Foto: © José Ferreira da Silva
1. Em mensagem do dia 27 de Junho de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta boa memória da sua guerra:
Memórias boas da minha guerra
32 - O rapaz do “sorriso parvo”
Penso que o nome dele era António Freitas Gervásio. No entanto, ele próprio tinha-se como Giribásio e, para os mais chegados, Tono Giribásio. Apareceu em Gaia, no RAP 2, em Janeiro de 1967, para integrar o BART 1913. Foi parar ao meu pelotão, ao tal que veio a ser chamado de Pelotão dos Nabos.
Estava sempre de sorriso aberto. Inicialmente, esse sorriso deixou-nos intrigados, dado que não víamos motivos que justificassem tal expressão, quase contínua. E as interpretações logo vieram:
- Este gajo parece meio parbalhon.
Ou:
- O pascácio parece que está a gozar co'a gente.
E, até, o interpelavam:
- Oube lá, ó morcon, e se te fosses rir pó caralho?
Ou:
- Olha que, quem tem muito riso tem pouco juízo.
Pois ele ouvia, ouvia, mantinha o sorriso e sem fitar os “agressores”, atirava a meia voz:
- Merdosos. Que Deus me dê paciência e um paninho p´râ levar.
Claro que, perante aquele ambiente, já bastante carregado pela certeza de que iríamos para a Guiné, ver um soldado sorridente, era sinónimo de excepção. Por isso, o Gervásio foi dos primeiros militares a quem dei especial atenção.
O que percebi logo, foi que ele se sentia muito bem e que, para ele, a tropa lhe dava o gozo que nunca tivera.
Vinha dos arredores de Vieira do Minho, onde vivia isolado com a família, entre fragas e penedos, em regime de auto-sustento quase total. Visitavam a vila por ocasião das festas anuais, para cumprimento de promessas e algumas feiras, para reabastecimento e negócio do gado. A família mantinha a regularidade do seu trabalho dedicado à agricultura de subsistência e criava algum gado para matar ou vender e para ajudar nas várias tarefas no amanho das terras e, também, no carro de bois, único veículo da casa.
Gostava de dizer que era “d’ó pé” de Braga, ali logo a seguir a Póvoa do Lanhoso. Viu o mar, pela primeira vez, quando chegou a Gaia e lhe apontaram a foz do Rio Douro. Sempre que podia, vinha espreitar essa vista magnífica e, ali, deslumbrado, de sorriso mais aberto e, aparentemente, mais feliz, saboreava a brisa fresca que lhe batia na cara. Pouco tempo depois, no intervalo dos treinos na Carreira de Tiro, tive a oportunidade de o ver na praia de Silvalde, seguindo os outros militares que, de cuecas de malha brancas, a pretexto de molharem os pés, se encharcavam alegremente. Aí, mais uma vez, via o Giribásio exibir a sua aparente satisfação. Aliás, foi ele que, mais sorridente, me chamou à atenção para reparar naquele espectáculo de cuecas molhadas e esticadas, quase até os joelhos com o peso da água retida nas bolsas inferiores. Então, perguntou-me até onde chegava o mar. E eu respondi:
- Até à América. Você não aprendeu na escola?
- Qual escola? Lá in casa, ninguém sabe o qu’isso é. A minha mãe, quando andou a serbir, uma filha do patrão chegou a ensinar-lhe as letras.
E continuou:
- Amanhamos umas territas e num temos tempo p’ra mai nada. Olhe qu’inté p’ra a minha mãe ir “albezes” à missa, temos que ser coibeiros e fazer o comer. Ela perde o tempo nas “biages”. O meu irmão “pichote” tinha “buntade” da escola mas são “caijo” três horas de caminho e o “alganismo num aganta”. “P’ra biber antro milho num precisa d’ir” à aula. E quem naceu p’ra burro nunca chega a cavalo.
Fiquei esclarecido com estas poucas palavras. Porém, voltei a interrogá-lo:
- Mas tem saudades?
- Sim. A minha mãe é uma santa e o meu pai é um mouro de trabalho. Eles compreende a situaçon. Faço lá munta falta mas o que tem de ser tamém tem munta força. Eu andaba morto por bir p’rá tropa. E “aqui há atrasado” falei cum parente que estebe em Angola, e me disse que quem bai à guerra dá e leva e se tiber sorte inté se muda de bida. Eu bou-lhe ser franco: estou a biber o melhor da minha bida. Isto aqui é só brincadeira d’hómes, comer, beber e mandriage. E num quero mais biber lá naquela miséra.
O Gervásio era obediente e parecia assimilar bem a instrução militar. Todavia, por vezes, desdramatizando, lá deixava escapar uma ou outra expressão que me levava a pensar que o sorriso daquele analfabeto, nos transmitia uma lição permanente de saber viver.
