segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20075: Escritos do António Lúcio Vieira (3): carta de amor e saudade à minha praia com nome de mulher, Nazaré



Nazaré > Sítio da Nazaré > 24 de novembro de 2007 > A terra, com nome de mulher, que é muito mais do que um magnífico "postal ilustrado"... Sobre a Nazaré Antiga, vd. aqui fotos no Facebook.


Foto (e legenda) © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 



carta de amor e saudade à minha praia com nome de mulher



por António Lúcio Vieira

[ex-fur mil, CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67); natural de Alcanena, vive em Torres Novas; jornalista, poeta, dramaturgo, encenador; membro da Tabanca Grande, nº 794] (*)


Quantas vezes te sonho entre as frestas das ruelas. Rendido ao meu mar amado. Minha alcova de azul e espuma. Minha infância longe. Às memórias me afloras sempre que sonho. Assim me acalento no teu berço de ondas e suspiros que do meu corpo tomaram cativo embalo. Embalo e é de música que os meus olhos falam. Quando os meus olhos falam do teu nome. De mar de praias e lendas.

Cheiram sempre a maresia as casas que se estendem no aconchegado regaço do teu colo. E é de música que as casas vestem as ruelas e tangem os degraus e as areias. E bebem quanto amor criámos na polpa dos dedos entre as águas. Nas guias das asas das gaivotas ouço um bater compassado e lúgubre. Meu mar que já te afogas em saudades minhas.

Tinha quase esquecido como se altiva o torso rochoso que aponta a Berlenga. E falo-te da desgarrada do eterno faiscar dos faróis. Dessa tua luz guindada ante o Guilhim quando corteja o tremeluz difuso e distante no ilhéu.

Ainda te amo como nos dias da infância. Ainda sei da tua boca um sabor a algas. Ainda te afago as areias louras. Molhadas pelo cio do teu mar fecundador. E é também dessa voz das ondas, que não se aquieta, que te vim falar. Desse amor a ti que em ti me tarda. Quando tardas. Quando aguardas.

Não te fiques no silêncio das ruelas. Na nesga entre as casas sorvo o teu apelo das águas. Do teu céu. Lavo-me de espuma na proa do teu corpo exposto. Tocam-me de leve as memórias e a seiva. Não me deixes partir agora. Se te beijar fica-me o corpo a arder em mim no repousado refluxo das marés. Música. Ouves, é música. Não vás ao mar Toino.

Vou. Espera por mim. Não tardarei a voltar para o teu seio. À deriva no teu corpo deixo as memórias e deixo-te a seiva. Guarda-as. São eu.

Deixo-me. Deixo-te. Espera por mim, Nazaré. Até logo amor.

António Lúcio Vieira

Julho-2014

Guiné 61/74 - P20074: Notas de leitura (1210): A Descolonização Portuguesa, Aproximação a um Estudo, Grupo de Pesquisa Sobre a Descolonização Portuguesa; Instituto Democracia e Liberdade, Lisboa 1979 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
Este documento destaca-se por ter sido o primeiro ensaio de investigação fora da balbúrdia dos extremos: proliferavam na época os libelos acusatórios ao colonialismo e os chamados "livros negros" acusando militares e forças políticas de traição e abandono das populações das colónias. Sente-se, do princípio ao fim, a presença tutelar de Adriano Moreira. É um documento com altos e baixos, obviamente, o contexto em que se estuda o chamado problema ultramarino e procede ao balanço da colonização portuguesa decorre com bastante rigor e serenidade. Escusado é dizer que as investigações se aperfeiçoaram nas décadas seguintes, surgiu muita documentação e até se conhece melhor os pontos de vista no campo dos movimentos de libertação.
É lastimável que este documento não conste em qualquer referência bibliográfica sobre o colonialismo português e os atos da descolonização.

Um abraço do
Mário


A descolonização portuguesa, aproximação a um estudo

Beja Santos

“A Descolonização Portuguesa, Aproximação a um Estudo”, da responsabilidade de um grupo de pesquisa dirigido por Mário António Fernandes de Oliveira, edição do Instituto Democracia e Liberdade, 1979, dois volumes, apresentou-se como uma tentativa de oferecer elementos aos estudiosos que no futuro viessem a tratar o tema na perspetiva do conhecimento rigoroso e sereno, e simultaneamente a obra apresentava-se com intuitos de pacificar os portugueses sobre tão traumatizante questão. Importa esclarecer que o Instituto de Democracia e Liberdade era uma área de estudos confim ao CDS que, como é de todos sabido, pretendia ganhar notoriedade como um partido democrata-cristão. O diretor deste estudo, Mário António Fernandes de Oliveira, era um intelectual nascido em Angola com pergaminhos na investigação e na poesia. Paira sobre este estudo a imagem tutelar de Adriano Moreira, prefaciador dos dois volumes. Neste tempo, tanto no campo da esquerda como no dos ultranacionalistas já se apresentavam interpretações (na maior parte meramente ideológicas ou emotivas) para o fenómeno colonial português, e surgiam protestos e denúncias no campo oposto assacando tremendas responsabilidades aos militares, a Spínola, ao MFA, à esquerda em geral e ao PCP em particular, libelos que apareciam como acusação de abandono puro e simples e traição às populações que no espaço colonial se sentiam portuguesas, havia que pôr os réus em tribunal.

