quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25143: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLIII: Nuvens negras (maio / junho de 1974): ameaças e promessas do PAIGC em relação aos 'colaboracionistas'


Casa Comum | Instituição: undação Mário Soares |  Pasta: 05222.000.069 | Título: João Bernardo Vieira, João da Silva e Maximiano Soares da Gama | Assunto: João Bernardo Vieira [Nino], membro do Conselho de Guerra e do Bureau Político do PAIGC, João da Silva e Maximiano Soares da Gama| Data: 1963 - 1973 | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Fotografias 

Citação: (1963-1973), "João Bernardo Vieira, João da Silva e Maximiano Soares da Gama", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43797 (2024-2-6) (Com a devida vénia...Há um primeiro elemento, à esquerda do 'Nino' Vieira,  que não está idenmtificado... O João da Silva é o terceiro elemento.



Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares|  Pasta: 07198.169.175 | Título: Guia de remessa | Assunto: Envio de 20 caixas com obuses de RPG 7 da delegação do PAIGC em Boké para o depósito de Candjafara. Guia assinada por Antero Alfama | Data: Quarta, 27 de Dezembro de 1967 | Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Guias de remessa (armas, viaturas, etc.) 1967-1971.| Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Documentos.

Citação: (1967), "Guia de remessa", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40398 (2024-2-6) (Com a devidfa vénia...)


1.  Estamos a chegar ao fim. Estas são algumas das derradeiras páginas ("Depois do 25 de Abril, outros encontros", pp. 276/280) das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), reproduzidas a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il., edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem já perto de 120 referências no nosso blogue. Tinha um 2º volume em preparação, que a doença e a morte não  lhe permitaram ultimar. As folhas manusctrias foram entregues ao  Virgínio Briote com a autorização para as transcrever. Desconhecemos o seu conteúdo, mas já incentivámos o nosso coeditor jubiliado a fazer um derradeiro esforço para  transcrever, em word, o manuscrito do II volume (que ficou, naturalmente,  incompleto). O Virgínio Briote deu-nos "luz amarela" a esta nossa sugestão... Vamos estar atentos à nossa caixa de correio...


Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné-Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC";

(xxi) saída para o subsetor de Mansoa, onde o alf cmd graduado Bubacar Jaló, da 2ª CCmds Africanos, é mortalmente ferido em 16/2/1973 (Op Esmeralda Negra);

(xxii) assalto ao Irã de Caboiana, com a 1ª CCmds Africanos, e o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor;

(xxiii) vamos vê-lo a dar instrução a futuros 'comandos' no CIM de Mansabá, na região do Oio, no primeiros meses do ano de 1973, e a fazer algumas "saídas" extras (e bem pagas) com o grupo do Marcelino, ao serviço do COE (Comando de Operações Especiais), que era então comandado pelo major Bruno de Almeida; mas não nos diz uma única sobre essas secretas missões; ao fim de 12 anos de tropa, é 2º sargento e confessa que está cansado;

(xxiv) antes de ir para CCAÇ 21, como sede em Bambadinca, como alferes 'graduado" (e sob o comando do tenente graduado Abdulai Jamanca, ainda irá participar na dramática Op Ametista Real, contra a base do PAIGC, Cumbamori, no Senegal, em 19 de maio de 1973;  esta parte do seu  livro de memórias  (pp. 248-260) já aqui foi transcrita no poste P23625;

(xxv) no leste, começa por atuar no subsetor do Xime, em meados de 1973;

(xxvi) em setembro de 1973, quando estava em Piche, já na CCAÇ 21, recebe a terrível notícia da morte do seu querido irmão mais novo, Braima Djaló, da 3ª CCmds;

(xxvii)  embora amargurado com a morte do seu irmão mais novo, e cansado, ao fim de 12 anos de tropa e de  guerra, o Amadu Djaló mantem-se na CCAÇ 21, como alferes graduado; vemo-lo agora no início de 1974 em Canquelifá, em reforço da CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (1972/74);

(xxviii) a CCAÇ 21 está no leste, na região de Gabu, ao serviço do CAOP2, e mais exatamente em Canjufa, quando sabe da notícia do golpe de estado do 25 de Abril em Lisboa; só no dia 27, de manhã, regressa a Bambadinca, onde estava sediada;

(xxix)  ainda antes da extinção da CCAÇ 21 e do  Batalhão de Comandos da Guiné, o Amadu Djaló encontra-se com alguns responsáveis do PAIGC, logpo am maio/junho de 1974: o cabo-verdiano Antero Alfama, em Bambadinca e Xima, e depois na fronteira com o Senergal, com o João da Silva e com o Pedro Nazi...



Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLIII

Nuvens negras (maio / junho de 1974): ameaças e promessas do PAIGC em relação aos 'colaboracionistas' (pp. 276/280)


Nunca mais vou viver dias assim. Depois de sabermos que tinha havido um golpe militar em Lisboa, aqueles dias a seguir não sei bem como os descrever. Nos últimos dias de abril ou princípios de maio de 1974, encontrei-me frente a frente com o PAIGC, com o cabo-verdiano Antero Alfama, um bom homem. [Em finais de 1967, era delegado do PAIGC em Boké.] 

Na altura ainda todos, brancos e pretos, tinham armas nas mãos.

O Antero Alfama perguntou-me quem eu era, como me chamava. Eu estava acompanhado por um furriel da nossa companhia, a CCaç 21, e no grupo também se encontravam alguns furriéis, cabos e soldados de Bambadinca, negros, da nossa companhia africana.

Abri a conversa assim:

 − A nossa maior preocupação é que nós somos irmãos, andámos na guerra durante muitos anos, houve um muro entre nós que foi agora derrubado. Precisamos de falar com vocês, para nos aproximarmos.

No local estava muita gente e cada vez se juntavam mais pessoas. Então fomos para outro lado, com aquela gente toda atrás de nós.

Antero olhou-me e disse:

 − Olha, Amadu, nós não temos militares, o que temos é guerrilheiros. Amanhã, para formar o Exército da Guiné vocês vão ser precisos. Têm formação militar completa, o que os nossos homens ainda não têm.

O que acabava de me dizer podia ser verdadeiro, mas pareceu-me mais uma saída política. E a conversa, que foi muito amigável, terminou com a promessa de nos voltarmos a encontrar.

No segundo contacto fui com o alferes Sada Candé 
[da CCAÇ 21] ao Xime [onde estva aquartelada a CCAÇ 12], tivemos conhecimento que o Antero Alfama ia lá estar e fomos procurá-lo. Encontrámo-lo, falou connosco e recebeu-nos com boas maneiras.

Depois Alfama foi para Bafatá fazer reuniões com a população e pediu-me, a mim e a outro companheiro meu, que servíssemos de intermediários entre ele e a população. Não tinha ainda suficiente confiança no povo, desconfiava que podia estar gente ligada à DGS que o pudesse matar.

Quatro anos depois, já depois da independência, Antero disse-me que não podia fazer nada por nós, que o Buscardini[1] e o Constantino Teixeira não estavam de acordo com as ideias dele e que tinha pedido transferência para Cabo Verde.

Cassama, um soldado nosso do esquadrão de Bafatá, tinha tido a sorte de, tempos atrás, ter ganho a lotaria nacional e pediu para sair da tropa. Com o dinheiro que lhe saiu,  comprou uma carrinha
[ de caixa aberta]  aberta e passou a utilizá-la no transporte de pessoas e cargas entre Bafatá e Cambajo, na fronteira.

Um dia encontrou o alferes Demba Chamo Seca e disse-lhe que tinha estado com o comandante João 
 [da] Silva[2] e que ue lhe tinha dito que precisava de falar com alguns oficiais dos Comandos africanos. 

Por mim, não via inconveniente, tinha até interesse em ouvir o que tinha para nos dizer. O Demba concordou e ficou combinado encontrar-nos no dia seguinte à noite.

Um problema familiar imprevisto impediu a ida do Demba, mas ele apareceu à hora combinada, entregou-me a fotografia dele e disse que o que eu combinasse ele assinava também, que procedesse como se ele estivesse presente. 

Vesti-me à civil, tomei lugar na carrinha e rumámos a Cambajo. Daqui fomos a pé até a uma tabanca senegalesa.

À minha frente estava um homem de aspecto afável, mais ou menos da minha idade, o comandante João Silva, um balanta muito prestigiado entre o PAIGC. Apertámos as mãos e convidou-me a acompanhá-lo.

Antes de mais, disse-lhe que me representava a mim e ao Demba, que por impedimento familiar não podia estar presente e entreguei-lhe a fotografia, conforme o Demba me tinha pedido. 

 − Faça de conta que o Demba está aqui comigo  − acrescentei.

Entrámos numa sala, eu, Cassama, o motorista que me tinha levado, o Maude Embaló, conselheiro, um comissário político que não me lembro do nome, o comandante João da Silva, o Pedro Nazi, responsável pela segurança da zona,  e vários soldados armados do PAIGC.

Depois de ter dito o meu nome, que era alferes dos Comandos africanos, feita a minha apresentação, o João da Silva virou-me para o Pedro Nazi e disse-lhe:

 
 − Então, já ouviste?!   − e  convidou-o a falar.

Durante alguns momentos houve ali uma hesitação, o militar, o João da Silva, queria que fosse o segurança a falar primeiro, o homem da segurança, o Pedro Nazi, queria que fosse o militar a abrir a conversa. 

