Guiné-Bissau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Iemberem > Simpósio Internacional de Guileje > Visita ao sul > Em primeiro palno, ao meio, o Dr. Francisco Silva, madeirense, ortopedista no Hospital Fernando da Fonseca, Amadora-Sintra, médico do nosso camarada Hugo Guerra. À sua esquerda, a Maria Alice e à direita Salifo Camará, 87 anos, régulo de Cadique Nalu e Lautchandé, antigo Combatente da Liberdade da Pátria. Foto tirada por ocasião da visita ao centro de saúde materno-infantil de Iemberem.
Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados
O Francisco Silva, que viajou de jipe, com mais camaradas, na viagem à Guiné, de ida e volta, por ocasião do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008), foi Alferes Miliciano, tendo pertencido à CART 3492, que esteve no Xitole (com o Joaquim Mexia Alves).
O Francisco Silva revelou-me na altura ter saído da CART 3492 para substituir um alferes morto na parada, pelos seus homens, africanos, do seu Pel Caç Nat 51. Segundo o Francisco Silva, o alferes terá sido morto por que era um tipo bom de mais, com problemas para impor a sua autoridade ao pelotão (que era etnicamente heterogéneo, e tinha um historial de problemas de disciplina).
Desconheço a data e o local onde ocorreu esta tragédia. Não sei inclusive o nome do infeliz alferes. Também não sei quantos casos destes, de oficiais portugueses, milicianos ou do quadro (mas também de sargentos, furriéis e cabos), poderão ter ocorrido durante a guerra colonial na Guiné (1963/74). Mas presumo que tenham sido poucos.
Outro caso de homicídio ocorreu com a CART 1613 (1966/68), a companhia que esteve em Guileje (de Junho de 1967 a Maio de 1968). Nos registos oficiais diz-se que Cap Mil Art com o nº mecanográfico 1036/C, pertencente à CART 1613/BART 1896, mobilizada no RAP2, Vila Nova de Gaia, de seu nome FAUSTO MANTEIGAS DA FONSECA FERRAZ, foi vítima mortal de acidente com arma de fogo (sic), ocorrido no aquartelamento de S. João, vindo a morrer a 24 de Dezembro de 1966 no Hospital Militar 241, em Bissau.
O malogrado Cap Ferraz foi inumado no Cemitério da Conchada, em Coimbra. Era casado com Maria Fernanda Ferreira da Costa, filho de Manuel Fonseca Ferraz e Ana Rosa Manteigas, sendo natural da freguesia de Pousafoles do Bispo, concelho de Sabugal.
O Cap José Neto (1929-2007) contou-me, antes de morrer (e eu creio que isso está publicado algures no blogue), que o autor dos disparos foi o Soldado Condutor Auto Rodas José Manuel Vieira Cavaco. Era madeirense (creio eu), tendo recebido na véspera de Natal provisões remetidas pela família, entre elas uma garrafa de aguardente de cana ou de poncha (se não me engano). A companhia tinha chegado à Guiné há cerca de um mês, e estava em S. João, frente a Bolama, em treino operacional.
As saudades da terra, as recordações do Natal e a poncha fizeram uma mistura explosiva. Sob o efeito do álcool, e sem motivo aparente, o Cavaco abateu a tiro o comandante da companhia, Alferes de Artilharia, graduado em Capitão, Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, na noite de 24 para 25 de Dezembro de 1966. Creio que feriu mais militares. O Zé Neto teve que o esconder para ele não ser linchado. Eis um excerto do seu relato sobre o julgamento do Cavaco, um ano depois em Bissau. (O Cap Corvacho ficará depois a substituir o Cap Ferraz).
O Cavaco (*)
(...) No final do ano [1967], eu, o Furriel Martins e o 1º Cabo Santos fomos chamados a Bissau para depor no julgamento do Soldado Cavaco .
O Tribunal Militar funcionou nas salas do tribunal civil e, em duas sessões, ficou tudo resolvido.
O Cavaco deu-se como culpado e o seu defensor, um tenente miliciano de Administração Militar que era advogado, apenas se deu ao trabalho de procurar provar atenuantes para reduzir a pena.
Tanto eu como o Furriel e o Cabo respondemos apenas às perguntas que nos foram formuladas. O Tenente, a certa altura, perguntou-me qual era a minha opinião sobre o comportamento do réu, anterior aos factos.
Gerou-se uma pequena quezília processual entre o promotor e o advogado que acabou com o Juiz Auditor (civil) a intrometer-se e declarar que aquele Tribunal tinha a obrigação de conhecer o carácter do réu e, naquele momento, ninguém mais conhecedor do que o depoente (eu) podia responder a perguntas que levassem a fazer um juízo acertado.