Mário António é o primeiro à direita
No que toca à compreensão do colonialismo em geral e da luta nacionalista na Guiné em particular, é o primeiro volume que oferece boas chaves explicativas: analisa-se o colonialismo português, as correntes de opinião sobre o ultramar num amplo arco histórico, esboça-se um balanço da colonização portuguesa bem como das lutas de libertação, expõem-se as hipóteses descolonizadoras anteriores ao 25 de Abril e questiona-se a situação militar nas colónias no primeiro trimestre de 1974.

A equipa dirigida pelo intelectual angolano elabora um pertinente documento sobre o caso português no contexto dos impérios coloniais, procura-se uma especificidade para a empresa ultramarina dos portugueses, alicerçada por posturas permanentemente assertivas desde o liberalismo até às correntes nacionalistas e oposicionistas até à década de 1950, aqui terá lugar uma viragem, a fratura adensar-se-á entre o regime e da oposição socialista para a esquerda. O documento pondera as várias hipóteses de descentralização que surgem em torno da discussão da revisão do Acto Colonial, a questão indiana despertará os próceres do regime para a necessidade de pôr em ação um novo quadro de desenvolvimento socioeconómico para as colónias. Iniciada a luta de libertação em Angola, vão aparecer vozes, de um modo geral desencontradas, apelando a formulações políticas que conciliassem os interesses das populações locais com o projeto imperial. A partir de 1972, sente-se a inevitabilidade de encontrar uma solução por uma guerra sem fim, as posições extremam-se. Um exemplo é dado pelo I Congresso dos Combatentes do Ultramar, que se realizou no Porto em 1973 e em que os ultranacionalistas fizeram aprovar conclusões como estas: 1 – todo o combatente deve continuar vigilante, ativo e dinâmico, na Metrópole e no Ultramar, combatendo todo e qualquer inimigo de Portugal; 2 – o que foge ao cumprimento do serviço militar não é digno de ser português; 3 – Portugal só pode realizar-se integralmente num território pluricontinental; 4 – continuar a defender Portugal por todos os meios e pelo tempo que for necessário. Coube a Spínola criar uma atmosfera propícia ao golpe militar de 25 de Abril.

À guisa de balanço da colonização portuguesa, os autores não iludem as realidades que davam pasto às reivindicações nacionalistas. Por exemplo:
“O número de africanos desempenhando funções médias na sociedade foi reduzido em todas as colónias, assim como o de africanos com títulos de propriedade privada, quer em relação às estruturas fundamentais, como a terra e a habitação, quer em relação a indústrias, incluindo as mais rudimentares. A distribuição profissional dos colonos justifica a posição de marginalidade a que a colonização condenou os africanos”.

Vejamos agora a Guiné: uma economia agrícola predominantemente de subsistência, com um baixo grau de monetarização, a produção agrícola foi profundamente afetada pela guerra, as autoridades procuraram o reordenamento rural e lançaram projetos de produção socioeconómica preferentemente no Chão Manjaco; um conjunto de unidades industriais solicitou autorização de instalação, com especial relevo as dedicadas ao fabrico de cerveja e refrigerantes, reparações navais, plásticos, pão, pescas, conservas e farinação de peixe, em 1973 encontrava-se instalada a CICER – Companhia Industrial de Cervejas e Refrigerantes da Guiné e a Companhia de Pesca e Conservas da Guiné; nesse mesmo ano as atividades industriais de maior significado foram a de moagem e de descasque, a produção de óleo de amendoim, gelo, amendoim descascado, refrigerantes, sumos e serração de madeiras; existiam 56 centrais elétricas, a rede rodoviária dispunha de mil quilómetros de estrada dos quais 460 asfaltados e aproximadamente 517 no fim de 1973. Enfim, não se ilude a insignificância dos dados nem o caráter rudimentar da economia colonial.

Faz-se uma exposição sobre a ascensão do nacionalismo guineense, a partir de 1954 e depois um curto historial sobre o PAIGC. Também não se ilude a evolução favorável ao PAIGC da luta armada, o gradual prestígio internacional do seu líder, o seu armamento e a preparação militar eficiente dos militares e milícias. Releva-se a ofensiva desencadeada pelo PAIGC a partir de Maio de 1973 e o que representou a perda de supremacia aérea com os mísseis Strela. Citando Jaime Nogueira Pinto, os autores referem algo que não corresponde à verdade: “Segundo relatos posteriores dos responsáveis político-militares da Guiné, o governo de Lisboa dera na altura instruções para se evacuar a parte Sul do território até ao Geba, o que não fora cumprido, terminando pouco depois a comissão de Spínola”. E no questionamento se se caminhava ou não para o colapso, os autores opinam: “Sem dúvida que a situação militar na Guiné, no primeiro trimestre de 1974, era de facto bastante grave, quer pelo estado de abatimento das tropas portuguesas, quer pelo reconhecimento de inferioridade dos meios materiais de que dispunham, quer porque começavam a ter problemas na formação de quadros e dos contingentes com vista às rotações normais do pessoal. Contudo, apesar de condenado internacionalmente como ocupante ilegítimo do território de um Estado independente, Portugal mantinha todos os seus poderes de soberania exercendo os actos da administração corrente em quase todos os pontos do território a que tinha acesso”.

