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quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27389: Historiografia da presença portuguesa em África (502): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1947 (60) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2025:

Queridos amigos,
Vale a pena ler a publicação da Agência Geral das Colónias referentes à viagem do engenheiro Ruy de Sá Carneiro, Subsecretário de Estado das Colónias à Guiné, chegou a Bissau em 27 de janeiro e regressou em 24 de fevereiro, andou numa dobadoira, Sarmento Rodrigues não lhe deu descanso, logo no dia seguinte começou a fazer inaugurações em Bissau, no Bairro de Santa Luzia e das instalações de abastecimento de água à cidade; no dia seguinte acompanhou os trabalhos da barragem de Picle, depois visitas a obras, a escolas, a hospitais, andou por Mansoa, Canchungo, Cacheu, Barro, S. Domingos, Suzana e Varela, Farim e Bafatá, Gabu, Fá, Bambadinca e Xitole, Porto Gole, Fulacunda e Catió, Guileje, Bolama, Bubaque, missões geohidrográfia e geológica... Era o espelho de uma dinâmica imprimida por aquele governador que chegara em 1945 e que logo anunciara vir por pouco tempo e ter muitas coisas para fazer, primeiro acabar as obras que vinham do passado, trazia um enorme entusiasmo para inaugurar muitas outras coisas, o que de facto aconteceu.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, 1947 (60)

Mário Beja Santos

1947 é um ano marcado pela visita do Subsecretário de Estado das Colónias, Engenheiro Ruy de Sá Carneiro, chega a Bissau em 27 de janeiro, tem à sua espera um programa trepidante, dão-se só alguns exemplos: inauguração do Bairro de Santa Luzia, para indígenas; visita aos trabalhos de aproveitamento agrícola na barragem de Picle, visita ao Asilo de Bor, visita ao Forte de Cacheu, festa dos Felupes em Suzana, grande desfile de indígenas em Bafatá, visita à serração de Fá, aos novos edifícios e obras em curso em Porto Gole, inauguração do Palácio do Governo em Bolama, depois de reconstruído… isto é só uma amostra.

Mas vamos pôr o foco em Sarmento Rodrigues, continua a trabalhar a um ritmo acelerado. A agricultura está manifestamente no topo das suas preocupações, mas quer reforçar a malha administrativa, exibir as potencialidades que a colónia oferece, são remodelados os serviços geográficos e cadastrais, melhorados os serviços da estatística, decorre uma exposição em Bissau, dão-se amnistias que são concedidas em homenagem às comemorações do quinto centenário da descoberta da Guiné. Vejamos agora a legislação.

No Suplemento ao n.º 4, Boletim Oficial n.º 5, de 27 de janeiro, publica-se uma Portaria de Marcello Caetano, as armas, bandeira e selo da cidade de Bissau:
Armas – em campo de prata, uma torre de vermelho, aberta e iluminada do mesmo esmalte, entre duas cabeças de negro toucadas também de vermelho. Coroa mural de ouro de cinco torres. Listel branco com os dizeres – Cidade de Bissau.
Bandeira – esquartelada de vermelho e de negro. Cordões e borlas de vermelho e de negro. Haste e lança douradas.
Selo – circular, tendo ao centro as peças das armas sem indicação dos esmaltes. Em volta, entre duas circunferências concêntricas os dizeres: Câmara Municipal de Bissau.

A modernização também se irá refletir no Código da Estrada da Guiné Portuguesa, consta do Suplemento ao n.º 23, no Boletim Oficial n.º 17, de 14 de junho, não deixa de ser uma curiosidade no artigo 29: “Nenhuma viatura de tracção animal pode circular ou estacionar na via pública desde o anoitecer ao amanhecer, sem que tenha acesa uma luz branca, pelo menos, na frente do lado esquerdo. Nos carros de bois poderá a lanterna ser conduzida na mão do respectivo carreiro. Quando os veículos formarem comboio, o primeiro veículo deve ter, pelo menos, uma luz na frente e o último uma luz vermelha na retaguarda.”

São reiterados os diplomas sobre o pagamento de pensões aos funcionários aposentados, os proventos da Segunda Guerra Mundial permitem agora abrir os cordões à bolsa. Das palavras que irá enviar ao Jornal da Marinha Mercante, número que ia ser publicado em 15 de dezembro de 1946, Sarmento Rodrigues alude ao comportamento da Guiné com a metrópole, mais propriamente de Portugal, durante o conflito mundial: “Abundantes fornecimentos de oleaginosas evitaram danos que não é fácil avaliar; arroz em apreciáveis quantidades foi enviado para Cabo Verde, Madeira e Açores e até para a própria metrópole; metade da borracha que em Portugal se consumiu, durante esse período de dificuldades, foi a Guiné que a remeteu; e até açúcar, que a Colónia não produz, pôde ser devolvido para Portugal, mercê das economias que se produziram fazer.”

Chega o Subsecretário de Estado das Colónias, tem logo uma tirada de exaltação nacionalista: “Eu espero ver, nesta Guiné fabulosa, dos primeiros aos últimos colonizadores, os representantes da flor dos obreiros que através desse Mundo esculpiram o nome português nas estrelas e nos mares, nas pontes finas das terras e nas bocas largas dos rios, nas altas montanhas e nos baixos traiçoeiros, nas pessoas e nas coisas.” O governador está animado de uma esforçada fadiga de fazer, fazer depressa, mas sólido e honrado. Como dirá, dirigindo-se aos Papéis de Biombo, em Picle, a 29 de janeiro:
“A gente que hoje não tem vista capaz de alcançar o fim das bolanhas cheias de arroz; a gente que tem nas suas moranças os telhados cobertos de espigas a secar e nos quartos os celeiros atulhados; a gente que rodeia as tabancas com altos cercados com belas plantações de mandioca; os que tiveram campos de milho e batata doce, os que têm manadas de vacas e porcos de cortelho e galinhas nos pátios – são os mesmos que no ano passado passavam fome, porque as bolanhas eram lalas e os cercados eram palha; e por isso, em vez de arroz comeram os frutos do tarrafe, cozidos vinte vezes, como aqui me disseram.”

Fazer e fazer depressa. No Suplemento ao n.º 29 do Boletim Oficial n.º 22, de 21 de julho, temos a publicação da Portaria n.º 50, a criação do Asilo de Bissau, destinado a receber mendigos inválidos, de ambos os sexos, que não tenham paredes para prover ao seu abrigo e sustento. Atenda-se à filosofia do diploma: embora o asilo se destine principalmente aos indígenas, poderá, em casos excecionais, albergar qualquer civilizado que se encontre em extrema necessidade; o asilo começará por receber os homens velhos, devendo, à medida que as suas instalações e rendimentos aumentem, promover o abrigo de todos os mendigos, de ambos os sexos; os fundos do asilo serão os provenientes dos donativos públicos e dos subsídios concedidos pelo Governo da Colónia, câmaras municipais, administrações das circunscrições e outros organismos; a assistência sanitária será prestada gratuitamente pelos serviços de saúde.

No Boletim Oficial n.º 30, de 28 de julho, é louvado o Administrador de Circunscrição Fernando Rogado Quintino “pela muita dedicação, competência e extraordinária atividade que tem demonstrado no desempenho do seu cargo, levando a efeito, com zelo incansável empreendimentos notáveis onde sobressaem – além das obras das enfermarias, residências, postos sanitários, pontões, fontes e outras - a construção da nova ponte de Mansoa, com nova estrada e aterros, e a ponte metálica de Bissorã”. Nesse mesmo dia é também louvado o 2.º Tenente Avelino Teixeira da Mota “pelos serviços extraordinários e importantes efetuados com os incansáveis e aturados estudos, trabalhos de campo e colheita de elementos para a elaboração da nova carta geográfica e etnográfica da Guiné Portuguesa”. Mas há aqui um outro aspeto que prende a atenção. O chefe da missão do estudo e combate da doença do sono tinha considerado atacados de tripanossomíase um conjunto de indígenas de Bolama e da ilha das Galinhas, e por isso o governador isentava-os de pagamento de imposto de palhota ou capitação e de quaisquer outras contribuições ou impostos a que estejam sujeitos.

Por último, e numa outra dimensão das preocupações deste governador temos no Boletim Oficial n.º 31, de 4 de agosto uma portaria referente ao plano de urbanização da praia Varela, tinham sido abertas as novas ruas e plantadas muitas dezenas de milhares de árvores, em matas e pomares, edificado um posto sanitário, feita a captação de água e iniciada a construção da central elétrica e da torre de água, e então escreve-se: “É tempo de se considerar uma realidade a tentativa de criação de uma estância de repouso e de lhe dar todo o seguimento que as finanças permitam e as necessidades aconselhem, a fim de que os funcionários e particulares possam o mais cedo possível gozar-lhe os benefícios. Para estes últimos está reservada uma grande área residencial onde poderão desde já escolher os seus talhões e fazer as vivendas. Para os funcionários impõe-se ir gradualmente edificando por conta do orçamento geral da colónia e também pelos das circunscrições. O Governo está fazendo e continuará a fazer novas obras. Às circunscrições assiste o dever de contribuir levantando à sua custa casas que são suas.”

