Sétimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Temos que lá ir um dia, pá! Esta é a frase que pronuncia,
bem alto, sempre que nos encontramos.
O seu rosto mostra alguma amargura ao pronunciar estas
palavras, mas logo se modifica, sorrindo, dando-nos um
abraço dizendo, quando nos juntamos, pá!
É o José Augusto Nogueira, que no ano de 1964, era um
jovem tal como nós que, cumprindo o seu dever de
cidadão, se apresentou no Batalhão de Caçadores 10, na
cidade de Chaves, onde aprendeu a “marcar passo”, a
disciplina de combate e a conviver com os
companheiros que o acompanharam no embarque a
bordo do navio “Niassa”, no ano seguinte, mais
propriamente a 21 de Maio de 1965, onde depois de
alguns dias de “mar selvagem”, como ele gosta de dizer,
desembarcou em Bissau a 26 de Maio, para combater
aqueles que o então governo de Portugal lhe dizia que
eram os “turras”.
Como tantos de nós, viu lama, mosquitos e terra
vermelha, comeu mangos e mancarra, sofreu calor
húmido e abafado, conviveu com fulas, mandingas ou balantas, passou quase toda a sua comissão em zona
de combate, foi ferido, para o final, cansado de guerra, já
não podia ouvir o som do seu morteiro, que não lhe
falassem em arroz e peixe da bolanha e, com aquele
sorriso maroto diz-nos também, que teve a “sua
lavadeira”.
Após a chegada à então província da Guiné, foi uns dias para
o aquartelamento de Brá, onde conheceu uma
personagem que mais tarde se tornaria famosa, era o
então Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, do grupo de Comandos “Os Diabólicos”, que mais tarde actuou com ele
em cenário de guerra, pois a sua especialidade era Apontador de Morteiro, pertencendo à Companhia de
Caçadores 816, que se foi instalar em Bissorã, mas o seu
pelotão foi destacado para o Olossato durante 13 meses,
depois Cutia, Encheia e Mansoa, de onde finalmente
regressou de novo a Brá, para embarcar de regresso a
Portugal, no navio “Uíge”, em 14 de Fevereiro de 1967.
Sempre que nos víamos combinávamos encontro, que
por isto ou por aquilo nunca se realizava, finalmente
encontrámo-nos em sua casa, aqui na Florida, para falarmos
das recordações da guerra e não só.
Fica sério alguns momentos, mostra-me a sua tatuagem
patriótica no antebraço, ao mesmo tempo que me diz:
- Em criança passei
muita fome, na minha aldeia em
Santa Cruz do Douro, concelho de Baião, onde o senhor Gonçalo me dava
sempre pão, agora, como vês, não tenho razão de
queixa.
Voltando à Guiné, participou em 386 saídas para o interior
das matas, sendo operações organizadas com outras
unidades militares ou simples batidas de zona, teve
muitos ataques ao aquartelamento, principalmente no
Olossato, foi ferido em combate, com estilhaços de
granada num braço e numa perna, num domingo do dia 1
de Agosto de 1965. Também recorda que no dia 14 de
Fevereiro de 1966, a sua companhia, junto com outras
forças militares, capturaram 3 toneladas de material de
guerra na célebre região de Morés.
Enquanto a sua dedicada esposa lhe diz que o lugar da
Murtosa, é o mais lindo de Portugal, ele, olha para nós e
diz a sorrir, que de Santa Cruz do Douro se vê os barcos
a navegarem no rio Douro, depois volta a ficar com
aspecto sério, mostra-me as fotos a preto e branco, e diz-nos:
- Estes são os burros que capturámos aos “turras”,
este porco foi morto com um tiro, estes unimogues eram
todos novos, depois de trabalharmos na construção dos
abrigos, jogávamos à bola, as “bajudas”, algumas eram
“boas” - E logo, a sua dedicada esposa lhe diz:
- Eram,
talvez como o vento que faz na tua terra, traiçoeiro, só faz estragos.
Diz-nos que os companheiros da sua Companhia que
ainda restam, se juntam todos os anos, ele carrega a
mágoa de nunca ter oportunidade de participar, isto sim é
verdadeira amizade, somos irmãos de guerra até morrer.
Limpa duas lágrimas de emoção ao lembrar que no dia 1
de Agosto de 1965 saíram do Olossato para Farim,
andaram à volta de 15 quilómetros, sempre debaixo de
fogo, tanto de um lado como do outro da estrada, que não
era mais que um carreiro. Não houve minas nem fornilhos,
mas diversos companheiros ficaram feridos, entre os quais ele
mesmo, juntamente com o Capitão Luis Gonçalves
Fernandes Riquito, onde faleceu, morto em combate, o Furriel Silva, sem o poderem evacuar, pois “eles”
acompanharam-nos sempre aos tiros. Foram mais
de 12 horas, até que finalmente os “Águias Negras”,
(diga-se Batalhão de Artilharia 645), vieram em nosso
auxílio e, pudemos regressar de novo ao Olossato, com
alguma segurança, aí sim, rezei e vi a cor do medo e da
morte.
Para o final da comissão, já todos andavam cansados de
guerra, até um companheiro, que era o mais valente, ia
levando uma “porrada”, (diga-se castigo), porque se fez
doente para não ir para as operações, onde o capitão
da Companhia, veio junto dele, no “curral” onde dormiam,
o levantou da cama, dizendo-lhe que lhe dava cinco
minutos para se apresentar pronto para combate, ou
então teria que o enfrentar.
Passámos algum tempo juntos, ao despedirmo-nos ficou
a promessa de um destes dias falarmos dos “célebres
abrigos do Olossato” que foram copiados por quase
todos os aquartelamentos da então Guiné Portuguesa.
- Temos que lá ir um dia, pá.
Tony Borie, Março de 2015
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Nota do editor
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Guiné 63/74 - P14311: Libertando-me (Tony Borié) (6): Quando fomos à Sede das Nações Unidas