Não se tem dado o devido valor a este primeiro documento em que de forma abrangente uma equipa de investigadores procurou com seriedade e busca das fontes e consulta dos documentos uma interpretação global para o fenómeno do colonialismo português e para os atos da descolonização.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20065: Notas de leitura (1209): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (19) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20073: Parabéns a você (1666): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 763 (Guiné, 1965/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20069: Parabéns a você (1665): Coronel Inf Ref António Melo de Carvalho, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2465 (Guiné, 1969/70) e Maria Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira, esposa do nosso editor Luís Graça

domingo, 18 de agosto de 2019

Guiné 61/74 – P20072: Memórias de Gabú (José Saúde) (87): A “perícia” dos condutores enviados para a guerra na Guiné. Os homens do volante. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

As minhas memórias de Gabu

A “perícia” dos condutores enviados para a guerra na Guiné

Os homens do volante 

Somos, na generalidade, conhecedores do empenho que os condutores impunham numa especialidade à qual se dedicavam desinteressadamente. Sabemos o quão importante foram os conhecimentos adquiridos ao longo de uma singular aprendizagem que lhes proporcionou um contacto real com o universo da condução. Fizeram tudo o que estava ao seu alcance, isto na minha singela opinião, obviamente. Cumpriram com os seus deveres e não viraram a cara à luta, não obstante as tormentas que o rebentar de uma mina obstinasse o seu querer e naturalmente dos camaradas.

Percebi, nessa altura, que a universalidade da especialidade não era comum a todos e distribuíam-se consoante as necessidades ou a sorte que lhes coube na roda da aventura. Razão esta que me leva a viajar num tempo sem tempo e citar especificamente a honorabilidade de camaradas que conheceram, por dentro, os teores de uma guerra que nos fora deliberadamente bárbara. Padeceram com condições adversas e suportaram as agruras impostas por uma peleja que não dava folgas.

Agarrados ao volante das Berliet, veículos fabricados nas oficinas do Tramagal, ou num Unimog, veículos denominados pela rapaziada como “carros de assalto” e que em 1946 foram projetados pela Daimler-Benz na Alemanha quando a Segunda Guerra Mundial rebentou, sendo que a sua comercialização internacional regista o ano de 1951, já no pós guerra, os condutores mereceram ao largo do conflito os nossos singelos aplausos.


Visualizar a sua despretensiosa ação pela mais recôndita picada numa Guiné a ferro e fogo, sabendo de antemão que as minas anticarro eram comuns, os condutores foram camaradas que não viravam a cara à luta e lá partiam para mais uma coluna, ou para as frequentes visitas a tabancas quando o momento passava por mais uma jornada em que a chamada “psicó” ditava ordem.

É evidente que façamos uma justa destrinça entre as colunas de reabastecimentos e de transporte de pessoal, onde normalmente se utilizavam as Berliet, por vezes intercaladas com Unimog, mas sendo este último veículo usado nas idas às tabancas onde íamos distribuir os aplaudidos “mezinhos” para uma população de todo carente e que vivia isolada na mata a contas com as duas frentes de guerra.

Creio que será de bom senso não desvirtuarmos uma veracidade bem patente que se prende com o facto de uma certa inexperiência evidenciada por alguns dos condutores nos seus inícios das comissões. Aliás, pressuponho que a dita e amadurecida experiência era adquirida com o decorrer das comissões onde um melhor conhecimento do terreno ganhava estatuto.

Conheci duas situações em que o medo se apoderou do meu então jovem corpinho. Vamos aos comentários das ditas ocorrências:

A primeira aconteceu numa das visitações a tabancas localizadas na zona de Gabu. Seguia no Unimog da frente, ao lado do condutor, quando numa picada estreita o “ás” do volante deixou a “máquina de assalto” entrar pelo capim fora, sendo que a malta se vi-o às aranhas para ultrapassar o incidente deparado. Houve umas pequenas mazelas e restou, evidentemente, um tremendo susto. Depois fez-se o “reconhecimento” que a ocasião impunha e o Unimog lá prosseguiu rumo ao seu destino.

A segunda ocorreu numa tarde a caminho de Piche quando uma viatura que seguia atrás de uma outra embateu na traseira daquela que rolava à sua frente e a malta atirou-se de pronto para o chão embrenhado entre as granadas da bazuca, do morteiro 60 e as G3 que transportávamos nas mãos.

Aqui um arrepio entrou-me no corpo dado que os arranhões provocados nas minhas pernas e braços deixaram marcas a exemplo, aliás, de outros camaradas que se queixaram do mesmo mal. Mas o “acidente”, felizmente, não causou vítimas de maior a bordo. Tudo correu bem. Mas… ficou o aviso e as pequenas feridas para o saudoso enfermeiro Dinis curar.

Este curto texto visa, essencialmente, abordar o tema que enaltece a bravura comum de camaradas de uma especialidade, condução, que conheceu em paralelo momentos de horror. 

Não sei e nem tão-pouco vou lançar achas para uma fogueira alvitrando o número de condutores que terão perdido a vida na Guiné por via de emboscadas ou de minas rebentadas pelos rodados dos veículos por eles conduzidos.

Com leigo de uma matéria que não domino, deixo, porém, esse repto aos camaradas para que possamos ter uma ideia desse infortúnio, sabendo nós que o número exato das mortes na guerra guineense jamais será real. 

Fiquemos, pois, pelos algarismos virtuais. 


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Guiné 61/74 - P20071: Manuscrito(s) (Luís Graça) (165): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VII - De 61 a 70 de 100 pictogramas)



Pieter Bruegel (ou Brueghel), o Velho ) (Breda, c. 1525-1530  - Bruxelas,  1569) > Provérbios flamengos (1559).