No final da sua viagem à Guiné, o Engenheiro Ruy de Sá Carneiro escreverá que tal digressão lhe permitira constatar o nacionalismo vibrante das populações e tomar contacto com os primeiros resultados das medidas de grande vulto que se estavam a empreender.


Sarmento Rodrigues na Ilha Roxa com as autoridades locais
Em Bubaque com o régulo Gen-Gen
Carta da Guiné de 1933
O porto de Bissau em tempos recentes

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 29 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27364: Historiografia da presença portuguesa em África (501): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1946 (59) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27388: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (113): Nunca desistir é a mensagem que pretendo transmitir aos camaradas que tenham em curso, ou venham a iniciar algum processo, para atribuição de incapacidade resultante de ferimentos sofridos em combate ou acidente, ocorridos durante a guerra colonial (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

1. Em mensagem de 1 de Novembro de 2025, o nosso camarada Aníbal José Soares da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), descreve-nos a sua odisseia para conseguir provar que o incidente de que foi vítima no dia 4 de Agosto de 1969 lhe provocou lesões oculares irreversíveis com consequências para toda a vida.


NUNCA DESISTIR

Nunca desistir é a mensagem que pretendo transmitir aos camaradas que tenham em curso, ou venham a iniciar um processo, relativamente à atribuição de incapacidade resultante de ferimentos sofridos em combate ou acidente, ocorridos durante a guerra colonial.

Volto a dizer “nunca desistir”, porque o processo que iniciei naquele sentido, foi uma autêntica odisseia.

Resultante das lesões oculares sofridas no incidente de 04 de Agosto de 1969 (ver Poste 26820), que originou um processo por ferimentos em combate, restaram sequelas. Porque anos mais tarde sentia desconforto e diminuição da visão, no dia 2 de Abril de 1991 entreguei na Secção de Justiça do DRM – Porto, um requerimento ao qual juntei um relatório médico, solicitando ser obervado no Hospital Militar do Porto, para verificação das sequelas e eventual atribuição de uma incapacidade.

Em 17 de Dezembro de 1992 fui presente à consulta de Oftalmologia no HMR1, tendo o especialista declarado “Não se encontra abrangido pela Tabela Nacional de Incapacidades pelo que não se justifica qualquer taxa de incapacidade. Deve ser enviado à Exma. JHI para os devidos efeitos”.

Em 12 de Janeiro de 1993 fui presente à JHI que me julgou “Pronto para todo o Serviço Militar” e portanto sem atribuição de qualquer incapacidade. Uma Junta Médica (JHI) é sempre constituída por três médicos, mas aqui só estive perante um Capitão, eventualmente médico, que não me observou, não dialogou comigo, limitamdo-se a comunicar o atrás referido.

Porque os problemas oculares continuavam, no dia 12 de Outubro de 2005 fiz novo “REQUERIMENTO PARA PEDIDO DE REVISÃO DE PROCESSO POR ACIDENTE/DOENÇA EM SERVIÇO” ao qual juntei novo relatório médico. Daqui resultou que passados 18 meses, no dia 30 de Maio de 2007, fui presente a uma JHI (Oftalmologia) e desta vez sim, na presença de três médicos, que após observação emitiram a seguinte decisão “H.M.R 1 – incapaz de todo o serviço militar, apto, parcialmente para o trabalho com 23,5 de desvalorização”, baseando-se nas seguintes lesões: epíforas e conjuntivites crónicas e bilaterais.

Julgava eu que passados mais alguns meses passaria a receber uma indemnização, cujo valor monetário desconhecia totalmente. Puro engano, o processo andou a saltar durante SETE ANOS E MEIO, de organismo em organismo, tais como: Ministério da Defesa; Direção de Justiça e Disciplina; Arquivo Geral do Exército; Direção de Saúde, Comissão Permanente Para Informações e Pareceres e finalmente a Repartição de Reserva Reforma e Disponibilidade.

É aqui que nunca devem desistir, pois, apesar da atribuição da incapacidade em Junta Médica, não é certo que venhas a receber qualquer pensão, ou então, não na totalidade da incapacidade atribuída.

Os vários organismos vão tentar tudo para não te darem a merecida desvalorização e é preciso estar atento e contestar os pareceres que vão emitindo, tais como: a inexistência de nexo causalidade entre as lesões diagnosticadas e o acidente sofrido; alterando a profissão de modo a que incapacidade seja reduzida para metade (1) e referindo que as sequelas das lesões sofridas não podem ser resultantes do acidente (2), mas sim de causa orgânica (doença).

• (1) - na vida civil fui empregado de escritório, mas classificado como carpintero neste processo. Como o empregado de escritório necessita mais da visão que o carpinteiro, logo aqui e segundo a Tabela Nacional de Incapacidades, que eu conhecia bem por motivos profissionais, a desvalorizção baixava para metade. Tive de contestar, o que logo originou atrasos de meses na resolução do caso.
• (2) – A Direção de Saúde disse que as sequelas das lesões tinham origem em doença bacteriológia e não traumática (acidente), o que tive também de contestar e daí mais uns meses de espera.

Foram sete anos e meio de muita luta, muita paciência, mas consegui ganhar o processo e a desvalorização na totalidade. Ver anexo NOTAS, onde tudo registava, tal como: telefonemas; contactos pessoais, cartas e emails, etc, num total de 11 páginas.

Para concluir o processo e começar a receber a pensão, faltava uma última etapa, uma Junta Médica na Caixa Geral de Aposentações, a entidade pagadora, que foi feita e posterior publicação no Diário da Républica.

A Pensão é paga a partir da data da realização da Junta Medica que determinou a incapacidade, pelo que tive direito a receber os retroativos dos sete anos e meio e depois passei a receber mensalmente, por débito em conta, através da CGA.

Uma última questão, só quem tem uma incapacidade igual ou superior a 30% é que é considerado Deficiente das Forças Armadas, que para além da pensão, tem outras regalias.

Arcozelo/Gaia
01 de Novembro de 2025
Aníbal Silva

_____________

Notas do editor:

1 - Citando Aníbal José da Silva no seu Poste 26820 de 29 de Maio de 2025:

[...]
Chegado à base de Bissalanca segui de ambulância para o Hospital Militar. Fui colocado não sei onde deitado na maca. Não sabia se estava no chão ou em cima de qualquer coisa. Com a mão direita de fora da maca, tocava no que me rodeava e conclui que estaria no chão pois sentia uma superfície fria e lisa.

As pessoas passavam por mim mas não ligavam nenhuma. As dores nos olhos e o rubor na cara era escaldante. Comecei por insultar quem por mim passava, chamando-lhes filhos desta e daquela, até que alguém, creio que era um sargento pois chamaram-lhe assim, veio ter comigo e perguntou a outros o que é que aquele homem estava ali a fazer. Responderam que estava à espera do oftalmologista. Era uma segunda-feira e o médico devia ter ido passar o fim de semana à ilha dos Bijagós. Mas o sargento ordenou que eu fosse de imediato ao RX para a eventualidade de ter algum estilhaço no corpo, o que felizmente não se veio a confirmar. O médico chegou e mandou-me para a sala de observações, onde permaneci três dias.

Foi iniciado o tratamento prescrito, que consistia na lavagem dos olhos várias vezes ao dia e mesmo durante a noite, mais umas injeções não sei para quê. Ao fim da tarde desse dia, ouvi passos que vinham na minha direção. Abeiraram-se da cama e uma voz perguntou: “Rapaz de onde és e o que te aconteceu?”. Reconheci logo a voz do General Spínola e resumidamente respondi. O acompanhante habitual do general era o Capitão Almeida Bruno, que me perguntou se eu sabia com quem estava a falar. Respondi que era o General Spínola e ele o Capitão Almeida Bruno. No dia seguinte voltaram a visitar a sala de observações, tomando conhecimento dos que chegaram nesse dia. Era do conhecimento geral, que desde sempre, os dois ao fim da tarde iam ao hospital quase todos os dias. De madrugada entrou alguém na sala a gemer e a berrar. Era uma parturiente que horas mais tarde deu à luz uma bebé.

O barbeiro do hospital, de dois em dois dias, ia-me fazer a barba e eventualmente aparar o cabelo. Para ir ao refeitório, nos primeiros dias, era acompanhado pelo cabo enfermeiro, que me ensinou a fazer o percurso sozinho. Saía da porta da enfermaria, dava quatro passos em frente atravessando o corredor e tocava na parede, virava à esquerda e caminhava uns tantos passos ao longo da parede até ao início da escada, depois à direita, descia seis degraus, contornava o patamar e descia mais seis degraus até à entrada do refeitório. Quando entrava diziam, lá vem o ceguinho, quem é que lhe vai dar a sopa na boca e cortar o bife? Obviamente que meter a sopa na boca era exagero, era uma brincadeira, mas o restante sim, precisava de ajuda. No trajeto inverso contava os mesmos degraus e dava os mesmos passos. Na cama não podia estar de barriga para cima, porque a deslocação de ar provocado pelas enormes pás das ventoinhas colocadas no teto, ao bater nas pálpebras agravava as dores.