Por várias vezes me disse que precisava de ir aos “Caurdeireiros”. Eu entendi que ele queria “ir às putas”. Seria natural, para quem vinha lá do interior minhoto, sem namoros nem outros contactos que o pudesse ajudar a aliviar os reservatórios. E, por isso, um dia, falei no assunto ao “Chico do Palácio”, que era, sobejamente, o mais indicado e mais experiente para o acompanhar, solidariamente, àqueles ambientes.
- Ouça lá, ó Francisco, podia dar um jeito ao Gervásio que, quer-me parecer, deve andar com a “rebarba” por tratar.
O Chico logo respondeu:
- Já lhe tinha perguntado se ele ia às vacas da estrada, mas ele, coitado, diz que lá não há estradas. Estava tão isolado que, se calhar, onde ia era mesmo às cabras do monte.
- Então, trate disso e não envergonhe o rapaz. É dos nossos e vai passar muito tempo junto de nós.
Uns dias depois, pareceu-me que o sorriso era maior. Perguntei-lhe:
- Então, sempre foi aos Caldeireiros?
- Sim. O Chico é um bacano. Lubou-me mesmo lá à porta qu’eu precisaba. Que bom! Sin que tal, vou lá mais bês.
- Cuidado, não vá para lá sozinho, porque aquilo é zona perigosa. – aconselhei.
Desta vez, o sorriso, sendo igual, me pareceu mais matreiro, quando acrescentou:
- Num se apoquente q’eu quero ir com vós p’rá guerra.
Na Guiné, no teatro de operações, onde muito sofríamos, ele mantinha o seu sorriso que, agora, mais parecia transmitir alento e confiança a todos seus camaradas. Chegou a fazer de carregador de granadas de morteiro e de bazuca, prescindindo de levar a sua G3. E quando estávamos debaixo de fogo, era normal vê-lo cauteloso, mas cheio de coragem, a colaborar no embate com o inimigo. Lembro-me bem da boa influência do seu sorriso mais leve, mas confiante.
Sofremos juntos nas emboscadas e nos ataques perigosos. Passámos juntos os dias mais difíceis das nossas vidas. Tudo ultrapassámos! E, na hora da glória, lá estávamos também sorridentes.
Mesmo em zonas perigosas, sempre que via arrozais nas bolanhas ou as verdes clareiras de capim, ele arregalava os olhos de admiração e saudade. Cheguei a ouvi-lo murmurar:
- Pra bem, era ver aqui as minhas vaquinhas. Ou por ó menos ter aqui o gadanho. Que rica erbinha mimosa!
O Gervásio acusava a sua falta de prática nos divertimentos. Confessou que sabia jogar mal à sueca, que ocupava toda a família, e ao “burro”. Gostava de ir aos ninhos e de usar a sua fisga. Sabia que havia outros divertimentos e alguns desportos, que nunca vira. O pai chegou a comprar um pequeno aparelho de rádio de pilhas mas elas gastavam-se depressa, especialmente quando ouvia os relatos do Benfica.
Nunca tinha jogado à bola. Mas, lá na tropa, quando via que também podia chutar, aproveitava logo a oportunidade. Ora, conforme já referi, o chamado “Pelotão dos Nabos” também se fazia representar nos jogos contra os outros pelotões. Aparentemente, tudo levava a crer que o resultado seria desastroso. Porém, tal como no seu comportamento nas Operações, este pelotão tornou-se numa agradável surpresa.
Beneficiámos da preparação técnico/táctica fornecida pelo Furriel Mariz, que era o defesa central do Anadia e pela força e manhosice do Guilhermino, um bom avançado que militava no Lusitânia de Lourosa. Eu também ajudava alguma coisa, pois tinha chegado a jogar, a extremo, nos juniores do União de Lamas. Mas o Mariz esmerou-se na escolha dos restantes. E não é que escolheu o Giribásio para defesa direito!?
Seguindo à risca a máxima de que “passa a bola mas não passa o homem” ou o contrário, o Giribásio dava festival. É certo que, muitas vezes, provocava gemidos e gritarias. Sempre que dominava o adversário, aumentava-lhe o nervosismo, e, ao mesmo tempo, entusiasmava a assistência, que aplaudia e ridicularizava.
Foi um sucesso! Os “nabos” venceram os dois torneios em que participaram! O “bruto” Giribásio ganhou tanta confiança no futebol, que chegava a jogar descalço e, mesmo assim, distribuía “cacetada” abundantemente. Então é que ele abria mais o sorriso e, para amedrontar o adversário, ao vê-lo aproximar-se com a bola, cuspia nas mãos, esfregava-as, e avançava agressivamente com um pontapé infalível, ao mesmo tempo que soltava o grito gutural:Ouuuuouupaa!!!