Fonte: Wikimedia Commons, com a devia vénia...



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.




(Continuação) (*)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...]



61. Ah!, põe aí na tua 
petite histoire de vie o bife ao domingo com batatas fritas e ovo a cavalo [1], pequeno luxo da gente remediada, chegaste a ganhá-lo, ao bife, no Chico do talho, e ao lado a tasca onde pontificava a matriarca, a ti Clorinda... que tresandava a iscas com elas, a vinho tinto carrascão, a serradura, a carvão..., em troca de uma pirueta contra a parede, menino com vocação circense, era de pequenino que se torcia o pepino, a espinha cervical, a rabeca e o violino, enquanto o gaiteiro da Atalaia acompanhava o círio do Seixal até ao santuário do Senhor Bom Jesus do Carvalhal, as carroças e os burros engalanados de flores.

Ainda hoje tens um fascínio pelo som encantatório da gaita de foles, pelos círios, pelas romarias, pelos bombos, pelas festas do povo, com exceção dos foguetes, dos cães, dos doidos e do alvoroço do povo… (Não, nunca gostaste de foguetes, de doidos e sobretudo do alvoroço do povo, açaimado pelos mastins dos ricos e poderosos).





Igreja do Santuário do Senhor 
Bom Jesus do Carvalhal (séc. XIX),
Carvalhal, Bombarral.
Fonte: Cortesia da 
página do Facebook.

62. Mas também havia bruxas, diziam, como, mais tarde, a bruxa de são Bartolomeu dos Galegos, ou Samertlameu, que o povo não falava fino nem esdrúxulo, como o padre, a professora ou o homem de leis: não dizia rapariga mas "priga", não dizia cooperativa, mas "comprativa", nem fêvera mas "fêbra", nem boroa mas "broa" nem chicharro mas "xarro"… nem raia mas "arraia"…nem tuberculoso mas "trabecloso" nem piaçaba mas "piaçá".

O santo, o sã Jorge, que pisava a seus pés um diabo negro como o carvão, que da peste, da fome, e da guerra e do bispo da nossa terra, libera nos, Domine


Quem não se livrou, da desonra e da desgraça, foi o sacristão, que se mataria num poço, por maldição, diziam os vizinhos, talvez invejosos e maldizentes, depois de roubar ao mafarrico uma nota de vinte paus, um santo antoninho, deixada por um qualquer pagador de promessas, a mando da bruxa da terra. O dinheiro do diabo é sagrado, tanto ou mais que o pão que o diabo amassa e que os pobres comem!... O sacristão tinha a obrigação de saber isso.


63. E no 1º de dezembro, 

A defenestração do Miguel de Vasconcelos 
em 1/12/1640. Imagem de banda desenhada, 
cuja autoria não conseguimos apurar.(M. Gustavo?
a banda da tua terra a tocar o Oh! ti Zé da Pera Branca, que era o hino da Restauração [2], efeméride gloriosa da história pátria, e que um punhado de patriotas, monárquicos e republicanos, fazia seu, na tua aldeia, quiçá para acicatar os grandes de Espanha e os pequenos de Portugal, e todos os traidores da pátria, os lacaios que tinham servido os F’lipes entre 1580 e 1640



Sabias lá tu quem era o Franco, o Salazar e os demais grandes deste mundo!...

Fazia frio, de tremer o queixo, nas efemérides do 1º de dezembro de 1640, e ias agarrado ao capote do teu pai, a gritar morte ao traidor Miguel Vasconcelos:

- Vais Com Cuspo e Selo, Vais! Morte a Castela e aos seus serviçais!






Salazar, ilustração de Emérico Nunes.  In: Livro de Leitura da 3ª classe (4º edição,Porto
Editora, 1958, p. 177)


Os putos naquele tempo gostavam de avacalhar tudo, do padre nosso à letra dos hinos patrióticos. De resto, quem é que, então,  saberia entender e explicar a letra do hino da restauração ?

"Portugueses, celebremos
O dia da Redenção,
Em que valentes guerreiros
Nos deram livre a Nação."


Nem o comandante de castelo da Mocidade Portuguesa, que era barra em história, nem a "Branca de Neve", a tua catequista, que tinha as maminhas mais lindas das meninas da igreja, nem  muito menos os estúpidos do "Brutamontes" e do "Frasco do Veneno", que odiavam a escola.


64. Sabias lá tu, meu menino, quem era a pátria, e o pai e a mãe da pátria?! E os seus heróis, os seus filhos, mais do que homens, menos do que deuses, sabias lá tu quem eram eles, os heróis e os traidores, e os progenitores da pátria, os pais-fundadores!...

Em boa verdade, nunca tinhas visto a pátria, ao vivo, em carne e osso. E só saberias do traidor Miguel de Vasconcelos, mais tarde, da lições de História de Portugal, resumidas, ilustradas e explicadas às crianças.


65. Sabias lá tu quem era o senhor, professor, doutor, Salazar, o salvador da pátria, só conhecias o rapa-tudo, a espátula, o salazar, que a tua mãe usava na cozinha quando fazia bolos!

Não sabias, pois claro, mas tinhas-lhe medo, ao cara de pau, de nariz aquilino, especado na parede da tua escola do Conde de Ferreira, olhando-te de soslaio, vigiando-te e punindo-te, que os símbolos do poder eram como o código de barras da zebra: ou memorizas ou morres, logo à primeira, mal nasças, ó zebrinha!

