CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
6 - CHEGADA A NHALA
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
6 - CHEGADA A NHALA
29 de Abril de 1973 (domingo)
NHALA – É o nome de uma das palmeiras de onde se extrai sura (o célebre vinho de palmeira).
Mia Couto, in “Pensageiro Frequente”.
À chegada da coluna a Nhala, e ainda antes de termos descido das viaturas, num ápice, formou-se uma pequena multidão vinda da tabanca, sobretudo mulheres e crianças, que nos receberam com palmas, cânticos, enfim..., se não em apoteose, pelo menos com grande euforia. Fiquei entre contente e surpreso, a achar tudo um bocado exagerado. Seria sempre assim? Não foi preciso passarem muitos dias para ter uma explicação, plausível, para aquele acolhimento tão efusivo.
Nhala, 1973 – Pórtico de entrada na tabanca.
E cantavam acompanhando com palmas:
Periquito vai pró mato / Ó lé, lé, lé!, Velhice vai no Bissau / Ó lé-lé – lé-lé!.
Esta cantilena, soube depois, era conhecida em quase todo o território da Guiné. E eram-lhe acrescentados outros versos, que só aprendi mais tarde, muito brejeiros e, pareceu-me, ao sabor da inspiração do momento:
"Mulher grande cá tem cabaço, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dele / Ó lé-lé – lé-lé"
"Mulher grande cá tem catota, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dela / Ó lé-lé – lé-lé"
E voltavam ao princípio com o Periquito vai pró mato, etc. etc.
Desembarcados com armas e bagagens, havia que distribuir o pessoal pelas acomodações previamente preparadas pelo comando da Companhia que iríamos render, (após um longo período de sobreposição das duas companhias para o nosso treino operacional e para conhecimento da nossa área de acção).
Verificámos que o aquartelamento estava ainda em obras, com alguns edifícios inabitáveis e valas a rasgar o chão. Mas em vias de conclusão. Não foi fácil acomodar duas companhias numa área pensada para apenas uma e em vias de conclusão. Parte de nós fomos distribuídos por pequenas palhotas na tabanca. Apesar disso foi com satisfação que constatámos que iríamos ter condições condignas de alojamento. Eu, confiante, imaginava já os melhoramentos de conforto a introduzir, o arranjo e embelezamento dos exteriores que tornassem a nossa estadia mais agradável, sobretudo no regresso das saídas para o mato. Até lá, havia que desenrascar. A mim também foi destinada uma pequena palhota mesmo no início da tabanca, portanto, fora da área militar. Cabiam apenas, lado a lado, duas camas de ferro e aí fiquei com outro camarada até à conclusão das obras no aquartelamento. Nalguns casos foi até ao fim da comissão dos “velhinhos”. Pouco espaço nos restava dentro da palhota, mas era um abrigo e, além disso, tinha qualquer coisa de exótico a condizer com os cheiros, o pó e o calor de África. Pessoalmente, gostei da experiência.
Nhala, 1973 – Panorâmica (fotomontagem).
Cortesia do meu amigo J. Roque, ex-Fur Mil Trms, a quem agradeço. Editada por mim.
Nós, a 2.ª Companhia do BCAÇ 4513, por ora estamos instalados com a companhia anfitriã 3400 do Batalhão 3852. A 1.ª CCAÇ do nosso batalhão, que chegou a Buba connosco, ficará aí instalada. Ontem (28-04-1973) a 3.ª CCAÇ e a Companhia de Comandos e Serviços (CCS) já tinham chegado a Aldeia Formosa, sede do Batalhão. Tal como a nossa 2.ª CCAÇ, todas as outras ficarão em sobreposição para treino operacional com as companhias que mais tarde renderão.
A CCAÇ 3400 que viemos render, já tem 22 meses de comissão. Não se apercebem bem mas estão todos muito “apanhados do clima”, desde o soldado ao mais graduado, às vezes com reflexos na disciplina. Dizem-nos que nunca tiveram problemas nem dentro nem fora do aquartelamento. Julgam que isso se deve à proximidade de vários “carreiros” – ou trilhos – dos turras que cruzam a sua área de intervenção. É uma teoria. Mas a informação que nos dão do resto do Sector, (por onde passam alguns destes “carreiros”), é preocupante. Os problemas têm acontecido um pouco por todo o lado: Cumbijã, (ocupada recentemente (03-04-1973) pela CCAV 8351), Colibuia, Mampatá e, até, Aldeia Formosa.
Mais grave que tudo isto, para mim, é que a nossa chegada à Guiné em Março, coincide com a introdução no território, dos mísseis antiaéreos STRELA de origem soviética. O que parece significar que os voos, principalmente os militares, vão ficar condicionados. Perante estas perspectivas, num cenário de guerra que já é muito cinzento, o capitão “velhinho” da CCAÇ 3400, que me pareceu muito afectado pela longa comissão, muito pessimista e sombrio, disse, a certa altura referindo-se a nós: ... Se ficarem muito tempo por cá, vai acontecer-vos como aconteceu na Índia: serão empurrados até ao mar e atirados à forquilha para dentro dos barcos. Animador!
Nhala em 30-06-1973, vendo-se viaturas e máquinas da Engenharia que estão em trânsito.