Fiquei sob o fogo cerrado, ora de um, ora de outro, com respostas curtas, quase sim e não. O coronel Presidente acabou por me interpelar dizendo-me que, por palavras minhas, classificasse a qualidade de soldado do réu. Respondi com convicção:
-Um excelente e infeliz soldado.
A pena foi de vinte e três anos de prisão maior, a cumprir em estabelecimento penal adequado na Metrópole.
Nunca mais o vi, mas tive notícias de que o rapaz não cumpriu nem metade da pena. (...)
___________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXI: Memórias de Guileje (Zé Neto, 1967/68) (7): Francesinho e Cavaco, o belo e o monstro
Vd. também poste de 31 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2493: Estórias de Guileje (6): Eurico de Deus Corvacho, meu capitão (Zé Neto † , CART 1613, 1966/68)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
Guiné 63/74 - P4967: Agenda Cultural (26): Museu Militar do Porto (Jorge Teixeira/Portojo)
1. Mensagem/Reportagem de Jorge Teixeira (Portojo), ex-Fur Mil do Pelotão deCanhões S/R 2054, Catió, 1968/70, com data de 15 de Setembro de 2009:
Museu Militar do Porto
(Antigo edifício da P.I.D.E.)
Sabem o que era a PIDE?
Quási que poderei dizer que acompanhei o nascimento e crescimento deste Museu. Hoje visitei-o e vieram-me as lágrimas aos olhos.
Lembrei-me do meu amigo, do meu médico, do meu cliente, do Director e grande impulsionador deste Museu, o Senhor Major Médico, Dr. Figueira. Está lá a placa – 1993 -, no Grande Hangar com o nome dele.
Emocionei-me de tal maneira que não me lembro o que ela diz. Também me esqueci de a fotografar.
Perguntei por ele, mas ninguém o conhece - ou conhecia.
Também já lá vão tantos anos.
Fiz muitas reproduções fotográficas a seu pedido. Muitas delas estavam em tão mau estado que só a arte de homens desenhadores, que comigo trabalhavam, foram capazes de disfarçar o que estava mau, para fazerem parecer coisas bem "limpas".
E não haviam ainda PCs nem “Photoshops”. Refiro-me aos a
nos 80 do século passado.
Bom mas a que me queria referir neste poste é a lembrança da malta do Ultramar.
A colecção de "soldadinhos de chumbo", nossa lembrança da juventude, é uma coisa tão maravilhosa, tão grandiosa, tão completa, que ficamos horas olhando os milhares daquelas figurinhas.
Algumas delas, são cópias das que meu pai me coleccionava e que vinham nas embalagens de uns chocolates, acho que eram da Regina. E eram de lata.
Mas também lá está uma colecção de "soldados do ultramar".
A foto não está nada boa, mas dá para perceber.
Depois tem uma estátua, com a nossa ex-figura. Não há nada que referencie o autor dela. E tem um "boneco" fardado como nós fomos, de camuflado, mosquiteiro e essas cenas. Tem um acréscimo que só os oficiais usavam.
Mas porra, pareço eu, o raio do boneco. Parecemos todos, os que vestimos e usamos aquelas coisas.
Mas o mais interessante, e julgo que já houve um camarada que se referiu a eles, são os nossos pré-históricos rádios de transmissões.
Não fui forte em fixar nomes, mas os camaradas que se lembram desses pormenores (Alô Victor, Alô Teixeira, Alô a todos os outros TRMS) ponham neles tanto o apelido como o nome real desses estranhos objectos que usávamos e que normalmente só nos complicavam a vida pelo seu peso, pois nunca funcionavam.
Imaginem os soldados dos USA a trabalhar com estas coisas. Imagino que davam em malucos.
Tema proposto para novas postagens: Os nossos aparelhos de telecomunicações no teatro de operações.
Um abraço para a Tabanca. E desculpem qualquer coisita.
Jorge Teixeira/Portojo
Fur Mil At Art
2. O nosso Camarada Jorge Teixeira (Portojo), tem os seguintes blogues de consulta obrigatória, riquíssimos em fotografia e pormenor de diversos lugares, para quem gosta de saber e conhecer:
Meus espaços:
Outros espaços:
A musica na minha rádio:
3. Quando recebi esta matéria do Portojo, enviei-lhe o seguinte e-mail:
Boa noite Amigo & Camarada J. Teixeira,
Não sei se sabes que o camuflado, que está no boneco, apresentado na penúltima foto é meu, bem como todo o restante equipamento.
Um dia emprestei tudo para a exposição itinerante "Testemunhos da Guerra do Ultramar/Colonial - 1962-1974" e uma vez acabada a exposição doei tudo ao Museu.
O Museu tem uma “Liga dos Amigos do Museu Militar do Porto”, que colabora com todas as actividades internas, tais como colóquios, seminários, exposições, etc.
Todos podem ser Associados da Liga, que está aberta principalmente àqueles que gostem de História Militar e relacionados, e da História de Portugal.