De um lado, o Craveiro Lopes, que irá a marechal de opereta, e do outro o Salazar, (ou era ainda o Óscar Carmona, esse sim, o marechal de bigodes farfalhudos ?!)


66. Não te esqueças dos nomes dos altos magistrados da Nação que te podem perguntar, lá em Lisboa, no exame da admissão, algum senhor professor de óculos de aros de casca de tartaruga!

Madruga, meu rapaz, madruga, para um dia chegares a ser homem, homem com H grande!

Não te perguntaram por eles, os altos magistrados, no liceu Dom João de Castro, no exame de admissão ao liceu, mas pelos reis de Portugal, nomes, cognomes e moradas: desde o Dom Afonso Henriques, o Conquistador, que morava no castelo de Guimarães, ao Dom Manuel II, o Desaventurado, que vivia em Lisboa, no Palácio das Necessidades, e que depois seguiu para o exílio, coitado, tão novo. Passou um dia pela terra, em 1908, no 1º centenário da batalha do Vimeiro, mas não dormiu lá, na tua aldeia, que era um perigoso coito, diziam, de republicanos.

E tu sabias tudo isso na ponta da língua, os nomes dos reis, cognomes e moradas! Tal como os rios de Portugal, e todos os seus afluentes, e as linhas e estações de caminho de ferro, coisa que nunca tinhas visto, a estação mais próxima era no Outeiro da Cabeça. E todas as serras de Portugal, por ordem decrescente de altura.


67. Naquele tempo não havia fax, nem correio azul, nem internet, e o telefone era um luxo, e o tempo era uma eternidade, e a eternidade, nesse tempo, não tinha história, muito menos no domingo à tarde, em que nada acontecia e um cão gania na vinha vindimada do Senhor, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da na torre sineira da igreja da tua aldeia.

Havia o telégrafo… Mas, se calhar nunca souberam, lá na tua terra, que o Carmona tinha morrido em 1951, e que no palácio cor de rosa, em Belém, na capital, a três horas de camioneta, ronceira, a do João Henriques, de Torres Vedras,  sucedera-lhe um tal Craveiro Lopes, legionário e aviador, mais tarde substituído por um marinheiro, a quem o povo chamará otário…


68. Na tua terra, só conhecias um carteiro, de resto teu amigo, mais tarde, na tua juventude, velho jarreta, monárquico dos quatro costados, ou não fora ele afilhado da Viscondezinha, filha do Visconde, senhor deputado da Nação, nobilitado, seguramente o senhor mais importante da tua aldeia, dono de terras que trepavam por montes e vales, até aos cabeços dos moinhos e às falésias do mar, no tempo em que el-rei de Portugal, dos Algarves e de Além-Mar, ainda tinha trono e coroa e cabeça e bigode façanhudo e sabre e império e palácio e rainha e real amante e tudo, e uma ninhada de infantes, legítimos e ilegítimos.


69. E, havendo um só carteiro, como é que se poderiam distribuir, a tempo e horas, todas as notícias do mundo, as boas e as más, pelas casas e casebres das pessoas, boas e más, do Estado Novo e do reviralho, incluindo malhados, pedreiros livres, jacobinos, republicanos, ateus, anarquistas, maçónicos e comunistas, sobretudo estes, que eram gentalha que na tua terra não existia (ou nunca poderia existir, vá-se lá a saber porquê) ?!

No tempo em que a falta de notícias já era uma boa notícia, que as más, essas, corriam depressa, tal como a doença, que vinha a cavalo, e ia a pé.


70. Ah!, o terrível dilema da salvação da alma, e o pai-patrão de todos nós, e a feira anual, e a barraca onde só iam os homens feitos, ó freguês, vai um tirinho!, e as virtuosas mães que, por engano, por ali passavam, persignavam-se, como se tivessem visto o diabo em figura de gente, coravam, murmuravam, cochichavam, benziam-se, tapavam a cara e, por entre as frestas das mãos, lançavam olhares de fogo, como os dragões, sobre a cortina do pecado.

Um dia irias descobrir o terrível mistério que escondia a barraquinha da feira, no tempo em que ainda havia casas de passe no teu país, com letreiro à porta: A puta não putes, e a ladrão não furtes. Ou então: gado e lazeira andam de feira e feira. Gado bravo, dizia a tua mãezinha, horrorizada,  arrastando-nos rapidamente dali para fora... 


(Continua)

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[1] Nunca mais voltaste a comer um bife com batatas fritas e ovo a cavalo, que te soubesse tão bem, como aquele que ganhavas, com o "suor do teu rosto",  aos domingos. a fazer o pino, no talho do Chico, a não ser talvez na Guiné, em Bafatá, no restaurante Transmontana, entre 1969 e 1971... mas aqui era pago com o patacão (sujo) da guerra...

[2] Letra do Hino da Restauração:

Portugueses, celebremos
O dia da Redenção,
Em que valentes guerreiros
Nos deram livre a Nação.

A Fé dos Campos de Ourique
Coragem deu e valor
Aos famosos de Quarenta
Que lutaram com ardor.

P'rá frente! P'rá frente!
Repetir saberemos
As proezas portuguesas.

Avante! Avante!
É voz que soará triunfal
Vá avante, mocidade de Portugal!
Vá avante, mocidade de Portugal!



