sábado, 22 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13926: (Ex)citações (251): as viagens no Geba Estreito, entre Setembro de 1968 e Novembro de 1969 (Beja Santos)


Guiné > Zona leste > Bambadinca > c. 1914 > Ponte-cais de Bambadinca


"O relatório de Vasco Calvet de Magalhães, administrador da Circuncrição de Geba, datado de 1914, é, a diferentes títulos, um documento excepcional: afoita-se por domínios até então inexplorados ou mal ventilados; propõe estradas e fala do respectivo traçado; queixa-se e denuncia funcionários corruptos; abalança-se a falar da origem dos fulas, apresenta soluções para o assoreamento do Geba,é uma incursão com pretensões literárias e algumas ambições políticas. Foi neste documento que encontrei esta preciosidade,um porto de Bambadinca que nenhum de nós conheceu..." (BS) [Poste P3091]

Foto (e legenda):  Beja Santos (2008). Imagem do domínio público.

1. Mensagem do Beja Santos, a quem pedi que comentasse o poste P9600 (*) e outros mais recentes sobre as viagens de barcos civis até Bambadinca (**)... Aproveita-se para se publicar também um excerto de um poste, mais antigo, sobre um ataque a um comboio de batelões na Ponta Varela.


Data: 20 de Novembro de 2014 às 15:30

Assunto: As viagens no Geba Estreito, entre Setembro de 1968 e Novembro de 1969


Luís, pelos mails recebidos, penso que me estás a incentivar a falar das embarcações e circunstâncias daquela navegação, no Geba Estreito, ao tempo em que eu ia com uma assiduidade quase diária a Mato de Cão, ida e volta.

Eu próprio viajei num batelão azulado, com toldo, deram-me um garrafão de água e uma ração de combate em Bissau, despejaram-me no Pindjiquiti com dois caixotes e uma mala. Batelão cheio de seres humanos e mercadoria. Uma criança ia-me referenciado os locais: ali ao fundo é Jabadá, ali pode ver o Cumeré, estamos a chegar a Porto Gole, confirmo o que tu dizes sobre a imagem, um ancoradouro e um casario um pouco mais alto, depois seguimos até ao Enxalé, começava a escurecer, o patrão pedia aos militares do Enxalé celeridade, ainda não se tinha passado ao largo de Ponta Varela, aí a criança disse-me que tínhamos que ir acocorados, podia haver roquetadas, mais adiante, quase ciciando, disse-me que passávamos por Mato de Cão, espreitei no negrume da noite, é estranho silêncio, ouvia-se o rufar da casa das máquinas e eu via vegetação densa e margens enlameadas. E assim chegámos a Bambadinca, com aquela gerigonça a guinar dentro do Geba Estreito.

A missão principal que tive no Cuor era a vigilância em Mato de Cão. Naquele tempo, e por razões logísticas que desconheço, não havia semana que não passasse por ali uma LDM, de dia ou de noite, consoante as marés. De dia, se eu precisasse de me abastecer em Bambadinca, pedia boleia a civis e militares. Houve momentos caricaturais, recordo uma série de batelões, vinham amarrados uns aos outros, eu estava de pé num pontão em madeira, os soldados desataram a correr, o patrão pensou que era um ataque do PAIGC, pôs-se aos gritos, os passageiros gritavam espavoridos.

Não é por acaso que o Geba é o rio da minha vida, por ali andei em todos os segundos do dia, tantas vezes com a barriga a bater horas quando as embarcações ficavam atoladas, era preciso esperar pela enchente, muitas horas depois. Por ironia, tudo mudou quando passei do Cuor a Bambadinca, o Xime tornou-se na artéria femoral do abastecimento militar, mas os batelões continuaram a viajar pelo Geba Estreito. 

Há fotografias no blogue, que tirei de revistas antigas em que se vê pequenas embarcações à vela em direção a Bafatá, não nos podemos esquecer que a Aldeia do Cuor, em frente à bolanha de Santa Helena,  teve ancoradouro devido ao comércio do Gambiel. 