Resolvida esta cerimónia, o Pedro Nazi começou assim:

 
− Está bom. As minhas palavras… eu não tenho muito a dizer. Este camarada que está aí sentado nunca se lembrou que este dia chegava. Para mim, Pedro Nazi, um trapo no ombro não me engana para matar os meus irmãos. Branco não me enganava com dinheiro na mão para eu matar os meus irmãos. Os Comandos fizeram grandes crimes nas zonas libertadas. Se os Comandos entravam numa dessas zonas, essas zonas andavam a chorar três ou quatro meses, um pai que perdeu um filho, o filho que perdeu o pai, uma mulher que perdeu o marido, um homem que perdeu a esposa. Foram matanças, crimes! Os brancos têm número de militares superiores a nós, os brancos têm carros, carros de combate, aviões, mas Deus deu-nos razão e os brancos perderam a guerra, agora hoje está aí sentado para falarmos de Guiné! Ele nunca pensou, nunca passou pela cabeça dele que algum dia viria ter connosco para falarmos da nossa terra, da Guiné. Eu já falei o que tinha a falar.

Então quando João da Silva se estava a preparar para falar, eu, que fiquei muito chocado com as palavras do Pedro Nazi, disse:

 
− Desculpa, João, eu quero responder às palavras que ouvi. 

E enfrentei os olhos do Pedro Nazi:

 Camarada Pedro, é ainda muito cedo para falar da maneira que o camarada falou agora. Muito cedo. Nós não viemos cá saber o que se passou. Porque se nas zonas libertadas vocês apresentam mil órfãos,  nós também vos mostramos órfãos aqui na zona. O chicote da guerra é comprido, muito comprido. Quando quer bater no inimigo também pode tocar em inocentes. Não levámos em consideração os órfãos e as viúvas que vocês fizeram cá. Foi a guerra. Tenho a certeza que as bombas que vocês lançaram em Bafatá, aquelas bombas mataram população inocente. A vossa ideia era matar militares, mas mataram civis. Nós, quando entrámos nas zonas libertadas, quando havia disparos contra nós, disparámos também e matámos civis. O povo das zonas libertadas não nos pode julgar porque sempre considerou os militares como criminosos e por isso quando viam tropa fugiam. E o povo das zonas urbanas também não vos pode julgar, nem considerar o PAIGC criminoso. Por isso, vamos deixar esta parte de lado, camarada.

Logo, João da Silva, gritou: "Viva PAIGC, viva PAIGC!" e as pessoas que estavam com ele gritavam: "Viva PAIGC!"...

E João da Silva continuou:

Hoje fiquei satisfeito, já sei que nós vamos ter a independência [estavam a decorrer as negociações de paz, bilaterais, primeiro em Londres e depois em Argel] .

Temos homens como este no Exército Português, que reconhece o passado, porque nós não somos militares, somos guerrilheiros. Exército são eles. Este irmão esteve onze anos num lado, eu estive no outro, um contra o outro. Ele não morreu até hoje, eu também não, estamos aqui sentados a conversar, o que nós pedimos é que não haja mais motivos para ele ou eu fazermos mais guerra. Fiquei muito satisfeito. A única coisa que peço ao camarada é coragem, é coragem que eu te peço.

Com as palavras do comandante João da Silva fiquei mais satisfeito, mais aliviado, mas houve uma altura, quando estava a falar o Pedro Nazi, eu perguntei a mim próprio, por que é que eu tinha vindo. O Cassama, o motorista que me tinha levado e que estava sentado ao meu lado num banco comprido, quando comecei a falar,  vi-o escorregar do banco para o chão e enfiar a cabeça entre as mãos.

No fim do encontro, Cassama estava com pressa de sair dali.

- Vamos embora, vamos regressar. Tenho que levar os sapatos que o João da Silva me encomendou porque não lhe servem, tenho que trazer o outro número ainda hoje. Vamos, Amadu.

João da Silva, o Pedro Nazi e a comitiva acompanharam-nos até à fronteira. Apertámos as mãos e abraçámo-nos. Recordo que Pedro me recomendou coragem.

Este encontro ocorreu em fins de maio ou nos primeiros dias de junho 
[de 1994] .

(Continua)
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Notas do autor ou do editor literário, Virgínio Briote:

[1] Nota do editor: António Buscardini, depois da Independência, foi considerado por muitos como um dos principais responsáveis (juntamente com Constantino Teixeira) pelas prisões e pelos fuzilamentos sumários que ocorreram durante 1975, de militares e civis que tinham colaborado com as tropas portuguesas.

Na sequência do golpe de 1980, que levou 'Nino' Vieira ao poder, esteve preso dois anos. Na altura em que foi detido, era o Secretário-Geral do Comissariado de Estado do Interior. Morreu de doença, pouco tempo depois. 

(Virgínio: esta informação é falsa; o Buscardini morreu na noite do golpe de Estado de 14/11/1980. LG)

[2] Do PAIGC, que tinha feito a guerra na zona nordeste, na fronteira com o Senegal.

(Seleção, fixação / revisão de texto, negritos, links, fotos, notas adicionais entreparènteses retos, título, subtítulo, síntese das partes anteriores: LG)
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terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25142: Convívios (977): Almoço/Convívio do pessoal do BCAV 3846 (Ingoré, S. Domingos e Susana, 1971/73), a levar a efeito no próximo dia 3 de Março de 2024, em Fátima (Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

Ingoré, S. Domingos e Susana, 1971/73


ALMOÇO DE CONFRATERNIZAÇÃO DO BCAV 3846

DIA 3 DE MARÇO DE 2024 EM FÁTIMA

Caros amigos,
Vamos a  Fátima para o nosso regular encontro anual, onde haverá lugar a alegre e são convívio para recordar os episódios da nossa história conjunta na Guiné-Bissau.

O evento ocorrerá no Domingo, dia 3 de Março de 2024 no Restaurante Pastilha & Filhas, Estrada de Fátima, 34 Batalha

Apelamos a que compareças com a tua habitual alegria, se quiseres com a família e ou amigos, e nos ajudes a divulgar esta iniciativa por todos os teus amigos que estiveram connosco na Guiné e não receberam este convite. Estamos com dificuldade em ter a base de dados completa.

O programa será o seguinte:
Chegada e registo entre as 11h00 e as 12h00

Almoço com a seguinte ementa:
- Entradas: pão, azeitonas, camarão, rissóis, morcela e pastéis de bacalhau
- Aperitivos: martini, porto e ricard
- Bebidas: vinho maduro e verde, águas, refrigerantes e cervejas
- Sopas: legumes ou peixe
- Bacalhau à Zé do Pipo
- Cordeiro à padeiro
- Sobremesa: prato misto (gelado, fruta e pudim)
- Café e digestivos (aguardente, licores e whisky)

O preço será 30€/pessoa, (não se aceita Multibanco) e todas as bebidas estão incluídas.
(Crianças de 0 a 5 anos é grátis e de 6a 11 anos pagam 50%)

- Encerramento pelas 17h00 com bolo e espumante.

Confirma a tua presença com urgência (máximo até 20 de Fevereiro) para:
- Carlos Conceição (Xina) tlm 919 489 378 - email: carlosconceicaonovoa@gmail.com
- João Catarino tlm 919 805 205 email: catarino.isilva@gmail.com
- Abel Miranda tlm 966 963 841 email: miranda abel@hotmail.com
- Joaquim Monteiro tlm 964 071 285 email: monteiro.quito@gmail.com

AVISA TODA A GENTE QUE CONHEÇAS DAS NOSSAS RELAÇÕES no CTI Guiné

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Nota do editor

Último post da série de 16 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25077: Convívios (976): A CCAÇ 4544/73 (Cafal Balanta, 1973/74) vai realizar o seu convívio comemorativo dos 50 anos do regresso a Portugal, em Setembro próximo, na zona de Coimbra (António Agreira, Fur Mil TRMS)

Guiné 61/74 - P25141: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (18): Três amigos, três destinos - II (e última) parte


Figueira da Foz >  "Placa da Rua Heróis do Ultramar na esquina com a Rua 10 de Agosto, em frente dos Bombeiros Voluntários"...  Foto de Joehawkins, datada de 24 outubro de 2016. Com a devida vénia... Fonte: Wikimedia Commons (2018)

 [Placas como esta abundam por esse país fora, são do início dos anos 60, quando começou a guerra colonial / guerra do ultramar em Angola, e era preciso homenagear os bravos que por lá se batiam, em condições adversas...  E espicaçar os vivos que estavam na linha da frente...  para matar e morrer
 
A guerra depois banalizou-se, estendendo-se à Guiné e a Moçambique... E os heróis foram ficando para trás... Exaustos. Esquecidos. Abandonados.   Como em todas as guerras...  E até a próxima  guerra... em que dá  jeito ter heróis de reserva. LG]


Contos com mural ao fundo > Três amigos, três destinos - II (e última) Parte 

por Luís Graça


 Belmiro Mateus, advogado, e António Mota, professor de história,  reformado, do ensino secundário, ex-seminarista, e ex-combatente no TO da Guiné, em 1972/74, encontram-se no cemitério da sua terra natal, algures na região do Médio Tejo, por ocasião do funeral de um amigo comum, Zé Nuno, engenheiro técnico, forcado, guitarrista, amante do fado, ex-combatente da guerra do Ultramar, em Moçambique, onde esteve, na Marinha, entre 1973 e 1974... Há longos anos que não se viam e aproveitaram para "matar saudades dos bons velhos tempos", além de homenagear o amigo. (*)

 (Continuação) 

***
 
O sítio, a tasca com esplanada coberta com folhas secas de eucalipto, não podia ser mais inspirador,  com larga vista sobre o casario, a farta lezíria, e o rio, sereno, preguiçoso,  agora com muito menos água do que no tempo da infância dos nossos dois interlocutores... "Carpe diem", dizia a tabuleta, em latinório, aproveita o dia, goza a vida, o dia-a-dia…

Pediram duas taças de branco, enquanto o Belmiro foi relembrando a história de vida do Zé Nuno…

− Além das touradas, o Zé tinha uma paixão, que era a guitarra… 
− explicou o Belmiro.

