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terça-feira, 16 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27222: Felizmente ainda há verão em 2025 (34): Mata-mouros e outros apelidos e alcunhas, raros, exóticos, pícaros, brejeiros, etc. - Parte I




"Santiago, foi um dos quatro primeiros apóstolos que seguiram Jesus e seu primeiro mártir, foi mandado degolar pelo rei Herodes. Os seus restos mortais foram levados para a região galega de Compostela, tendo aí nascido o maior centro de peregrinação da Europa cristã, Santiago de Compostela. A imagem existente na igreja Matriz de Castelo Rodrigo representa um guerreiro a cavalo lutando com um mouro já dominado e debaixo das patas do cavalo, normalmente designado de Santiago “Matamouros”.

Fonte: Adapt de: Aldeias Históricas de Portugal > Santiago, Mata Mouros, Castelo Rodrigo | Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)


1. O termo ficou no léxico da língua portuguesa: "mata-mouros" (nome masculino, de dois números) é o "indivíduo que exagera os seus feitos e valentias", sinónimo de fanfarrão, ferrabrás, valentão...

E ficou também na toponímia e na antroponímia: referências históricas apontam para a existência de indivíduos com este apelido, como "Fernão Domingues Mata Mouros" e "Alberto Mata Mouros de Resende da Costa", sugerindo que, embora raro, o apelido tem raízes antigas nosso território. 

Há também relatos anedóticos da presença de famílias com este apelido na região do Algarve, uma zona de forte influência muçulmana e palco de inúmeros confrontos durante a "Reconquista".

A toponímia portuguesa também conserva a memória destes tempos, com exemplos como a "Quinta de Mata Mouros" em Silves, no Algarve, um local histórico que hoje alberga uma adega. Em Espanha, na Extremadura, Badajoz, há o município Valle de Matamoros.; e haverá maisde 3,3 mil indivíduos, com este apelido, de acordo com a Geneanet ,

Rara ou incomum, a expressão  chegou todavia aos nossos dias como apelido de família (ou sobrenome), erm Portugal. A origem deve ter sido por alcunha, e não por via patronímica (nome do pai), toponímica (nome do lugar de nascimento) ou outra.

 Encontrámos, na Net, pelo menos duas figuras públicas portuguesas com este apelido:
  • um senhor, Ministro da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas no XV Governo Constitucional (entre 2002 e 2005);
  • uma senhora, antiga  juiza conselheira  do Tribunal Constitucional, há uns atrás.
 
Fomos também encontrar na Guiné um Luís Mata-Mouros Resende Costa, colono, branco, 36 anos de idade, natural de Bissau, ligado ao comerciante Benjamin Correia em meados dos anos 50. 

O apelido "Mata-mouros", carregado de conotações históricas da "Reconquista Ibérica", revela-se de rara presença em Portugal e é praticamente inexistente nos restantes países lusófonos.  

(i) Origem e significado histórico

O termo "Mata-mouros" é uma alusão direta às batalhas travadas durante a chamada Reconquista Cristã da Península Ibérica, que se estendeu por séculos (séc. VIII- séc. XV), acabando com a conquista do reino de Granada, o último reino mouro, em 1492 (o ano da descoberta do "Novo Mundo").

A expressão  significa literalmente"aquele que mata mouros". Era frequentemente usada como epíteto,  alcunha ou cognome, atribuído a guerreiros que se destacavam pela sua bravura nos confrontos com os muçulmanos do Al-Andalus.

Esta designação está intrinsecamente ligada à figura de Santiago Maior, o apóstolo padroeiro de Espanha e de Portugal, frequentemente representado na sua faceta de "Santiago Matamoros" (ou "Mata-mouros"). 

A iconografia do santo a cavalo, brandindo uma espada sobre mouros caídos (vd. imagem acima), tornou-se um símbolo poderoso da cruzada cristã e inspirou a toponímia e, nalguns casos, a antroponímia.

Em Portugal, a palavra "mata-mouros" adquiriu também um significado figurado: por exemplo, o Dicionário Priberam  define-o como  o indivíduo fanfarrão, ferrabrás ou valentão, uma derivação curiosa que reflete a transformação de um epíteto de guerra numa expressão popular.

(ii) Presença em Portugal: um apelido raro mas notável

Apesar da sua forte carga histórica, o apelido "Mata-mouros" é pouco comum em Portugal. A sua raridade é atestada pela dificuldade em encontrar famílias com este nome em listas telefónicas e a ausência de referências em  bases de dados genealógicas.

A pesquisa da IA em bases de dados e registos "online" do Brasil, Angola, Moçambique e outros países de língua portuguesa também não revelou  a presença do apelido "Mata-mouros".  

A ausência do apelido "Mata-mouros" nos PALOP e no Brasil pode ser explicada pela sua origem muito específica e ligada a um contexto histórico-geográfico que não se transportou da mesma forma durante o período da colonização. As peregrinações a Santiago entraram em decadência acelerada já em meados do séc. XIV (com a "peste negra", a crise demográfica, as guerras, etc.). A formação da sociedade brasileira,  colonial e escravocrata, em contrapartida, vai dar-se num contexto diferente, com outras influências e dinâmicas na atribuição de apelidos.

Em suma, o apelido "Mata-mouros" é uma herança direta da chamada Reconquista em Portugal, um testemunho onomástico de um passado de conflitos e da construção de uma identidade nacional. A sua raridade contrasta com a força da sua simbologia. 


2. Felizmente ainda é verão, apesar da "rentrée" para muitos (a escola, o trabalho, as vindimas, as consultas médicas, etc.). Nós, entretanto, vamos continuando por Candoz por mais uma semana. (*)... 

E vamos blogando...Existem ainda outros apelidos portugueses igualmente raros, exóticos ou de origem curiosa que refletem episódios históricos, lendas, factos anedóticos,  toponímias ou devoções religiosas pouco comuns.


(i) Devoção religiosa e santoral:

 apelidos como "dos Anjos", "das Dores", "do Rosário", "de São João", "dos "Santos",  "de Todos os Santos", “da Anunciação” ou até... "Cara d'Anjo"!... eram usados como complemento de nome, especialmente por mulheres, religiosos ou conversos para evidenciar devoção, refúgio ou proteção sobrenatural; as nossas "Marias" têm quase todas um santo ou uma santa por detrás do nome: a minha mãe era "Maria da Graça",  uma das minhas irmãs "Maria do Rosário", há muitas "Marias de Fátima", etc. 

(ii) Toponímicos exóticos

alguns apelidos derivam de lugares muito pequenos, aldeias desaparecidas ou microtopónimos pouco conhecidos (exemplos:  “Xabregas”, “Alcaçovas”, “Mosteiro”, "Matacões',  ou “Miragaia”, usados para indicar origem rural ou urbana invulgar).

(iii) Apelidos-epíteto ou de alcunha

da Idade Média, herdaram-se apelidos derivados de alcunhas descritivas, físicas ou até jocosas, como “Espadana”, “Buzina”, “Melro”, “Passarinho”, “Queimado”, “Valente”, “Foge”, “Parvo”, “Quebra-Costas”, “Caçador”; ou outros e outras, talvez de origem mais recente,"Mata-frades", "Piça", Minorca", "Caga-tacos", "Meia-Leca", "Mata-pintos", "Fala-baixo", etc.

(iv) Apelidos de conotação guerreira ou étnica

além de "Mata-mouros", encontram-se registos raros como “Mata-cães” (às vezes associado a confrontos com populações mouriscas), “Mouro”, “Mourão”, “Mourisco”, "Judeu", "Mulato", "Cigana", "Preto",  “Cristão Novo” (para os convertidos), e ocasionalmente “Castelhano”, "Galego, "Alemão", "Francês "ou  “Inglês” para estrangeiros integrados.