Cumprimentos Amigos do,
Magalhães Ribeiro
Fotos: © Jorge Teixeira (2009). Direitos reservados.
____________
Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
Guiné 63/74 - P4966: História da CCAÇ 2679 (26): Passeio fronteiriço e, A GMC e o coelho na coluna ao Gabú (José Manuel M. Dinis)
1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 12 de Setembro de 2009:
Carlos, camarada,
Mais dois nacos de prosa a ver se consigo dizer alguma coisa.
Como habitualmente espero que tenhas a paciência necessária, que antecipadamente agradeço.
Para ti e para a Tabanca vai um abraço fraterno.
José Dinis
Passeio fronteiriço
Entranhámo-nos no mato que adensava. Curiosamente o trilho desaparecera, mas, segundo a minha orientação, seguia numa direcção paralela à linha de fronteira, no sentido de Oeste para Leste. Se por um lado a caminhada era dificultada pela falta de caminho aberto, por outro, a sombra quase constante reconfortava do sol impiedoso. O patrulhamento prosseguia. Tínhamos que andar até outro trilho de ligação ao Senegal, observar eventuais sinais de actividade do IN, e interrogar algum paisano que circulasse entre aldeias de cá e de lá, na medida em que havia ligações familiares de cada lado dos marcos fronteiriços.
Depois de algumas horas de passeio inclemente, abancámos na orla de uma mata para o magnífico repasto proporcionado pela ração de combate proveniente da Manutenção Militar, marca exigente que contratava com os melhores fornecedores, devidamente acompanhado por casqueiro da Companhia e água da bolanha. Ninguém levava cerveja porque com tanto calor tornava-se quase indigesta.
Comia-se por obrigação, sem prazer, fartos do paladar do chouriço, da espécie de paté, da marmelada espremida de um tubo. Mas era o que dispúnhamos, e o que tem que ser, tem muita força. Da ração de combate só o leite achocolatado era geralmente incontestado.
Era um dia seco e quente no fim da época das chuvas. O pessoal descontraía-se na medida do possível, já que o IN também não se deslocava àquela hora. Dormiam alguns, galhofavam outros, e havia quem se isolasse com o pensamento no belo sexo da namorada.
Em certa ocasião, porém, já com o pessoal desperto, aproveitei qualquer alusão a acontecimentos fatais em consequência da guerra, para voltar ao assunto e, através da conversa, apurar a evolução do grupo, no que respeitava às capacidades lúcidas em situação de combate, e ao determinismo de cada um.
Ainda houve quem me respondesse que faria fogo de rajada, com intenção de intimidar o IN e mantê-lo à distância. Voltei a advertir que essa reacção era típica dos cobardes, tonta e perturbadora do grupo. Referi que cada tiro dado devia corresponder a uma intenção objectiva para eliminar o adversário. Que ninguém devia iniciar uma acção de fogo sem o meu consentimento. Que não perdoaria, se fosse nossa a iniciativa. Em caso de reacção, a cada tiro disparado teria que corresponder um inimigo abatido, e disso também não abria mão.
No geral, porém, a lição estava sabida, apenas notei que dois ou três nunca teriam a iniciativa de disparar, limitar-se-iam a fazer o que vissem fazer, nem imagino com que resultados. Repisei a ideia de que em situação extrema de guerra, em combate, o nosso êxito dependeria essencialmente da acção coordenada do grupo, e que a comunicação entre nós era primordial. Acrescentei que em caso de sermos atacados, devíamo-nos dispersar um bocadinho, sempre com a maior cautela, para garantirmos um espaçamento de segurança, e aparentar maior capacidade de resposta; e afastarmo-nos das viaturas e das árvores para evitar estilhaços de eventuais rebentamentos. Somente nos extremos do Pelotão deveriam estar pelo menos dois elementos, para melhor controle da situação. E devíamos ser tão calmos quanto possível para permitir a comunicação oral, gestual e visual.
Volta e meia era um chato, mas as noções parecia terem sido apreendidas e não houve sinais de enfado.
O pessoal agora brincava, que uns seriam nabos à vista do inimigo, e estes ripostavam que não lhes pedissem ajuda pelas aflições. Era bom o espírito e sedimentava a organização do Foxtrot. Intimamente só desejava que não houvesse necessidade de praticar estas teorias. Entre nós não havia vocações para heroísmos. Se esses actos acontecessem, que fosse pela melhor intuição para salvarmos a pele. Mesmo assim ainda deixaram uma critica velada, que alinhávamos demais, que tínhamos mais mato que os outros Pelotões, que parecia que eu gostava daquelas andanças.
Levantámos ferro de regresso a Bajocunda. No local deixámos as embalagens da M.M. como prova de que nos deslocávamos em toda a ZO da Companhia, mas em desacordo com as emergentes teorias ambientais.
