
Queridos amigos,
No meu cardápio de tesouros avultam as aldeias serranas da Serra da Lousã, aqui passei férias inesquecíveis, juntei família e amigos, foi sempre um agrado geral a singularidade destes cenários, há estradas sombreadas que evocam Sintra ou o Buçaco, os declives metem respeito e ciranda-se por estas aldeias percebendo como foi duríssima a vida serrana, não foi por casualidade que todos os habitantes daqui fugiram antes do 25 de Abril, era uma vida rudimentar, em estrita sobrevivência, transacionando lenha e objetos artesanais no mercado da Lousã.
É com grande alegria que vos deixo o convite, para quem não conhece estas paisagens edénicas, de experimentar esta descoberta que a ninguém dececiona.
Um abraço do
Mário
As aldeias serranas da Serra da Lousã
Beja Santos
O viandante, com o concurso do seu amigo Teles Grilo, desenhou uma viagem que passava por Coja, Avô, Aldeia dos Dez, ensaiou-se pousar em Arganil e Góis, era a semana entre o Natal e o Ano Novo, não se encontrou onde dormir, em desespero de causa, ao anoitecer, tomou-se a decisão de avançar para a Lousã, aqui houve acolhimento, nesse final de 1995. Na manhã seguinte, procedeu-se ao reconhecimento da vila, marcada por pequenas indústrias, algumas casas nobres e sobretudo um entorno florestal magnífico. A jeito de descoberta, avançou-se para um local chamado Cacilhas, subiu-se até às Hortas e aqui se fazia menção das aldeias serranas, algumas delas fazem parte na atualidade do conjunto das aldeias de xisto. Caminho horrível, saibro escorregadio, com declive profundo e panoramas de cortar a respiração. E chegou-se à primeira aldeia, Casal Novo, desceu-se a escadaria em Xisto, aliás por ali é a pedra e o xisto que pontificam, e parou-se na contemplação do Alto do Trevim, houve quem suspirasse por ali fazer férias. Pela mesma estrada tortuosa e escalavrada avançou-se para outro povoado que à distância parecia uma aldeia medieval perdida, Talasnal, também aqui o enamoramento foi espontâneo. Encurtando razões, no regresso à Lousã encontrou-se um proprietário de Casal Novo, o senhor Pedro Gomes Santiago, e apalavrou-se uma casa para as férias do Carnaval. Sucesso completo, quem veio quis repetir, assim nasceu a institucionalização das férias nas aldeias serranas, vieram famílias e amigos, ficaram quilómetros de recordações e memórias que não se apagam. Daqui, um dia, se partiu em passeio para Castanheira de Pera e se seguiu por caminhos ínvios até Casal dos Matos, em Pedrógão Grande, onde se reconstruiu uma casa de proprietários agrícolas, foram dois anos a aformosear o local, houve a seguir uma troca por uma casa em Tomar, mas ficaram recordações incandescentes, tão ou mais incandescentes quanto o cataclismo de 17 de Junho de 2017 tudo derruiu, restam paredes calcinadas. Voltou-se em romagem às aldeias serranas, num dia quente de Agosto. Aqui ficam as impressões.
Há muita casa reconstruida, mas dá-se logo nas primeiras impressões pela ausência de presença humana, tal como se sentiu naquele final do ano de 1955. São pessoas que se entusiasmam, que reedificam, que têm hoje a facilidade do piso alcatroado, mas aqui não há discotecas, só o silêncio da montanha, os mais novos não apreciam tanta e tal quietude. É preciso descer uma encosta íngreme até chegar à praia fluvial da Lousã, junto de um castelinho único no país, e de onde se avista, sempre coberta por uma aura de misticismo, a ermida da Piedade. Por aqui se cirandou, em pleno Agosto eram escassos os veraneantes. Mas sabe muito bem ter vindo reviver o passado.
Esta escadaria foi sempre o quebra-cabeças dos mais velhos, naqueles saudosos tempos fazia-se a lista de compras ao pormenor, situações houve em que por esquecimento se teve que regressar à Lousã para comprar caixas de fósforos ou pacotes de leite. Tomava-se o pequeno-almoço e subia-se esta lauta escadaria, descia-se a montanha, mercadejava-se na Lousã, tomava-se café na Túlipa Negra, às vezes a companha exigia ir para a praia fluvial, nestes casos comia-se ligeiro e voltava-se a meio da tarde. No regresso, ninguém se lamuriava a descer todos estes degraus.
Falou-se acima que depois de Casal Novo, naquela manhã de descoberta das aldeias serranas, em 1995, se avançou para Talasnal. O panorama era tão inacreditável que se saiu do carro, questionando que mundo parado era aquele. Muitos anos mais tarde, o viandante leu uma tese de mestrado intitulada “Terra que já foi terra” sobre a vida dos serranos que aqui levaram vida tão mortificada, daqui fugiram, o último habitante das aldeias serranas aqui se suicidou no dia 25 de Abril de 1974, quando chegara um progresso a estas alturas, a eletricidade. Fugiram todos da miséria, da má memória, muitíssimos poucos regressaram. Agora é um paraíso turístico e mesmo residencial. Há alternativos alemães e suíços a viver noutras aldeias, como Chiqueiro e Vaqueirinho. Talasnal tornou-se uma aldeia flamejante, tem comércio, casas para alugar, sente-se que lateja a regeneração permanente.
O viandante e companha vezes a fio desceram uma encosta íngreme, cuja subida fazia suar a estopinhas, à procura do bálsamo desta água corrente, sempre murmurante, circundada por cenários edénicos. Não poucas vezes e fizeram passeios pedestres a caminho da velha estação elétrica e depois tudo se palmilhava até Talasnal. O viandante já não tem pernas e sofre de maleitas na coluna para saborear tal aventura. Preferiu reviver Talasnal, encontrar o senhor Jorge que em 1997 ali montou bar, e que tem sido um sucesso, dedica-se também ao negócio de velharias, o viandante comprou mil páginas dos romances de Italo Svevo, edição de Gallimard, em estado novo, por um euro, há horas de sorte. E também chegou a hora de regressar.
Em jeito de despedida, aqui se mostra a aldeia de Candal, vindo da estrada de Castanheira de Pera a caminho da Lousã é a primeira aldeia de Xisto a visitar, antes de Cerdeira, já em 1995 estava composta e bem mantida. Olhando a imagem, a penúltima casa era um aprazível tasquinho onde se procurava uma bebida fresca e uma sombra. É assunto do passado, o negócio fechou. E assim se viveu um dia magnífico que dá para perceber que a palavra saudade é intraduzível em qualquer idioma.
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17973: Os nossos seres, saberes e lazeres (240): De Manchester para Lisboa, ficam as saudades (9) (Mário Beja Santos)