Já noite, (primeira noite em Nhala), deu-se o primeiro acidente dentro do aquartelamento: um soldado que transportava um garrafão de vidro desempalhado de dez litros, com o vinho, caiu numa vala que atravessava o aquartelamento, completamente às escuras. Tendo-se partido o garrafão, fez um corte na parte interior do antebraço que ia do cotovelo até ao pulso. Eu nunca tinha visto nada assim. Assustador. O corte não era muito profundo, mas como era longo, a pele, muito elástica, contraiu-se e ficou toda, como uma tira, do lado oposto do braço deixando-o completamente à mostra. Já na enfermaria, quando o enfermeiro começou a coser, sem qualquer anestesia, foi um espectáculo medonho. (...).
A população de Nhala é Fula. Os adultos parecem muito indiferentes em relação a nós, ou mesmo frios. Dependem muito da tropa, mas estão fartos de tropa. As mulheres e as bajudas atravessam o aquartelamento para se deslocarem à fonte que fica a pequena distância, num baixio. Está sempre alguém a passar para um lado e para o outro com bacias à cabeça e com a roupa que nos lavam.
Nhala, 1973. Centro do aquartelamento com mulheres que vem da fonte.
Fonte de Nhala, 1973.
Fotografia cedida pelo meu amigo J. Roque, ex-Fur Mil Trms, a quem agradeço.
As bajudas, algumas bonitas, e toda a criançada são uma simpatia. É contagiante a alegria delas e um bálsamo para a nossa saúde mental. Ainda assim, como já disse, os “velhinhos” de Nhala parece que já não beneficiam desse bálsamo. Aproveitando as recomendações deles, vamos escolhendo as nossas lavadeiras. A oferta é grande, de modo que se fazem “contratações” despreocupadamente. E em matéria de sexo, como é? Já em Bolama aprendemos que há lavadeiras “que lavam tudo” por pouco mais que a mensalidade da roupa lavada. «Desiludam-se!». As fulas são muito reservadas e pouco permissivas. Contam-nos um caso ou outro de envolvimento com militares, mas excepcionais e por questões de afecto. A tropa em geral vai brincando, mais ou menos inocentemente, com as bajudas mais velhitas, mas sem consequências nem gravidade. De vez em quando, por ocasião da entrega da roupa lavada aos soldados, lá vem uma delas fazer queixa:
- Alfero, o soldado Manel do teu pelotão, apalpou minha mama!
E eu perguntava:
- Ai, sim? E não lhe deste uma estalada?
E estava o caso resolvido.
Logo nos primeiros dias após a nossa chegada, realizou-se um encontro de futebol entre “velhinhos” e “periquitos”, que era simultaneamente uma forma de boa recepção e de integração de todos os militares. Tudo foi organizado a preceito para o grande embate: equipamentos a rigor; marcação das áreas do campo; escolha da equipa de arbitragem; colocação de viaturas ao longo do campo para a assistência; enfim..., tudo indicava que ia ser uma tarde bem passada em sã camaradagem. Mas não foi, pois ainda na primeira parte, devido a qualquer desentendimento que não recordo e que originou algumas agressões, fez com que tudo descambasse numa violenta e generalizada batalha campal. Mais grave, é que envolveu parte da assistência constituída por militares e numerosos nativos. Ora, estes, que no decorrer da partida tinham tomado partido pelos “periquitos” mas de forma muito agressiva e exaltada, saltaram para o campo e usaram de toda a brutalidade na refrega, a que os “velhinhos” responderam de igual modo. Eu, que estava a assistir, ainda tentei intervir aos berros, separando aqui e ali mas, quando vi um “branco” bater com toda a violência com um barrote na cabeça de um “preto” que estava deitado no chão, percebi que aquilo estava fora de controle e desatei acorrer para ir avisar o capitão dos “velhinhos” e o da minha companhia para que tomassem medidas. Ainda corria para o aquartelamento e já alguns nativos corriam para a tabanca aos gritos:
- Traz morteiro! Traz morteiro!
À entrada do aquartelamento também um soldado se agachava virado para a população a tentar montar uma HK-21.
Depois de ter comunicado a situação aos superiores ainda corri ao campo mas, o que vi, fez-me desistir e voltar para trás. Foi então que assisti, incrédulo, à situação mais insólita da minha comissão: a meio caminho e a marchar na direcção do campo, passa um pelotão de velhinhos, talvez uns dez, formados dois a dois e comandados por um furriel, todos muito sérios e cadenciados, com a G3 ao ombro como se fossem arrear a bandeira. Mas o que me deixou perplexo e me fez parar para os ver passar, foi que todos usavam um capacete feito de cabaças cortadas ao meio tendo na frente pintadas as letras PM.
À noite na messe de oficiais todos comentámos os incidentes que poderiam ter tido um desfecho irremediável. O capitão anfitrião foi peremptório: os ânimos foram acirrados pelos elementos da população que, desde o início, estavam a tomar partido pelos “periquitos”. Era a forma deles colherem as simpatias da nova tropa, de quem iriam depender no futuro. Disse, ainda, que já conhecia a “receita” de experiências anteriores, para além das suas alianças interesseiras. Já não precisavam dos “velhinhos” que estavam de saída! Era uma opinião. Que carecia de confirmação. Mas, a ser assim, estava explicada a calorosa recepção que nos fizeram no dia da nossa chegada a Nhala.
(continua)
Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor
Último poste da série de 19 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14637: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (5): A caminho de Nhala