A GMC e o coelho na coluna ao Gabú
Como periodicamente acontecia, calhou ao Foxtrot fazer a coluna a Nova Lamego. Todos os dias era garantida a picagem de Tabassi para Bajocunda pelo Pelotão que ali se deslocava para passar a noite. Entre Tabassi e Pirada competia a esta garantir a picagem. No sentido de Pirada para Nova Lamego não sei como se processava, mas não tive conhecimento de qualquer engenho ou acção do IN naquele percurso que, para nós, era da maior confiança, relativamente à ligação directa de Bajocunda para Gabu, menos quilómetros, mas piso mais difícil e segurança menos fiável. Acresce referir, que em Pirada morava o comerciante com melhores relações, quer com as autoridades senegalesas, quer com o IN, segundo alguma especulação. Por isso, só raramente nos deslocávamos pela estrada Bajocunda/Nova Lamego.
Como de costume, ao aproximar-me das viaturas, apesar do secretismo da organização, já se alojava nas carrocerias uma quantidade indeterminada de civis, principalmente mulheres, crianças e velhos, com animais domésticos para negócio ou oferta, mais sacos de milho ou mancarra. Como de costume, também, dirigi-me ao Capitão questionando-o se se responsabilizava pela segurança dos civis, ao que, repetidamente, ele respondia que era comigo levá-los ou não.
Devo referir que a minha atitude derivava de um auto de corpo-delito levantado a um alferes da anterior Companhia de Artilharia em Bajocunda, que ficou em Bissau a aguardar a decisão da Justiça Militar, em resultado da responsabilização pela morte de um civil a quem dava boleia, que se finou por ter dado uma cabeçada numa árvore durante a deslocação da coluna que ele comandava. Nestes considerandos eu não autorizava boleias a civis, era o único a proceder assim, e havia toda uma reacção daquela gente que, primeiro faziam-se desentendidos das minhas indicações, depois saíam das viaturas com a tralha e um argumentário pesaroso.
Ora, em primeiro lugar eu estava ao serviço do Exército Português, não ao serviço da população; em segundo lugar, se o Capitão se demitia de alguma acção social, não seria eu quem iria arvorar-se em bom samaritano, e correr riscos desnecessários. Naturalmente atraía o odioso da questão, mas não era relevante para mim.
A coluna deslocava-se como habitualmente, até que, no cruzamento de Sónaco, fizeram-me sinal para parar. Uma GMC estava no limite da temperatura do motor. Aberto o capot foi com surpresa que vi a cabeça do motor com a cor do fogo, dir-se-ia que prestes a fundir. Causou a admiração de todos, e logo aquela viatura que se destinava a carregar mercadoria. A razão era simples: fizera cerca de quarenta quilómetros sem correia de ventoinha, o que era absolutamente fantástico.
A coluna prosseguiu rebocando a velha GMC que, depois de passar pela oficina, regressou a Bajocunda cumprindo a função.
No Gabu, o pessoal precedeu às diligências do costume, carregavam a importante cerveja e demais mercadoria, alguém ia ao correio levar e trazer a correspondência, enquanto eu me apresentava ao Major que não me ligava peva.
Depois estávamos livres para almoçar.
Tinha por costume passar por um bar em frente ao Comando, lugar centralíssimo, onde o pessoal de diversas proveniências costumava afluir. Por vezes encontrava malta conhecida, trocávamos dois dedos de conversa, tomávamos cerveja ou aperitivo, martini ou gin, até abalarmos para comer.
Não sei como nem porquê, em Nova Lamego gostava de me encher com o coelho guisado, acompanhado por duas ou três cervejas, que amainavam o calor acentuado pelo guisado picante. Era a especialidade do último restaurante à direita, no inicio da estrada para Sónaco, no limite da localidade. O clima da Guiné não parece apropriado à criação de coelhos, e o negócio dos produtos congelados, naquele tempo, não estaria tão desenvolvido que fizesse chegar coelhos ao leste da Guiné. Tudo o indica, e cochichava-se, que comíamos gato por coelho. Mas era bom.
Pelas duas, duas e meia, uma viatura dava a volta pela localidade, recolhia o pessoal e regressávamos a casa, cerca de duas horas de viagem. Era quando o calor mais abafava. Depois do cruzamento para Pirada, e um pouco de andamento, chegávamos a uma fonte, e uma espécie de tanque, onde as lavadeiras exerciam o seu mister. Sobre a viatura eu transpirava abundantemente, em resultado da digestão, combinada com o calor ambiente.
Nesse lugar havia paragem obrigatória. Eu descia, cumprimentava as mulheres, e servia-me daquela sabonária enriquecida com insectos e outros pequenos organismos. Bebia uma cabaça daquela água. Não morria de sede, mas podia lerpar da aleivosia.