[Diz o blogue Avenida da Liberdade: "A autoria do hino, com data de 1861, é de Eugénio Ricardo Monteiro de Almeida (música) e de Francisco Duarte de Almeida Araújo e Francisco Joaquim da Costa Braga (poema original). Monteiro de Almeida era um compositor e professor do Conservatório Nacional (1826 - 1898). Almeida Araújo e Costa Braga eram os autores da peça de teatro musical em que o hino se incluía."...

A letra inicial, que fazia parte da peça "1640 ou a Restauração de Portugal”, estreada e publicada em 1861, já não é a mesma, sofreu alterações, no tempo da República, para se tornar "politicamente correta"... O hino (patriótico) tornou-se "viral", como díríamos hoje, e sobreviveu até agora, a 4 regimes...
Quanto ao Miguel de Vasconcelos (1590-1640):

(i) foi nomeado escrivão da Fazenda do Reino em 1634 pelo Conde-Duque de Olivares;

(ii) um ano depois, a vice-rainha Margarida de Saboia (Duquesa de Mântua) nomeia-o Secretário de Estado [, equivalente a 1º ministro];
(iii) a  deficitária economia do país e o constante favorecimento de Castela em detrimento dos interesses portugueses, fizeram eclodir em várias localidades do país revoltas e motins populares: o  desprestígio das ações de Miguel de Vasconcelos neste contexto levou ao levantamento das massas em Évora e no Algarve em 1637, com ecos noutras zonas do país;
(iv) o culminar desses distúrbios deu-se a 1 de dezembro de 1640 (Restauração da Independência), quando um grupo de fidalgos invade o palácio real de Lisboa e mata a tiro o Secretário de Estado, lançando em seguida o seu corpo pela janela, para junto da multidão que se aglomerava no Paço da Ribeira.

Fonte: Adaptado de AR - Assembleia da República

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Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série >

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)

17 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)

Guiné 61/74 - P20070: Blogpoesia (633): "Desengano", "Surpresas da vida" e "Espaços quebrados", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Desengano

Quem teve a desdita de, um dia, enganar alguém não espere ficar igual para quem foi enganado.

A confiança é um sentimento muito sensível.
Se embota com uma ligeira aragem, fria e inesperada.
É traição quebrá-la sem outro motivo que não o interesse próprio.

Ninguém perdoa radicalmente, por mais que queira.
Ficará sempre na posição de ferido e incurável.
Uma mancha indelével. Nada a tira.

A lealdade não tem preço nem remissão.
É a plataforma indispensável da convivência humana.

Um valor sagrado. Sem cotação no mercado.

Ouvindo Khatia Buniatishvili - Schubert: Impromptu No. 3 in G-Flat Major, Op. 90
Bar 7 Momentos em Mafra, 12 de Agosto de 2019
9h9m
Jlmg

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Surpresas da vida

A vida é surpreendente. Vai escrevendo uma folha em cada dia.
Segundo um nexo que nos transcende.
Por vezes, nos apanha desprevenidos.
Acontece o inesperado.
Umas vezes, bom. Outras, não.
Só no final se vê a razão de ser.
Porque não vamos sós.
Não somos geração espontânea.
Somos teclas dum piano que só um Artista toca.
Como num ensaio.
Por vezes, desafinadas.
O pior é que, por vezes, reagimos a que nos afine...

Ouvindo Dvorak - New World Symphony
Mafra, 13 de Agosto de 2019
8h51m - dia de sol
Jlmg

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Espaços quebrados

Há cacos espalhados a esmo pelo caminho deserto.
Nas bermas escuras, brotam herbáceas, sem rosto nem nome.
Pendem ramos à solta das hortas cercadas de muros.
Às vezes, as silvas vorazes invadem a estrada e picam.
Mas oferecem ladinas amoras bem doces.
Ninguém lhes resiste.

De hora a hora, passam jumentos com sacos no dorso.
Fazem os fretes que o moleiro precisa e trabalha.
Tisnado de branco, reluzem-,lhe os olhos azuis, e uma alma de santo no rosto.
E a mó de pedra de mármore não pára, roda que roda, à força do rio.
Passam as horas e o tempo não conta.

O telhado de palha, molhado da chuva, serve de albergue gratuito às pombas sem beira nem dono.
Às vezes, cansado, pega nas contas e reza pelas almas perdidas.
Assustada com o negro da noite a coruja lá fora, se lamenta da sorte que teve.
Para ela a noite é o dia.
Por isso, vive triste e sozinha.

Mafra, 15 de Agosto de 2019
16h2m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20051: Blogpoesia (632): "A pouco e pouco..., "Cobardia" e "Brotam do chão e da erva...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20069: Parabéns a você (1665): Coronel Inf Ref António Melo de Carvalho, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2465 (Guiné, 1969/70) e Maria Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira, esposa do nosso editor Luís Graça


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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20066: Parabéns a você (1664): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

sábado, 17 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20068 Manuscrito(s) (Luís Graça) (164): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte VI - De 51 a 60 de 100 pictogramas)


Lourinhã > 1947 > O "artista quando jovem"... ao colo de sua  mãe, Maria da Graça,, e com o pai, Luís Henriques,  ao lado.

Foto: © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Fonte: Cortesia de jornal "Alvorada", quinzenário regionalista, Lourinhã, 13 de setembro de 1964.



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.