[...]

2 - Último post da série de 27 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27358: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (112): Através do nosso blogue, na pessoa do camarada Manuel Domingos Ribeiro, soubemos do falecimento do Fur Mil Art Silva da CART 6552/72 (João Ferreira / Manuel Domingos Ribeiro / Carlos Vinhal)

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27387: Facebook...ando (95): Tenente-General PilAv António Martins de Matos, ex-Tenente PilAv da BA-12 (Bissau, 1972/74): Acabo de completar 80 anos. É obra


Caros Amigos,
Acabo de completar 80 anos. É OBRA. Quero agradecer as vossas amáveis palavras, mas, a bem da verdade, há muito que deixei de comemorar os meus aniversários. Prefiro meter-me no carro, ir passar o dia a um qualquer lugar, bem longe. No ano anterior fui até Bragança, desta vez Viana do Castelo. Passo seguinte, telemóvel em OFF, um Cutty-Sark, duplo e sem gelo, tempo de recordar os meus “Fantasmas”.

Aos 2 anos, os meus pais a alugarem uma casita no Cacém, nesse tempo havia uma crise de habitação. Aos 4, o regresso a Lisboa, aos 7, a experimentar um cigarrito, aos 10, o Pedro Nunes e várias idas ao Aeroporto, ver os aviões. Aos 14, marinheiro, até Al-Faw, lá no topo do Golfo Pérsico, ida e volta, 12.000 milhas. Aos 16, baptismo de voo num Comet-4 da BOAC, até Londres, um mês, a aprender inglês… e outras coisas. Aos 18, piloto civil, o meu pai a suspirar, gostava que eu fosse para a Marinha. Aos 24, um belo Alferes Piloto-Aviador e o fim de um Projecto apenas iniciado, com passagem por vários hospitais, lágrimas e más memórias.

Aos 25, a subida ao topo da escala aeronáutica, “Falcão”. “Guerra ou Paz, Tanto me Faz”.

Aos 27, África e a Guerra Colonial. Na primavera de 73 e na Guiné, cinco pilotos abatidos por mísseis Strela. Alguns ”Falcões” de imediato a renegarem o “Lema”, a declararem-se “inoperativos”. A afrontar o inimigo apenas dois Coronéis, dois Capitães e um Tenente. Várias idas ao estrangeiro, a levar ferro do grosso, até a situação estabilizar. Essas missões valeram a Moura Pinto e Lemos Ferreira (eram os Chefes) as Medalhas de Valor Militar com Palma, Grau Prata. Os outros três, Pinto Ferreira, Bessa Azevedo e eu… esquecidos.

Regresso de África e o 25Abril. Mais uns meses e lá me atribuíram uma Medalha, a das Campanhas, igual à que foi imposta ao cozinheiro da BA-12. E apenas “Atribuída”! Tive de a ir comprar à Casa Buttuller.

O Verão Quente a chegar, época conturbada. Por termos andado a defender a Pátria fomos apelidados de “fascistas e colonialistas”, os “renegados” logo a passarem a “revolucionários”. Foi por essa altura que, em vez de um carro do tipo “proletário”, apareceu um belo Porsche. Que um homem não é de pau, também precisa de alguns miminhos. No seguimento, demasiadas aventuras e algumas muito confusas paixões…

Aos 30, um muito paciente instrutor de jovens candidatos a aviadores, ainda uma outra função, piloto de acrobacias, nos ASAS, com o meu 2414 por essa Europa, a escrevinhar autógrafos nos mais “variados locais”.

Aos 35, o passo mais importante da minha vida, nova família, uma linda mulher e dois filhos maravilhosos.

Aos 40, Gestor de um Projecto de muitos milhões, levado a bom porto, graças a uma fantástica Equipa.

Viagens foram muitas, de Trondheim a São Paulo, de LA e Vegas (onde ganhei na roleta) a Cabul (onde perdi aos matraquilhos). Molhei os pés no Pacífico. Também vivi em Bruxelas, armado em Diplomata, de fato e gravata, “Muito agradeceria a Vossa Excelência”…, e Madrid, “Olé Conho, rápido, quiero un café-solo y dos churros”.. A minha cidade preferida, Viena, andei por lá, tudo com muita calma, que o stress mata.

Uma nova medalha, já não precisei de a ir comprar, chegou via DHL, numa caixa, embrulhada em celofane.

Comandar uma Base Aérea foi uma experiência inesquecível. No final, um “Adeus e vai-te embora.”. Fui.

Foi preciso ser promovido a General para, finalmente, alguém “Importante” e em Cerimónia com alguma “Pompa e Circunstância”, me pendurar uma medalha ao pescoço. Foi o Ministro da Defesa… de Espanha.

Aos 58, Comandante do CAOC-10, Monsanto. Reuniões NATO no Funchal, demonstrar que a Madeira também é Portugal. Agradecimentos pelo General Americano Moorhead, Comandante do AIRSOUTH.

Aos 61, Comandante Logístico da Força Aérea, tempo de mudar alguns caducos conceitos e antigos vícios.

Foi já em final de carreira que se esmeraram, uma de “Serviços Distintos”. Desta vez foi mesmo a valer, o meu amigo TM a picar-me a “fatiota”. Não percebi lá muito bem a oportunidade de tal miminho, fiquei encabulado e vaidoso, muito vaidoso. Interessante como agora, nestes tempos de paz e do “faz de conta”, não há General que não ostente garbosamente uma “meia dúzia” dessas medalhas. Outros tempos…

Ainda a contemplar a medalha e logo a ser ultrapassado por um famoso arrivista, habitual “pisador de alcatifas”. Que lábia não lhe faltava. O FIM DA LINHA. Passagem imediata à Reserva e Reforma.

Uma nova fase, escrever. Publicados dois ensaios e três romances. Um mau negócio, todos a engordarem à minha custa, o Editor, o Distribuidor, o Livreiro e o Estado. Ficou apenas e só o muito gozo da coisa.

E eis-me chegado aos 80 anos. Tempo de descanso? Não. Ainda tenho algum trabalho pela frente.

Continuo à espera que a FAP se resolva a homenagear os seus 371 militares que “Morreram Voando”. Demasiados. Para quando um condigno Monumento? Nos Carvalhos e a recordar aquele triste acidente de 1955, já lá existem, um Obelisco, uma Capela, duas feias Esculturas e, com o apoio do cacique local, uma muito concorrida Romaria. Será… Oportunismo?

Masoquismo? Ou apenas… dois pesos e duas medidas?

E para quando um Memorial aos 45 (de Tenente-Coronel a 1.º Cabo) que “Morreram em Combate”?
A Pergunta: Por que razão a FAP vai negando a sua História? Será Esquecimento? Indiferença? Vergonha?

As “Chefias” já não são do tempo da guerra. Talvez por isso, vão permanecendo quietas e mudas, a olharem para o umbigo, à espera que o seu comprometido silêncio lhes possa valer alguma nova Mordomia. Que coleccionar medalhas tem alguns truques, saber pisar alcatifas e mostrar os dentes aos políticos é muito mais rentável (e seguro) que ir à guerra. Há quem já precise de ”reforçar as entretelas”. Isso sim, é que é OBRA!

Enquanto tiver forças e o meu amor de há 45 anos me aturar, não me calo. Para que conste!

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Notas do editor:

Vd. post de 3 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27380: Parabéns a você (2429): Tenente-General PilAv Ref António Martins de Matos, ex-Tenente PilAv da BA 12 (Bissau, 1972/74)

Último post da série de 14 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27217: Facebook...ando (94): João de Melo, ex-1º cabo op cripto, CCAV 8351 (1972/74): um "Tigre de Cumbijã", de corpo e alma - Parte XI: Pescadores do rio Grande de Buba, ao amanhecer

Guiné 61/74 - P27386: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 3 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte III: um documentário de hora e meia, que diz muito (até pelo que omite) sobre o que era o "ultramar português" há 90 anos



Título original: I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente. Realização: San Payo. Portugal (1936). A preto e branco.Sem som, com intertítulos. Duraçáo: c. 1 hora e meia. Clicar aqui para ver o vídeo:

 http://www.cinemateca.pt/Cinemateca-Digital/Ficha.aspx?obraid=1378&type=Video


Caro leitor: caso não consigas visualizar o vídeo, por favor verifica se o endereço completo da página indica http://www.cinemateca.pt (e não https://www.cinemateca.pt/)

Deverás, ainda, utilizar apenas os browsers Firefox, Google Chrome ou Microsoft Edge

Se o browser forçar o s, este deverá ser eliminado manualmente.