Depois disso era acelerar até Bajocunda.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4908: História da CCAÇ 2679 (25): Conversa com o Januário (José Manuel M. Dinis)
Carlos, camarada,
Mais dois nacos de prosa a ver se consigo dizer alguma coisa.
Como habitualmente espero que tenhas a paciência necessária, que antecipadamente agradeço.
Para ti e para a Tabanca vai um abraço fraterno.
José Dinis
Passeio fronteiriço
Entranhámo-nos no mato que adensava. Curiosamente o trilho desaparecera, mas, segundo a minha orientação, seguia numa direcção paralela à linha de fronteira, no sentido de Oeste para Leste. Se por um lado a caminhada era dificultada pela falta de caminho aberto, por outro, a sombra quase constante reconfortava do sol impiedoso. O patrulhamento prosseguia. Tínhamos que andar até outro trilho de ligação ao Senegal, observar eventuais sinais de actividade do IN, e interrogar algum paisano que circulasse entre aldeias de cá e de lá, na medida em que havia ligações familiares de cada lado dos marcos fronteiriços.
Depois de algumas horas de passeio inclemente, abancámos na orla de uma mata para o magnífico repasto proporcionado pela ração de combate proveniente da Manutenção Militar, marca exigente que contratava com os melhores fornecedores, devidamente acompanhado por casqueiro da Companhia e água da bolanha. Ninguém levava cerveja porque com tanto calor tornava-se quase indigesta.
Comia-se por obrigação, sem prazer, fartos do paladar do chouriço, da espécie de paté, da marmelada espremida de um tubo. Mas era o que dispúnhamos, e o que tem que ser, tem muita força. Da ração de combate só o leite achocolatado era geralmente incontestado.
Era um dia seco e quente no fim da época das chuvas. O pessoal descontraía-se na medida do possível, já que o IN também não se deslocava àquela hora. Dormiam alguns, galhofavam outros, e havia quem se isolasse com o pensamento no belo sexo da namorada.
Em certa ocasião, porém, já com o pessoal desperto, aproveitei qualquer alusão a acontecimentos fatais em consequência da guerra, para voltar ao assunto e, através da conversa, apurar a evolução do grupo, no que respeitava às capacidades lúcidas em situação de combate, e ao determinismo de cada um.
Ainda houve quem me respondesse que faria fogo de rajada, com intenção de intimidar o IN e mantê-lo à distância. Voltei a advertir que essa reacção era típica dos cobardes, tonta e perturbadora do grupo. Referi que cada tiro dado devia corresponder a uma intenção objectiva para eliminar o adversário. Que ninguém devia iniciar uma acção de fogo sem o meu consentimento. Que não perdoaria, se fosse nossa a iniciativa. Em caso de reacção, a cada tiro disparado teria que corresponder um inimigo abatido, e disso também não abria mão.
No geral, porém, a lição estava sabida, apenas notei que dois ou três nunca teriam a iniciativa de disparar, limitar-se-iam a fazer o que vissem fazer, nem imagino com que resultados. Repisei a ideia de que em situação extrema de guerra, em combate, o nosso êxito dependeria essencialmente da acção coordenada do grupo, e que a comunicação entre nós era primordial. Acrescentei que em caso de sermos atacados, devíamo-nos dispersar um bocadinho, sempre com a maior cautela, para garantirmos um espaçamento de segurança, e aparentar maior capacidade de resposta; e afastarmo-nos das viaturas e das árvores para evitar estilhaços de eventuais rebentamentos. Somente nos extremos do Pelotão deveriam estar pelo menos dois elementos, para melhor controle da situação. E devíamos ser tão calmos quanto possível para permitir a comunicação oral, gestual e visual.
Volta e meia era um chato, mas as noções parecia terem sido apreendidas e não houve sinais de enfado.
O pessoal agora brincava, que uns seriam nabos à vista do inimigo, e estes ripostavam que não lhes pedissem ajuda pelas aflições. Era bom o espírito e sedimentava a organização do Foxtrot. Intimamente só desejava que não houvesse necessidade de praticar estas teorias. Entre nós não havia vocações para heroísmos. Se esses actos acontecessem, que fosse pela melhor intuição para salvarmos a pele. Mesmo assim ainda deixaram uma critica velada, que alinhávamos demais, que tínhamos mais mato que os outros Pelotões, que parecia que eu gostava daquelas andanças.
Levantámos ferro de regresso a Bajocunda. No local deixámos as embalagens da M.M. como prova de que nos deslocávamos em toda a ZO da Companhia, mas em desacordo com as emergentes teorias ambientais.
