas como as "enviadas"...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.

[Agradeço ao Jorge Canhão ter-me limpo" a foto, que estava com uma cor esquisita: "Luís, esta foto tua no blogue está com uma cor um bocado esquisita, com o tempo elas vão ficando avermelhadas, mas passando por um programa de edição de imagens fica com uma cor mais natural, Abraços".]


O Tempo que Faz em Imbecilburgo


Senhores e senhoras, 

respeitável público
do Circo de Imbecilburgo:
este homem não é um homem,
é um palhaço, 
é um soldado, fardado, 
de camuflado,
verde oliva, desbotado,
um número mecanográfico,
uma peça da engrenagem,
que na sua essência cumpre ordens,
às vezes com coragem, 
outras com lúcido medo,
é isso que lhe dói, 
neste cenário.
que não é cinematográfico,
mas também pouco conforme 

com o Regulamento de Disciplinar Militar:
não é um mercenário,
nem um caso psiquiátrico,
não é o homem-aranha
nem o super-homem,
não é nenhum deus do Olimpo,
nem nenhum herói da resistência,
nem muito menos do 10 de junho:
saiu, de noite, (mal) armado,
com os pés descalços dos seus 'nharros',
para a impossível Missão do Sono,
em Bambadincazinha,
guardar as costas dos senhores de Bambadinca,
que dormem na cama, 
em lençóis lavados,
fazendo p’la sua vidinha
.

Voaste há dias, ai!,
sob uma mina anticarro,
à saída do reordenamento de Nhabijões,
mas estás vivo, ó 'tuga',
graças talvez à 'mezinha'
que te deu um 'mauro', um 'marabu',
em Sinchã Mamadjai...
E que melhor prenda de anos,
meu grande safado,

poderias desejar
do que estar vivo, 
aos vinte meses de Guiné ? 

Ah! como o tempo (não) passa
enquanto um gajo ajusta contas
com o tempo que já passou,
vinte e quatro,
contados em anos
do calendário gregoriano,
no ano da graça
de mil novecentos setenta e um.
Mas é o presente que importa
ou que importava
porque já não é mais presente
mas passado
o tempo transcorrido,
por estas terras e águas do Geba,
como reles miliciano.


Insistes no presente do indicativo
porque é o presente minuto
que 'import-export'
para a gente ainda ter tempo
de ganhar um lugar (cativo)
no futuro próximo 
(se o houver).

Tu até podias acreditar numa 'Guiné Melhor',
no 'Her' Spínola,
nos teus 'nharros',
esses patriotas guinéus que lutam a teu lado,

ou, do outro lado, 
no Cabral, 
que já foi teu herói, revolucionário,
romântico 'ma non troppo',
ou no 'Nino', teu 'turra' de estimação,
vestido à 'cow-boy'  
e armado de RPG
no delirante imaginário dos 'tugas'.
Podias mesmo acreditar na transmigração
das almas mortas em combate,
para o Panteão Nacional,
se não fora essa ideia (fixa)
do passado, glorioso, perdido,
sabendo-se que o dinheiro 

e as armas compram tudo
exceto o direito à eternidade,
e muito menos à liberdade.


Se te portares bem,
meu velho,
aos vinte e um meses de Guiné,
na reta final da tua comissão,
enquanto esperas a tua rendição individual,
ainda corres o risco de apanhar um louvor
do comandante do batalhão,

- ah!, que ironia! - 
sob proposta do teu capitão,
à beira de ser promovido a major,
não por façanhas e valentia,
mas por seres o escriba-mor
da história... da tua companhia.


Bambadinca, 29/1/1971

______________

Nota do editor:

Último poste da série > 20 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13919: Manuscrito(s) (Luís Graça) (49): Homenagem à Magnífica Tabanca da Linha

4 comentários:

Anónimo disse...



No teu poema está tudo, a verdade, a ironia e a farsa.
Tu camarada tens uma capacidade de transformação e compreensão que é didicil perceber.
Quanto mais te leio, menos te conheço, mas gosto de te ler.

Um grande abraço

Francisco Baptista

Anónimo disse...



"No habrá ya quien responda a la voz del poeta, la voz de todos los hombres?!..."

(Com a devida vénia ao Rafael Alberti)

Não comento o teu poema, que não me chega a língua, mas...
Tem piada, é como se estivesses a escrever com a minha caneta!... Ou devo antes dizer "como se a tua caneta estivesse a escrever por mim?!..."