Resumo análitico: 

  • até  8' >  Lisboa (despedida e partida do navio); viagem até Cabo Verde;
  • 8' - 23' > Cabo Verde (Mindelo, Praia, interior);
  • 23' - 37' > Guiné (Bissau e Bolama);
  • 37' - 46' > São Tomé e Príncipe (incluindo em São Tomé, visita às roças Água Izé, Monte Café, e Rio do Ouro; no Príncipe, roça não identificada):
  • 46' - 91' > Angola (Luanda, rio Dande, Catete, Dalatando, Casengo, Porto Amboim, Gabela, fazenda de café, Lobito, caminho de ferro de Benguela,  empresa de Cassequel, Catumbela,  Ganda, Moçamedes, foz do rio Bero, regersso a Luanda, minumento aos mortos da Grande Guerra, batuques, desfile) (incluindo visita à fazenda Tentativa, à granja S. Luiz e outras fazendas não especificadas, além da Estação Zootécnica e missão na Huíla).

Regsiste-se que  só as visitas a Luanda, Lobito e Moçâmedes duraram mais do que um dia,  nos restantes locais, os "excursionistas" ficaram apenas algumas horas. Em 1935, a organização do cruzeiro teve de enfrentar muitos problemas logísticos (a falta de viaturas automóveis à péssima rede viária e hoteleira).


1.  A Cinemateca Nacional, no seu portal "Cinemateca Digital", tem um documentário, de longa duração, sobre este 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente. Ainda não o vi todo, mas achei-o uma "delícia"... 

É uma reportagem completa do cruzeiro, com imagens  e informação muito "interessantes" das quatro "colónias" visitadas, além de pormenores da partida e da vida a bordo. Um documentário, raro, com 90 anos, que diz muito (até pelo que omite) sobre o "ultramar português".

 Realizador: San Payo (Manuel Alves San Payo, 1890-1974), fotógrafo, com a colaboração de A. Costa Macedo.

Sinopse: mostra a viagem do paquete "Moçambique" a Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe e Angola entre agosto e outubro de 1935.  O cruzeiro coincidiu com as férias escolares.

 O navio, a vapor, "Moçambique", pertencia à  CNN, será abatido, quatro anos depois, em 1939, e substituido por um novo "Moçambique", a motor, maior e melhor.

A iniciativa foi da revista "O Mundo Português", com apoio do Secretariado da Propaganda Nacional e Ministério das Colónias.

A revista era editada pela Agência Geral das Colónias e pelo Secretariado da Propaganda Nacional. 

Os "excursionsistas" foram à volta  de 200 ( e não 250),  incluindo 7 dezenas de estudantes , considerados os melhores alunos na conclusão do curso geral dos liceus (entre eles,  o Ruy Cinatti).

O mentor do projeto, que tinha como objetivo cativar as jovens elites do país para a questão colonial, foi Marcelo Caetano, então com 29 anos, e já brilhante professor de direito administrativo na  Faculdade de Direito de Lisboa, e intelectual orgânico  do regime. Foi também ele  o "diretor cultural" do cruzeiro.

Outros dados da ficha técnica.

Apoio Financeiro:   SPN - Secretariado da Propaganda Nacional
Produção:   Agência Geral das Colónias

Duração: 01:31:13,  a 24 fps
Formato: 35mm, PB, sem som (com intertítulos)
AR: 1:1,33
ID CP-MC: 7002384
 
 Caro leitor: caso não consigas visualizar o vídeo, por favor verifica se o endereço completo da página indica http://www.cinemateca.pt/ (e não https://www.cinemateca.pt/). 

Deverás, ainda, utilizar apenas os browsers Firefox, Google Chrome ou Microsoft Edge. Se o browser forçar o s, este deverá ser eliminado manualmente.

Observações -  Tratando-se de um documentário sem som síncrono,  o realizador recorreu aos intertítulos (no fundo, as velhas legendas usadas para apresentar diálogos ou explicar a narrativa entre as cenas ou sequèncias no cinema mudo)

Eram cartões de texto filmados e inseridos durante a montagem do filme para ajudar o público a compreender a narrativa,  uma vez que não havia som sincronizado.

Com atraso de vários anos em relação aos EUA ("O Cantor de Jazz", o primeiro filme falado, é de 1927), em Portugal, a transição para o cinema sonoro de ficção   deu-se no início da década de 1930, com a estreia de "A Severa", realizado por Leitão de Barros, em junho de 1931. 

Mas a verdadeira consolidação e popularização do som no cinema português deu-se com "A Canção de Lisboa", em 1933, que teve um enorme sucesso.  É o primeiro filme a ser totalmente produzido em Portugal (nos laboratórios da Tobis). 

Por razões de produção, financeiras e técnicas, os documentários continuarão a fazer-se sem som síncrono até muito tarde, início dos anos 60.~

Além dos expositores (que mostravam os seus produtos a bordo), houve outras
empresas que fizeram publicidade no roteiro, ajudando assim ao encaixe necessário para o financiamento da viagem, que contou ainda com 150 contos dados pelo governo, mais as receitas das inscrições dos excursionistas.

O filme acabou por ser uma deceção, não chegando a passar nas sslas de cinema: ao que parece, o filme da viagem terá sido projectado apenas uma vez, no S. Luiz, em Lisboa, a 29 de junho de 1936, e apenas para os participantes do cruzeiro.


2. Sobre a Cinemateca Digital:

A Cinemateca Digital nasceu em 2011 da participação portuguesa no projecto European Film Gateway – consórcio constituído por 16 cinematecas e arquivos fílmicos europeus enquanto fornecedores de conteúdos e 6 entidades fornecedoras de serviços tecnológicos –, que funciona como agregador sectorial para o portal Europeana.

Para a selecção das obras a fornecer no âmbito desse projecto, a Cinemateca adotou como critério o tema da produção portuguesa de não-ficção do período 1896-1931, consubstanciado nas representações digitais dos seguintes materiais:

a) 170 filmes;
b) material gráfico (fotografias, cartazes, anúncios);
c) textos (de época ou posteriores).

Desde essa altura, a Cinemateca Digital não parou de crescer com a inserção de novas representações digitais de filmes para consulta em linha, numa perspectiva de ampliar o acesso ao património fílmico que tem vindo a ser conservado e preservado pela Cinemateca ao longo dos anos.

Assim, a lista de títulos e o universo seleccionado têm vindo a alargar-se, estando atualmente disponíveis mais de 1700 filmes nesta plataforma.

O acesso à colecção digital pode fazer-se mediante pesquisa ou por navegação através dos filtros.

Os conteúdos da Cinemateca Digital estão também disponíveis através dos portais Europeana (www.europeana.eu) e European Film Gateway (www.europeanfilmgateway.eu).

O acesso à Cinemateca Digital tem apenas como fim a consulta e visionamento em linha dos filmes ali representados digitalmente. Para qualquer outro tipo de utilização das imagens, deverão consultar-se os serviços do arquivo da Cinemateca, através do seu Departamento ANIM. 

______________

Notas do editor LG:

(*) Vd. postes anteriores da série  


3 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27381: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 3  de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte II

(**) Vd. poste de 8 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17331: Notas de leitura (954): Ruy Cinatti e uma viagem a Bolama, 1935, em “O Mundo Português”, revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais, o seu número 24, de Dezembro de 1935 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27385: Os nossos enfermeiros (21): Tirei o curso de enfermagem (3 meses) na Escola de Serviço de Saúde Militar (Lisboa, à Estrela) com estágiuo de 8 meses no HM Porto (António Figuinha, ex-fur mil enf, CCS / BCAÇ 2884, Bissau, Buba e Pelundo, 1969/71)


1. Mensagem de António Figuinha, ex-fur mil enf, CCS/BCAÇ 2884 (Bissau, Buba e Pelundo, 1969/71).

O António Sebastião Figuinha mora em Miratejo,  Seixal. É membro da Tabanca Grande, nº 861, bem como da Magnífica Tabanca da Linha. 

Tem 15 referèncias no nosso blogue. É autor da série "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (de que se publicaram 10 postes).

Esta mensagem é a resposta a um repto do editor LG, lançado aos nossos enfermeiros no passado dia 14:

 "Sabe-se pouco sobre a formação do nosso pessoal de enfermagem militar (furrieís, cabos, soldados maqueiros) no nosso tempo.  Onde tiravam o(s) curso(s) ? Qualidade da instrução ? Matérias dadas ?"


Data - quinta, 30/10/2025, 11:38
Assunto - Curso de enfermeiro militar nos anos 60/70

Olá, Luis.

Conforme o solicitado por ti acerca da preparação de conhecimentos de saúde administrados aos Enfermeiros ( Furriéis, Cabos e Maqueiros) que serviram o exército durante a guerra no Ultramar Português (escrevo ultramar e não colónias porque era essa a designação na altura até porque, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe eram ilhas onde os portugueses foram os primeiros habitantes, e, na Comunidade Europeia,  assim têm tratamento os locais ultramarinos que a França ainda possui e outros países europeus, conforme li nos regulamentos comunitários).