A GMC e o coelho na coluna ao Gabú
Como periodicamente acontecia, calhou ao Foxtrot fazer a coluna a Nova Lamego. Todos os dias era garantida a picagem de Tabassi para Bajocunda pelo Pelotão que ali se deslocava para passar a noite. Entre Tabassi e Pirada competia a esta garantir a picagem. No sentido de Pirada para Nova Lamego não sei como se processava, mas não tive conhecimento de qualquer engenho ou acção do IN naquele percurso que, para nós, era da maior confiança, relativamente à ligação directa de Bajocunda para Gabu, menos quilómetros, mas piso mais difícil e segurança menos fiável. Acresce referir, que em Pirada morava o comerciante com melhores relações, quer com as autoridades senegalesas, quer com o IN, segundo alguma especulação. Por isso, só raramente nos deslocávamos pela estrada Bajocunda/Nova Lamego.
Como de costume, ao aproximar-me das viaturas, apesar do secretismo da organização, já se alojava nas carrocerias uma quantidade indeterminada de civis, principalmente mulheres, crianças e velhos, com animais domésticos para negócio ou oferta, mais sacos de milho ou mancarra. Como de costume, também, dirigi-me ao Capitão questionando-o se se responsabilizava pela segurança dos civis, ao que, repetidamente, ele respondia que era comigo levá-los ou não.
Devo referir que a minha atitude derivava de um auto de corpo-delito levantado a um alferes da anterior Companhia de Artilharia em Bajocunda, que ficou em Bissau a aguardar a decisão da Justiça Militar, em resultado da responsabilização pela morte de um civil a quem dava boleia, que se finou por ter dado uma cabeçada numa árvore durante a deslocação da coluna que ele comandava. Nestes considerandos eu não autorizava boleias a civis, era o único a proceder assim, e havia toda uma reacção daquela gente que, primeiro faziam-se desentendidos das minhas indicações, depois saíam das viaturas com a tralha e um argumentário pesaroso.
Ora, em primeiro lugar eu estava ao serviço do Exército Português, não ao serviço da população; em segundo lugar, se o Capitão se demitia de alguma acção social, não seria eu quem iria arvorar-se em bom samaritano, e correr riscos desnecessários. Naturalmente atraía o odioso da questão, mas não era relevante para mim.
A coluna deslocava-se como habitualmente, até que, no cruzamento de Sónaco, fizeram-me sinal para parar. Uma GMC estava no limite da temperatura do motor. Aberto o capot foi com surpresa que vi a cabeça do motor com a cor do fogo, dir-se-ia que prestes a fundir. Causou a admiração de todos, e logo aquela viatura que se destinava a carregar mercadoria. A razão era simples: fizera cerca de quarenta quilómetros sem correia de ventoinha, o que era absolutamente fantástico.
A coluna prosseguiu rebocando a velha GMC que, depois de passar pela oficina, regressou a Bajocunda cumprindo a função.
No Gabu, o pessoal precedeu às diligências do costume, carregavam a importante cerveja e demais mercadoria, alguém ia ao correio levar e trazer a correspondência, enquanto eu me apresentava ao Major que não me ligava peva.
Depois estávamos livres para almoçar.
Tinha por costume passar por um bar em frente ao Comando, lugar centralíssimo, onde o pessoal de diversas proveniências costumava afluir. Por vezes encontrava malta conhecida, trocávamos dois dedos de conversa, tomávamos cerveja ou aperitivo, martini ou gin, até abalarmos para comer.
Não sei como nem porquê, em Nova Lamego gostava de me encher com o coelho guisado, acompanhado por duas ou três cervejas, que amainavam o calor acentuado pelo guisado picante. Era a especialidade do último restaurante à direita, no inicio da estrada para Sónaco, no limite da localidade. O clima da Guiné não parece apropriado à criação de coelhos, e o negócio dos produtos congelados, naquele tempo, não estaria tão desenvolvido que fizesse chegar coelhos ao leste da Guiné. Tudo o indica, e cochichava-se, que comíamos gato por coelho. Mas era bom.
Pelas duas, duas e meia, uma viatura dava a volta pela localidade, recolhia o pessoal e regressávamos a casa, cerca de duas horas de viagem. Era quando o calor mais abafava. Depois do cruzamento para Pirada, e um pouco de andamento, chegávamos a uma fonte, e uma espécie de tanque, onde as lavadeiras exerciam o seu mister. Sobre a viatura eu transpirava abundantemente, em resultado da digestão, combinada com o calor ambiente.
Nesse lugar havia paragem obrigatória. Eu descia, cumprimentava as mulheres, e servia-me daquela sabonária enriquecida com insectos e outros pequenos organismos. Bebia uma cabaça daquela água. Não morria de sede, mas podia lerpar da aleivosia.
Depois disso era acelerar até Bajocunda.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4908: História da CCAÇ 2679 (25): Conversa com o Januário (José Manuel M. Dinis)
Guiné 63/74 - P4965: Os Nossos Enfermeiros (6): Os Nossos Anjos da Guarda (Joseph Belo)
1. Texto de José (Joseph) Belo (*), ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente Cap Inf Ref, a viver na Suécia, enviado em mensagem com data de 11 de Setembro de 2009:
Os nossos Anjos da Guarda
Muitos louvores foram dados a operacionais, e ainda mais foram atribuídos a muitos que, em seguras Repartições de Comando movimentavam... papeis!