Fizeste-me recordar quatro versos - há quem lhe chame quadra - de minha autoria, que começavam assim:

"Homem-verde, estranha a trincha que de verde te pintou..."

E termino como devia ter começado:

"Com a devida vénia ao Luís Graça"

Um grande abraço,
Mário Migueis

Luís Graça disse...

Obrigado, Francisco, obrigado Miguéis, pela vossa generosidade comentando este texto poético que teve a sua origem em Bambadinca, terra a que eu chamei Imbecilburgo, num evidente acesso de mau humor, ressentimento, raiva, como quiserem, (mas, claro, sem pretender ofender os seus habitantes)...

É evidente que os poetas tâm alguma impunidade, ou melhor, liberdade... É tudo por conta das ditas "liberdades poéticas", que um dia também podem vir a acabar!...

Devo dizer que é um texto em construção... Com,o outros... O publicar aqui no blogue obriga-me sempre a melhorá-los...

De qualquer modo, para a sua melhor compreensão ou leitura, é convenienet acrescentar acrescentar dois ou três promenores de contexto:

(i) em 29/1/1971, com 20 nmeses de Guiné (e de porrada), eu fiz 24 anos;

(ii) a minha "prenda de anos" nesse dia (ou mlehor noite) foi fazer segurança próxima ao quartel de Bambadinca: desde o ataque, em força, a Bambadinca, em 28/5/1969, que um grupo de combate (pretos, de preferência) "dormia" todos os dias no antigo posto sanitário de combate à doença do sono, a menos de 1 km (talvez 500/ 700 metros) do perímetro de arame farpado do quartel, em Bambadincazinho, um reordenamento a oeste, com alguma gente suspeita de "simpatias" com o IN;

(iii) a 13/1/1971, eu tinha "saltado" numa anticarro, de que resultaram uma série feridos graves do 4º Gr Comb da CCAÇ 12, á saída do reordenamento de Nhabijões... Um dos feridos graves (2 anos de tratamento e convalescença) foi o fuir mil António Fernando Marques... Eu tive nmais sorte do que ele: ía no "lugar do mnorto"...

Duas horas antes tinha saltado, no mesmo sítio, um "burrinho"... Morte imediato do condutor, da CCAÇ 12, mais uma série de feridos, entre eles, o alf Luis R. Moreira, da CCS, hoje também DFA... (Encontrámo-nos os três no almoço da Tabanca da Linha, na passada 5ª feira)...

(iv) Em 26/11/1970, fiou um dos que andei a apanhar os restos dos 6 infelizes camaradas mortos, à roquetada. na emboscada em que também caí/caímos (a CCAÇ 12 e CART 3494), na antiga picada da Ponta do Inglês, no Xime... 6 mortos e 9 feridos graves...

A operação tinha um estranho nome de código: Abencerragem Candente...

À noite, em Bambadinca, em plena parada, transtornado, vociferei contra os "abencerragens" que planearam e comandaram, "lá de cima", esta trágica operação...

Tive sorte: não tiveram lata de me dar um porrada, mandaram-me para o médico no dia seguinte... um ghrande ser humano com quem conversei, nas calmas, sobre os os filhos dos "abencerragens" que não corriam o risco de morrer de um roquetada no TO da Guiné... E deu-me um Valium 10 para me tranquilizar um pouco...

Enfim, dá para perceber (e talvez aceitar) o meu estado de espírito em 29/1/1971...

Nessa altura também estava, nas horas vagas, a escrever a história da unidade... Sem nunca pensar em receber nenhum louvor..., e muito menos do comandante do BART 2917!... Ironias... (Nessa altura, o comandante já era o Polidoro Monteiro, outra gente!)...

Luís Graça disse...

Voaste há dias, ai!,
sob uma mina anticarro,
à saída do reordenamento de Nhabijões,
mas estás vivo, ó 'tuga',
graças talvez à 'mezinha'
que te deu um 'mauro', um 'marabu',
em Sinchã Mamadjai...
E que melhor prenda de anos
desejar poderias,
meu grande safado ?

... Mais um eslcarecimento: quando passei uma ou duas semanas em Sinchã Mamadjai, uma tabanca fula em autodefesa no regualdo de Badora. o "mauro" ou "mouro" local, que tinha ido a Meca, e com quem eu gostava de conversar, deu-me um amuleto ("mezinho") contra as balas do turro...

Todos usávamos (, a começar pelos nossos soldados fulas), todos éramos supersticiosos, e em última análise crentes, mesmo quando agnósticos...