Quando regressámos da Guiné, no comboio especial, que nos trouxe de Lisboa a Gaia, naquele ansiado dia 9 de Março de 1969, os meus periquitos verdes saíram do aparelho de rádio que eu comprara, para lhe tirar o “miolo” e esconder lá os proibidos animais. Voaram de carruagem em carruagem, sobre os militares, que os tentavam apanhar. Nessa recuperação salientou-se o Gervásio, que parecia um especialista nessa acção. Como já estávamos perto, ficámos ali juntos, de pé, com o “rádio” (dos periquitos) ao lado. Perguntei-lhe:
- Como vai lá para cima, para o Alto Minho?
E ele respondeu:
- Inda num sei. Sinque tal, bou de táxi ós Caurdeireiros. Óspois, bê-se
Olhei-o, meio surpreso e afirmei:
- Não me diga que deixou lá alguma coisa esquecida?
Ele olhou-me mais demoradamente e interrompendo o seu sorriso crónico, respondeu-me com seriedade:
- Num, num me esqueci de nada. Nunca me esquecerei daquela segunda prima, menor, que fugiu da terra, porque um sacana se serviu dela, à força. E a mãe dela, que ficou sorteira, e que nunca disse quem foi o pai da rapariga, num se preocupou munto co'caso porque o gajo era importante. Pra mim, ela é amante desse patrão madeireiro que lhe desonrou e engravidou a filha.
Eu interrompi:
- E você, porque se preocupa tanto com ela?
- Desde miúdos, quando nos encontrábamos, dába-nos bem. Ela era mais nobita. Sempre a respeitei e, albezes, inté pensaba esperar por ela. Bou ter cum ela. Ela já me escreveu a dezer que o chefe dela me quer a trabalhar pró horto e jardins da Câmara.
O comboio começou a travar e a apitar. Estava tudo falado e os destinos mais que estudados. Cada qual procurava a sua bagagem e já ninguém se ligava. Estavam todos focados no que iriam encontrar no exterior. Saí também. Não via ninguém conhecido à minha espera. Ao meu lado, o Campos esforçava-se para abrir a mala onde trazia a “nossa” domesticada gazela “Dunane”. Durante a viagem de barco, costumava ir ao porão dar-lhe de comer, através de uma pequena abertura que fizera junto da boca. A desgraçada passou sete dias naquela posição. Quando ele abriu a mala, viam-se-lhe os ossos da coluna vertebral. Mal se equilibrava de pé. Fiquei meio incomodado com esse espectáculo. Afastei-me um pouco. Deixei o Campos, de novo agarrado à sua “noiva”, dando largas a uma paixão duradoira.
Ainda no pátio de embarque, vi chegada a minha tia Josefina que me veio abraçar. E logo de seguida, vi que estávamos a estorvar. Era o Gervásio que nos passou, a olhar com o seu sorriso bem conhecido que, desta vez, era acompanhado de um olhar a brilhar de felicidade. Fitei-o e pareceu-me ouvi-lo dizer:
- Tás a ber Jacinta, este é o Sirba, o tal que foi como um bèlhote pra nós.
A jovem olhou-me, com os olhos em lágrimas, mas com sorriso “à Giribásio” e balbuciou:
- Obrigado, Senhor Silva, por ter ajudado a trazer o home da minha bida.
Chegada da Guiné - Com a tia Josefina na Estação das Devesas
Foto: © José Ferreira da Silva
Agradavelmente comovido, ouço a minha tia Fina:
- Alegra-te rapaz! Olha que já te safaste da guerra! Tens o mundo à tua frente.
- Obrigado, tia. Neste momento, o que mais desejo é esquecer tudo, ir para uma ilha, levar a Gilda e uma cana de pesca.
De repente, a algazarra vai diminuindo e vou deixando de ver os meus heróis, agora “emboscados” pelos seus mais queridos. Apenas ouço a voz grossa do Mafamude, já do lado de fora da Estação das Devesas, a despedir-se do seu amigo inseparável:
- Ó filho da puta de Felgueiras, olha que nunca mais te quero ver. Conheci-te na tropa e ela já acaboouu! JÁ AACAABOOOUUUU!!! VAI CO CARALHO!!! VAI PASTAR PRÁ TUATERREOLA!!!
E quase como num “happyend” de Hollywood, faço um “zapping” sobre a cidade do Porto, que vejo ao fundo, brilhando sob um sol “marçagão” do meio-dia. Ouço o barulho de um comboio que se aproxima. Vem de lá, do norte. Junto da outra linha, segue o Gervásio, de mala sobre o ombro esquerdo, acompanhado pela Jacinta, à sua direita, que leva pela mão um miúdo de boina militar enterrada na cabeça. O comboio, esse vai para sul, vai para trás, para onde ninguém quer olhar.
- Vamos Tia, este filme acabou.
Olhámo-nos e sorrimos. Sorrimos “à Geribásio”.
Silva da Cart 1689
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Nota do editor
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