E continuou, depois de humedecer os lábios: 

− Aqui seguia as peugadas de um tio materno cuja coroa de glória terá sido, dizia-se,  ter acompanhado a Amália num já longínquo programa da Emissora Nacional ou do Rádio Clube Português, numa substituição de última hora. Tocou nas primeiras casas de fado, que floresceram com a guerra, em Lisboa, entre 1941 e 1943, na altura em que fazia o serviço militar obrigatório. Ainda chegou a estar mobilizado para os Açores, o que não aconteceu, talvez devido à guitarra e, ao que parece,  "à cunha certa metida à pessoa certa no momento certo"…

− Cunhas, nesse tempo, Belmiro ?!... Não me faças rir... −interrompeu o Tony.

− ... O Zé Nuno, por sua vez, animava algumas noites de fado no célebre "Solar do Marquês de Marialva", ainda te lembras ?... Era o clube da terra, no tempo dos nossos avós e dos nossos pais. 

Fora em tempos o clube seleto da vila ribatejana. Havia entrado em decadência, talvez no início dos anos cinquenta, depois de algumas senhoras da elite local terem tido a ousadia de denunciar ao Salazar, em pessoa, o sítio como "um antro de jogo ilegal, casa de passe, escola de vício e templo de perdição" (sic)... Uma delas, mulher de um médico com consultório na terra, era amiga, do tempo de Coimbra, da comissária nacional da Mocidade Portuguesa Feminina, a célebre Guardiola…

− E creio que também amiga ou conhecida da Van Zeller, que era a n.º 2 da Mocidade Portuguesa Feminina, e que há-de ser, nos anos 60, a diretora-geral de saúde, a primeira mulher a desempenhar esse cargo – acrescenta o Belmiro.

− Ah!, sim, a médica e deputada Maria Luísa Van Zeller… Sabes que sou barra nesse período do Estado Novo, os anos 30 e 40, fiz um mestrado sobre a ascensão e o  apogeu do Salazar.

− Eram as duas mulheres mais poderosas do regime.

− Depois da Dona Maria..., não te esqueças, Belmiro… E acrescenta a Supico Pinto, a famosa Cilinha, mais tarde, com o início da guerra. Ouviste ainda falar dela, por certo ?!...

− Ah!, sim, o nome não me é estranho... Mas tu sabes que eu não fiz   tropa...

Até então o Solar era frequentado pelas senhoras da terra, mas apenas durante o dia: tomava-se o chá das cinco, fazia-se tricô, jogava-se à canasta, bisbilhotava-se, cortava-se na casaca dos vizinhos… Uma vez por outra, aos fins-de-semana, havia récitas, espetáculos musicais, verbenas, chás de caridade e, no verão, sessões de cinema, no pátio,  ao ar livre... 

A noite era reservada aos cavalheiros... Faziam-se aqui negócios, fumava-se um bom charuto,  perdia-se e ganhava-se uns "trocos da cortiça", arranjavam-se casamentos, emprestavam-se cavalos e  amantes... 

Apesar das tradições republicanas, a segregação de género agravara-se com a Ditadura Militar e o Estado Novo. Fumar e sair à noite, sozinha, nem pensar, para uma senhora de boas famílias. De tempos a tempos, também aparecia por lá gente da boémia da capital, com destaque para as coristas do Parque Mayer, em digressão pela província…  

O Belmiro e o António eram putos nesse tempo, não se lembravam de nada, mas mais tarde irão conhecer o ambiente já decrépito do clube onde, aos sábados, na época marcelista, depois do “fado boémio e reaça” (sic), ainda havia uma ala juvenil que gostava de cantarolar e tocar uns fados e baladas de Coimbra, a meia voz, e onde se revelavam novos talentos da terra, acarinhados pelo Zé Nuno e pelo seu tio materno…

Curiosamente, já ninguém se lembrava, trinta e três anos antes, em 1936, das exortações, aos microfones da Emissora Nacional, de musicólogos, política e ideologicamente próximos do regime, como o Luís Moita, para que a mocidade portuguesa deixasse de cantar o fado, essa “canção de vencidos" (**)...

O tio, materno,  do Zé Nuno era um bocado a "ovelha ranhosa" da família, por ser considerado do "reviralho" (depois das eleições do Norton de Matos)… Em 1958, apoiara publicamente a candidatura do general Humberto Delgado à presidência da república, o que lhe trouxe alguns dissabores em casa e no emprego.

Com o novo presidente da Câmara Municipal, e dirigente local da Ação Nacional Popular (que sucedera à União Nacional), o pai do Belmiro, católico, marcelista, mais liberal que o anterior, que era um ferrenho salazarista, o ambiente na vila ribatejana desanuviara-se um pouco no final dos anos 60, princípios de 70.

− Continuando a nossa conversa…, vejo que estás com bom ar, Belmiro… Mas, quem vê caras, não vê corações.

− Bem, parafraseando o provérbio, "muita saúde", vou tendo ainda, mas não sei se "pouca vida"…, porque afinal "Deus não dá tudo"… Acho que era esse o provérbio que dizia o meu avô materno, que morreu cedo, segundo a minha mãe. Vendia saúde às carradas, mas tinha o pressentimento que iria morrer ainda jovem. Costumava também dizer: "Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba"… A verdade é que não chegou a conhecer os netos… Morreu com a pneumónica...

− Em suma, morria-se cedo, cheio de saúde…

− São provérbios ao teu gosto hipocrático, Tony… Tu é que publicaste em tempos uma antologia de provérbios populares ligados à saúde, não foi ?!... Pelo menos , mandaste-te uma separata, autografada, ainda qundo eu estava nos Açores.

− Sim, uma separata  de uma revista de história da medicina… O povo lá sabe, ou sabia, tenho um certo respeito pela sabedoria popular.

− Tretas…, desculpa lá, Tony… De popular têm muito pouco os nossos provérbios. Fisqusei vacinado com o maoismo...

E, subindo o tom de voz, o Belmiro sentenciou:

− E, se queres um conselho, da minha experiência de vida, que já é alguma, não te fies no povo, na populaça… O povo é vilão, é mouro, é saloio, é conservador, se não mesmo reacionário, manhoso, interesseiro, desleal, ingrato… O povo é um caçador oportunístico, tanto come na gamela do pobre como apanha as sobras da mesa do rei… Eu vi pelo meu pai, que passou de bestial a besta, com o 25 de Abril... Não faltaram os vira-casacas que lhe infernalizaram a vida, e aguns deviam-lhe favores... Sabes que o populismo tanto é de esquerda como de direita... 
Cuida mas é da tua vida, cuida de ti, cuida dos teus!

− “Ao vilão dá-lhe o dedo, toma-te a mão” – ironizou o António Mota. – Seja, mas poupa-me os teus sarcasmos, o teu humor à laia do Bordalo Pinheiro. Estás a sugerir que o nosso Zé Povinho é gentalha, feia, porca e má... Como os ciganos, os pretos, os imigras, os sem-abrigo, os proletas... Vocês, juristas, são tramados… Mas também quero dizer-te que gostei da nossa conversa.

− Dantes ainda nos encontrávamos nos casamentos e batizados… Agora é só nos funerais – lamentou-se o Belmiro.


− Sim, uma conversa à porta do cemitério, não direi mórbida, talvez mais nostálgica do que filosófica.

− Então, à nossa, Tony!... Aos bons velhos tempos!... Tchim, tchim!

E ergueram as taças de vinho branco.

− Vejo que estás mais cético, Belmiro, mais crente em Deus, menos confiante nos homens, ou seja, no povo de Deus. Afinal, quem o diria, um ex-maoista, como tu, quando jovem, para quem a Bíblia, na faculdade de direito, era o famigerado "livrinho vermelho"…

− Sem dúvida, um "best seller", como a Bíblia. Foi um dos primeiros negócios que a China fez no Portugal continental… Em pequema escala, é verdade, mas abria simbolicamente uma porta para um  mercado, muito mais vasto... Mas, eh!, nada de ressentimentos nem de remoques políticos…

− De modo nenhum, nessa altura, já não convivíamos, ou muito pouco, estava cada um para seu lado.

− Assumo esse passado, embora hoje me ria de mim próprio. Sabes como era: jovens imberbes, chegados à capital, más companhias, paixões juvenis, a descoberta do sexo (fácil), a revolta contra o pai, a incultura geral, leituras apressadas, na diagonal, dos gurus do marxismo-leninismo, o " pensamento de grupo" (que é o de todos os partidos), o exotismo da revolução cultural chinesa, a cabeça na ponta do polegar direito (!), a vontade (irresistível) de mudar o mundo e a vida num ato de magia vermelha!...

E ganhando fôlego:

− Fomos como o frango de aviário assado no espeto: em mês e meio ficávamos doutores em ciência política, dominando as famosas RGA, as reuniões gerais de alunos, no caso dos estudantes, mas procurando também chegar às fábricas e aos quartéis... 

- Demagogia, a nossa doença infantil ?


-  Não escondo que éramos demagogos, intolerantes e terroristas (no sentido de usar a palavra como uma arma: "Fogo contra a burguesia!... Abaixo o social-fascismo!"...). Era a orgia e a magia das palavras de ordem que podiam mudar o mundo e a história... Pobres de nós.

− Sei do que falas: as hormonas em convulsão aos 18/20 anos… Não é por acaso que é a idade em que te mandam para a tropa e para a guerra!... A idade perfeita para se matar e para se morrer!

− Mas fica sabendo que foi uma grande escola, a nossa, a maoista…

− Sim, pelo que vejo por aí com os teus ex-correligionários… Um caso de sucesso de promoção da literacia política e, nalguns casos, públicos e notórios, de meteórica ascensão na hierarquia dos partidos do poder, no aparelho de Estado, nas grandes empresas, nos bancos,  nas instituições europeias, etc.

Os dois amigos davam agora conta de que há muitos anos não bebiam um copo juntos… Mas que este tchim, tchim, este tilintar de copos, também tinha algo de premonitório. Como eram os dois supersticiosos, tiveram um estranho pressentimento...,  o de que não voltariam mais a encontrar-se.