(Continuação)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)



51. Havia a feira grande de setembro, o carrossel e os carrinhos de choque, e, quando o rei fazia anos e dava bodo aos pobres, havia um tostão para as diversões e as farturas e o pirolito, os rebuçados e os cromos, mas o melhor era o pirolito[ 1], porque tinha um berlinde!... 

E quem tinha um berlinde, enorme, de pirolito, era rei, com poder para abafar todos os berlindes mais pequenos. Claro, o "Brutamontes" tinha um saco deles! 


52. Havia as labaredas do inferno, as fogueiras de são João, a queima das alcachofras, os refrões (, um tostãozinho, vizinho, vizinha, para os santos populares, primeiro o Santo António, depois o São João e por fim o São Pedro, para a nossa reinação!),  as bichas de rabear, as bombas de carnaval, o calvário e as suas treze estações…


53. Ah!, havia ainda a banda filarmónica, e talvez já a fanfarra dos bombeiros, que eram soldadinhos de chumbo, havia a sineta, manual, dos carros dos bombeiros, e a sirene do novo quartel dos bombeiros que marcava as doze horas de domingo.

54. E o sino da igreja da tua aldeia que tocava a finados, mesmo no domingo à tarde, quando morria algum cristão, e que te enchia de melancolia, o tão-tão-tão do sino grande da tua aldeia… E o teu padrinho, o ti D’minguinhos, que te ensinava a distinguir os sinos de cada igreja e capela:

- Tim lên…deas, tim lên…deas….
- Mata-as, mata-as!
- Com quê, com quê ???...
- C’um pau, c’um pau!!!…


55. Havia santos, santinhos e santinhas para cada estação, o são João, no verão, no 24 de junho, o dia em que os camponeses da tua aldeia iam à praia molhar os tornozelos, os homens, de ceroulas arregaçadas, as calças de cotim, remendadas, os mais velhos de barrete preto e varapau, e elas, de saias compridas, de flanela, que não podiam mostrar a barriga da perna, peluda, os matulões pegando nos putos a berrar e a espernear e batizando-os na água salgada, do grande oceano, para que as carnes enrijassem, e os meninos medrassem, e pró ano lá voltassem, todos os anos até ao dia das sortes, e fossem grandes homens, fortes e valentes, marinheiros, pescadores, aventureiros, artilheiros, soldados façanhudos ou simples cavadores de enxada, como os seus pais e os seus avós o tinham sido, que os bisavós, trisavós e os tetravós, esses, já ninguém sabia quem eram, nem de onde teriam vindo, nem se chorava por eles, porque na época do trinta e um, poucos moços, velhos nenhum




Lourinhã > Praia da Areia Branca > c. anos 30 do séc. XX > Os camponeses e os seus burros. Foto: origem desconhecida. Cópia pessoal de LG.



56. Ah, os camponeses e os seus burros que ainda não estavam em extinção, nem uns nem outros, iam aos magotes até à praia da Areia Branca, no feriado do são João, entre brincadeiras e dichotes, levavam a trouxa e a merenda, os tremoços e as pevides, as pêras, os pêros, as ameixas e os abrunhos, os melões e as melancias, o pão de trigo do moleiro cozido em forno a lenha, a broa de milho com sardinha, as azeitonas mal curadas, bebiam vinho pelo palhinhas, o garrafão de palha, comiam o arroz de cabidela, de galo ou de coelho, misturado com a areia e o vento e as lágrimas de sal, em cima de mantas grossas, feitas de trapos, berrantes, multicolores.

Faziam cigarros de barbas de milho e usavam canivetes multiusos, de cabo de osso, que tanto serviam para limpar a cera dos ouvidos ou o lixo das unhas, ou os caules dos pés, como para cortar grandes nacos de pão, ou apanhar lapas, percebes e mexilhões nas rochas, sangravam de saúde os camponeses da tua aldeia, muita saúde, pouca vida, que Deus não dava tudo, no tempo em que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses. (Nunca lhes perguntaste se eram felizes, nem essa era pergunta de se lhes fazer!)


57. Na praia da Areia 
O ti Silvano, do Nadrupe,
Lourinhã, c. 1940
Branca, pelo são João,lembras-te ?, o teu querido ti Silvano, carpinteiro e cavaleiro, utilizando-te como escudo em luta contra as forças de Neptuno.

Foi num 24 de junho (ou terá sido no dia de são Bartolomeu, a 24 de agosto?) de mil novecentos cinquenta e tal, que passaste a ter medo do mar e prometeste a ti mesmo (, vã promessa de menino!) nunca vir a ser marinheiro, que na água de mares, não procures cabelos para te agarrares.

58. Misóginos os provérbios da tua terra que, quando o mar estava manso lhe chamava mar de mulher, para logo a seguir acrescentar que, da mulher e do mar, não há que fiar. Ou então: do mar se tira o sal e da mulher muito mal.


Era outro mistério, as mulheres, e só muito mais tarde é que irás perceber o que o teu pai queria dizer: A mulher só é nossa quando quer!...

59. Havia a festa do sã S'bastião, no inverno, no frio de rachar de janeiro, no tempo em que havia inverno e a água congelava nas bicas e bebedouros, duas ruas abaixo da tua, o pobre de Cristo, coitadinho do soldadinho, do tamanho de um menino de palmo e meio, com ar de quem, como tu, não tinha nenhum jeitinho para santo, nem muito menos para mártir, o corpo trespassado pelas setas dos maus!...