Estranhamente, os camaradas dos grupos de enfermagem foram sempre os grandes esquecidos de um mais que justo reconhecimento oficial. Colocados nos Pelotões, eram em verdade, atiradores operacionais... com uma sacola de enfermeiro a tiracolo. Muitas das vezes, os riscos assumidos eram ainda maiores que os dos restantes companheiros de Pelotão. Em reacção humana instintiva, corriam debaixo de fogo intenso tentando auxiliar os feridos bem expostos na picada.
Enquanto nós, empunhando a G3 fazíamos fogachadas intensas (algumas úteis), os enfermeiros tinham ambas as mãos ocupadas com ligaduras, pensos, morfinas e soros. A solidariedade para com os camaradas que sofriam, fazia esquecer tantas vezes a arma, colocada no solo ao lado dos feridos. Nas colunas de reabastecimentos, nas picagens das estradas, nas emboscadas, nos assaltos a acampamentos, nos destacamentos mais isolados da mata, não nos acompanhavam nem médicos, nem senhores oficiais superiores (os tais que tanto gostavam de receber louvores), nem mesmo sequer... capelões!
Tínhamos, sim, como único anjo da guarda o nosso enfermeiro, que muitas vezes se preocupava mais connosco, que nós próprios. Quantas pensagens de membros amputados por minas? Procuravam literalmente com mãos nuas, e recorde-se o material que dispunham, aguentar a vida de um camarada, e tantas vezes amigo.
Nos destacamentos isolados, à falta de psicólogos profissionais, eram os confidentes. Desde os dramas pessoais relacionados com problemas familiares graves, até conversas amigas em que os medos e receios se ventilavam junto do pastilhas que a todos atendia, e principalmente... ouvia!
Desde as diarreias aos paludismos, à pouca vontade de amanhã participar na picagem da estrada por causa de uma má fesada, tudo somado à assistência às populações com partos, pequenas cirurgias, etc, etc, etc.
José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada (1968/70), todo artilhado só para a fotografia, pois havia tomado a opção de não usar nunca a G3, já que as suas armas eram os apetrechos de saúde.
Tive a sorte de compartilhar o 2.º Pelotão da CCAÇ 2381 com o nosso camarada de blogue Zé Teixeira, o nosso inesquecível pastilhas.
Para todos os que têm lido as suas inúmeras contribuições para o blogue, bem pouco se poderá acrescentar. De profunda formação humana, em que a solidariedade, a camaradagem e a incrível qualidade Cristã de procurar sempre explicar o inexplicável, foi um exemplo perfeito dos referidos anjos da guarda.
Quarenta anos já passados, nem os camaradas da Companhia, nem a população de Mampatá o esquecem.
Haverá melhor louvor Oficial, meu querido Camarada Maioral?
Estocolmo 11/9/09
José Belo
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4709: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (7): O meu tecto mais não é que o soalho do vizinho
Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4960: Os Nossos Enfermeiros (5): Os Enfermeiros dos Lassas, na lama e no duro (Mário Fitas)
Os nossos Anjos da Guarda
Muitos louvores foram dados a operacionais, e ainda mais foram atribuídos a muitos que, em seguras Repartições de Comando movimentavam... papeis!
Estranhamente, os camaradas dos grupos de enfermagem foram sempre os grandes esquecidos de um mais que justo reconhecimento oficial. Colocados nos Pelotões, eram em verdade, atiradores operacionais... com uma sacola de enfermeiro a tiracolo. Muitas das vezes, os riscos assumidos eram ainda maiores que os dos restantes companheiros de Pelotão. Em reacção humana instintiva, corriam debaixo de fogo intenso tentando auxiliar os feridos bem expostos na picada.
Enquanto nós, empunhando a G3 fazíamos fogachadas intensas (algumas úteis), os enfermeiros tinham ambas as mãos ocupadas com ligaduras, pensos, morfinas e soros. A solidariedade para com os camaradas que sofriam, fazia esquecer tantas vezes a arma, colocada no solo ao lado dos feridos. Nas colunas de reabastecimentos, nas picagens das estradas, nas emboscadas, nos assaltos a acampamentos, nos destacamentos mais isolados da mata, não nos acompanhavam nem médicos, nem senhores oficiais superiores (os tais que tanto gostavam de receber louvores), nem mesmo sequer... capelões!
Tínhamos, sim, como único anjo da guarda o nosso enfermeiro, que muitas vezes se preocupava mais connosco, que nós próprios. Quantas pensagens de membros amputados por minas? Procuravam literalmente com mãos nuas, e recorde-se o material que dispunham, aguentar a vida de um camarada, e tantas vezes amigo.