− Cruzes, canhoto, afasta de mim esse cálice, irmão! – galhofou o Belmiro, para disfarçar o calafrio que sentiu pela espinha acima.

E, prosseguindo a sua linha de pensamento sobre o seu passado, quando estudante de direito, justificou-se o Belmiro:

− Aos vinte anos, somos todos revolucionários quando há que fazer revoluções… No passado, à direita e à esquerda, os revolucionários chamavam-se fascistas, comunistas, anarquistas, cada um com a sua bandeira e a sua ideologia (meia dúzia de chavões!) 
e era preciso destruir a burguesia e o Estado capitalista, na Europa nos anos 20 e 30 do séc. XX. 

− Sim, os extremos tocam-se, muitas vezes...

− Hoje, em 2018,  não temos a mesma urgência em mudar as coisas, tal como acontecia em Portugal em 1973, o ano em que nada podia continuar a ser como dantes: tínhamos a escalada da guerra colonial, a ditadura em banho maria, a crise petrolífera, o esgotamento do nosso modelo de desenvolvimento, a emigração em massa, a títímida  (mas inevitável) mida  democratização do ensino e da saúde,   os bairros de lata a crescer como cogumelos nas cidades industriais, a EFTA - Associação Europeia do Comèrcio Livre...  Andávamos em agitação permanente, pelo menos na universidade, em Lisboa, Porto e Coimbra, achávamos que tínhamos que começar a mudar as coisas pela veemência e a urgência da palavra…

− Ou pela violência das armas ?! O poder está na ponta das espingardas!, era a vossa palavra de ordem maoista… Pobres diabos, putos imberbes, que ainda não tínham dado um tiro nem sabiam manusear uma arma nem podiam imaginar o horror que é uma guerra, dentro ou ou fora de fronteiras...

− Eu, felizmente, não fiz a guerra como tu. Nem sequer fiz o serviço militar, por um bambúrrio da sorte. A guerra acabou antes.

− Tiveste mais sorte do que eu… e do que o nosso pobre Zé Nuno. Mas, tu, Belmiro, terias dado um grande herói do 10 de junho. Infelizmente, hoje serias um herói morto, com direito a nome gravado na pedra, no monumento aos mortos da guerra do ultramar... Como aquele mamarracho que foi erguido no jardim central da nossa vila... Ainda bem que estás vivo...

− E quem te disse, Tony, que eu não poderia ser hoje um herói vivo ?! Um Torre e Espada, que muito honraria a nossa terra ?!

− Os heróis também se fabricam, por mero oportunismo político,  em função dos interesses dos regimes... Vê o caso do soldado Milhões, que salvou a honra da República e do CEP, o Corpo Expedicionário Português, na I Grande Guerra... Ou, no caso da Guiné, o Marcelino da Mata... que cheguei a conhecer pessoalmente.

O António aproveitou então para enfatizar as qualidades de liderança do amigo que tinha tudo para ser um bravo soldado, um grande comndante militar,  digno dos nossos maiores:

− Belmiro, a mim que não tinha jeito nenhum para a tropa, fizeram-me alferes miliciano, comandante operacional... Tu, sim, sempre foste um líder, mais do que um chefe, desde os tempos do escutismo. Não tenho dúvidas que terias chegado a general, se tivesses ido para a Academia Militar, como chegaste a sonhar. Estou grato ao teu pai por te cortado a crista de galo…

− Meu sacana!... Tinha alinhado no 25 de Abril, disso podes estar ciente. Mas nos meus 15, 16 anos ainda cheguei a sonhar com a carreira das armas…

− Em contraciclo!... A Academia Militar estava às moscas, homem!… Depois, o militarismo era, para mim, o lado mau do escutismo. Deixaste-te seduzir pelo espírito de corpo, a unidade comando-controlo, a disciplina, o garbo, a ordem, a farda, os galões, os estandartes, a parada, a música marcial, o baile das debutantes,  a valsa, a  bellle-époque

− Não, estás redondamente enganado. O que me seduzia, na tropa, era a arte e a ciência de mandar, ou comandar!... Para servir os outros, a comunidade, o país, a pátria... O escutismo foi também uma das minhas grandes escolas, estou grato ao Baden-Powell e, já agora, à Mocidade Portuguesa… E, tu, não te esqueças que também lá andaste… Se eu fosse para a tropa, não tenhas dúvidas que queria ser o primeiro, o melhor, do pelotão… e por aí fora!

Fez-se um silêncio, algo embaraçoso. O Tony nunca contava a ninguém que também andara na "bufa"… e depois no seminário. Desviou a conversa:


− Então, o nosso querido Zé também foi parar ao ultramar, estás-me a dar uma novidade.

− Falávamos pouco da tropa… Só sei que andou pelo Índico, a patrulhar a costa moçambicana. Deve ter comido muito camarão moçambicano que era (e é) o melhor do mundo…

− Nada mau, viver numa corveta ou coisa parecida, sempre era melhor do que andar no mato, como a "tropa-macaca".


− O que é isso de "tropa-macaca" ?

− A que andava a penantes, no mato... Os "infantes", os atiradores...

Na realidade, o Zé Nuno tivera mais sorte do que o António Mota. O Belmiro ainda se lembrava dele, aos fins de semana, fardado de branco, impecável, oficial e cavalheiro, um "príncipe encantado" para as garotas da terra.

− O melhor da Marinha era a farda e o bar dos navios − acrescentava, irónico, o Tony.

− O Zé falava muito pouco ou nada desses tempos da guerra do ultramar. Andou por lá, nunca deu um tiro, a não ser nos exercícios navais. Mas falou-me, uma vez, maravilhado, da viagem do navio-escola "Sagres" ao Rio de Janeiro,  recebido em delírio po mulherio...


E mais acrescentou o Belmiro:

− Sei que, quando cá veio de férias, ainda em finais de 1973, por altura do Natal, trouxe uma cassete com as famosas canções do Niassa, que estavam proibidas…

− Nessa altura, como sabes, estava eu na Guiné, só ouvi as canções do Niassa uns anos depois. Mas também havia uma espécie de cancioneiro da Guiné...

− Eh!, pá, da nossa geração poucos escaparam, tirando a malta que andava na universidade e foi adiando o serviço militar, como eu… De exame em exame, lá fomos dobrando o cabo da Boa Esperança…

Naquele tempo, poucos foram os condiscípulos do Belmiro que continuaram a estudar para além da 4ª classe ou do 5.º ano do liceu.

− Ah!, e não te esqueças da malta que deu o salto – disse o Belmiro, que se lembrava ainda de uma leva de jovens do concelho que fora numa carrinha de um passador e que tivera um acidente grave já a caminho de Bordéus…

− Não estava cá quando isso foi… França, Alemanha, Suécia, Canadá, América, Brasil (antes da ditadura militar de 1964)… eu sei lá para onde a rapaziada foi parar!... Muitos à procura de melhor vida, não tinham qualquer consciência política, mas a verdade é que mandaram o  país à merda, o país e os gajos que cá mandavam...

− Desertor, que me lembre, não conheci nenhum na nossa terra. Mas faltosos e refratários foram bastantes. E olha que não eram filhos de agrários. O tipo do stand de tratores e máquinas agrícolas, um comerciante que veio de fora e que enriqueceu depressa, esse, tratou logo, na devida altura, de pôr o filho mais velho a bom recato na Suécia ou na Alemanha. Lembras-te dele? Ficou por lá, casou com uma loura, da Europa  do Norte... Não tenho mais notícias dele...

− Tu é que nunca pensaste em dar o salto!... Eu, também não, porque estava no seminário…

− Acredita que não, foi coisa que nunca me passou pela cabeça!... Se a Pátria precisasse de mim, como soldado, eu lá estaria na primeira fila... Não sou menos patriota do que tu, lá por não ter feito a tropa e a guerra do ultramar. O meu querido paizinho, esse, sim, ainda pôs a hipótese de me pôr na fronteira se as coisas corressem para o torto. Era o plano B, mais para tranquilizar a minha mamã do que para valer… 


Felizmente, para o Belmiro (e a família), funcionou o plano A: ele foi um menino bem comportado, pelo menos o q.b., não se deixou apanhar pela ramona, muito menos pela PIDE/DGS,  nunca chumbou, e depois… veio o plano C, que não estava previsto pelo pai dele nem pelos  seus amigos da situação: o 25 de Abril…

− Grande sortudo!− exclamou o Tony − A sorte protege os escuteiros… E é caso para dizer, uma vez escuteiro, escuteiro para sempre…


E aqui convém esclarecer o leitor que o pai do Belmiro não era um tipo qualquer. Era um conceituado advogado, mais tarde autarca e dirigente da ANP, a Ação Nacional Popular, a nível local. Tinha sido o próprio Marcelo Caetano, seu antigo professor, a integrá-lo nas hostes da União Nacional nos anos 40, quando era ministro das colónias.  

− Não tinhas alternativa: ou te integravas ou eras marginalizado...

Como o pai do Belmiro não era ribatejano, mas lisboeta, só passou a dirigir os destinos da autarquia local em 1969. O presidente da câmara municipal até então tinha sido um médico veterinário, da linha dura do regime. Pertencera, dizia-se,  à Legião Portuguesa e havia combatido, quando jovem, na guerra civil de Espanha, ao lado dos franquistas.

− O meu pai era o típico advogado de província, que vem de fora, como os médicos, que precisa de todos, não se quer incompatibilizar com ninguém, a começar pelos senhores da terra… Mas chegou, viu e... venceu!... Ou convenceu!... Casou cá, com uma menina prendada, herdeira de um belo patrimónioi, que não fez mais nada na vida do que ser boa esposa e melhor mãe... Eu fiquei com o escritório do meu pai e com alguns clientes (se queres que te diga, os piores, os pobretanas, os caloteiros)...