Sabias lá tu quem eram os maus desses tais romanos que nos haviam colonizado, a nós, bárbaros, celtiberos, o mesmo é dizer, que nos haviam dado a língua e o ser!… Ele havia coisas que a tua professora não te queria explicar, ou não sabia. E muito menos a tua catequista, a "Branca de Neve".


60. Havia os carros de pão, as promessas, os leilões, na festa do sã S’bastião, e havia as rezas, os exorcismos, os amuletos, as benzeduras da ti’ Ad’lina, as fisgas contra o mau olhado (, cruzes, canhoto, te arrenego, Satanás!), o sarampo, a varíola, a varicela, a cólera, a raiva, a peste, a lepra, a fome, a guerra, a tuberculose, o tifo, a rubéola, a febre amarela, a tosse convulsa, a difteria, as sezões, e a disenteria, e ainda estava para vir o ébola, a sida, o dengue, o vírus do Nilo e os quatro cavaleiros do apocalipse.

Ah!, o sarampo, e o sarampelho que sete vezes nos chegava ao pêlo, e que nos obrigava a ficar dias e dias na cama, com os vidros das janelas forrados a papel vermelho!

A ti’ Ad’lina, tua vizinha da rua do Clube, mulher anafada, barbada, de língua viperina, guardadora de segredos terapêuticos milenares, que iria depois p’ras Américas, com as filhas e a neta, que era uma pestinha. E por lá morreria, a ti’ Ad’lina… 


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[1] Vd. blog Loba > 21 de maio de 2018 >  Pirolito – a garrafa que marcou uma geração
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Vd. postes anteriores da série > 

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

Guiné 61/74 - P20067: Os nossos seres, saberes e lazeres (348): Tavira, a encruzilhada de civilizações (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Regressar a Tavira dá-me imenso prazer, é cidade de imensos cantos, recantos e encantos, agrada ver a preservação e a renovação, nos museus há sempre boas exposições, sente-se uma vida cultural ativa que não pode deixar nenhum turista indiferente.
Aqui fica a primeira deambulação, o visitante segue agora para uma exposição com obras de Almada Negreiros no Museu da Cidade, ser-vos-á mostrado tão belo acervo desse extraordinário artista plástico, figura de proa do modernismo português.

Um abraço do
Mário


Tavira, a encruzilhada de civilizações (1)

Beja Santos

O destino fadou Tavira com belezas naturais, um património riquíssimo graças à presença fenícia e islâmica, ao seu influente e ativo porto no tempo da presença portuguesa no Norte de África, à Ria Formosa, aos seus palácios e museus. Tavira, graças a estes cadinhos patrimoniais, atrai o turismo, justificadamente se vem à procura de uma cidade cheia de identidade, de tipicidade, de história para visitar.





Começa a visita no Núcleo Islâmico do Museu Municipal de Tavira, construído no local onde em 1996 foi encontrado o famoso vaso de Tavira e um troço da muralha islâmica. O piso superior está dedicado a exposições temporárias sobre temáticas ligadas ao Islão. A exposição Tavira Islâmica integra materiais dos séculos XI a XIII, provenientes de escavações arqueológicas realizadas no centro da cidade. Aqui se pode observar o troço da muralha do século XII e o impressionante vaso de Tavira, do século XI, a peça mais importante da exposição. Apresenta no bordo onze figuras e nas paredes, linhas, retículas, peixes e outros elementos pintados a branco. De acordo com a informação prestada neste Núcleo Islâmico, o vaso parece representar um rapto nupcial, estando presente a noiva com a face descoberta e o noivo com um turbante, ambos a cavalo; um besteiro e um cavaleiro de escudo e lança; um tocador de tambor e outro de adufe; uma tartaruga e várias pombas; e o dote, constituído por um bovídeo, um caprídeo, um camelo e um ovídeo.

Esta fotografia tem história, em 1950 o BNU comprou o edifício que era uma pensão. Quando o edifício foi demolido encontraram vestígios de uma salga fenícia, é neste espaço que funciona desde 2012 o Núcleo Islâmico. Atenda-se à beleza do telhado.





Sente-se que a cidade é alvo de conservação e restauro. Com tanta riqueza de património arqueológico, etnográfico, artístico e industrial, com clima aprazível para o turismo mas por vezes hostil para os bens patrimoniais, a autarquia é levada a intervir em painéis de azulejo, em estátuas, em edifícios representativos como a estação elevatória que foi convertida em Centro Interpretativo do Abastecimento de Água a Tavira. Convém não esquecer que Tavira é uma cidade com muitas igrejas e conventos, dispõe do Palácio da Galeria (que iremos visitar), dentro de um Museu da Cidade e um Centro de Arte Contemporânea.



Iremos seguidamente para o Palácio da Galeria, mas dá imenso prazer passear por estas ruas onde primam a pedra e as fachadas caiadas, os diferentes momentos da História, sobem-se degraus medievais até chegar a uma igreja barroca ou subitamente entra-se num jardim que associamos à presença árabe, bem forte por sinal. O viandante amesenda, descansa as pernas porque se vai lançar numa boa empreitada, no Museu da Cidade tem à sua espera uma exposição fabulosa, “Mulheres Modernas na Obra de José de Almada Negreiros”.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20048: Os nossos seres, saberes e lazeres (347): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (9) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20066: Parabéns a você (1664): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 16 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20063: Parabéns a você (1663): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)