1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Julho de 2016:
Queridos amigos,
A Feira da Ladra é um ponto de partida para certo tipo de escavações e de encontros surpreendentes, com papéis insuspeitáveis, caso desta edição do GADCG, que demorei a saber sobre a sua efemeridade na clandestinidade e também a "Lisboa africana" com belíssimas fotografias de Elza Rocha, também autora de textos com o escritor José Eduardo Agualusa e o jornalista Fernando Semedo.
Como já lá vão 23 anos sobre esta publicação, bom seria que um editor se afoitasse a apoiar um projeto da grande Lisboa africana do nosso tempo, com outra gente, outras situações, a despeito de muitos Manjacos em S. João do Estoril e Fulas em Chelas J e na Reboleira.
Um abraço do
Mário
Feira da Ladra, 2 de Julho de 2016: um documento raríssimo e um livro excecional sobre a Lisboa africana
Beja Santos
Mal chegado à loja de Eduardo Martinho, um camarada da Guiné, recebeu-me este especialista em livros com interjeições acaloradas:
“O que eu tenho aqui para si, veja as surpresas que o esperam!” Com os mesmíssimos cuidados com que usaria para me mostrar uma carta manuscrita inédita do Rei D. Carlos para João Franco, tirou de uma gaveta um exemplar um tanto puído do discurso pronunciado por Aristides Pereira no Boé, em 23 de Setembro de 1973, texto passado ao stencil, edição do GADCG – Grupo da Ação Democrática de Guiné e Cabo Verde, que era constituído essencialmente por estudantes ligados ao PAIGC, e que depois se dissolveram. O que neste documento se publica é exclusivamente o discurso de Aristides Pereira, todo ele centrado na glorificação de Amílcar Cabral e a sua obra, as etapas da luta de libertação, o reconhecimento internacional, a unidade do PAIGC, e a tal propósito o novo secretário-geral do PAIGC vai citando abundantemente Amílcar Cabral. Vivendo-se um período conturbado a seguir ao assassinato de Amílcar Cabral e depois de operações e atos militares que tinham instalado uma maior confiança no PAIGC, pairava no interior da liderança e nas fileiras um elevado grau de tensão em que o sentido da unidade já carecia de sentido. Daí as repetidas alusões de Aristides Pereira ao papel da unidade na trajetória ideológica de Amílcar Cabral. Daí o seu discurso exaltar, perto do seu termo,
“Glória eterna ao camarada Amílcar Cabral, militante n.º 1 do nosso Partido que, com o seu patriotismo e a sua clarividência revolucionária, a sua capacidade e a sua inteligência, deu toda a sua vida pela libertação do nosso povo, transformando-o no obreiro principal de todas as nossas vitórias e de todos os nossos empreendimentos. Ele está aqui reunido connosco, nos nossos espíritos, nas nossas cabeças e nos nossos corações”.
O documento não traz nenhum aporte ao que já se sabia ter acontecido nesse dia na região do Boé, mas é uma peça de estimação para os colecionadores.
“Lisboa africana”, por Elza Rocha, José Eduardo Agualusa e Fernando Semedo, Edições Asa, 1993, é um belíssimo livro e onde a Guiné tem o justificado destaque. Logo na abertura:
“Quem passar pelo Rossio encontra todos os dias grupos de africanos em conversa tranquila. Observando com cuidado, percebe-se que estes grupos não são idênticos.
Em frente da Pastelaria Suíça, junto à boca do Metro, concentram-se jovens de pele muito escura. Falam entre si numa linguagem clara e calorosa – onde é possível adivinhar o sabor de antigas palavras portugueses – e riem alto, com gestos largos e espontâneos. São guineenses. Mais adiante, debaixo das arcadas do teatro D.ª Maria II um grupo sonolento de velhos guineenses, muitos deles usando os tradicionais barretes de lã com que Amílcar Cabral se deixou tratar para a posteridade, conspiram em surdina contra o regime de Nino Vieira. Num quiosque próximo, é possível comprar o jornal Corubal, do movimento Bafatá”.