− Belmiro, não levas a mal se eu te disser que foste, apesar de tudo,  um privilegiado!

− Não tenho culpa de ter nascido numa família de classe média alta, politicamente de direita, se bem que republicana e liberal (também sei pouco sobre os meus antepassados, quer alfacinhas, quer ribatejanos)… Mas, atenção, o meu pai era, em termos de peso político, um segunda ou terceira linha…

− Sem querer ofender a memória do teu pai, que Deus já lá tem, dizia-se no meu tempo que havia quem lhe metesse cunhas… E ele gostava de mostrar que tinha prestígio e poder, ou pelo menos que se movia com relativa facilidade nos círculos de poder: os governadores civis, os deputados da Nação, a Praça do Comércio, o Palácio de São Bento...

− Sim, sei que lhe fazia bem ao ego. Mas ele não mandava nada ou muito pouco.  Era um homem bom, afável, tolerante, prestável, generoso, mais depressa capaz de ajudar os de fora do que os da casa… Cunhas para livrar alguém do ultramar, isso, não, posso garantir-te, juro mesmo pela alma dele… Agora que as havia, havia, as cunhas... É uma instituição, é coisa que existe em todas as guerras e em todos os regimes...

− Fiz três anos de tropa e de guerra, por isso sei do que falas. Não direi que me impressionou ou intrigou, já estava à espera…mas nos sítios por onde passei, a começar por Mafra (ou Máfrica, a fábrica de oficiais para a guerra de África, como a gente lhe chamava) nunca encontrei nomes sonantes, filhos-família... 
Nem sequer afilhados. Não sei se os filhos da elite da época foram à guerra, mas se foram não foi como "tropa-macaca", como eu. Teriam eventualmente boas especialidades, tinham a força aérea e a marinha, a reserva naval, como alternativa ao exército… De facto, não éramos todos iguais, Belmiro, se é isso que querias saber.

− Tony, repara, o que já lá vai, lá vai... Éramos todos putos quando rebentou a guerra em Angola… Tu e eu cantámos, em muitos acampamentos, o hino "Angola é nossa!", para além do "Lá vamos cantando e rindo"... Ainda te lembras da letra?

− Lá vamos, cantando e rindo, / Levados, levados, sim, /  Pela voz de som tremendo /  Das tubas, clamor sem fim... (Julgo que a letra era do Mário Beirão, um poeta menor.)

−  Bravo!...

− Mas a guerra, com as suas tubas e turbas, não sobrou para ti, por exemplo, sobrou para a mim, para o Zé… e outros, da nossa terra, da nossa geração, que não tiveram a tua sorte. E muitos por lá ficaram… Só do nosso concelho foram para uns vinte e tal.

− Reconheço, Tony, que o país tem uma dívida de gratidão, muito grande, para com vocês, os ex-combatentes.

− Dívida de gratidão? É uma figura de retórica, desculpa lá. Em todas as épocas, em todas as guerras, essa dívida fica por saldar. Revolta-me o cinismo com que hoje se fala dos coitadinhos dos ex-combatentes… Vamos todos parar à vala comum do esquecimento, mais dia menos dia… O resto é o folclore do 10 de junho onde nem sequer há desfiles de ex-combatentes, porque são todos uns velhadas, que já não podem, coitados, com o rabo entre as pernas!


− Desculpa lá, tens razão, embora estejas a ser cruel, muito cruel, para com os teus ex-camaradas… E, para mais, foram vocês os coveiros do Império. Foi um ciclo de quinhentos anos que se fechou… A história vai lembrar os heróis, os marinheiros aventureiros que foram os primeiros na terra e no mar, os descobridores, os fundadores do Império, os vice-reis das Índias, os Gamas, os Albuquerques, não os coveiros... É sempre assim, mano!

− Sem honra nem glória, Belmiro! Pelo menos é o que dizem os revisionistas da história, bem como os saudosistas do Império…


− Tony, se for preciso, eu assino por baixo… Mas já que estás aqui, deixa-me confessar-te a minha, nossa, estupidez juvenil… Eu fui dos que, logo a seguir ao 25 de Abril, ainda gritei, no cais da Rocha Conde Óbidos, a palavra de ordem do meu movimento: “Nem mais um soldado para as colónias!”… Mas acho que era preciso alguém gritar contra a guerra, a favor da paz!... E pôr fim, sobretudo, àquela merda!

− Eu regressei só em setembro de 1974 e sei o mal que isso nos fez, ao moral da tropa que lá ficou a aguentar as pontas... Mesmo assim as coisas correram, aparentemente, melhor do que em Angola e em Moçambique. Não havia colonos na Guiné, o único problema eram os homens de lá que combateram ao nosso lado, os nossos camaradas guineenses. Os meus fulas, por exemplo, de que o Amílcar Cabral não gostava nada. Infelizmente, eles escolheram o cavalo errado… Chamavam-lhe os "cães do colonialismo"... Como se fossem mercenários!...

− Tony, era inevitável… Há sempre excessos, contradições, efeitos perversos... É próprio da ação humana, é uma lição da história… Vê as perversões do cristianismo, que era uma ideologia libertadora…

− Era ou é ?

− Passo em frente, não discuto religião contigo... Mas, historicamente, tu sabes bem que foi.

− OK, são as nossas regras, não falemos de religião... Mas, já que estamos em maré de confidências, deixa-me dizer-te das mágoas que trouxe da guerra... Uma delas nunca  a contarei aos meus filhos, conto-a a ti que és meu mano...

O António pediu então mais uma taça de branco, que bebeu de um trago, e contou:

− Numa das nossas incursões a sul do Morés, que era uma região que a propaganda do PAIGC considerava como "área libertada", fizemos um "golpe de mão" a uma tabanca, de população predominantemente balanta... Como sabes, os balantas eram os homens do mato, e foram a "carne para canhão" da guerrilha do Amílcar Cabral... O meu grupo de combate foi o primeiro a entrar na povoação, onde o alvoroço já era grande, com porcos, galinhas, cães, crianças, mulheres e velhos a fugir em debandada... Por detrás de um bagabaga (um morro de terra, feito pelas formigas), vejo um atirador isolado, com uma Simonov, uma espingarda russa, semiautomática, que em geral equipava as milícias do PAIGC... A arma encravou-se-lhe ou então o atirador entrara em pânico, desiquilibra-se, o corpo fica parcialmente a descoberto, justamente na altura em que lhe acerto com curta rajada  no peito e no ombro. 

Aqui o Tony fez uma pausa, para retomar o fôlego:

 Continuei a correr com os meus homens... Fizemos de imediato um balanço dos "estragos" provocados: para além dos mortos e prisioneiros, tudo população civil, capturámos armas, arroz, documentos; não tivemos uma única baixa...Deparei-me então, junto do bagabaga, com o puto da Simonov, caído por terra: era um "blufo", balanta, adolescente, que não teria mais do que 17 anos, a idade do meu irmão mais novo que, infelizmente, já faleceu, com uma neoplasia, penso que não o terás chegado a conhecer, estvas nos Açores quando ele morreu... Esvaía-se em sangue, sem um ai nem um ui... Eu tinha acabado de matar um homem, o primeiro pelo menos a quem via a cara... Senti-me terrivelmente angustiado. Não tive coragem de lhe dar o tiro de misericórdia. Pedi ao meu guarda-costas, o Sori Jau... 

E o António concluiu, quase em surdina:

− Às vezes ainda hoje tenho pesadelos, e a cara do puto da Simonov, impassível, entra pelo ecrã dentro da minha televisão... E, por detrás dele, a espreitar por cima do ombro, o fantasma do meu irmão, cadavérico....

***

O Belmiro deu um abraço emocionado ao Tony depois do seu relato da cena da morte do puto da tal Simonov.

− Tony, é a primeira vez, nestes anos todos, que ouço alguém contar-me uma cena de guerra na primeira pessoa do singular!... Mas guerra é guerra, como é costume dizer-se. E, numa situação de combate, reage-se por reflexos, por instinto de sobrevivência. Foste também treinado para isso. E eu não faria melhor do que tu, se estivesse no teu lugar. Atirava a matar, sem apelo nem agravo.

− Mas era um puto, Belmiro!


− Afinal, com a idade de alguns dos teus soldados que também foram mortos em combate. E alguns, pelo que me contaste, também foram fuzilados, fria e barbaramente, a seguir à independência.

− É verdade... mas sabes o que ainda hoje, ao fim destes anos todos, me perturba, e às vezes me tira o sono?

− Sim?!...

− É que 
aquele (o golpe de mão sobre a aldeia, ou tabanca em crioulo,) não era o objetivo da operação... A missão era localizar e destruir uma "barraca" (um acampamento temporário) da guerrilha, a sul de uma base no Morés, Sara Sarauol, no centro do país, se a memória não me atraiçoa... Não sei se estás a ver o mapa da Guiné...

− Para mim, é chinês, mas continua...

− A operação foi mal planeada e pior conduzida, pelo major de operações, a partir de uma avioneta (que funcionava como PCV, quer dizer Posto de Comando Volante, isto ainda antes da entrada em cena  dos mísseis Strela, de que te já te falei...) Houve uma falha (e já não era a primeira vez) nas comunicações terra-ar. Ficámos por nossa conta, com um guia que conhecia mal o terreno... Por azar, e já no regresso, deparámos com aquele pequeno núcleo populacional, desarmado ou mal armado...

− Mas houve resistência!?...