(v) Hagiotoponímicos raros:

 existem apelidos tirados de santos ou mártires pouco comuns localmente, como “Santa Bárbara”, “Santo Amaro”, “Santo Tirso”, "Espírito Santo", ou ainda, por justaposição, “Santidade”.

Muitos destes apelidos começaram como alcunhas, marcas de devoção, ou indicações de origem, e só mais tarde se fixaram como sobrenomes de família. Os contextos de nomeação variavam amplamente, desde motivos de sobrevivência (mouros,  judeus, escravos africanos que foram obrigados a converter-se e adotar nomes cristãos), percursos de peregrinação (“Santiago”, “Compostela”, “Peregrino"), até sátira, história pessoal ou identificação local, a alcunha ("apelido", em português do Brasil) funcionando como uma verdadeira "etiqueta" que não precisa(va) de ser colada á testa.

Em resumo, "Mata-mouros" junta-se assim a lista de apelidos históricos insólitos em Portugal, muitos deles provenientes de episódios da "Reconquista", da escravatura, da perseguição aos mouros e aos judeus,  da cristianização forçada (1497), inquisição ou de eventos locais marcantes. 

3. Durante a guerra colonial na Guiné, era frequente usarmos alcunhas para melhor identificar,  "marcar" ou "etiquetar" os nossos camaradas: muita gente tinha alcunhas: 

  • desde os superiores hierárquicos (Caco Baldé,"Aponta, Bruno!,  Pimbas, Alma Negra, Gasparinho, Bagabaga, Major Elétrico, Coronel 11, Trotil...); 
  •  até aos milicianos e praças ("Tigre de Missirá", "Pato da Bolanha", "Mec-Mec", "Chico", Chicalhão", "Pastilhas", "Caga-tacos", "Meia-leca","Meia-foda",  "Mouraria", "Bolha d'Água", "Parte-punho", "Cara de Cu", "Quatrocentos", "Aguardente", "Tempo Embrulhado", etc., até ao "Se-te-vens" (corruptela do nome de uma marca de cigarros, por que era conhecida a esposa de um  camarada nosso), etc. ) (**); 
Temos vinte tal postes com referências a "alcunhas".

4. Também existem, no português europeu, apelidos e alcunhas de natureza pícara, brejeira, maliciosa, erótica ou até pornográfica, em Portugal, e  especialmente no Alentejo, onde o calão e o humor popular têm longa tradição. 

Estes apelidos são herança oral e, muitas vezes, só circulam localmente, sendo raros em documentação oficial, mas ainda estão vivos na memória coletiva (veja-se o  incontornável "Tratado das Alcunhas Alentejanas", 4ª ed., Colibri, 2002, da autoria de Francisco Martins Ramos e Carlos Alberto da Silva).

Francisco Martins Ramos (1943-2017) era antropólogo, natural da Amareleja. O Carlos Alberto da Silva é sociólogo da saúde e também antigo professor da Universidade de Évora.

Exemplos de Apelidos e Alcunhas Pícaras do Alentejo

  • Bicha/Galhofo/Maricas: termos que circulam como apelidos depreciativos devido à sexualidade ou maneiras.
  • Calhandro(a):  não tem conotação sexual, mas designa alguém "atiradiço", insinuação de promiscuidade ou pouca vergonha;
  • Galdéria: mulher de reputação duvidosa ou de vida sexual livre, às vezes usada como epíteto familiar;
  • Escalda: “Rapariga muito quente nos bailes”, apelido para mulher considerada fogosa ou promíscua;
  • Javardice/Javardo(a): usado para pessoas consideradas desleixadas ou de hábitos sexuais libertinos, pode ser alcunha direta;
  • .Joana dos Moços: mulher que teve vários filhos de diferentes pais — insinuação maliciosa sobre a sua vida íntima;
  • Lambança: conversa atrevida, mexericos de natureza sexual, também pode ser usada como apelido para quem gosta de "porcaria";
  • Langonha: sgnifica esperma (sémen), também usada em sentido jocoso;
  • Meia-Foda: muito comum, usada para designar pessoa de baiza estatura, mas também associada à situações ambíguas ou mal resolvidas em matéria sexual (igual a "meia-leca", na tropa);
  • Minete: calão direto para sexo oral (=cunilíngua),  ocasionalmente designando alguém atrevido;
  • Ó Punheta: usado como exclamação, mas também como alcunha para alguém dado à masturbação ou simplesmente irreverente (equilavente a "parte-punho", na Guiné, no calão da tropa);
  • Pai do Cu: alcunha dada a homens considerados sexualmente libertinos, mulherengos ou, segundo usos, alvo de pilhéria por algo relacionado com sexo anal ou escatologia; tornou-se célebre nas aldeias porque existiam mulheres que, sendo vítimas de violência doméstica, gritavam: “Valha-me o Pai do Cu!”.
  • Pandarilho/Pandelero/Panasca: são variantes antigas e regionais para homem afeminado ou homossexual, por vezes maliciosamente aplicadas ou sentido pejorativo;
  • Passarola: termo popular para órgãos genitais femininos (=vagina; "pito", no Norte), usado como alcunha, servindo de mote trocista ou para atribuir a alguém fama de devasso;
  • Pentelho/Pintelho: pèlo púbico,pormenor insignificante, pessoa irritante, aborrecida,importuna;
  • Pixa, Gaita, Pau, Piça, Picha d'aço: diversos calões penianos conferidos como alcunha a, por exemplo, jovens atrevidos, mulherengos ou simplesmente alvo de chacota;
  • Prenha: mulher grávida fora do casamento;
  • Tronga: mulher da vida/prostituta;
  • Zorra: prostituta ou mulher de reputação duvidosa; "filho de zorra": bastardo, filho natural, filho de padre (em Trás-os-Monres).

 

Complementarmente, consulte-se também o "Dicionário do Calão e Expressões Idiomáticas", de José João Almeida (Editora Guerra & Paz, 2019; vd também aqui, em Projeto Natura | Universidade do Minho).

Muitos destes termos da linguagem informal, da gíria ou do calão foram (e são usados ainda) como alcunhas entre amigos, conhecidos ou inimigos para marcar uma diferença, ironizar, satirizar hábitos de alguém ou, simplesmente, como herança do falar local, muitas vezes não se sabendo sequer qual a sua origem.

Existem casos de famílias que ficaram conhecidas na aldeia durante gerações por uma alcunha deste tipo, independentemente do apelido registado no cartório paroquial ou na conservatória do registo civil.

Em contextos mais fechados e tradicionais, alguns destes apelidos podem ser mais ou menos ofensivos, dependendo do contexto,  do tom ou da confiança entre os interlocutores. Nalguns casos, são "formas carinhosas de tratamento"; "ó meu Cara de Cu â Paisana!!... 

A presença, existência ou sobrevivência destes nomes evidenciam o lado irreverente, humorístico e, por vezes até, transgressor da cultura rural  alentejana, onde o dito popular, a sátira e a oralidade são ferramentas de convivência social e de criação identitária. (***)

Muitas destas alcunhas alentejanas com conotação sexual, pícara, erótica ou maliciosa fixaram-se oralmente e, por vezes, até integravam o quotidiano rural. 

De um modo geral, refletem o humor, o descaramento, a verve ou o olhar picante da cultura popular da região e estão extensamente documentadas por  sociólogos, etnógrafos e outros estudiosos dos usos e costumes, etc.
 
 Deve ainda acrescentar-se que muitas destas alcunhas surgem do contacto diário, de episódios de alcova ou de determinadas  condições sociais (do trabalho à infidelidade conjugal,  do lazer e das festas  à sexualidade).

A atribuição era (e é) frequentemente pública e marcava para sempre um indivíduo ou família na pequena comunidade rural, fechada como, por exemplo, Aldeia Nova de São Bento (***).