São igualmente apresentado povos dos outros PALOP, faz-se uma sinopse da presença africana em Lisboa. Mas adiante fala-se em guerreiros Fulas, veio uma larga referência àqueles que tiveram que fugir por terem combatido nas fileiras portuguesas, com destaque para os ex-comandos. Segue-se uma referência aos Manjacos, como se segue:
"O Fim do Mundo, em S. João do Estoril, as Marianas, em Carcavelos, Chelas e Prior Velho, em Lisboa, Quinta do Mocho, em Sacavém, Vale das Amoreiras, na Moita, Vale da Arsena, em Alverca, são os locais de maior concentração populacional de guineenses. Há ainda muitos na Margem Sul, Almada e Setúbal sobretudo. Também repartem quartos em velhas e pobres pensões da zona de Almirante Reis. Os principais núcleos de Manjacos podem encontrar-se no Fim do Mundo, nas Marianas, em Algés e no Prior Velho. Os Manjacos, tal como os Fulas são as subcomunidades mais identificadas. O apelo do gregarismo da comunidade guineense é, sobretudo, visível ao nível da animação. Há duas empresas de espetáculos formadas por guineenses e que apenas produzem festas e convívios para naturais deste país. A primeira foi a Kilimanjaro, que se destacou na organização de festas populares. Depois, apareceu a Tabanca que, às sextas-feiras e domingos, tem alugada a discoteca Bambu para festas quase exclusivamente concorridas por guineenses”.
Fala-se na Associação Guineense, em Fernando Gomes Ká e da Associação Guineense de Solidariedade Social. Fala-se nos trabalhadores da construção civil nos batuques da noite, nos fados tropicais, na literatura africana, e assim chegamos aos curandeiros. Um deles é guineense, Samba Seidi, na altura com 67 anos. Foi militar português, hoje exerce a função de curandeiro, deixou em Bafatá mulher e nove filhos. Oiçamos a descrição:
“Tudo se passa no chão do quarto onde dorme, sobre uma esteira pousada ao lado do colchão. Ele senta-se de pernas cruzadas e descalço; o cliente também deve descalçar-se, mas fica sentado numa pequena cadeira de lona. Os elementos utilizados por Samba Seidi na procura de respostas e soluções foram todos trazidos de Bafatá. Serve-se de um grande punhado de pequenos búzios e de um dóli, semente seca e dura, de cor vermelha. Também manipula um rosário de 99 contas. A consulta começa com um conjunto de gestos silenciosos em que o curandeiro deixa cair os búzios e o dóli, afasta uns, pega noutros, entrega alguns ao visitante. O curandeiro sopre a balbucia algumas palavras em tom baixo para os búzios selecionados, até que os pousa de novo no chão; o visitante faz o mesmo. Na forma como eles se dispõe, o curandeiro encontra resposta para tudo; ou, praticamente tudo. Diz ao cliente que tipo de problema é que ele tem, as dificuldades por que está a passar, quais são as perspetivas ou formas de os ultrapassar”.
Este livro foi muito provavelmente um roteiro útil para a Lisboa africana e arredores, com as suas informações sobre restauração, oposições ao PAIGC, ao MPLA e à FRELIMO, temos aqui heróis africanos atuais como Jorge Perestrelo, a quem os autores chamam o Luandino Vieira do relato desportivo, filho, neto e bisneto de angolanos brancos, um relator desportivo que começou o ofício quase por acaso em Sá da Bandeira e que chamou à atenção de Emídio Rangel. Obteve sucesso em Lisboa mas é (ao tempo) um dos muitos angolanos que sonha com o regresso definitivo à terra onde nasceu:
“Há sempre aquele apelo; um cancro que nos vai minando, um cancro de saudade. O apelo que só aquela terra tem; um feitiço de conseguir diariamente nos chamar”.
Trata-se porventura de um livro do passado. Mas que belo livro!
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de julho de 2016 >
Guiné 63/74 - P16267: Nota de leitura (854): Os Livros do Povo - A Guiné Portuguesa em 1917, Livraria Profissional, Lisboa (Mário Beja Santos)