Meu nome para que conste é António Sebastião Figuinha, nascido em Vila Nova de Foz Côa, Engenheiro Técnico Agrário, Furriel Enfermeiro na CCS / BCAÇ  2884.

Permaneci em Bissau desde maio de 1969 até fins de setembro desse ano. Durante este tempo, após a primeira semana, fui convidado pelo Quartel General em Bissau, a fazer um estágio na Granja Agrícola em Bissau. 

Durante este tempo, fui militar da parte da manhã e civil durante a tarde. A minha estadia em Bissau foi também interrompida durante quinze dias em que fui para Buba fazer reforço de saúde neste Quartel que,  na altura , tinha muitos civis por causa de trabalhos na estrada entre esta localidade e Aldeia Formosa.

Fui para o meu Batalhão no Pelundo em outubro de 1969 com a missão de atender as populações, além dos militares da CCS e da CCAÇ 2586 já que, o furriel enfermeiro desta companhia preferia ir para o mato de que atender os seus militares da companhia. Este furriel veio a morrer de doença quase no final da comissão. Nesta altura, eu encontrava-me em Có. 

Fui enviado pelo comandante do Batalhão em finais de outubro de 70 até fevereiro de 71, data do fim da comissão.

Quanto ao curso administrado, este decorreu na Escola de Serviço de Saúde Militar que se situava atrás da Basílica da Estrela e não nos Sapadores em Campo de Ourique.

O curso teve aulas teóricas de anatomia, cuidados de saúde primários de acordo com os casos habituais em África e, em cada um dos locais. para onde poderíamos ser chamados, aulas de acção psicológica com filmes sobre a Guerra na Coreia (aqui alguns dos alunos não aguentavam e saíam para deitar tudo o que tinham no estomago(.

Estas aulas eram dadas por médicos Militares com o posto de coronel ou tenente- coronel.

As aulas práticas eram dadas por primeiros sargentos e visitas a todas as valências do Hospital Militar Principal.


Este Curso teve a duração de três meses com provas escritas no final

Daqui, no meu caso, fui enviado para o Hospital Militar no Porto para fazer um Estagio de oito meses e, no meu caso, em Cirurgia pós-operatória e, onde se encontrava o Posto de Socorros que me ajudou nos conhecimentos que adquiri.

Regressei a Lisboa onde passei por Oftalmologia , Otorrino e por último, em Campolide no anexo e no serviço de deficientes com serviço de Fisioterapia Física, e da Fala. 

Daqui, fui mobilizado para a Guiné em maio de 1969. Já não contava, dado ser já desde princípios de abril tinha sido promovido a furriel e, já estava a ser preparado para tomar conta da parte administrativa do serviço 6 de Campolide.

Para terminar, devo dizer que que a formação que nos foi dada desde que cada um de nós se aplicasse na dita formação, estavámos habilitados a cumprir bem o nosso dever.

 A escola de Saúde Militar entregou-me um diploma comprovativo dessa formação. Na Guiné, não tive ajuda de Médico vários meses e consegui dar conta do recado. Na vida civil, vários Médicos elogiaram a formação que tínhamos adquirido.

Amigo Graça, espero poder ter-te ajudado sobre este tema .

Com um grade abraço

António S. Figuinha

Hoje Eng Tec Agrário aposentado

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Guiné 61/74 - P27384: A nossa guerra... a petromax (1): Quem é que ainda se lembra dos candeiros a petróleo ? Em 1964, em Guileje, Gadamael, Ganturé, Sangonhá, Cacoca, Cameconde... Em 1967/68, em Ponate, Banjara, Cantacunda, Sare Banda, Ponta do Inglês...



Candeeiro antigo a petróleo Hipólito de 350 velas
(Com a devida vénia, OLX: anúncio já não disponivel)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) >  Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > Setembro de 1973 > CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74) > Uma foto rara : assinalado a amarelo está um candeeiro a petróleo de camisa, um petromax, possivelmente de 350 velas, que era fabricado em Portugal pela Casa Hipólito, de Torres Vedras. 

"A mesa polivalente, onde se comia, escrevia, lia,  jogava e conversava. Em suma: o espaço de socialização e de partilha. Da esquerda para a direita: Gregório Santos, José Sebastião, Ricardo Teixeira e eu [Jorge Araújo] participando no 'mata-bicho' das tardes, preparando-nos para mais uma noite de muitas estrelas."

Foto (e legenda): © Jorge Araújo  (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 




Capa do livro "Casa Hipólito : história, memórias e património de uma fábrica torriense / Joaquim Moedas Duarte ; pref. José Amado Mendes ; rev. cient. Jorge Custódio. - 1ª ed. - Torres Vedras : Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras : Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial, 2017. - 376 p. : il. ; 23 cm



1 Quem se lembra do velho "petromax" que iluminou muitas das nossas noites de breu na Guiné ? E nomeadamenmet nos primeiros anos da guerra, em destacamentos perdidos no mato ...

Eu nunca tive o "privilégio" de ter um pretomax no destacamento da ponte do rio Udunduma, na missão do sono em Bambadincanzinho, nas tabancas fulas em autodefesa que fui reforçar ou no destacamento do reordenamento (de população balanta e mandinga) de Nhabijões !... 


Fonte: Anúncio do OLX
Mas há quem se lembre... O petromax, das fotos acima, era da  Casa Hipólito, de Torres Vedras. Era um candeeiro a petróleo, de camisa.. Havia vários modelos, todos a petróleo/querosene, só mais tarde evoluiu para o gás...  

Havia candeiros de 150 velas, 250 velas, 350 velas, 500 velas... Pelo que vejo nos anúncios do OLX, estes candeeiros antigos podem ainda hoje valer entre os 50 e os 150 euros...Os modelos novos podem custar 300, 400, 500 euros...

O de 500 velas (ou CP="candle power") era o de topo de gama. 

O de 150 velas dava para 10 horas (1 litro de querosene / petróloe). Aplicaçáo: Uso doméstico, iluminação de tenda pequena ou posto de sentinela;

O de 250 velas tinha um autonomia de 7 horas, dava para iluminar um secção do perímetro de
arame farpado, uma cozinha de campanha, um ficina.

O de 350 velas (5 horas de autonomia) iluminava um de pátio, um pequeno acampamento, uma enfermaria.

O de 500 velas (4 horas de autonomia) iluminava superfícies maiores: quartéis, destacamentos, missões religiosas, médios / grandes acampamentos. Um candeeiro Petromax de 500 CP (ou velas) é comparável, em brilho, a quatro lâmpadas incandescentes de 100 W, mas concentrando a luz num feixe mais intenso.

Náo sabemos qual(quais) o(s) modelo(s) disponibilizado(s) pela Intendência. Mas pelo menos o de 150 velas já existia em 1967, 

"Petromax" era/é  uma marca registada, de origem alemã, fabricada em Portugal sob licença,a partir de 1949. Mas a Hipólito também tinha modelos próprios.


2. Ter um petromax em casa, no meu tempo de miúdo, era uma novidade, uma  coqueluche. Usava-se na pesca aretsanal e na pesca ao candeio (o pescador mais "abonado"; ainda me lembro da lanterna, luminária  ou lampião a carbureto)... Nas oficinas, para trabalhar à noite. E os mais remediados passaram a substituir o velho candeeiro a petróleo pelo petromax, enquantio não chegava a eletricidade de Castelo de Bode (a barragem foi inaugurada em 21/1/1951).

A palavra "petromax" entrou no nosso vocabulário nos anos 50. E o termo já está hoje grafado nos  nossos dicionários.

Temos diversas referências ao uso do "petromax" na iluminação das nossas instalações militares no CTIG (a par das garrafas de cerveja que, depois de vazias,  eram cheias de petróleo, levavam uma tampa  furada por onde passava uma mecha, torcida ou pavio funcionando à noite como luminária ou candeeiro improvisado).

Segundo a descrição da Wikipédia, "consta de um depósito, onde está introduzida uma bomba de pressão, do qual sai um tubo tendo na extremidade um vaporizador e fixa a este uma camisa em seda em forma de lâmpada, protegida por um cilindro em vidro. No cimo tem uma chaminé por onde saem os gases." (Vd, imagem acima).
 
Para quem quiser saber mais, aconselha-se uma visita à página do Facebook Memórias da Casa Hipólito de Torres Vedras, da autoria de Joaquim Moedas Duarte, criada no âmbito do Mestrado em Estudos do Património, da Universidade Aberta de Lisboa. 

Sabemos que esta grande empresa metalúrgica (o maior empregador da região) forneceu diversos equipamentos de iluminação para as Forças Armadas. Começou por ser uma pequena oficina de latoaria no início do séc. XX. Algumas décadas depois era já uma grande metalúrgica, com 1400 colaboradores.


3. Vejamos algumas referências ao petromax no CTIG:

Já temos uma série "A minha guerra a petróleo" (*), da autoria do ex-cap art (hoje coronel na reforma) António J. Pereira da Costa, membro da nossa Tabanca Grande.