Há grande criatividade, ironia e até  intencionalidade social: reforçar a moralidade coletiva pela sátira, pela provocação ou pelo controle do comportamento sexual.

Estas alcunhas testemunham a riqueza, a ousadia, a espontaneidade e a criatividade o falar popular alentejano, fazendo parte de uma tradição de oralidade onde o erótico e o pornográfico convivem com o burlesco, o pícaro, o brejeiro e o satírico.

(Continua)

(Pesquisa: LG  + Assistente de IA /Gemini, ChatGPT)

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

___________________

Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 13 de setembro de 2025  > Guiné 61/74 - P27216: Felizmente ainda há verão em 2025 (33): A natureza tem horror ao vazio... Reflexões, mais ou menos melancólicas, no dia seguinte à primeira vindima de Candoz

(**) Vd. poste de:

5 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20706: Memórias ao acaso (Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845) (4): Alcunhas

28 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16141: In Memoriam (258): Soldado Ilídio Fidalgo Rodrigues, o "Esgota Pipas" da CCAÇ 2382, morto por um estilhaço de um projéctil IN (Manuel Traquina, ex-Fur Mil)

6 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10342: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (25): "O Aguardente"

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27221: Notas de leitura (1838): "Uma Outra Perspectiva", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Quando leio as narrativas do escritor Rui Sérgio, que foi alferes-médico num batalhão sediado em Galomaro, interrogo-me sobre o que aconteceu no Leste da Guiné desde agosto de 1970, altura em que regressei a casa, e os acontecimentos que ele descreve vividos predominantemente em 1973 e 1974. A partir de novembro de 1969, passei à intervenção em Bambadinca exclusivamente com um pelotão de caçadores nativos. Íamos corriqueiramente cumprir missões através de cimento, transporte de doentes a locais como Galomaro (então sede de companhia), Madina Bonco, Afiá, Madina Xaquili e outros pontos que Rui Sérgio aqui refere como autênticas operações, isto enquanto nós percorríamos estas regiões com num Unimog 411, ao nível de secção, impensável recorrer à picagem da estrada. Cumpríamos a coordenação das colunas que se organizavam a partir de Bambadinca até ao Saltinho, exatamente nos mesmos termos que Rui Sérgio descreve, só com a distinção que não parávamos em Mansambo, embora a tropa local picasse a estrada e ficasse em vigilância até à nossa passagem no regresso a Bambadinca. Muito provavelmente, o desaparecimento dos destacamentos de Béli e Madina de Boé deixaram o Boé mais permeável às investidas das forças do PAIGC. O régulo do Cossé, Mamadu Sanhá, tenente de 2.ª linha, dizia a quem o queria ouvir que ninguém do PAIGC se atrevia a molestar a vida dos habitantes do Cossé, isto até agosto de 1970. Vemos agora o batalhão em Galomaro, escusam de me dizer que a guerra não se tinha acentuadamente agravado no Leste.

Um abraço do
Mário



Há lembranças que aquele alferes médico não quer deixar apagar

Mário Beja Santos

É o mais recente livro de Rui Sérgio, intitula-se Uma Outra Perspetiva, 5Livros, 2023. São lembranças avulsas, por vezes releva o olho clínico, há queixumes e não menos azedumes, mas aquela natureza, as solidariedades, a sua atividade como alferes-médico colaram-se-lhe à pele, escreve como ninguém sobre a Guiné, mesmo quando aqui e ali se repete ou regressa à mesma história com outro pormenor. E momentos há em que narrador e leitor coincidem no olhar.

Logo as pragas, lembra uma praga de sapinhos, as viaturas a esborrachá-los, os gafanhotos, predadores terríveis, nuvens que quase encobrem o Sol; e os morcegos, a sair dos telhados do quartel, aos milhares, à noite era vê-los a comer os insetos, ótimo, eram menos picadas sobre nós. E recorda o Santos, maqueiro, que o chamou para ver o centro de saúde militar em Galomaro, centenas senão milhares de morcegos dependurados de cabeça para baixo nas traves do telhado, à procura de alimento, talvez insetos ou gafanhotos ou aranhas voadoras.

Não esquece as expedições ao Saltinho, de Galomaro a Bafatá, daqui a Bambadinca, aqui organizava-se uma grande coluna, pelo trajeto, que incluía Mansambo, a Ponte dos Fulas, Xitole e depois Saltinho, com inversão de marcha para evitar emboscadas e minas, ao longo do trajeto gente dos diferentes aquartelamentos ficavam e guardavam a passagem da coluna.

E vem o testemunho do profissional, a assistência médica no mato, ele fala na evacuação Yank (nós conhecíamo-la por Y), o alferes-médico e o cabo-enfermeiro seguiam no helicóptero como soros e mala de medicamentos. Rende uma homenagem aos anjos do céu, as enfermeiras paraquedistas. Volta a recordar Bacar, dava-lhe apoio no centro de saúde civil, ficara sinistrado numa mina antipessoal, era um intérprete de um médico, transmitia a sintomatologia do doente, filtrava a lista de doentes de acordo com as etnias. De igual modo, volta a lembrar o comandante Braima, um Futa-Fula alto e esguio, muito respeitado pelos seus pares (pisteiros e milícias).

O alferes-médico tinha em Galomaro a seu cargo a missão do sono e no pequeno hospital tratava tuberculosos e leprosos. Enuncia o tratamento dos leprosos, as dosagens, as manifestações, o que tomavam os tuberculosos, quais os seus sintomas e fala da vacinação das crianças.

Há também a lembrança do Sr. Regalla, proprietário do restaurante Pescaria em Galomaro. Um dia o alferes-médico perguntou-lhe se era do PAIGC, o Sr. Regalla contestou, era cabo-verdiano, o alferes-médico ripostou: “Sr. Regalla, disseram-me que tem um filho que se chama Agnello que se encontra na Suécia, em Upsalla, na produção de livros escolares do PAIGC.” O Sr. Regalla disse que era tudo mentira, o alferes-médico confirmou posteriormente ser tudo verdade.

As recordações não param, a onda do macaréu a subir o rio Geba, os ataques de abelhas, o fanado, os acontecimentos de Guidaje e Guileje, as suas recordações chegam à Marinha e aos Fuzileiros, manifesta-lhes gratidão, alude à importância dos botes pneumáticos utilizados pelos Fuzileiros, os zebros, retorna aos agradecimentos à Marinha, pelo seu papel fundamental na logística no transporte através dos rios em lanchas de diverso porte, recorda um acontecimento que envolveu um parente seu:
“O patrulhamento do Cacheu através das lanchas de fiscalização grandes como a Hidra, comandada em 1973 por um meu primo direito, o 1.º Tenente Jaime Luís Vieira Coelho eram fiscalizações com certo risco, como aconteceu em 20 de maio de 1973, em que houve um ataque à lancha com rebentamentos e incêndio no convés do navio, imediatamente apagado. Ataque na curva de Jugali. Houve feridos provocados pelos rebentamentos com RPG 2 e 7 e que atingiram os cunhetes de munições da peça de artilharia Bofors do Levante.”
As suas recordações retornam às colunas de abastecimento ao Saltinho, local que ele considera paradisíaco, a água revolta dos rápidos centros rochedos, o marulhar das águas e o seu espelhado refletindo o Sol, sentiam-se acobertados de paz e sensação do repouso do guerreiro.

Uma boa parte da sua narrativa prende-se com a crítica que faz à descolonização, aos fuzilamentos da tropa africana, mostra-se favorável à criação de um exército europeu e à exploração que os chineses fazem das riquezas florestais, mais propriamente as madeiras exóticas da Guiné-Bissau.

