segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13905: Notas de leitura (651): 1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2014:

Queridos amigos,
Chego ao fim dos meus comentários quanto ao que adquiri neste memorável 1 de Novembro na Feira da Ladra.
É tudo uma questão de paciência, permanecendo acocorado diante de caixas de onde saem imagens díspares; é tudo uma questão de paciência, percorrer bancas e ir perguntando. Ali tudo se encontra, aerogramas, distintivos militares, mas o espírito seletivo não pode transigir com tanto material imperial, só a Guiné e colaterais é que contam.
Este trabalho de António Carreira é soberbo é dá muito que pensar como foi possível endeusar uma unidade política com base em escassos filamentos e articulações históricas económicas. Mas é assim a imaginação do homem, quando tem um fito considerado superior por vezes não olha a meios.

Um abraço do
Mário


1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (3)

Beja Santos

“Cabo Verde, Aspetos Sociais, Secas e Fomes do Século XX”, por António Carreira, Ulmeiro, 1984, foi a minha última aquisição numa viagem coroada de êxitos em manhã ensolarada. A grande, a grande pechincha, ficou à guarda de um alfarrabista amigo, já não tinha cabedal para trazer os vários quilos de “As grandes polémicas portuguesas”, uma obra de estalo da nossa cultura, venho ajoujado com a Guiné e este precioso trabalho de António Carreira de Cabo Verde.

Se a ele vou dedicar reflexões neste espaço é porque a sua leitura permite desvelar a coesão de um povo, coesão e especificidade, muito rapidamente se fica a entender que aquele slogan da unidade Guiné e Cabo Verde não sendo vazio era destituído da lógica da razão.

Primeiro, as nomenclaturas do arquipélago, nomes portugueses, genuinamente portugueses: Santiago, Mário, Fogo, Brava, ilhéus de Santa Maria, S. Antão, S. Vicente, S. Luzia, S. Nicolau, Sal e Boa Vista, ilhéus dos Pássaros, Branco e Raso.

Segundo, uma organização social típica de um empreendimento povoador com senhores, plebeus, homens de ofícios e degredados, depois os mestiços, o caldeirão da crioulidade. E os escravos, como a maioria. E António Carreira tece um elucidativo comentário sobre as raízes euro-africanas: “Em todo o desenvolvimento deste processo de formação de classes teve influência decisiva o modo como foram distribuídas as terras e se constituíram as grandes fazendas, virtualmente em Santiago e no Fogo. Nestas duas ilhas as melhores terras e as de maiores superfícies tinham sido distribuídas aos reinóis e a estrangeiros feitos morgados por cartas régias; ao passo que em Barlavento se seguiu o sistema de concessões segundo a lei de sesmarias, dando-se a cada agregado familiar uma parcela para a satisfação das suas necessidades e por forma a garantir a sua fixação”. Diferente, profundamente diferente do povoamento que ocorreu na Madeira e nos Açores mas com paralelismos gritantes, a marca profunda da cultura líder que determinou a aculturação, e que chegou aos dias de hoje.

Terceiro, uma região cronicamente assolada por secas e fome, António Carreira deixa-nos aqui páginas pungentes de sofrimento e horror nestas sucessivas crises, cuja última, antes da independência, a de 1947/1948, foi tremenda. Secas influenciadas pelo deserto de Sara, pragas depredadoras e um crescimento populacional explosivo que incitou à emigração, e que levou o cabo-verdiano para os Estados Unidos, para Portugal, para o Senegal e para a Guiné e também para os Países Baixos, entre outros destinos.

Quarto, uma região com unidade religiosa, o primeiro bispado de África aconteceu aqui. E uma religião que proporcionou a difusão do ensino. O bispado de Cabo Verde foi criado em 1533, o seu cabido era constituído por 17 dignidades compreendendo mestres de escola, mestres de gramática e leitores de moral. Santiago, em 1582, tinha 11 freguesias e respetivo pároco. A partir de 1570, os párocos recebiam um estipêndio para ensinar doutrina cristã ao povo, nos tempos e pela maneira que o perlado ordenara, o mesmo é dizer o ensino das primeiras letras.

Quinto, a própria composição dos grupos sociais. Temos o emigrante cabo-verdiano letrado que passa a substituir o “branco da terra” nos lugares cimeiros. Não é por acaso que os postos da administração de Angola e da Guiné têm cabo-verdianos. A percentagem de brancos em Cabo Verde foi sempre baixa em todos os tempos, o que existe é o branqueamento da população, os mestiços, de um modo geral orgulhosos pela sua ascendência.