Iremos citá-lo em próximo poste. Inspirados naquele título, é que nos lembrámos de repescar postes com referência a este descritor, "petromax". 

Em todo o caso, convém lembrar que a "A minha guerra a petróleo" (título que o autor voltou a usar no livro de memórias que publicou, sob a  chancela da Chiado Books, em 2019) tem um sentido metafórico e irónico. Mais diria que é também  uma amostra da literatura "pícara" que se tem publicado sobre a nossa guerra.

 Temos que revisitar esta série. Mas para já registe-se que o tom  que o nosso Tó Zé (para os amigos da Amadora)  usa, é  muitas vezes reflexivo e sarcástico, evocando as dificuldades logísticas e humanas da guerra (por exemplo, o combustível escasso, o calor, o esforço físico e moral, a burocracia). Neste contexto, a expressão “a petróleo” serve também para sublinhar   o carácter absurdo, tecnicodependente e mecanizado da guerra moderna,  que não funcionaria sem máquinas, motores, material, combustível, e sobretudo sem  uma máquina pesada que se impõe sobre o indivíduo. Aliás, nenhuma guerra.

Física e metaforicamente falando, foi de facto uma "guerra a petróleo", a nossa... Nalguns caso, um pouco mais evoluída, do ponto de vista da tecnologia com a introdução do "petromax " e a seguir do "gerador elétrico"...

Tudo indica, entretanto, que nos primeiros anos da guerra, na Guiné, o uso do "petromax" (ou lanterna de incandescência...)  fosse mais generalizado, servindo inclusive para iluminar o perímetro de defesa dos aquartelamentos, como no caso de Bedanda, por exemplo, ao tempo do nosso camarada Rui Santos, em 1963, bem como outros aquartelamentos  e destacamentos.

Cite-se, na região de Tombali, e ao longo da fronteira  com a Guiné-Conacri,  no 1º semestre de 1964, destacamentos como  Guileje, Gadamael, Ganturé, Sangonhá, Cacocca, Cameconde, etc.

Mas também na zona Leste, na região de Bafatá: Ponta do Inglês,no subsector do Xime (setor L1), Banjara, Cantacunda, Sare Banda, etc., no subsector de Geba (sector L2)... Ou na região do Cacheu, Ponate, por exemplo...

Em sítios isolados (destacamentos, tabancas em autodefesa, etc.), o uso do "petromax" levantava questões de segurança. Era um alvo fácil . E talvez por isso fosse distribuído com parcimónia. Não sabemos, por exemplo, quantos camaradas nossos morreram, de tiros isolados, à noite, disparados por "snipers". Ou de ataques junto ao arame farpado, como Sare Banda, 1968.

Depois vieram os geradores e passou a haver luz elétrica, pelo menos à noite... Mas, nos destacamentos, em Ponate, em 1966,  em Banjara, em 1967, na Ponta do Inglês, em 1968, no Biombo, em 1970, no rio Udunduma, em 1973, etc. continuava a recorrer-se ao "petromax".


Sangomhá, 1964 (**)

(...) "Depois de, em Ganturé, existirem as condições mínimas de sobrevivência para a instalação das tropas que aí permaneciam, o Pel Rec Fox 42 juntamente com tropas recém chegadas à Guiné [CART 640 ] e com um Pelotão de Milícias rumou até Sangonhá a 21 de maio de 1964.

Como de costume segue-se a capinagem, a vedação de arame farpado em volta da tabanca, que seria agora um quartel, a colocação de cavaletes para instalação dos candeeiros a petróleo (petromaxes), a que alguns “valentes” iam dar pressão de ar durante a noite, sempre que necessário." (*)

.
Sare Banda ,8 de setembro de 1968 (***)

(...)  Sare Banda (...) estava perto de Sinchã Jobel (importante base do PAIGC, e muito bem equipada, como é claro pelo material que deixaram), e é natural que fosse atacada.

O alferes morto foi o Carlos Alberto Trindade Peixoto. O outro morto foi o Furriel Raul Canadas Ferreira. Mas as circunstâncias da morte deles não estão devidamente relatadas.

Foi assim: este, como todos os destacamentos da CART 1690, não tinha luz eléctrica, nem mesmo um miserável gerador. Eles estavam os dois numa tenda a jogar às cartas, com um petromax aceso (depreende-se, aliás, do relatório as péssimas condições de instalação). Para os guerrilheiros foi muito simples, foi só apontar o RPG2. (...)


Banjara, 1967 (****)

De qualquer modo, as companhias deviam ter, em "stock", este precioso utensílio... mas era preciso garantir a disponibilidade de querosene/petróleo iluminante e de "camisas"...
 .




Guiné > Zona leste > Geba > Banjara > CART 1690 (1967/69) > Excerto de uma requisição de material, com data de 9/6/67, feita pelo alf mil Alfredo Reis,  na altura a comandar o destacamento de Banjara.

Alguns dos artigos requisitados (excerto):
  • fósforos, 
  • palha de aço,
  • camisas para petromax de 150 velas.
  • torcida e vidro (?) para o frigorífico (...),
  • pregos para pregar as chapas,
  • aerogramas,
  • selos, 
  • 12 esferográficas (uma vermelha e as outras azuis),  
  • bloco de cartas,
  • Omo e sabão, 
  • uma garrafa de whisky, 
  • Sumol ou outros sumos [...]

Foto: © Alfredo Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

(Continua)

(Revisão / fixação de texto, itálicos, negritos: LG)
____________

Notas do editor LG:


(*) Vd, poste de 6 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19752: Notas de leitura (1175): A Minha Guerra a Petróleo, por António José Pereira da Costa, Chiado Books, 2019 (Mário Beja Santos)
(***) Vd. poste de 28 de maio de 2005 > Guiné 63/74 - P28: Um ataque a Sare Banda (1968) (A. Marques Lopes)

(****) Vd. poste de 20 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15388: Álbum fotográfico de Alfredo Reis (ex-alf mil, CART 1690, Geba, 1967/69) (3): O que é um homem precisava no mato, num miserável destacamento como o de Banjara, em 1967 ?

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27383: Manuscrito(s) (Luís Graça) (277): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte II: a rua da minha infància


Capa do livro "A Rua Suspensa dos Olhos" de Ábio de Lápara (edição de autor,  José A. Paradela, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...

Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Bóia  Paradela.  Imagens: arquivo de LG + Matilde Henriques 


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Teria feito 88 anos no passado
dia 30 de outubro (*). Nasceu em
Ílhavo em 1937. Morreu no hospital,
em Aveiro, em 2023. Membro da 
Tabanca Grande. Fez a tropa
na marinha de guerra 
e antes, 
aos 17 anos, 
na pesca do
 bacalhau, 
seguindo os passos
dos seus avoengos.
Excertos de "A Rua Suspensa dos Olhos" - Parte II: a rua da minha infância

por Ábio de Lápara / José António Paradela 
(1937-2023)


A Rua Suspensa dos Olhos. Não sei como foi na vossa rua. Se quiserem acreditar, tudo bem, pois lá na minha os prodígios eram matéria banal. Qualquer um, desde que não fosse bisonho, podia embarcar nas cenas prodigiosas que vou relatar.

Aquela rua estava suspensa de mil olhos novos, acabadinhos de nascer. Eram olhos todos diferentes à primeira vista, porque as suas cores percorriam todo o arco-íris.

E quando aquelas cores já não chegavam para tantos olhos, abatiam-se os tons originais com aguadas de cinzento, ora mais claro, ora mais escuro  
e esses eram, na verdade, os olhos mais bonitos,  normalmente distribuídos 
às meninas a condizer com o tom dos seus cabelos.

Em alguns, a pálpebra superior descia um pouco mais sobre a íris e então diziam-se apaixonados. Noutros sucedia o contrário e chamavam-lhes desconfiados. Noutros ainda, uma ligeira rotação transformava-os em marotos!

Mas na verdade, acabados de nascer, eram sobretudo sedentos de luz, que bebiam em grandes quantidades, e também de formas, ora geométricas ora orgânicas, com as quais construíram uma rua perfeitamente igual á minha: as mesmas pedras, as mesmas portas, os mesmos rostos.

Por isso era chamada Rua Suspensa dos Olhos.

E toda a vida ali, era decalcada da outra, com papel químico em tons que evoluíam do azul celeste até ao rubro dos poentes. Só o tempo era mesmo diferente e bastante mais célere, comprimindo os vagarosos acontecimentos que se esmagavam impreterivelmente no fim do sonho, hora a que os poentes coincidiam com o toque a rebate das mães, cansadas do dia.

Cada par de olhos tinha um dono que tratava deles como pincéis de pelo de marta. As suas pestanas eram sanefas aveludadas, e os nomes dos seus donos fundiam-se por vezes com a geografia da rua: Laide do Canto, Laidinha do Cabeço, Amélia dos Cofinhos, Maria Mangona...