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Nota do editor

Último post da série de 12 de Setambro de 2025 > Guiné 61/74 - P27212: Notas de leitura (1837): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 11 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27220: In Memoriam (559): Isabel Bandeira de Melo (Rilvas) (1935-2025): uma mulher pioneira em vários domínios, interditos às mulheres, a começar pelo paraquedismo... Foi a "madrinha" das enfermeiras paraquedistas (1961).






Isabel Rilva (1936-2025): uma mulher portuguesa antes do seu tempo: não foi militar, não foi paraquedista, não foi à guerra, mas ajudou outras mulheres (as enfermeiras paraquedistas) a abrir, pela primeira vez, as portas da caserna...e entrar no teatro de operações.

Fonte: Fotogaleria da realizadora de cinema, Marta Pessoa, autora do documentário "Quem Vai à Guerra" (Portugal, 2011), página do Facebook


1. A triste notícia chegou-nos por mensagem do Miguel Pessoa e confirmada às  9h45 na página do Facebook de Miguel Machado, antigo oficial paraquedista e estudioso da história do paraquedismo em Portugal:

Isabel Bandeira de Melo (Rilvas), filha dos condes de Rilvas. carinhosamente apelidada pelos paraquedistas e pelas enfermeiras paraquedistas por Isabelinha, faleceu ontem,  14 de setembro de 2025, aos noventa anos de idade. Nascera em 8 de janeiro de 1935.

Tinha festejado, a 4 de janeiro último,   o seu 90º aniversário  com salto em queda livre, um salto tandem, a uma altura de cerca de 3 mil metros, a partir do aeródromo de Tancos, numa aeronave do Para Clube os Boinas Verdes, segundo notícia de Mário Rui Fonseca, publicada no jornal Médio Tejo, em 7 de janeiro de 2025.
 
Temos quatro referências à Isabel Rilvas. A Maria Aminda já aqui, em poste de 2011,  veio justamente lembrar o papel pioneiro que a Isabel Rilvas teve na criação do corpo de enfermeiras paraquedistas em 1961,  dizendo no seu discurso,  por ocasião do 50º aniversário do 1º curso de enfermeiras parquedistas,  o seguinte (**):

(...) Convêm também relembrar, neste processo, a importância da Sr.ª. Dª Isabel Bandeira de Mello, conhecida entre nós por Isabelinha Rilvas, à época a primeira Paraquedista da Península Ibérica, em ceder ao Tenente-Coronel Kaúlza de Arriaga, a documentação relativa aos treinos que executavam as “Enfermeiras do Ar”, pertencentes à Cruz Vermelha Francesa.

A Isabelinha, como colega e amiga da maioria das candidatas que integraram esse primeiro curso, teve também a sua quota-parte de influência, na decisão em aceitarem esse desafio.

Pela primeira vez iam ser treinadas em Portugal, mulheres para Paraquedistas. A sua preparação teve início a 6 de junho de 1961 e terminou a 8 de agosto, com a conquista da tão almejada boina verde e brevê, que lhes conferiram o título pelo qual passaram a ser designadas, “ As Enfermeiras Paraquedistas”.

Para se chegar a esse dia, foi preciso percorrer um duro e difícil caminho; vencer barreiras a que não estávamos habituadas, ultrapassar receios e preconceitos, superar debilidades físicas, momentos de fadiga, desânimo e medo do fracasso. Porém entrámos determinadas e convictas de que poderíamos chegar ao fim. Aceitámos voluntariamente esse grande desafio, de trocar a nossa vida rotineira, tranquila e profissionalmente estável, por outra que imaginávamos ser mais agitada, mas da qual não sabíamos como iria decorrer. Éramos jovens, e como tal generosas e aventureiras. (...)


2. A Tabanca Grande partilha, com a família e os/as amigos/as da Isabel Rilvas, a dor pela sua perda. Registe-se, entretanto, a mensagem, acabada de enviar pelo Miguel Pessoa: 

Transcrevo a mensagem que recebi da AFAP (Associação da Força Aérea Portuguesa):

"É com muita tristeza que a AFAP faz saber do falecimento da D. Isabel Rilvas, uma das pioneiras na aviação e no paraquedismo, e nossa sócia extraordinária. A nossa “Isabelinha” conseguiu o seu brevet (aos 19 anos) em 1954 em aviões e planadores; em 1956 tornou-se na primeira mulher paraquedista da Península Ibérica; e em 1981 obteve a licença de voo em balão de ar quente nos Estados Unidos.

O seu falecimento é realmente uma grande perda para a aviação portuguesa.

Informamos os/as nossos/as associados/as que o féretro vai hoje (15SET2025) às 17h30 para a Igreja da Força Aérea (São Domingos de Benfica), e amanhã (16SET2025) o funeral seguirá às 14h00 para o Cemitério dos Prazeres.

Até sempre, Isabelinha!

A AFAP expressa os seus sentidos pêsames à família e amigos!"



Isabel Rilvas


(com a devida vénia..)


3. Algumas notas biográficas desta mulher que, nunca tendo sido militar nem enfermeira paraquedista, teve uma vida notável e foi pioneira num domínio interdito às mulheres portuguesas, a aviação e o paraquedismo:
  • começou a aprender a pilotar aviões na Escola de Aviação Civil do Aero Club de Portugal (Sintra),em 1953, apadrinhada pelo director das Oficinas Gerais de Material Aeronáutico (OGMA), Pedro Avilez (para fazer o curso teve sempre a companhia de Chica,  uma empregada da familia que fez o papel de dama de companhia dela, tais eram os preconceitos da época);
  • em 1954, com 19 anos, tirou o brevê de pilotagem de aviões ligeiros (e posteriormente obteve as licenças equivalentes na África do Sul, Espanha, Itália e Estados Unidos da América, países onde viveu enquanto mulher do embaixador Leonardo Mathias); 
  • tirou também o brevê de voo à vela;
  • em 1955, ao ir com o pai ver um festival aéreo no aeroporto Le Bourget, entrou em contacto com as Enfermeiras Paraquedistas Socorristas do Ar, da Cruz Vermelha francesa. e tem a ideia de criar um grupo de enfermeiras semelhante em Portugal:
  • em 1955, é segunda mulher portuguesa a obter o brevê C que permite pilotar planadores;
  •  em França frequenta o curso de Instrutor Paraquedista no Solo no Centro de Paraquedismo de Biscarrosse onde é aluna da socorrista do ar Jacqueline Domerge; 
  • obtém, em 1956, brevê de 1.º grau de paraquedismo civil e no ano seguinte o de 2.º grau;  foi então a primeira mulher portuguesa (e ibérica) a saltar de paraquedas, no contexto civil; 
  •  para poder manter as suas licenças de paraquedista, Isabel tinha de completar um número específico de saltos, mas foi confrontada com a inexistência de locais onde fosse possível fazê-lo em Portugal; por isso, pediu à Força Aérea que a autorizasse a saltar na base militar de Tancos, local de treino dos soldados paraquedistas; obteve uma licença provisória para saltar no país; foi-lhe também concedida autorização para o fazer com os paraquedistas militares; o seu primeiro salto em Tancos teve lugar em 18 de janeiro de 1959, aos aos 24 anos;
  • fez o curso de instrutora de paraquedismo, completando 25 saltos;
  • em 3 de maio de 1959, convidada pelo Aeroclube de Luanda, saltou em queda-livre em Angola, perante luandenses maravilhados; repetiu a proeza em 17 de maio em Lourenço Marques, fascinando uma multidão de moçambicanos;
  • efectuou saltos de paraquedas de diversos tipos de aviões, entre eles: Stampe, Junkers JU52, Dakota, Tiger Moth, Dragon Rapid e Noratlas;
  • bateu o recorde português de voo sem motor: permaneceu no ar por 11 horas e 15 minutos em Alverca, em julho de 1960;
  • foi a primeira mulher a fazer acrobacias aéreas da Península Ibérica, tendo entrado em várias competições de festivais da modalidade, pilotando vários tipos de aviões;
  • foi a grande impulsionadora da criação do Corpo de Enfermeiras Paraquedistas Portuguesas em 1961 (o 1º curso começou em 6 de junho e terminou em 8 de agosto, na Base de Tancos; das candidatas iniciais, foram selecionadas 11, e só 6 concluíram e receberam o brevê, sendo conhecidas como as “Seis Marias”, como lembru a nossa amiga e camarada Maria Arminda);
  • conseguiu concretizar o seu sonho em 1961, quando Kaúlza de Arriaga, face aos desafios e exigências do inicio da guerra colonial em Angol,  apresentou a ideia a Salazar que, com ressalvas, autorizou a criação do grupo de enfermeiras;
  • em 1981, obteve uma licença de voo em balão de ar quente, nos EUA, sendo a primeira portuguesa a fazê-lo; de regresso a Portugal tentou junto da Direcção-Geral da Aeronáutica Civil obter uma equivalência, uma licença portuguesa, mas foi impossível, por não haver legislação para balões de ar-quente, nem sequer balões;
  • em 2017, foi condecoarada, pelo Presidente da República, com o grau de Grande-oficial da Ordem do Infante D. Henrique, 