Espero ter sido útil, e obrigado por teres posto novamente as imagens daquela Bambadinca do nosso tempo, hoje praticamente reduzida a pó, a começar pelo porto, há para aí as imagens do que sobreviveu em 2010, quando lá estive. (***)

Um abraço do Mário



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > c. 1969 >O Rio Geba, entre o Xime (margem esquerda) e o Enxalé (margem direita), numa foto de Carlos Marques dos Santos, ex-furriel miliciano da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), afecta ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Aqui começava o Geba Estreito... Mas antes tinha que se passar pela mítica Ponta Varela, entre a Foz do Rio Corubal e o Xime...

Foto: © Carlos Marques Santos (2005). Todos os direitos reservados

2. Excerto do poste P1927 (****)

As danações de Ponta Varela

por Beja Santos

Chegou o terror sanguinolento ao Geba, para lá do Xime.

É um amanhecer luminoso e do planalto de Chicri avista-se um [Rio] Geba de prata, estuante, quase genesíaco. É um tempo invulgar para esta época das chuvas, mas desde ontem que a Mãe Natureza parece querer advertir-nos que vem aí outro tempo, de calor persistente.

Olho o relógio, o comboio de batelões já devia ter passado há cerca de meia hora, de novo assesto os binóculos para o fim do horizonte, nada, nenhum ponto se avista, certamente que houve algum atraso na saída de Bissau. Tenho um mau presságio, parece que para lá do Xime se ouvem obuses, talvez o som dilacerante dos rockets. Interpelo Mamadu Camará acerca deste fogo e ele responde que sim, é para lá do Xime, talvez uma emboscada, talvez uma flagelação, pode ser mesmo um reconhecimento de obus, são sons cavos que a distância não permite identificar. Segue-se o silêncio, sufocante. Depois olho para a estrada que bordeja toda a vareda do rio e se perde ao fundo, onde eu sei estar o que resta de Saliquinhé.

Sinto uma enorme atracção por voltar ao Enxalé, para quem não sabe, caso não houvesse esta guerra, o burrinho em cerca de hora e meia chegaria a Bissau, depois de passar pelo Enxalé, Porto Gole, Nhacra. É a mesma estrada que para cima leva ao Gambiel, e depois a Geba e a Bafatá. A minha ansiedade cresce enquanto o Geba refulge os tons de prata, para lá de Madina ouvem-se uns tiros esparsos como se nos avisassem que há território hostil à nossa espera.

É então que assoma uma embarcação ziguezagueante, estranhamente morosa. Dirijo-me, intrigado, para o ancoradouro e depois de meia hora de espera díficil, o contramestre fala comigo com o horror estampado nos olhos. Uma coluna de 5 batelões, aproveitando a correnteza do Corubal aproximara-se do Geba estreito perto de Ponta Varela. Súbito, várias roquetadas atingiram a casa das máquinas deste barco e ele mostra-me os estilhaços, os vidros partidos, vestígios de algum sangue, um dos feridos vinha ao leme. O terceiro barco foi atingido nas máquinas, vem agora rebocado ao segundo barco, vem lentamente, quase encostado a esta berma do rio. Suplica-me que não me vá embora, que espere por eles, os feridos mais graves vão já para Bambadinca.

E, de facto, quase uma hora depois o pequeno comboio de barcos atacados chega a Mato de Cão. Há sinais de pavor, dou comigo a pensar se a estratégia da guerrilha não mudou radicalmente, Ponta Varela agora é o local temível da destruição, não sei medir as consequências, mas sinto que é necessário rever a protecção desta margem do rio, mesmo em frente a Ponta Varela. Seguimos no último barco, quero ir relatar este episódio ao 2º Comandante. (...)
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Notas do editor:

(*) 12 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9600: Álbum fotográfico de João Martins (ex-Alf Mil Art, BAC1, Bissum, Piche, Bedanda e Guileje, 1967/69) (2): Ainda a viagem, de LDG, em setembro de 1968, de Bissau a Bambadinca, com o meu Pel Art a caminho de Piche

(**) Vd. poste de 19 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13918: (Ex)citações (249): Quando os barcos chegavam ao porto fluvial de Bambadinca: fotos de Jaime Machado e legendas de Beja Santos

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