Ou com os nomes de coisas de utilidade discutível numa rua suspensa dos olhos: Benjamim Balança, Manéuzinho Fazenda, Júlio Abóbora, Aníbal Repolho, Rosário Papoila, Helena Caracola...

Ou ainda nomes estranhos, herdados de antigos náufragos arrojados à costa pelos temporais, lá para os lados da Barra: Reinaldo Perqueixo, Carolina Campanta, Laura Vigia, Luz Mastrago, Rosa Nocha, Artur Cagula...

Por ironia do destino, eu, que não era especialmente dotado para jogos complicados, tinha todo o tempo disponível para percorrer ambas as ruas e imiscuir-me em trapalhadas de que me sobraram ternas recordações! (...)


Ilhavo > Biblioteca Municipal > 26 de novembro de 2017 > 

O Zé António na apresentação da sua última obra, publoicada também sob pseudónimo: Ábio De Lápara, "O Livro das Santinhas de Apegar: Textos Poéticos". 

É ainda autor de dois livros de crónicas e pequenas estórias sobre as geografias emocionais da sua infància:  “Uma Ilha no Nome” (2007) e “A Rua Suspensa dos Olhos” (2015)

Foto de Etelvina Almeida (editada, com a devida vénia)


***

Para que percebam o meu tamanho de então, dir-lhes-ei que, o senhor Zé Pereira se sentava, normalmente após o almoço, a colher as amenas réstias do sol de Outono, no passeio da ti Cacilda.

Aí, eu instalava-me confortavelmente com os cotovelos apoiados nos seus joelhos, pés balouçando, ligeiramente levantados do chão, observando com minúcia o seu acto de fumar e todos os preparativos necessários para concluir a operação com sucesso:

1- Tirar uma mortalha do saquinho de função

2 - Enrolar nela o tabaco desfiado e molhar com a língua, numa passagem rápida

3 - Colocar a prisca na boca, em posição expectante de lume

4 - Tirar o catracezílio do saquinho, mais o fuzil e a pederneira

5 - Tanger o fuzil até saltar a faísca que ateia o morrão (a isca) no interior do catracezílio

6 - Soprar aumentando o lume do morrão

7 - Encostar a ponta do cigarro ao círculo incandescente e chupar até sair fumo.


Glória das glórias quando tudo terminava e o fumo invadia, cheiroso, os canais tabágicos do senhor Zé Pereira. Então eu descia dos meus cotovelos para lhe pedir que me deixasse colocar a rolha de cortiça na embocadura do catracezílio e assim apagar o lume.

— Mas quem é este senhor? 
— perguntareis intrigados.

Bem... na minha rua houve alguns casos semelhantes, passados em diversos pontos do mundo, que chegavam aos meus ouvidos nas conversas sussurradas dos adultos.
Este aconteceu na América.

Perante a escassez de recursos lá na rua, os homens punham pés ao caminho e “saltavam” noutros países arriscando todo um passado que tinham construído entre porões de dificuldades. Com isso pretendiam reconquistar a capacidade de sonho que a minha rua já não permitia aos adultos. Veleidades dessas, só na Rua Suspensa dos Olhos, acabados de nascer.

Ao saltarem longe da rua, em terras tão estranhas, o fervor da nova luta iluminada pela luz de outros quadrantes e associada ao jogo do fracasso, levava a que por vezes, na rija aposta que fizeram, saíssem a perder.

Poucos homens resistem à derrota,  como sabemos. Por isso, o senhor Zé Pereira ensaiou esquecer o passado... a mulher, as filhas e tudo o que as rodeava. E isso, durante muitos anos, demasiados anos!

Quando, no auge da angústia, resolveu voltar para dar conta do fracasso
 nem todos o faziam, preferindo morrer longe —  os seus olhos escureceram. De que cor estaria o seu coração?

A partir daí, não teve mais lugar na casa que esquecera e ficou a viver na "casinha", o anexo ao fundo do quintal, onde elas lhe serviam a comida em isolamento afectivo. Olho por olho, dente por dente.

Mas para mim, ele foi o avô que nunca tive, a quem ia apanhar "beatas" no tempo em que os cigarros não tinham filtro, para ele desmanchar e secar ao sol sobre uma folha de jornal, compondo depois novos cigarros.

Pagava-me com afecto
 "toma lá, sacanita"!  e punha na minha mão um rebuçado de açúcar negro e mole, que era o que havia na loja do ti Tomé Pascoal naquele tempo de guerra.

A Rua Suspensa dos Olhos era mais comprida que a outra, porque ali circulava mais gente em passada lenta e por isso os acontecimentos tinham sempre uma expressão diferente. (...)

***

Começava no Alto Badeira e seguia, Alqueidão abaixo, até à Malhada, onde após a pequena Ponte de Pedra Vermelha, se perdia na água que tornava o seu fim indefinível e aberto a todas as aventuras.

Por isso elas contam-se infindáveis e articulam-se como as pedras juntouras daquela pequena ponte em arco de volta perfeita. Estreito arco, ligado ao antes e ao depois, ali só passavam os humanos postos nos caminhos da água. (...)

Os que ficaram em terra com as suas carroças e os seus animais, aprisionaram-na mais tarde numa rotunda infame, porque apenas viram nela o arco.

Esqueceram que sem antes nem depois, sem aqueles estreitos percursos que a ela conduziam, o arco é inútil e sem isso não há caminho para a aventura. Só o todo interessava aos olhos que suspendiam a ponte daquela rua: presa, isolada como está hoje, as suas pedras não têm valor porque já não conduzem ao sonho...

Cada estranho que calhasse passar ali, abria o corredor do mistério, onde pululavam cobras cuspideiras da floresta amazónica, navios fantasma de velas rotas e gritos de pássaros surgidos na bruma, lobisomens necessitados de serem picados, bruxas e curandeiros.

Pendurado do medo, por ali ouvi essas estórias na boca do Cagula, o mais velho e suposto herói de aventuras reais, mesmo que imaginárias.

Mas os prodígios mais prodigiosos, eram os rituais na Rua Suspensa dos Olhos.

Não tinham paralelo em qualquer outra. Ali todos os olhos eram recém nascidos, quer os seus donos fossem novos ou fossem velhos.

Irmanados no seu poder encantatório, os ritos exprimiam-se através de cenários desmesurados como nos dramas ultrarromânticos:

  • o fogo purificador, multiplicado por mais de oito fogueiras ao longo de toda a rua na noite de São João, onde se esconjuravam todos os bruxedos, feitiços e maus olhados da rua, mesmo os do alfaiate Lavanca, boa pessoa mas tido por lobisomem;
  • os gigantescos papagaios lançados ao vento da agra, feitos de lençóis ou brancos sacos de farinha de bordo, cosidos e puxados por marinheiros com saudades do mar, como se quisessem contrariar a corrida das nuvens que lhes traziam recados do largo;
  • os jogos de malha para treino de músculos  —  aguardando o tempo de alar bacalhaus no balanço do bote —  onde ao fim da tarde, os olhos suspensos do grande grupo ficavam piscos perante as picheiras esvaziadas na tasca do Ti Tomé Pascoal.

Enfim, homens e crianças, por certo crianças/homens, suspendendo aquela rua na paixão inocente do brincar.

***
A estória já vai longa neste abrir e fechar de olhos aparentemente tão diferentes.

E garanto-vos que era mesmo só aparência, porque mais tarde, quando certos desgostos se impunham, todos os olhos choravam de igual modo lágrimas salgadas ou amargas e a sua expressão carregava-se dos mesmos tons nocturnos.

Foi assim no naufrágio do "Infante de Sagres" ou no naufrágio das traineiras num temporal em Matosinhos e em tantos outros casos onde morreram companheiros, noticiados em dias tempestuosos, quando o ribombo das ondas na costa ecoava pela laguna e se fazia ouvir ao longe sobre a rua.

Nesses momentos, as cores do olhar diminuíam de intensidade e as mulheres cochilavam enroladas nos seus xailes negros de cadilhos tristonhos e a Rua Suspensa dos Olhos descia ao solo, onde o som dos tamancos arrastados na calçada estabelecia um ritmo mais consentâneo com a misericórdia desses dias.

Em setembro encontrei a Laide do Canto, na Costa Nova. Há anos que não a via. Emigrara para a América onde criou filhos e netos. Poucos minutos depois da euforia do encontro, percebi claramente que a Rua Suspensa dos Olhos ainda existia.

Existirá sempre, enquanto viver um par daqueles olhos com as cores do arco íris.