(**) Vd. poste 5 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8998: As nossas queridas enfermeiras pára-quedistas (28): Comemoração dos 50 anos dos cursos de 1961 das Tropas Pára-quedistas (Rosa Serra / Maria Arminda)

Guiné 61/74 - P27222: Humor de caserna (212): Dura lex sed lex!...Guarda de Honra ao tribunal millitar (Abílio Magro, ex.fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, 1973/74)



1. O "mano" Abílio, Valente e Magro (de seu nome completo Abílio Valente Lamares Magro) não precisa de apresentações mas há sempre alguém, no blogue,  que nunca lê os "preliminares" dos nossos postes:  

  • foi fur mil, CSJD/QG/CTIG, 1973/74) (descodificando: Chefia do Serviço de Justiça e Disciplina do Quartel-General do Comando Territorial Independente da Guiné); 
  • foi um dos últimos "moicanos" (leia-se: soldados do império), tendo regressado a casa já no tempo na República da Guiné-Bissau, reconhecida por Portugal em 10 de setembro de 1974;
  • entrou  para a Tabanca Grande em 2013;
  •  tem sete dezenas de referências no blogue;

  • é um talentoso humorista de caserna; 
  • é aclamado autor da série "Um amanuense em terras de Kako Baldé";
  • e, caso único na história da(s) nossa(s) guerra(s),  é proveniente de uma grande família de combatentes, pois, de 8 irmãos (6 rapazes e 2 raparigas) todos os machos foram parar com os costados aos vários TO (Angola, Moçambique e Guiné), chegando a estar 5 irmãos (todos milicianos) ao mesmo tempo, a cumprir serviço militar, dos quais 4 no Ultramar... 
  • além do mais, era o mais novo dos manos, o caçula;
  • por mais incrível que pareça, nunca nenhum patriota cá da terra se lembrou de propor que o feito dos manos Magro passasse a figurar no livro dos "Guinness World Records"; de qualquer modo, ainda bem que a matriarca da família não deixou que as filhas se oferecessem  para o curso de  enfermeiras paraquedistas, alguém tinha que ficar a tomar conta da casa!


Dura lex sed lex!... Guarda de Honra ao tribunal militar

por Abílio Magro

.
Nos tribunais militares os julgamentos eram efectuados com a presença de uma Guarda de Honra e durante a minha comissão na Guiné, apenas uma vez fui escalado para comandar um pequeno pelotão numa "cena dessas".

De camuflado, luvas e cordões brancos nas botas, sob uma temperatura a rondar talvez os 40ºC e com alguns 80% de humidade no ar, lá fomos para a sala de audiências que não tinha ar condicionado, mas sim uma ventoinha "gigantola" no teto.

Quando o Juíz entrava todo de branco fardado, fazendo lembrar um vendedor de gelados que ali bem-vindo seria, a Guarda levantava-se, eu dava ordens de sentido-ombro armas, apresentar armas, "comme il faut",  nestas ocasiões.

Durante o julgamento permanecíamos de pé, de mãos quentinhas e com o suor a escorrer por todo o corpo, fazendo-nos sentir sermos nós os verdadeiros réus a cumprir já parte da pena.

Recordo-me que, nesse dia, foram três julgamentos seguidos (era talvez época de saldos).

A situação lá se foi aguentando (que remédio!), mas na hora da leitura da sentença é que a coisa se tornava feia.

 Todos em sentido enquanto o homem lia os "preliminares" e, quando proferia uma frase semelhante a: "Determino em nome da lei...", eu dava voz de apresentar armas e assim permanecíamos até ao fim da leitura que demorava uma eternidade, fazendo com que as armas aumentassem exponencialmente de peso.


No meu caso a arma era uma FBP cujo peso era bem inferior ao da G3 e cujo apresentar d'armas era sobre o peito aguentando-se razoavelmente a posição, mas o resto de pessoal,  armado de G3, ao fim de alguns minutos já não conseguia manter a arma firme na vertical, tremendo como varas verdes.

De soslaio, apercebi-me que alguns foram aproximando as respectivas coronhas da barriga, acabando por as poisar no cinturão, e transformando a Guarda de Honra num cerimonial com pouca verticalidade.

Segundo me recordo, um dos julgamentos referia-se a um soldado metropolitano que, a caminho de uma qualquer patrulha, saltara da viatura e regressara ao aquartelamento, desobedecendo ao alferes. 

Este ter-lhe-á posteriormente aplicado apenas um castigo de alguns "reforços à Benfica", castigo esse que foi considerado demasiado brando, o que terá originado, também, um processo disciplinar ao alferes.

Quanto à pena sofrida pelo soldado, não me recordo bem, mas julgo que foi de alguma dureza.

Num outro julgamento o réu era um civil negro, já com algumas chuvas passadas, baixote, descalço (e eu de luvas brancas!) e de uma etnia qualquer que obrigou à presença de um outro militar, também negro, no papel de tradutor. 

Não me recordo já de qual o crime cometido por aquele civil, nem da pena a que foi condenado, mas apenas que, após uma pergunta do Juíz, o "intérprete" ter entrado em longa algaraviada com o réu, finda a qual simplesmente respondeu:

 − Ele disse que não..

(Revisão / fixação de texto, título: LG)

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Nota do editor LG:

Último poste da série >~28 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27160: Humor de caserna (211): a Maria-tira-cabaço, uma história pícara de Empada... (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos)

Guiné 61/74 - P27221: De (Caras) (240): O capelão do BCAÇ 2855, José Torres Neves, que eu fui visitar a Mansoa, em 12/10/1969, e que vai celebrar missa no próximo dia 4 de outubro, na nossa terra, Meimoa, Penamacor, em convívio de antigos combatentes meimoenses (João Afonso Bento Soares, maj gen ref)




Foto nº 1A e 1 > Guiné > Região do Oio > Mansoa > 12 de outubro de 1969 >  Dois conterrâneos, o alf graduado capelão, CCS/BCAQÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) e o cap enf trnms, STM / QGCTIG (1968/70). Ambos são de Meimoa, Penamacor.




Foto nº 2 e 2A > Guiné > Região do Oio > Mansoa > 12 de outubro de 1969 >  Da esquerda para a direita,  o fur mil trms STM, o cap eng trms STM João Afonso Bento Soares, a esposa (que segura uma máquina de filmnar de 8 mm), o cap pqdt Albano Figueiredo, do BCP 12, e a esposa.


