Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, I e II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 53 e 54")
1. Às voltas com a figura, intrigante e contraditória, de Zé do Telhado (1816-1875) (*), tinha que ler as "Memórias do Cárcere", do Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1825-Vila Nova de Famalicão, 1890), obra que eu, confesso, não conhecia.
Trata-se, de resto, de um autor prolífero, compulsivo, que, para além de uma história de vida, pessoal, amorosa, familiar, turbulenta, truculenta, infeliz, que acabou em tragédia (o suicídio, aos 65 anos), nos deixou mais de duas centenas e meia de títulos, de quase todos os géneros, embora de qualidade literária desigual. (Declaração de interesse: não é um dos meus escritores favoritos, mas têm sido as "Memórias do Cârcere", nos últimos tempos, uma leitura de cabeceira; a par disso, conheço meia dúzia de títulos do autor.)
É um prosador portentoso, genial, um mestre da língua, com uma enorme capacidade de efabulação, e com grandes recursos estilísticos, mesmo se algumas das suas criações são dramalhões de ""faca e alguidar, ao gosto do público burguês oitocentista, que devorava os "folhetins" camilianos (publicados semanalmente na imprensa), com a mesma avidez com que os portugueses no pós-25 de Abril consumiam as telenovelas brasileiras.
O livro, "Memórias do Cárecere", foi escrito em 40 dias (cerca de 500 pp.), depois dele sair da prisão, como explica no prefácio da 2ª ediçáo (1862). É constituído por mais de uma trintena de "historietas" (o termo é dele), incluindo um esboço biográfico relativo à figura do Zé do Telhado (op. cit, vol, II, cap XXVI, pp. 83-107).
No ano e picos em que esteve na cadeia do Tribunal da Relação do Porto, entre outubro de 1860 e novembro de 1861 (se não erro), pelo crime de adultério, o escritor conheceu dezenas e dezenas de homens (e também mulheres), a maior parte condenados, à espera de partir para Lisboa para depois aí embarcarem para o desterro em África; homicidas, parricidas,
infanticídas, violadores, adúlteras, ladrões, bandidos, sicários, loucos, cleptómanos, moedeiros falsos, etc.
Um pouco ao acaso, ao sabor da leitura, selecionei uns tantos excertos do livro (I volume), com algumas destas figuras, representantes da subumanidade que apodrecia nas enxovias da cadeia do Porto. Escolhi excertos menos "sombrios", de preferência com descrições e cenas galhofeiras, grotescos ou picarescas, fazendo jus sobretudo ao sarcasmo com que o autor tratava os "maus fitas" de então ( a "corja", como ele lhes chamava).
2. Excertos de "Memórias do Cárcere" (I Volume, 1862):
(i) José Bernardino Tavares, lavrador de Santa Maria da Feira, que roubou a Felícia ao abade, acabando por ser preso por ajustes de contas com o rival (pp. 170/178):
(…) Tinha o padre no presbitério uma espadaúda a moça, que era o feitiço de seu amo, e dos rapazes. Rentavam-lhe todos, e ela a todos voltava as costas de esquiva, e de soberba pelas peias em que trazia o coração do abade (pág. 170).
(…) José Bernardino tirou-se de seus cuidados e fez dois dedos de namoro à sécia. (pág. 170).
(…) As carícias do abade como que lhe cheiravam a simoneta, os colóquios ao lar com ele, nas noites grandes, faziam-na tosquenejar, bocejar e dormir sobre a roca (pág. 171).
(…) Aquela casta de mulheres, quando adregam de amar, criam sangue novo, espanejam-se, enramalham-se, são como leoas na selva, quando ruído do leão lhes sacode os músculos (pág. 171).
(…) – Traz o leite, Felícia!, berra o pastor daquele tinhosa ovelha, que àquela hora estava já tresmalhada e sisada no aprisco do senhor José Bernardino (pág. 171).
(…) O abade amava Felícia quando todos as potências da sua imoralidade, da sua compleição, da sua estupidez (pág. 172).
(…) Uma noite pegaram lhe fogo à casa, e por um triz que a labareda não chorrisca os torresmos do padre (pág. 174).
(…) Nenhum outro preso [como o José Bernardino] encontrei ali tão ansioso da liberdade, e ao mesmo tempo tão regalado de amiudadas visitas de valentes e atoicinhadas mocetonas de sua terra (pág. 175).
(…) Com a morte do soberano [o rei Dom Pedro V (1837-1851), que visitou duas vezes o cárcere do Tribunal da Relação do Porto, quando o Camilo lá estava, em 1860/61 ] morreram as esperanças do preso [de obter perdão ou comutação da pena]. Desvanecidas estavam elas já para mim. A palavra dos reis era sagrada quando os reis governavam; agora apenas reinavam. Um amanuense de secretaria basta a entupir os canais por onde aflui a misericórdia do rei ao povo (pág, 177).