Costa Nova, 1 dezembro 2011

Fonte: Excertos do manuscrito , em pdf, de "A Rua Suspensa dos Olhos",  de Ábio de Lápara, que ajudei a rever em 2015, antes da execução gráfica. Recorri de momento ao manuscrito por não ter aqui à mão um exemplar do livro em papel.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG) (**)

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste anterior >  31 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27367: Manuscrito(s) (Luís Graça) (276): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte I : "Rua das Manhás, a morte levou tudo o que eu amava" 

(**) Último poste da série > 1 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27372: Manuscrito(s) (Luís Graça) (277): As andorinhas de Candoz na véspera da "grande viagem" para a África (subsariana, equatorial e até austral)

Guiné 61/74 - P27382: Notas de leitura (1858): "Atlas Histórico do 25 de Abril", por José Matos; Guerra e Paz, 2025 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Maço de 2025:

Queridos amigos,
O nosso confrade José Matos é de uma delicadeza extrema, mal foi publicado este seu último livro deu-me conhecimento do seu conteúdo, autorizando a revelá-lo, sob a forma de uma súmula, a todos os camaradas. Habituou-nos ao rigor das fontes e dos documentos, ilustra com textos pontos sugestivos da obra, igualmente recorre a ilustrações que facilitam a compreensão dos factos. Em termos de narrativa, contextualiza toda a guerra de África e desvela os principais acontecimentos de 1973 que aceleraram a sublevação militar; são igualmente mostradas as etapas da sublevação a partir da legislação que criava um Quadro Especial de Oficiais, e assim progredimos até aos preparativos da sublevação, depois do insucesso da revolta das Caldas os militares esboçaram uma estratégia que contemplou os três ramos das forças armadas e uma multiplicidade de unidades espalhadas pelo continente. Da operação em si e dos acontecimentos do 25 de Abril e subsequentes se fará referência no próximo texto.

Um abraço do
Mário



Atlas Histórico do 25 de Abril, por José Matos, um confrade que nos dá imensa companhia (1)

Mário Beja Santos

Acaba de ser dada à estampa pela editora Guerra e Paz o Atlas Histórico do 25 de Abril, a obra mais recente do nosso confrade José Matos, publicação muito sugestiva que nos permite recordar as etapas fundamentais do 25 de Abril, acompanharemos os alvores da revolução, chega-se à obra de Spínola Portugal e o Futuro e será esmiuçada a queda do regime e revisitada toda a operação que vitoriou o MFA; leitura tão mais sugestiva pela apresentação de imagens e quadros esclarecedores dessas diferentes etapas.

Em 1973, ainda havia a ilusão de que a ditadura portuguesa teria condições para durar; mas nesse ano alterou-se profundamente o cenário internacional, mudou profundamente a situação dos teatros de operações da Guiné e também em Moçambique; chegar-se-á mesmo ao momento de questionar se a Guiné era defensável, foi tema abordado no Conselho Superior de Defesa Nacional, perto do final do ano, julgava-se que ainda havia uma janela de oportunidade, isto na altura em que Portugal começa a sofrer as consequências não só da crise petrolífera, o país é castigado pelo mundo árabe, a inflação torna-se galopante. O ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo, procura uma solução para a falta de oficiais para a guerra, propõe um Quadro Especial de Oficiais, estala a indignação do corpo de oficiais do quadro permanente, vão começar as reuniões, a primeira na Herdade do Monte do Sobral no Alentejo.

Desenhado por Diniz de Almeida, o croqui com indicações para os militares chegarem ao Monte do Sobral (Arquivo Diniz de Almeida)

Marcello Caetano remodela o Governo, Silva Cunha passa para ministro da Defesa, os militares continuam a protestar como se verá na reunião de S. Pedro do Estoril. A política ultramarina do Estado Novo isolara Portugal, consumia cada vez mais recursos ao país. Mesmo os Aliados da NATO furtavam-se a apoiar Portugal e a compra de armamento era cada vez mais difícil. José Matos rememora os acontecimentos que envolvem tal política ultramarina, o aparecimento da luta armada a partir de 1961. Destaca o problema da Guiné. Refere uma carta do chefe do Gabinete Militar Arnaldo Schulz, Tenente-Coronel Castelo Branco, para o governador, então em Lisboa, dizendo que “o inimigo colocou-nos a mão no pescoço, como bom lutador de judo, e nós temos dificuldade em sair desta posição”. Toda a situação na Guiné é passada em revista, Spínola regressa da Guiné em agosto, não escondendo que a situação se tornou incomportável, não podia haver solução militar, impunham-se negociações. Marcello Caetano nomeia novo governador, ele escreverá nas vésperas do 25 de Abril que se chegara à exaustão dos meios. Nessa altura já Marcello Caetano procurara sigilosamente conversações com o PAIGC, que ocorreram em Londres, em março.
Os apartamentos de Dolphin Square em Londres (Arquivo José Matos), foi aqui que decorreram as conversações secretas entre o PAIGC e o cônsul português José Manuel Villas-Boas, toda esta operação fora urdida pelo embaixador britânico em Lisboa

Prosseguem as reuniões dos militares conspiradores, o autor descreve a atmosfera em que é publicado o livro de Spínola Portugal e o Futuro, a proposta de criar uma federação já não assentava na realidade, não só nenhum dos movimentos de guerrilha era a favor como Portugal perdera oportunidade de preparar o ambiente que permitiria a conjugação de todas estas vontades. Mas o livro foi o rastilho da revolução, como Marcello Caetano constatou após a leitura do livro, na noite de 22 de fevereiro de 1974. Caetano está já entre a espada e a parede, quer demitir-se mas Thomaz não consente, discursa na Assembleia Nacional, pede-lhe um voto favorável para a continuação da política ultramarina, recebe os oficiais generais, demite Costa Gomes e Spínola, enquanto discursa na Assembleia Nacional surge o manifesto dos capitães numa reunião que se realizou em Cascais, Melo Antunes lê aos presentes um documento por ele elaborado: o regime era incapaz de se autorreformar, a perpetuação da guerra não ia resolver um problema ultramarino; os povos africanos tinham direito à autodeterminação, embora devessem ser acautelados os interesses dos portugueses residentes no Ultramar; era necessário um novo poder político eleito democraticamente que fosse realmente representativo das aspirações e interesses do povo.

Com a demissão de Costa Gomes e Spínola, os militares já em estado de sublevação vão procurar, a partir das Caldas da Rainha, caminhar em direção a Lisboa, a operação não é sucedida, Caetano falará dela na sua última Conversa em Família. Pelas diferentes vias diplomáticas, tenta-se adquirir novas armas, suscetíveis de se equiparar com o armamento da guerrilha. Temendo o uso da Força Aérea por parte do PAIGC, é comprado o Crotale.

Originalmente desenvolvido para a África do Sul pela Thomson-CSF e pela Matra, o Crotale era um sistema de defesa antiaérea para alvos a baixa altitude. Uma bateria de Crotale era composta por dois a três veículos de disparo, cada um com o seu próprio radar de controlo de fogo e quatro mísseis prontos a disparar, e um veículo de vigilância/aquisição. Portugal assinou um acordo de compra com os franceses em Janeiro de 1974, mas este sistema já não seria entregue a tempo. A única bateria de Crotale chegaria em Setembro de 1974, após o fim da guerra, e com a ajuda de Thomson foi revendida à África do Sul em 1976.

Vamos ver agora os preparativos do golpe, estiveram a cargo de um estratega, Otelo Saraiva de Carvalho; ele teve o cuidado de envolver várias unidades militares espalhadas pelo país, era imperativo tomar a capital. Sede do Governo, aqui estavam a televisão e as mais importantes estações de rádio e o aeroporto. Todas as operações seriam comandadas a partir de um centro de comando do MOFA (mais tarde MFA), havia necessidade de um sistema de comunicações fiável, ficou a cargo do tenente-coronel Garcia dos Santos, foi ele o responsável por arranjar o material de comunicações para a revolta.

A fuga do tenente Castro Gil:

“No dia 31 de Janeiro de 1974, ao fim da tarde, os guerrilheiros abateram com um míssil terra ar um Fiat G.91 que prestava apoio de fogo ao aquartelamento de Canquelifá, que estava sob ataque do PAIGC. Este quartel na fronteira nordeste com o Senegal distava cerca de 200 km de Bissau e era uma zona flagelada com alguma frequência pela guerrilha. O piloto ejetou-se e aterrou em segurança, mas teve de fugir para não ser capturado pelo inimigo. Decidiu rumar a norte, para o Senegal, indo pelo mato rasteiro ainda com cinzas ardentes para que a aragem do ar apagasse o seu rasto. De manhã, regressou à Guiné e foi ter a uma aldeia. Aproximou-se e escondeu-se nuns arbustos, a observar o movimento dos naturais e a ver se via homens armados ou fardados como os guerrilheiros. Quando viu que era seguro, entrou na aldeia e pediu ajuda. Surgiu então um homem com uma bicicleta e mandou o tenente Gil instalar-se atrás, arrancando a pedalar em direção ao sul para o Quartel de Piche. No quartel, começou a grande festa da recuperação do jovem tenente, que, no dia seguinte, chegou à base aérea de Bissalanca, onde a receção foi apoteótica e onde a festa se prolongou até de madrugada. Bastante alcoolizado, o tenente acabou internado no hospital de Bissau amarrado a uma cama.”

Texto retirado da obra de José Matos.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 31 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27370: Notas de leitura (1857): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (4) (Mário Beja Santos)