− Fraca, a população deu conta da presença tropa e começou logo a debandar ainda antes dos primeiros tiros... 'Tuga, tuga!'... O puto da Simonov deve ter ficado para trás... com mais alguns homens válidos... que deviam ser milícias (eles também tinham milícias). Depois, como deves imaginar, não tive mãos nos meus homens, fizeram o que tinham a fazer... Nós, e mais outro grupo de combate que fizemos o golpe de mão, com o resto da nossa companhia a cercar parte do objetivo, retirámos rapidamente... deixando atrás alguns mortos da população e as palhotas a arder... Apanhámos o que pudemos: algumas mulheres, crianças e velhos, e armas ligeiras que deviam estar entregues ao chefe da tabanca para a autodefesa... O regresso foi um sufoco, com apoio de helicanhão... e  de uma pachorrento caça-bombardeiro T-6...

Os dois amigos desciam agora, em silêncio, a rua do Colete Encarnado que ia desembocar ao centro da vila. O António tinha o carro no parque de estacionamento fora do centro histórico, no sentido contrário do cemitério (que ficava a norte). Ainda ia jantar com o filho, mais novo, que estudava em Lisboa.

Passaram pela antiga casa, solarenga, da família do Zé Nuno, agora transformada em biblioteca municipal e centro cultural. Mas já tinham passado, na parte alta, pela antiga casa dos avós e dos pais do António, uma casa modesta, de piso térreo, agora restaurada. Tinha sido comprada há uns anos por um casal de emigrantes que vivia no Luxemburgo. 

− Gente da terra, trabalhadora... − esclareceu o Belmiro.

O Tony já não tinha mais raízes, na vila, a não ser memórias, depois da venda, há largos anos,  da casa onde nascera, e que fora erguida pelo avô, campino de uma casa agrícola da região. A avó era avieira, nascida na Praia da Vieira, tendo vindo com os pais para a faina da pesca no Tejo, no tempo da miséria. Por seu turno, o seu irmão mais novo também tinha morrido cedo. Em suma, já não tinha família por aqueles lados, e os seus filhos nunca chegaram a fazer por lá grandes amizades, eram os dois nados e criados no Alentejo.

− Belmiro, és aqui o meu último amigo e irmão... Quero ver se,  no Dia de Todos os Santos, daqui a seis meses, volto cá para pôr uma flor na campa dos meus pais e avós e do meu mano. Combinamos uma almoçarada no "Afonso", se tiveres disponível...


− Ainda é aquele que faz a melhor sopa de bacalhau dos campinos, de todos os restaurantes da vila... Mas também pode ser um peixinho do rio... Infelizmente sável não há nessa época...

A antiga rua do Colete Encarnado tinha sido rebatizada, depois do 25 de Abril... Era agora a rua das Forças Armadas...

− Que raio de nome! É homenagem a quê ou a quem ? Foram as Forças Armadas que fizeram o 25 de Abril?

− Mas também fizeram o 28 de Maio... e o 10 de Outubro... − ironizou o Belmiro.

O Tony também concordava com a opinião do amigo, que vivia na terra e que conhecia melhor do que ninguém as misérias e grandezas  da vida local. De facto, parecia que, aqui como em todo o lado, as comissões de toponímica municipais eram uma cambada de burocratas que iam atrás das agendas partidárias, eram ignorantes da história local e nacional e sobretudo revelavam  uma miserável insensibilidade sociocultural…

− Limparam as ruas todos, becos, travessas, praças, pracetas… Ficámos amnésicos, Tony. Perdemos a memória da nossa história local. Até o Beco do Quebra-Costas  tem agora o nome de um professor qualquer de Lisboa que era antifascista, e que nunca cá pôs os pés nesta terra...

− Santa incultura geral, Belmiro… Uma tristeza!...


O antigo Solar do Marquês de Marialva, um belo edifício do início do séc. XX, exemplar interessantíssimo da arquitetura regional, e de que o Zé Nuno tanto gostava, acabaria, há uns dez anos atrás, por ser vítima do impiedoso e cego camartelo camarário.

− Sem dó nem piedade! − lamentou o Belmiro. − Nem sequer classificaram o edifício. Hoje é um complexo de apartamentos de luxo, propriedade de gente que nem sequer é da terra. Estão a gentrificar a nossa terra, Tony!

Ainda pararam para beber uma bica, no café que o Zé Nuno gostava de frequentar, e onde costumava parar a malta do grupo de forcados, agora em decadência. E a conversa voltou de novo à tropa e à guerra:

− Costumo dizer, Belmiro, que a Guiné foi a rifa que me saiu em sorte... Só não ganho o raio do Euromilhões!... Mas, pensando bem, não me posso queixar. Pelo menos estou vivo. Podia ter dito que não... Mas será que tinha condições para decidir em consciência ? Para mais, face a um Estado autoritário e repressivo como o nosso, na altura?

− Não, não tinhas alternativa. A deserção era, e é, um crime grave. Ponho-me no teu lugar, eras o indivíduo, só, desamparado, contra o Estado, todo poderoso.

− Foi a rifa que me saiu na história. Como sabes, na história não há "ses"!... Ah!, se eu tivesse nascido dez anos antes, ou dez anos depois!... Não me posso queixar, ou não me adianta, não posso alterar agora o curso da história, da minha e a dos outros…

− Tony, há muitas formas de heroísmo, não é só na frente de batalha... Mas os desertores, em geral, nunca são tratados como heróis...

− Temos sempre dificuldade em abordar o problema dos refractários e dos desertores... Sobretudo destes últimos, que afinal foram em número ínfimo, tanto quanto sei. Já os faltosos e refractários podemos falar em um quinto dos homens em idade militar. Quer dizer, da malta da nossa escola, um em cada cinco cavou para o estrangeiro antes da sua convocação entre os 18 e os 20 anos.

− Refratários... ou faltosos ? Tenho ideia, como jurista, que há uma diferença semântica e concetual... Mas não tinha  ideia desses números... 

− Não faço distinção: foram todos os que faltaram à tropa...

− Sim, Tony, a guerra era impopular... Apercebi-me disso quando entrei na universidade...

− Olha, eu acho que foi o salve-se quem puder − concluiu o Tony. − À boa maneira portuguesa. Somos uns safados... O Salazar deixou-nos uma batata quente que rebentou na boca do delfim mal amado, o Marcelo Caetano. Para lá do impasse militar e do desastre político, tínhamos um problema demográfico bicudo. Já não tens braços para segurar a G3 e ir fazer a guerra. Daí o crescente recurso à tropa de 2ª linha, se quiseres, os guineenses do recrutamento local (e nos outros territórios,os angolanos, os moçambicanos...).  Eram bons combatentes, e sobretudo mais baratos, mas não falavam português, ou falavam muito mal, pelo menos os guineenses… Como se poderiam sentir portugueses ? Nem sabiam onde ficava Portugal no mapa!... E a verdade,  nua e crua,  é que só muito tardiamente, com Spínola,  passaram a ser tratados como portugueses...

− Sim, muito me contas, nunca tinha pensado nisso.

− O PAIGC tinha o mesmo problema… Estava exangue, conheci guerrilheiros em 1974 que só falavam francês, nascidos ou criados no Senegal... A guerra foi um modo de vida, para alguns, de um lado e do outro... Foi um modo de vida para alguns milicianos que se tornaram capitães... De aviário, como a gente dizia... Provetas...

− Confesso, Tony, que na altura, a seguir ao 25 de Abril, queríamos era apressar o fim da guerra. A todo o custo, doesse a quem doesse, incluindo a tropa e os civis espalhados por Angola, Guiné e Moçambique. Era militar, política, diplomática, demográfica  e economicamente impossível prosseguir a guerra a partir de 1974. Ninguém estava mais disposto a perder três anos da sua vida, e muito menos a vida, por uma causa historicamente perdida… Há limites para o patriotismo...

− Sim, tu foste dos que gritaste "Nem mais um soldado para as colónias"... Estavas a ser coerente, embora eu não pudesse de maneira nenhum estar de acordo contigo nessa altura. Em agosto de 1974 eu passei momentos terríveis a tentar tranquilizar os meus soldados, antes de dissolver a companhia. Vi-me embora em setembro e eles, coitados, lá ficaram entregues à sua sorte... Com os ordenados pagos até ao fim do ano... Para serem fuzilados, alguns, sobretudo os graduados, mal os novos senhores da guerra nos apanharam pelas costas...


− Se calhar eu estava a ser também inconscientemente egoísta. Eu não queria apanhar com as sobras do Império, com os estilhaços do desmoronamento do império... A merda do império!... A conhecê-lo, a ir para a guerra, gostava de ter sido no seu apogeu, mas aí eu ainda não tinha nascido. Nem sei se o império chegou a ter algum momento de apogeu... Em boa verdade estava-me nas tintas para a sorte de quem ainda lá estava, como tu e o Zé Nuno, e mais milhares e milhares de soldados, metropolitanos e do recrutamento local, a par de centenas e centenas de milhares de civis, brancos, mestiços e negros, que temiam pelo seu futuro quando fosse arreada a bandeira portuguesa.

- Acredita, Belmiro, nem nós nem o PAIGC estávamos dispostos a voltar a combater... Ouvi eu da boca de alguns comissários políticos... Seria uma tragédia se as negociações entre os políticos tivessem falhado, em Londres e depois em Argel... Agora, não me perguntes se não teria havido outras soluções... Hoje é fácil brincarmos aos jogos de guerra... E não falta aí gente, nas redes sociais,  veteranos de guerra e outros, a destilar veneno contra o 25 de Abril e a descolonização. 

− Eu não teria moral nem muito menos imaginação para impor um outro fim ao nosso fim da história colonial... Mesmo que esse fim não me agradasse, como não me agradou... vistas hoje as coisas a esta distância.

− Todos ou quase todos concordam que, idealmente, as coisas poderiam ter tomado outro rumo. Sabemos como começa uma guerra, nunca saberemos como ela acaba... No caso de Angola, por exemplo, ela só acabou 40 anos depois e o balanço é aterrador, quase apocalíptico. Na Guiné, tirando os meus soldados fulas, toda a gente festejou o fim da guerra... 