(ii) Outra história de um abade, minhoto, mas este homicida (matou a tiro o irmão da amante), e que conseguira fugir da cadeia de Braga, antes de voltar a ser apanhado e metido no cárcere do Tribunal da Relação do Porto (pp. 221/227)
(…) O padre Manuel [dos Arcos] teria cerca de trinta e oito anos, os olhos espelhavam melhor a alma, que eu sinceramente imaginava má (pág, 221).
(...) Estava ao padre condenado a calceta perpétua. Não sei de pena mais dura nem mais aviltante (pág. 221).
(…) Padre Manuel tinha uns amores com uma mocetona do concelho dos Arcos; e a mocetona tinha um irmão honrado, contrário a tais amores. Prevaleceu o coração do padre sobre as razões do irmão, e o escândalo sobre os rumores da opinião pública.
O padre era valente e temido; e a moça, afoitada por ele, afrontava o desprezo, e ostentava despejadamente a sua concubinagem (pág. 222).
(…) Estava o padre Manuel nas cadeias de Braga e entendeu que estava mal (pág. 222).
(…) Tomou por caminhos travessos que o levavam aos Arcos, e, porventura, surpreendeu a moça fiando e humedecendo a estriga com lágrimas, senão é que a encontrou contemplativa e sentada no rebordo da pia dos cevados (pp. 223/224).
(…) A moça foi à salgadeira, escolheu os melhores salpicões, respigou da horta os mais tenros renovos, e fez a ceia como as mulheres laboriosas de Homero, e ele comeu à tripa forra, como os heróis do mesmo poeta, que conhecia melhor o seu mundo e o nosso, que nós outros romancistas, falsificadores do coração humano (pág. 224).
(iii) Sobre o parricida, que foi desterrado para África (pp. 180/187):
(…) O hospital da misericórdia [do Porto] não queria receber doidos, porque não tinha enfermaria especial. Ninguém o dirá do estabelecimento de caridade mais dotado e rico do país. (pág, 180).
(…) Eu tenho de coração humano ideias sempre em divórcio com as ideias comuns. Quero acreditar que há remorsos e saudades naquele homem, que foi filho, que teve mãe, que orou com ela, que a viu morta, que a chorou talvez nos braços do pai, que foi tudo o que são os bons filhos, antes de serem parricidas. (pág. 187).
(iv) Os fabricantes e passadores de moeda falsa também passavam pela cadeia da relação do Porto, era um delito frequente na época. Um deles foi desterrado para Cabo Verde, deixando no Porto mulher e três filhos (pp. 117/129)
(…) Três deles esta hora estão a caminho da África, e não mais para eles aquele ardente céu lhes dará monção de voltarem à pátria. (pág. 117)
(…) [Um deles] o senhor Máximo que, ao tempo da sua prisão, tinha um lá, tinha no largo do Carmo um botequim. (pãg. 117)
(…) Na prisão trabalhava ele incansavelmente, desde o arraiar da manhã até alta noite na manufatura de caixinhas para as boticas, e fazia trezentas por dia. O lucro de cada tarefa diária orçava por quatrocentos e oitenta réis.
(...) Quando foi preso, tinha ele em começos de formatura na escola médico-cirúrgica um filho; outro em latinidade, e projetava educar o terceiro também na carreira das letras. Sua mulher tinha nascido, senhora, e recatada se mantivera sempre como exemplar mãe e esposa (pág. 118).
(...) Vou, como iria para a sepultura, deixando protegida mulher e filhos (...). De ora avante, já se me dá de morrer aqui ou no degredo (pág. 119).
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(Seleção, revisão, fixação de texto e notas, LG)
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 11 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24745: Manuscrito(s) (Luís Graça) (237): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte IV: 10 anos de impunidade
(**) Vd. Diário de Notícias, 1 de julho de 2017 : "A pena de morte estava abolida na consciência social desde 1840". Entrevista do director do Museu do Aljube, por Ana Sousa Dias.
(...) Qual foi o percurso até à abolição?
Os abolicionistas começaram por tentar que nos códigos e nas leis houvesse menos motivos para a pena de morte, é uma estratégia clara desde a Viradeira, desde Pascoal de Melo e Freire, a quem D. Maria I manda fazer um Código Penal novo. As razões previstas na lei vinham desde as Ordenações Filipinas do século XVII, era uma longa listagem. A outra estratégia era tentar que o rei comutasse a pena, o que aconteceu constantemente com a D. Maria I, D. João VI , D. Maria II e D. Pedro V - com os reis da Guerra Civil, D. Pedro IV e D. Miguel, não, evidentemente.
Comutação em prisão perpétua?