Sexto, a estrutura familiar cabo-verdiana é ímpar. Em regra, aportaram às ilhas homens brancos desacompanhados das suas mulheres. Pacificamente, constituíam família com mulheres locais, tudo isto era feito sem constrangimento, os relatos são elucidativos de como todos estes brancos se acasalavam, até o clero. É uma estrutura familiar sem qualquer paralelo em África. Julgou-se durante muito tempo que o espírito de cooperação, de entreajuda das comunidades rurais era algo que vinha de África, vinha dos escravos submetidos à disciplina das fazendas agrícolas. Sabe-se que no Norte de Portugal sempre houve a tradição comunitária em todas as fainas agrícolas, é uma hipótese que tenha sido transferida para Cabo Verde, a questão continua em aberto.

Sétimo, o cabo-verdiano é um ilhéu que sonha em emigrar, tem mesmo uma história dramática de emigração compulsiva para outras partes de África. A emigração para o estrangeiro começou muito cedo, através dos navios baleeiros americanos quando estes vinham aos mares do arquipélago à apanha de cetáceos. O estudo de Carreira mostra a importância que os EUA sempre tiveram na emigração cabo-verdiana. Bem assim como Portugal, Dakar-Gâmbia e Guiné. A guerra colonial acentuou a presença cabo-verdiana em Portugal, por falta de mão-de-obra de quem estava a combater ou emigrara para a Europa rica. A construção civil, o trabalho mineiro, os serviços de limpeza da cidade e áreas suburbanas, atraíram cabo-verdianos. O cabo-verdiano tem gosto pela aventura, sofre da “ânsia de invasão”, acultura-se bem. Aprendeu e permutou atividades semi-industriais, caso do fabrico de açúcar de cana, artesanato de têxteis (algodão, lã de carneiro e anil) e panaria (muito bela e original com mais de três séculos e meio). A internacionalização dos mercados pôs termo a muitas dessas atividades. A falta de chuvas, a erosão dos solos, os deficientes sistemas de amanho e preparação das terras foram pondo termo à base de subsistência do cabo-verdiano.

Ilhas povoadas por brancos (muitos deles degredados), gentes da Senegâmbia, um povoamento com características senhoriais e feudais, uma presença religiosa desde a primeira hora, e temos um povo engenhoso, um misto de África e da Europa que se espelha na alimentação, na cultura, na música, na vontade de partir sempre com saudade a marcar a distância. O livro de António Carreira é bastante elucidativo com os dados que apresenta sobre a geografia, a demografia, a organização social, a estrutura familiar. Uma superfície de aproximadamente 4 mil quilómetros quadrados, com jornais e revistas, com um leque precioso de bons escritores, com um gosto entranhado pelo seu património histórico bem tratado, e um povo orgulhoso pelas suas raízes e pela sua abertura. Este mesmo António Carreira em 1968 escreveu um artigo sobre a unidade da Guiné e Cabo Verde, fez declarações genéricas sobre a miscigenação e o estreitamento cultural e económico, com base na presença cabo-verdiana na Guiné. Lendo agora este ensaio, vê-se claramente que o cabo-verdiano é muito mais que africano, tem uma identidade própria não consentânea com parentelas continentais. Percebe-se hoje como Amílcar Cabral usou de tal bandeira para recrutar quadros. Mas a grande diferença não pôde ser mascarada por muito tempo. Agora, as feridas terão que sarar até que os dois países retomem a confiança e a solidariedade sentidas.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13889: Notas de leitura (650): 1 de Novembro de 2014, na Feira da Ladra (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Havia muitos milhares de Caboverdeanos em Angola que tentavam "explicar-se", muito nestes termos de leitura.

Os Caboverdeanos sempre tiveram necessidade de se explicar para pretos e para brancos.

Era muito difícil para os Caboverdeanos fazerem-se entender.

Quem é português não devia ter nenhuma "licenciatura" ser ter uma cadeira em que estudasse este fenómeno que foi a criação de um país quase impossível, CABO VERDE.

E só compreendendo os caboverdeanos, é que compreenderíamos bem como e com quem, conseguimos criar países tão díspares como a Guiné Bissau e o Brasil.

Os guineenses do PAIGC, (NINISTAS) intimamente olham para figuras como Amílcar, Aristides Pereira etc. muito pouco africanos.

Os ingleses também consideram que a nossa colonização foi feita na base da mestiçagem, sem a qual não íamos tão longe.

Alguns guineenses e moçambicanos "desgostosos" com a fraquinha colonização tuga, até admiram o apartheid à inglesa, que pouco diferia do sistema tribal.

Amílcar Cabral não será um enigma?