- Tony, fomos todos joguetes nas mãos dos russos e americanos, da Nato e do Pacto de Varsóvia. Estávamos no auge da guerra fria e, cá dentro, à beira de uma guerra civil, no verão quente de 75.

− Eu não tenho a mesma perceção… Seria impossível ter uma Cuba às portas da Eur opa, ou melhor, em plena Europa. Para mais, num país da NATO… O Salazar tinha isto bem armadilhado. E a Espanha do Franco ainda ponderou intervir, ao que parece, para evitar o risco de contágio.  Os nossos revolucionários eram de opereta. As nossas revoluções foram sempre de opereta, desde a restauração, em 1640.

− "Revolução dos cravos"?!... − exclamou, em tom de ironia, o Belmiro.− Mas, olha, também eu, maoista,  fui na onda do papão do social-fascismo... Como eu gostava então do palavrão!... Mas no 25 de Novembro eu estava ao lado do Eanes...

 − ... Fomos todos ingénuos, mas bem ou mal escrevemos o nosso capítulo da história. Eu, por mim, procuro tranquilizar a minha consciência do seguinte modo: fui para a guerra, não desertei, queria continuar ter o direito de viver no meu país, fiz a guerra, na esperança de que os políticos do meu país encontrassem, a tempo,  uma solução (política) para ela...

− Daqui a meia dúzia, anos, em 2026, estamos a debater o 1.º centenário da Ditadura Militar e do Estado Novo. E, se calhar, os portugueses vão confirmar o Salazar como o estadista português mais importante do séc. XX.

− Espero bem que não... Mas a verdade é que ainda hoje o seu fantasma paira pelas nossas cabeças, tal como o do Marquês de Pombal, mesmo quando os mais novos já não sabem sequer quem foram esses homens... O Salazar esteve em cena quase 50 anos, atravessando terríveis períodos do nosso tempo, da crise de 1929 à Guerra Civil de Espanha, da II Guerra Mundial à guerra colonial…

− Foi o "pai da Pátria", o que nos livrou da II Guerra Mundial, como dizia o meu pai lá em casa. E, na verdade, foi, quer gostes ou não.

−... Eu, acho, Belmiro, que ainda não o matámos nem o enterrámos de vez.

E foi com esta conversa melancólica que os dois amigos se despediram. Pela última vez… Passados uns meses, o Tony morreria num brutal acidente de automóvel na A2, quando regressava de Lisboa, a caminho do seu monte no Baixo Alentejo. Nunca se soube a causa de morte, por vontade da viúva e dos dois filhos... 


Ao Belmiro, que ainda tentou, em vão, obter uma cópia do relatório da autópsia, chegaram versões contraditórias: sono, AVC, morte súbita, suicídio?!... Parece que o veículo, que circulava na faixa direita, foi bater de lado nos rails de proteção, e andou dezenas e dezenas de metros descontrolado, a varrer as faixas de um lado ao outro... Felizmente não havia mais carros a essa hora, da noite... O Tony terá tido morte imediata.

O Belmiro inclina-se mais para a hipótese de acidente por despiste, devido a cansaço e  a sono... O Tony amava demais a vida e a família e o Alentejo, nunca lhe falara em suicídio...

O corpo, depois de libertado, foi cremado. As cinzas repousam agora junto à "oliveira da paz", que o Tony replantara no seu monte, vinda do Alqueva... Era centenária. Os filhos e a viúva cumpriram assim a sua última vontade, mas só em parte: ele deixara escrito que as suas cinzas deveriam ser espalhadas por três sítios que ele amou: a sua terra natal, o monte no Alentejo e "o rio Geba, cuja água ele bebera"... 

Em alternativa, lançaram parte das cinzas no Cais da Rocha Conde Óbidos numa cerimónia restrita, apenas com a família mais próxima e alguns amigos íntimos, entre eles o Belmiro. Dali tinham partido, de barco, centenas e centenas de milhares de soldados para as guerras coloniais (Índia, Angola, Guiné, Moçambique)... O gesto era simbólico: o Tony  ainda fora  de barco e regressa já de avião,  nos TAM - Transportes Aéreos Militares.

O Belmiro ainda chegou a abordar um elemento influente Comissão de Toponímia Municipal, um jovem arquiteto, vereador da câmara municipal, membro influente de um dos partidos do arco do poder quanto à hipótese de ser dado o nome do dr. António Mota a um novo arruamento a abrir em breve (ou equipamento escolar a inaugurar no futuro), nos arredores da vila, já na zona extra-muros. A resposta não podia ser mais desencorajante , para não dizer desconcertante:

− Caro doutor, como sabe tão bem como eu, a comissão é meramente consultiva, dá pareceres, quem atribui os nomes é a Assembleia Municipal... Faça-me uma proposta, fundamentada, por escrito, mas vai ser difícil...

− Difícil ?...− interrompeu o dr. Belmiro Mateus.

− O dr. António Mota era nosso conterrâneo, e depois ?... Fez a guerra do ultramar, mas não foi reconhecido como herói. Tem uma cruz de guerra, a Torre e Espada, ou coisa parecida ? Não tem. Tem alguma comenda ? Não tem... Como sabe, temos muitos candidatos e poucos novos arruamentos ou equipamentos para homenagear os nossos conterrâneos ilustres... E depois a guerra do ultramar, felizmente,  já está esquecida, é uma coisa do século passado... Já temos, por outro lado, uma praceta dos Heróis do Ultramar, numa sede de freguesia concelho,  construímos há dois ou três anos um monumento aos combatentes do ultramar, e no nosso cemitério há um talhão da Liga dos Combatentes... Acho que a nossa terra já fez o que tinha a fazer pelos nossos bravos antepassados que andaram, e alguns morreram, na I Grande Guerra e na Guerra do Ultramar...E, olhe, eu nem sequer sou desse tempo!... E depois, se quer que lhe diga, os meus avós e os meus pais são retornados, deixaram lá tudo em Angola,  as economias de uma vida... Eu já nasci cá, mas pelo que eles me contaram houve "heróis do ultramar" que nem um tiro deram... Doutor, desculpe a minha franqueza!...

O dr. Belmiro Mateus estava quase a explodir de raiva, mas conteve-se... Percebeu onde é que o jotinha queria chegar: o António Mota era um "outsider", um desalinhado, não fazia parte do sistema, "não comia na mesma gamela", nunca tinha sido autarca, presidente de junta de freguesia, presidente da câmara, presidente da Assembleia Municipal, vereador, dirigente partidário, cge de gabinete, deputado, não chegara sequer a general, nem muito menos era um herói... nem se deixara matar!

Sim, por que raio é que deveria ter um nome de rua na sua terra ?! Ele, o Zé Nuno e tantos outros conterrâneos, centenas, anónimos, que afinal foram os coveiros do Império ?!...


Luís Graça (2018), Revisto em 5/2/2024 
 
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 5 de fevereiro de 2024 > Guiné 6174 - P25137: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (17): Três amigos, três destinos - Parte I

(**)  No ano da graça de 1936, o germanófilo  Luís Moita apelava aos microfones da Emissora Nacional: "Rapazes, não cantem o fado!". Os rapazes eram a "Mocidade Portuguesa" (MP) que acabava de ser criada, no âmbito das reformas da "educação nacional", decretadas pelo poderoso ministro A. F. Carneiro Pacheco (1887-1957).

Organização de tipo miliciano, a MP visava o enquadramento político-ideológico da juventude, era de inscrição obrigatória para todos os estudantes do ensino primário e secundário, e potencialmente mobilizava todas as actividades circum-escolares: a educação cívica, o lazer, os cuidados de saúde, a preparação física, a formação política e militar, etc.

"Canção de vencidos", "cocaína de Portugal", o fado era então visto por certas personalidades da direita integralista e nacionalista (incluindo escritores e musicólogos) como um "herança maldita vinda do ultramar" (referência ao lundum, "avô do fado", que nos terá chegado do Brasil, com o regresso da corte de D. João VI), subproduto de uma "raça abastardada" e que entre nós se havia expandido justamente "nos bairros onde, há trinta anos ainda,nos finais da monarquia, e princípios da república,  albergavam o vício, o crime e a vadiagem" (sic!), em contraste com as "canções alemãs, fulgurantes e alegres" das cervejarias de Munique e dos Wandervogel (Moita, 1936, pp. 217-218) 

PS - Os Wandervogel integravam-se naquilo a que se poderia chmar os Grupos de Juventude do Nacionalismo Alemão, surgidos no princípio do séc. XX. Não comfundir com a Juventude Alemã hitleriana.

Guiné 61/74 - P25140: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte III: 45 crianças, refugiadas (e provavelmente judias), polacas, alemãs, austríacas e uma russa, embarcam em agosto de 1941 no "Mousinho" a caminho da América



Legenda; "Depois de alguns dias de permanência em Lisboa e na Parede, partiram para a América do Norte 45 crianças, polacas, alemãs, austríacas, e uma russa, fugidas aos horrores da guerra. A foto mostra-nos algumas das mais pequeninas refugiadas no momento em que embarcavam a bordo do "Mousinho".






Legenda: "Um aspeto da entrada para o 'Mousinho' das 45 crianças refugiadas que há dias chegaram a Lisboa e seguiram para a América"



1. O drama dos refugiados de guerra é de ontem e é de hoje, é de todos os tempos, de todas as guerras.  Por Lisboa, última porta para a liberdade, passaram muitos refugiados durante a II Guerra Mundial.  Não se sabe como é que estas crianças chegaram a Portugal. O mais provável é terem sido acolhidas pela Comunidade Israelita em Lisboa, que mantinha uma cantinha económica, um albergue e um hospital... E entre os membros ilustres e solidários dessa comunidae, destaque-se o avò do nosso querido amigo Pepito (1949-2012), o eng. Samuel Schwarz (1880-1953), e irmáo do nosso João Schwarz da Silva, que vive em Paris e é membro da nossa Tabanca Grande.