Fotos (e legendas): © João Afonso Bento Soares (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de João Afonso Bento Soaresex-cap eng trms,  STM/QG/CTIG (1968/70), hoje maj-gen ref:



Data - sábado, 13/09/2025 00:32
Assunto - Ida a Mansoa, em outubro de 1969



José Torres Neves, alf graduado capelão,
CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 7/5/1969 - 3/31971)

 Caros Amigos:

Em resposta ao v/ mail,  muito me congratulo pelo justo elogio que é feito ao ex-capelão em Mansoa, Padre José Torres Neves.(*)

Acontece que ele é meu conterrâneo,  da freguesia de Meimoa,  concelho de Penamacor,  Beira Baixa.

No próximo dia 4 de outubro de 2025, convidei-o para ir à santa terrinha celebrar a missa e estar presente no almoço-convívio que se segue de antigos combatentes meimoenses na Guerra do Ultramar  (de que ele é, aliás, parte integrante, face à sua comissão na Guiné).

Por coincidência a minha primeira comissão no Ultramar foi precisamente na Guiné, no período 1968-70. Eu era capitão e comandava o Destacamento do STM no CTIG / QG em Bissau, pelo que fui lá visitá-lo (à paisana) num fim de semana. 

Nessa altura, tive lá a minha mulher (3 meses, passados os quais ela regressou à metrópole dado o seu estado de gravidez já avançada). Nessa visita a Mansoa, levei comigo um capitão paraquedista e a mulher (ver fotos acima) (**)

Um forte e amigo abraço

Major general João Afonso Bento Soares

PS: -1 ª foto: Eu, capitão e o Zé Torres Neves, cpelão | a 2ª foto (da esquerda para a direita) - Furriel que chefiava o posto de Trms do STM (dependente do Dest STM que eu comandava); cap Bento Soares e mulher grávida;  cap paraquedista, Albano Figueiredo (já falecido) e mulher.

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Notas do editor LG

(*) Vd. poste de 12 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27214: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte XXVIII: Mansoa, sector O4


(**) Último  poste da série > 10 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27204: (De)Caras (239): Cabos de Manobras (ou marinheiros CM), heróis esquecidos (José António Viegas, ex-fur mil art, Pel Caç Nat 54, Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole, Bolama, Ilha das Cobras e Ilha das Galinhas, 1966/68)

Guiné 61/74 - P27220: Parabéns a você (2417): Manuel J. Ribeiro Agostinho, ex-Soldado Radiotelegrafista da CCS / QG / CTIG (Bissau, 1968/70)

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Nota do editor

Último post da série de 11 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27207: Parabéns a você (2416): Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 (Gadamael e Quinhamel, 1970/72)

domingo, 14 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27219: Blogpoesia (807): "O nosso segredo", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


O NOSSO SEGREDO

O mais belo segredo da minha vida
onde o horizonte foge contra o tempo
é só nosso e de mais ninguém.

Quando as sombras negras desaparecem
ele procura ver-me na janela dos teus olhos
e tenta falar-me no silêncio do desdém.

Mais além veste-se de branco
de alma enorme e de pão quente
e do eco à volta do teu ninho
nascem reflexos de sol poente
vermelho de sangue em coração de gente.

Não consigo ver-te assim ausente
fora do calor do deserto que aqui mora
sem o dilúvio deste desejo permanente
que enche os verdes rios do meu segredo
e adormece sempre nos alvores da aurora.

Tudo me encaminha para os teus braços
quando te sentas à porta da minha idade
nesta entrada de enganos e algemas
onde o segredo que a vida encarna
entre as mãos livres e serenas
veste de beleza a mentira da verdade.

Quase me obriga a pedir ao vento
uma lufada de Primavera e sentimento
mas as palavras fazem ninho
no mais doce recanto do sofrimento
e adormecem de mansinho.

Vou embora…
São horas de saber se a vida vale a pena
neste dobrar de avessos e fantasias
junto ao rio que os sentidos fazem e desfazem.

Vou  [a] correr para o lado da nascente
sabendo que o rio me arrasta para o fim da tarde
na implacável força da corrente.

Ainda bem que esta margem é clara e amena
e do outro lado é tudo escuro quase negro
mas quando o fogo queima o pensamento
até o segredo azul de um pálido coração
escondido no ventre dos pinheiros
parece verde como o verde da ilusão.


adão cruz

(Revisão / fixação de texto: CV / LG)
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Nota do editor

Último post da série de 12 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27114: Blogpoesia (806): Versejar em Nova Sintra - 3: "Nova Sintra", pelo Cap Fonseca e Silva da CCS/BCAV 2867 (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Alimentação)

Guiné 61/74 - P27218 Efemérides (467): Homenagem do povo de Vila do Conde, no passado dia 9, ao Padre Bártolo Paiva Gonçalves Pereira, capelão-chefe no CTIG (1966/67) e autor do recente livro de memórias "O Capelão Militar na Guerra Colonial" (Virgílio Teixeira, ex-Alf Mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, 1967/69)





Padre Bártolo  Paiva Pereira (n. 3 set 1935, Santo Tirso).
Foi capelão-chefe no CTIG (1966/67); 
é autor de diversas publicações, a última das quais o livro de memórias,
 "O Capelão Militar na Guerra Colonial" (2025).
 Vive em Vila do Conde.


1. Mensagem do Virgílio Teixeira, natural do Porto, a viver em Vila do Conde (foi alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69).

 
Data - terça, 9/09/2025 13:39  
Asunto - Homenagem ao nosso capelão-chefe no CTIG, Padre Bártolo (*)

Caros amigos,

Alguns aspectos da cerimónia de homenagem merecida ao nosso Padre Bartolo, nosso amigo, embora eu não corresponda com idas à missa, a minha mulher faz isso pelos dois.

A ordem (das fotos)  é aleatória, não tem critérios nenhuns.

Na minha apresentação do nosso Padre, esqueci um pormenor importantes, ele após o 25 de Abril, foi para Capelão nos Comandos da Amadora, tornando-se grande amigo do comandante Jaime Neves - já falecido - e no seu livro diz expressamente que foi o melhor militar, e que é "o seu herói" preferido.

Estive a ler a historia dos Capelães militares e a lista de todos e o Curriculum do Padre Bartolo.

Já sabia alguma coisa, mas agora sei muito mais.

Hoje não vou trabalhar mais nisto, porque o meu filho Bruno está a ser operado ao Joelho, e vamos estar ocupados.

Tinha já estas fotos, que envio, mas há mais.

Vila do Conde, 9 de setembro de 2025

Vt



Foto nº 1 > Vila do Conde > ) 9 de setembro de 2025 >  Aspecto geral do interior da igreja matriz. Ao fundo, o padre Bártolo a celebrar a missa


Igreja Paroquial de Vila do Conde / Igreja de São João Baptista IPA.00005249
Portugal, Porto, Vila do Conde, Vila do Conde

Arquitectura religiosa, gótica, manuelina, renascentista. Igreja tardo-gótica de planta em cruz latina com 3 naves de diferente altura e cabeceira tripla, com portal axial manuelino, muito semelhante ao da Igreja de Azuaga na Estremadura espanhola. Torre sineira renascentista. As paredes que formam a nave central e a capela-mor, em toda a sua extensão, estão coroadas por duas ordens de merlões. Grande torre sineira quadrangular, impondo-se à frontaria e a toda a igreja pelo volume e quase ausência de ornamentação, com excepção para o balcão de balaústres assente em mísulas. Pia manuelina. Capela lateral inteiramente forrada a azulejo do séc. 17. O janelão voltado a O. mostra uma cena de Cristo de fortes efeitos cromáticos. Vitrais do princípio deste século executados em Paris, representando a vida de S. João Baptista. (Fonte: SIPA - Sistema de Informação para o Patrim+onio Arquitetctónicvo



Foto nº 2 >  Fachada da Igreja Paroquial de Vila do Conde / Igreja de São João Baptista, monumento nacional desde 1910.