Orfãs ?  Muito provavelmente judias (a avaliar pelo fenótipo de algumas). A "Vida Mundial Ilustrada" omite essa informação, não por  razões éticas ou de segurança, mas mais provavelmente por imposição da omnipotente e farisaica censura do regime... 

Sabemos que o regime de Salazar teve dois pesos e duas medidas em relação aos judeus. Por exemplo, em relação aos judeus com nacionalidade portuguesa, sefarditas, ou seus descendentes, na Holanda, nos Balcãs, na Turquia, na África do Norte..., muitos poderiam ter sido salvos... e não o foram...

Nesta foto, as crianças parecem  estarem  enquadradas por elementos da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), antecessora da PIDE (Polícia Internacional e Defea do Estado)...

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Notas do editor:

2 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25128: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte II: embarque de tropas expedicionárias para os Açores, em maio de 1941

29 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25120: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte I: embarque de tropas expedicionárias para Cabo Verde, em junho de 1941.... "Partiram alegres e confiantes"...

Guiné 61/74 - P25139: Parabéns a você (2244): José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Os Maiorais), (Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70)

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Nota do editor

Último post da série de 4 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25133: Parabéns a você (2243): Cap Inf Ref José Belo, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2381 (Os Maiorais) (Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70)

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25138: Notas de leitura (1664): "Dicionário de História da I República e do Republicanismo", coordenação geral de Maria Fernanda Rollo, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, edição do Centenário da República, Assembleia da República, 2014 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
No âmbito das comemorações do Centenário da República, a Assembleia da República editou um dicionário de história da I República onde se inclui um artigo sobre a vida da Guiné em tal período, assinado por Célia Reis. A investigadora recorda a alvorada tumultuosa do republicanismo na colónia, os conflitos em que se envolveu o primeiro governador republicano, Carlos Pereira, os conflitos entre Teixeira Pinto e a Liga Guineense, a nova organização administrativa, a importância do comércio alemão até à Primeira Guerra Mundial, a que se seguiu a crescente influência portuguesa, logo dada por António da Silva Gouveia, que terá funções políticas nos órgãos de soberania em Lisboa; mais refere a autora que os sucessivos insucessos das sociedades agrícolas, vinham com muitos sonhos e com pouco sentido das realidades; a colónia intensifica a exportação do amendoim e das oleaginosas e destaca-se uma figura de governação durante este período, Vellez Caroço, queria fazer da Guiné o que Norton de Matos lançara bases em Angola. Dir-se-á que não há nada de inovador no texto, certo é que está muitíssimo bem arrumado e não esconde que a Guiné marcava passo, não havia meios financeiros e o pessoal político vinha para se amanhar.

Um abraço do
Mário



A Guiné e a I República

Mário Beja Santos

O "Dicionário de História da I República e do Republicanismo", com coordenação geral de Maria Fernanda Rollo, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, edição do Centenário da República, Assembleia da República, 2014, acolhe no seu II volume um artigo de Célia Reis sobre a Guiné republicana. Abre o trabalho com a evolução política da colónia designadamente a partir da definição das fronteiras em 1886, refere as ininterruptas rebeliões das diferentes etnias, em particular as do litoral, contestando o imposto palhota que era encarado como o principal fator do reconhecimento da soberania portuguesa. É um período de campanhas que levou a que a administração guineense se mantivesse essencialmente militarizada.

O ideal republicano era difuso, com a chegada do 5 de Outubro de 1910, houve mudanças de posições mas também recalcitrantes, a proclamação do novo regime teve lugar no dia 10, quando se arvorou o novo estandarte. A 23 de outubro chega o primeiro governador republicano, Carlos de Almeida Pereira, Tenente da Armada, viu-se envolvido em múltiplas contendas, deixa o seu nome ligado ao derrubo das muralhas que cercavam Bissau. O Partido Republicano começou a sua organização local, surgiu a Liga Guineense, cedo começou a divisão política, logo patente na eleição de deputados de 1911, através de processos habituais de corrupção e de compra de votos. Em 1916, Bolama e Bissau voltaram a ser concelhos. Antes, porém, iniciou-se uma fase de conflitos e sublevações que levaram à intervenção do Chefe de Estado-Maior Teixeira Pinto, entre 1913 e 1915, deixou a classe política dilacerada, a Liga Guineense opunha-se aos métodos usados por Teixeira Pinto e aos castigos impostos aos Grumetes de Bissau e aos seus parentes Papéis. A Liga acabou dissolvida, continuou a contestação de Cabo-Verdianos e Grumetes a Teixeira Pinto e a Abdul Indjai. Ainda hoje permanece na penumbra as razões principais sobre tal confronto, mais recentemente René Pélissier admitia a hipótese, até então não explorada pela historiografia, de uma movimentação dos alemães em conjunto com os Grumetes e os Papéis ou mesmo na influência dos franceses, mas documentação comprovativa não há.

A Primeira Guerra Mundial teve reflexos indiretos na Guiné, a opinião pública em Bissau e Bolama manifestava-se pró-alemã, enquanto o novo governador, Manuel Maria Coelho, pareceu estreitar relações com os franceses. Seja como for, foi proibida às casas alemãs a venda de armas e mobilizaram-se as embarcações de captagem que lhes pertenciam. Alemães e sírio-libaneses foram detidos, sendo parte dos primeiros enviados para os Açores. A partir de 1917, voltaram a fazer-se campanhas militares, primeiro nas ilhas Bijagós, depois contra os Baiotes. Em 1919, deu-se a queda de Abdul Indjai, levado para Cabo Verde. Em 1917, publicou-se a Carta Orgânica da Guiné, onde se manteve a importância da autoridade dos régulos. Criou-se a Secretaria dos Negócios Indígenas, para resolução das questões da maioria da população e alteraram-se as circunscrições. Em 1922, foi aprovado o Código Administrativo da Guiné, pelo qual Bolama e Bissau passaram a ter câmaras municipais, enquanto Cacheu, Farim, Canchungo e Bafatá contavam com comissões municipais. É governador Jorge Vellez Caroço, vem inspirado para mudar a colónia, tomado pelo exemplo de Norton de Matos em Angola. Não faltarão intrigas durante o seu mandato, nem conspirações, lança-se num processo de desenvolvimento, privilegiando a instrução e a construção de infraestruturas de comunicação. Suceder-lhe-á Leite de Magalhães. Finda a I República, a Guiné continuou a ser uma colónia para onde se deslocavam como deportados muitos republicanos, alguns deles, em ligação com a insatisfação de comerciantes locais, farão eclodir a revolta de 17 de abril de 1931, chefiados pelo médico Gonçalo Monteiro Filipe.

Célia Reis dá-nos o quadro étnico, referencia o número diminuto de europeus e a carência brutal de estruturas básicas: ao tempo de Vellez Caroço havia apenas 3 médicos. Predominavam ao tempo as religiões fetichistas, seguia-se o islamismo, a doutrina católica era mínima, não havia ordens religiosas, as Franciscanas só regressariam em 1932. As publicações durante este período espelharam a fraca presença europeia. O Boletim Oficial da Guiné manteve-se como o único órgão informativo da colónia até 1920, quando apareceu o jornal Ecos da Guiné, foi seguido por A Voz da Guiné e depois pelo Pró-Guiné, todos de vida curta e dedicados aos portugueses. O novo órgão de informação só surgiu depois de 1931, O Comércio da Guiné. Não havia ensino secundário e em 1916 as escolas de ensino profissional reduziam-se ao ensino de tipógrafos e radiotelegrafistas. Vellez Caroço preocupou-se com o desenvolvimento da instrução dos guineenses, criando escolas: em 1925, contavam-se 10 estabelecimentos para o sexo masculino, 6 para o feminino e 5 mistas.

Finda a escravatura, a Guiné tornou-se uma colónia de exploração dos seus recursos, com vista à exportação. Apareceram várias companhias concessionárias, que não tiveram sucesso, caso da Agrifa, Companhia Agrícola e Fabril da Guiné e a Sociedade Agrícola do Gambiel. O problema das taxas foi uma permanente dor de cabeça, sempre a questão da proteção pautal e Célia Reis dá-nos conta da vida económica e financeira da colónia no período. A Alemanha era o principal parceiro comercial até à Primeira Guerra, esta alterou a situação, dando primazia a Portugal. É um período que leva a melhoria de comunicações, o telégrafo estabeleceu-se no interior, no final da Monarquia.

Como observa a autora, “Entre os rendimentos na Guiné encontrava-se o imposto de palhota, que substituíra o de capitação, em 1903. Nem todas as despesas previstas eram realizadas, mas as sucessivas campanhas militares contribuíram, naturalmente, para o seu acréscimo, não obstante a compensação de vida ao alargamento do imposto palhota a mais subjugados. Entre as despesas, a maior parte pertencia ao funcionalismo militar, a que se somavam os gastos com os restantes funcionários. Os projetos de Vellez Caroço, na década de 1920, provocaram o endividamento da Guiné, tornando necessário que o ministro João Belo (já na Ditadura Militar) abrisse um crédito para o compensar. O aumento de imposto, então, usado para ultrapassar aquela situação deficitária.”

Lembro ao leitor que Célia Reis é autora do artigo Guiné na obra O Império Africano, coordenado por A. H. de Oliveira Marques, Vol. XI da Nova História da Expansão Portuguesa, direção de Joel Serrão e Oliveira Marques, edições Estampa, 2001, de que aqui já se fez recensão.

Cacheu e a sua fortaleza
Monumento aos aviadores italianos falecidos num desastre aéreo em Bolama
Tropas portuguesas perfiladas na inauguração ao monumento dos aviadores italianos
Estátua do presidente americano Ulysses S. Grant, em Bolama
Bolama, capital da Guiné
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25129: Notas de leitura (1663): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (10) (Mário Beja Santos)