 



Foto n º 3 > Panorama do histórico convento de Santa Clara, visto apartir do hotel Santana do outro lado do Rio Ave, no monte Santana, É o ex-libris da cidade, temn 700 anos de história, é um hotek de 5 estrelas, do grupo Lince.


Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Nota do editor LG:

(*) Vd. poste de 7 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27194: Efemérides (466): Homenagem do povo de Vila do Conde ao Padre Bártolo Paiva Gonçalves Pereira, Capelão Militar em Angola, Guiné e Moçambique, a levar a efeito hoje, dia 7 de setembro (Virgílio Teixeira, ex-Alf Mil SAM)

Guiné 61/74 - P27217: Facebook...ando (94): João de Melo, ex-1º cabo op cripto, CCAV 8351 (1972/74): um "Tigre de Cumbijã", de corpo e alma - Parte XI: Pescadores do rio Grande de Buba, ao amanhecer






Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > Maio de 2025 > "Ao amanhecer em Buba, registei a chegada de pescadores, vindos da sua labuta"


Foto (e legenda): © João de Melo (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Na sua viagem, em maio passado, de Bissau a Cumbijã, no sul, na região de Tombali, o nosso grão-tabanqueiro João Melo, passou por várias das nossas geografias emocionais... E fotografou esses lugares (Bissau, Quinhamel, Bula, Susana, Cacheu, Bambadinca, Saltinho, Buba, Mampatá, Cumbijã...).

Temos procurado, com a sua autorização, fazer uma seleção das suas melhores imagens publicadas na página do seu Facebook. Ele tornou-se um grande conhecedor e um excelente cicerone da atual Guiné-Bissau. Esta foto que acima publicamos, é de uma grande beleza. É a (e)terna Guiné que conhecemos há 50/60 anos.

Recorde-se que o João Melo (ou João Reis de Melo) foi 1º cabo op cripto, CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74).  É profissional de seguros, vive em Alquerubim, Albergaria-a-Velha. Integra a Tabanca Grande desde 2009.

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sábado, 13 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27216: Felizmente ainda há verão em 2025 (33): A natureza tem horror ao vazio... Reflexões, mais ou menos melancólicas, no dia seguinte à primeira vindima de Candoz












Marco de Canavezes > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 13 de setembro de 2025 > Um trepadeira que nasceu na "pedra" da antiga eira.. É o último piso, de quatro, da casa que, reconstruída,  se encaixa perfeitamente numa rocha de granito: 1º piso (ao nível da estrada municipal, M642): "loja" (adega); 2º piso: varanda exterior, entrada principal, hall, cozinha e sala de jantar, 1 quarto, 2 casas de banho; 3º piso: 3 quartos, 1 casa de banho, escadas interiortes; 4º piso:  "salão", com saída para a antiga "eira"... 

No salão está instalado um pequeno núcleo museológico com peças que hoje perderam o seu uso funcional (desde de novelos de linho a aparelhos de rádio, cestos de verga, instrumentos de trabalho, como este semeador manual, em ferro, de duas rodas e guiador de duas mãos; servia para semear milhão, centeio, feijão) ... 

A porta (exterior) que se vê na foto pouca se usa... A trepadeira, sorrateiramente, brotou do chão  que é em pedra, e pôs-se a fazer aquilo quer sabe fazer, que é "trepar"... É caso para dizer: "na natureza nada se perde..." (pelos meus escassos comnhecimentos de botânica, e com a ajuda do Google Lens, acho que se trata de uma  Thalictrum minus subsp. matritense, endémica na Península Ibérica).


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. "Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma"...Parece ser verdade em toda parte, em todos os continentes... Até na guerra, que nos coube em sorte, há 50/60 anos, na então Guiné Portuguesa... 

É verdade na nossa quinta de Candoz, a c. 250 metros acima do nível do mar, na margem direita do rio Douro, a escassos quilómetros da albufeira da barragem do Carrapatelo, nas faldas da serra de Montedeiras. 

Por aqui passou o Zé do Telhado (1816-1875) e o seu bando, a caminho da Casa do Carrapatelo (o mais célebre e o mais funesto dos assaltos cometidos por aquele "capitão de bandoleiros", no dia 8 de janeiro de 1852). Sabemos que o bando, antes do assalto, se reuniu à volta da capela românica de Fandinhães, terra da minha falecida sogra, Maria Ferreira.

Por aqui passaram inúmeros povos desde o neolítico  até ao império romano, mais os visigodos, os mouros, os escravos de África...E passei eu, que vim do Sul... Aqui as antigas florestas de carvalho e castanheiros deram lugar a campos de milho, linho e centeio... E mais tarde a vinhas, com castas indígenas como o pedernã (arinto, no sul), azal, avesso, trajadura, loureiro, alvarinho...

A frase "Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma" é atribuída a Antoine Lavoisier (1743-1794): é uma síntese, de senso comum, do princípio da "conservação da matéria"... A frase não é propriamente do Lavoisier, é uma paráfrase, mas para o caso não interessa. Lavoisier é considerado o pai da química moderna, ao mostrar que numa reação química a massa dos reagentes é igual à massa dos produtos (no seu "Tratado Elementar de Química", 1789).

Eu não sei nada de química. Nem mesmo, desgraçadamente,  da química do vinho... Não vou discutir aqui a validade científica da lei, mas apenas explorar em termos filosóficos e literários o  seu alcance, ilustrado pelas fotos acima. (Parece que a lei é verdadeira no contexto das reações químicas, mas falsa quando falamos de  reações nucleares.)

 Filosoficamente, a frase aponta para uma visão dinâmica da realidade...Na natureza, de facto:
  • Nada se perde → a matéria não desaparece; mesmo quando algo parece “sumir” (por exemplo, o incêndio dos nossos "montes" há 10, 15, 20, 30, 40 anos atrás), apenas muda de forma (pinheiros e mato dão lugar a troncos calcinados,  cinzas, gases, calor, nos pinheiros e mato; os dinossauros morreram há 150 milhões na "formação Lourinhã", mas os seus ossos (e até os seus ninhos de ovos) fossilizaram-se e hoje a minha terra é a "capital dos dinossauros";
  • Nada se cria → não há "geração espontânea", não consigo "produzir" matéria a partir do nada; afinal, o que fazemos é combinar/ recombinar, juntar e reorganizar elementos que já existiam previamente; por exemplo, o granito e a madeira para fazer esta casa, ou o aço pata fazer as cubas do vinho:
  • Tudo se transforma → Os processos naturais e artificiais são, na essência, transformações da matéria (física ou química), em que os átomos se rearranjam em novas combinações; mas o mesmo se aplica às ideias, conceitos, teorias, etc., são a matéria-prima que, depois de processadas,  origina novo conhecimento; com as palavras, em português, escrevo este poste neste blogue.

Em termos literários e filosóficos, a paráfrase de Lavoisier remete-nos para o estatuto que temos no universo: somos apenas "pó de estrelas",  não somos "deuses", não criámos a vida nem a matéria... 

Para quê, afinal, meus queridos, tanta arrogância, orgulho, altanaria, altivez, atrevimento, bazófia, convencimento, empáfia, enfatuação, enfatuamento, imodéstia, insolência, jactância, ostentação, pedantismo, pesporrência, presunção, soberba, sobranceria, vanglória ?!... "Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris" (Lembra-te, ó homem, que és pó e que em pó te hás-de tornar)... (Tiro sempre o barrete ao fidalgo da terra quando vou ao cemitério e passo pelo seu imponente jazigo em mármore.)

Aprendemos, ao longo da nossa evolução, a  transformarmos o que já existia, somos parte da natureza, estamos inseridos numa ordem natural e cósmica que nos ultrapassa, um ciclo maior, o ciclo da vida e da morte. Somos parte da natureza, mas o  que nos diferencia de outros seres vivos, animais e plantas, é afinal a  cultura (da linguagem à poesia, do uso do fogo à da arte da guerra,  da enologia à gastronomia, etc.).

Nada (e muito menos nós) morre por completo. O fim é apenas uma etapa de transformação. O corpo que se desfaz volta à terra, mesmo que sob a forma de cinzas, se formos cremados,  e vai nutrir novas formas de vida. Pelos filhos reproduzimos o nosso ADN. A semente desta trepadeira,  não morreu debaixo do cimento e da pedra da eira da quinta de Candoz... Há dezenas de anos que não se usa a eira para malhar ou secar o milho e o centeio... Dancei nela quando aqui me casei,  em 7 de agosto de 1976... E mesmo assim a trepadeira vai cobrir a parede e a porta e galgar o telhado, se a gente não a arrancar...

Tudo flui, tudo muda. Nada é imutável. A água que nasce nas nossa sminas vai parar ao rio Douro. E até mesmo o que é hoje tragédia, guerra e dor, pode amanhã ser  paz, esperança, sabedoria. As ruínas podem originar beleza (Tongóbriga) , a anarquia e o caos uma nova ordem (albufeira da barragem do Carrapatelo)... 

A natureza tem horror ao vazio... Será ? Reflexões, mais ou menos melancólicas, ao fim do segundo dia da primeira vindima em Candoz que deixou a quinta já meia despida... 

Na próxima sexta feira, 19 de setembro,  vindima-se a outra metade da quinta... Mas nas cubas inox, graças à natureza e à cultura, vai começar a fermentar amanhã o vinho Nita  2025 que, depois depois de engarrafado e de estagiar um ano nas "minas" (de água),  haveremos de beber em 2026... "Aos nossos amigos, aos nossos amores!"... 
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Nota do editor LG:

Guiné 61/74 - P27215: Os nossos seres, saberes e lazeres (700): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (221): Um jardim Zen no Planalto das Cezaredas - 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Julho 2025:

Queridos amigos,
Dá-se continuação à humilde história de como um matagal se metamorfoseou em jardim Zen, não é para deixar o leitor embevecido, mas poder-se-á dar o caso desse mesmo leitor ter uns pedregulhos à volta de casa e pretenda esverdear a paisagem, é o que aqui está a acontecer, dentro daquele processo de ensaio, tentativa, erro, até chegar a uma vegetação adequada a este oceano de pedra, já se viu que aqui podem crescer árvores de fruto, catos, vão se descobrindo plantas resistentes, sempre diante de uma perspetiva de evitar a monotonia dos loendros, sardinheiras e afins. O papel que gosto de representar, quando acordo com genica, é lançar-me num combate com as ervas daninhas, combate interminável, aí não há ilusões. Confesso que me dou por feliz quando, nos fins de tarde com temperatura amena, por aqui deambulo, à procura de novos trabalhos, sabendo de antemão que a natureza é tendencialmente vitoriosa. Mas ser obstinado no combate que lhe reservo é um saboroso sal da terra.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (221):
Um jardim Zen no Planalto das Cezaredas - 2


Mário Beja Santos

Já contei na semana anterior como aqui se chegou e como se foi desvendando os segredos de um matagal que se vai ajardinando como se pode. Os trabalhos de arrancar ervas à volta das casas, nos terraços dão-me imenso descanso à cabeça, não tanto aos vizinhos, tenho um potente gira-discos, posso começar a manhã com o Ouro do Reno, a primeira ópera da Tetralogia, um soberbo Wagner, ou mesmo com a Norma, de Bellini, os vizinhos não se queixam com as altas sonoridades, resta dizer que o trabalho é insano, quando aqui volto é para recomeçar, a natureza não adormece, muito menos as ervas daninhas. Mostro agora ao leitor outros aspetos do jardim Zen, momentos há em que ganha a utopia de que um dia todos estes pedregulhos ficarão esverdeados, mas como em todas as utopias a realidade obriga-nos a descer à terra, o mais importante de tudo é o diálogo entre a pedra a possível flora. Basta de conversa, vamos ver o que ainda falta ver do jardim.


O limite deste jardim Zen é pouco lá mais abaixo, mas gosto muito de me posicionar aqui, primeiro por todo aquele tapete lavrado, terra fecunda, onde a Susana e o Henrique este ano colheram a batata, os feijões foram comidos pelos coelhos, só ficou aquela correnteza à direita, a explicação que me deram é que é um tipo de feijão que os coelhos não gostam, nada percebo do assunto, confio na explicação. Mas o meu jubilo vai para esta vara de ferro onde se prende a macieira que lá vai medrando, as árvores de fruto têm sido cuidadas, na minha ausência a Susana anda por aqui com a extensa mangueira e o verde sai das pedras. Não sei quantos anos serão necessários para eu vir comer algumas maçãs desta árvore
Interstícios à primeira vista impraticáveis para fazer brotar espécies possíveis de flora obrigam a escolhas irredutíveis de catos, e o que se julgava impraticável faz arrebitar esta matéria verde e quando passeio por aqui questiono como irão todos estes catos resistir ao espartilho da pedra
Que grande surpresa! Junto ao caminho vicinal vai medrando a buganvília, parece-me temerosa no seu crescimento, só lhe desejo longa vida, gosto muito deste pintalgado cor de sangue a confrontar-se com o loendreiro e aquele espantoso cato que já o vi tão pequenino e que vai inchando e escondendo a pedra
Pareceu-me interessante mostrar a temerosa buganvília num plano que mostra uma das casinhas, esta tem à entrada um guarda-loiça gigantesco, que chegou aqui às peças, sr. José António montou-o e envernizou-o, à entrada fica-se com a ilusão de que estamos em casa de grandes proprietários rurais, há mesa para comer, sofá para ler e dormir, segue-se o espaço da cozinha e há portas que ligam à casa de banho e há um quarto que tem a vista mais espetacular sobre o vale e a correnteza de moinhos, lá no alto, onde a Junta de Freguesia de Reguengo Grande mandou fazer um miradouro
Vista de moinhos e miradouro, a vegetação envolvente é a mesma que encontramos nos quatro concelhos por onde se estende o Planalto das Cezaredas
Guardo um certo pendor neorromântico, havia que aproveitar este banco que estava numa casa em Tomar, o sr. José António fez-lhe uns calços em pedra, pode imaginar-se uma tarde acalorada, vem-se para aqui com um livro e goza-se a sombra da figueira, guardo-lhe um certo rancor, dá uns figos pequeninos e imprestáveis; ora, num dos terraços das duas casas tive a sombra da figueira do sr. Raul, era uma fragância que dava gosto, não há bem que sempre dure, veio uma noite de tempestade que matou a figueira, tenho agora este refúgio e faço questão de dizer que o banco é regularmente limpo e tratado, como em breve vai acontecer
Temos aqui uma fronteira entre o jardim Zen e os arvoredos que pertencem à Susana e ao Henrique, lá no alto dá para ver habitação e até moinho. Na época dos figos, estou autorizado a apanhar o que esta figueira oferece.
Um outro ângulo da lavoura da Susana e do Henrique, lá ao fundo algum casario do Reguengo Grande
Quem diria, temos aqui o mais inesperado dos lírios, quem passeia pelo Planalto sente as alegrias de encontrar plantas silvestres e de grande beleza, a começar pelos lírios bravos
Despeço-me com outra vista do miradouro, às vezes adormeço a recordar a formosura agreste da região, pródiga em vinhas e fruta, mas aqui o que conta é este vale úbere e o esplendor da cercania. Até à próxima.
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Nota do editor

Último post da série de 6 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27190: Os nossos seres, saberes e lazeres (699): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (220): Um jardim Zen no Planalto das Cezaredas - 1 (Mário Beja Santos)