Nos destacamentos isolados, à falta de psicólogos profissionais, eram os confidentes. Desde os dramas pessoais relacionados com problemas familiares graves, até conversas amigas em que os medos e receios se ventilavam junto do pastilhas que a todos atendia, e principalmente... ouvia!
Desde as diarreias aos paludismos, à pouca vontade de amanhã participar na picagem da estrada por causa de uma má fesada, tudo somado à assistência às populações com partos, pequenas cirurgias, etc, etc, etc.
José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada (1968/70), todo artilhado só para a fotografia, pois havia tomado a opção de não usar nunca a G3, já que as suas armas eram os apetrechos de saúde.
Tive a sorte de compartilhar o 2.º Pelotão da CCAÇ 2381 com o nosso camarada de blogue Zé Teixeira, o nosso inesquecível pastilhas.
Para todos os que têm lido as suas inúmeras contribuições para o blogue, bem pouco se poderá acrescentar. De profunda formação humana, em que a solidariedade, a camaradagem e a incrível qualidade Cristã de procurar sempre explicar o inexplicável, foi um exemplo perfeito dos referidos anjos da guarda.
Quarenta anos já passados, nem os camaradas da Companhia, nem a população de Mampatá o esquecem.
Haverá melhor louvor Oficial, meu querido Camarada Maioral?
Estocolmo 11/9/09
José Belo
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4709: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (7): O meu tecto mais não é que o soalho do vizinho
Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4960: Os Nossos Enfermeiros (5): Os Enfermeiros dos Lassas, na lama e no duro (Mário Fitas)
Guiné 63/74 - P4964: Os Unidos de Mampatá, por Luís Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74 ) (3): Onde mora o perigo
1. Mensagem de Luís Marcelino, ex-Cap Mil, CMDT da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74, com data de 8 de Setembro de 2009:
Luís Garça e equipa editorial
Com um abraço de muita amizade, aqui deixo mais um apontamento sobre a vivência da CART 6250 em Mampatá - Guiné.
Um pequeno episódio que mostra um pouco o cenário em que se viveu.
Luís Marcelino
OS UNIDOS DE MAMPATÁ (3)
Onde mora o perigo
Como já anteriormente referi, a partir de finais de 1972 e boa parte de 1973, a actividade principal de CART 6250, foi fazer segurança à construção da estrada entre Aldeia Formosa e Nhacobá, para o que fornecia, por norma, diariamente, dois grupos de combate.
Um dos trabalhos que invariavelmente se fazia todos os dias, logo de manhã, antes da chegada dos homens e máquinas da Engenharia, era efectuar a picagem do acesso e zona de trabalhos com vista a detectar eventuais minas que pudessem ser colocadas nesses locais.
Foi o que aconteceu no dia 29 de Janeiro de 1973.
Estabelecido o esquema de segurança, como era norma naquelas circunstâncias, logo de madrugada iniciaram-se os trabalhos que consistiram em montar um dispositivo de segurança na frente e laterais da zona de trabalhos da Engenharia.
Enquanto se montava este dispositivo de segurança, o GCOMB incumbido de fazer a picagem de todo o acesso ao local onde iriam decorrer os trabalhos, procedeu à referida picagem.
A determinado momento, um dos militares picou num ponto que indiciou existir uma mina.
Dado o alerta, todo o efectivo parou adoptando a atitude adequada de segurança.
Chamado o Furriel de minas e armadilhas que fazia parte da força, examinou o local, confirmando existir ali uma mina anti-carro, colocada num local onde passaria o rodado de qualquer viatura que por ali passasse.
Como era provável que pudessem por ali existir mais minas, procedeu-se à picagem minuciosa de toda a zona envolvente.
Encontraram-se mais 12 minas anti-pessoais, colocadas junto a árvores ali existentes. Todas foram levantadas com sucesso.
Quanto à mina anti-carro, depois de devidamente descoberta, o Furriel dispunha-se a levantá-la.
Não o autorizei, dando-lhe indicações de que deveria utilizar a corda que existia para o efeito.
Respondeu-me que não a tinha trazido, que tinha ficado no quartel, e que certamente conseguia levantá-la.
Não obstante a boa vontade do militar, exigi que se fosse buscar a corda, aguardando-se o tempo necessário para isso.
Lá foi ao quartel buscar a referida corda.
Regressado, colocou o grampo existente na extremidade da corda lateralmente à mina e, depois de todo o pessoal estar a distâncias e condições de segurança, a corda foi esticada.
Logo que foi puxada, deu-se um enorme estrondo e abriu-se no local um grande cratera.
Como era evidente, a mina estava armadilhada!
Naturalmente o Furriel ficou pálido e nem queria acreditar no que via.
A sua vida podia ali ter sido ceifada bem como a de outros em paga de uma ingénua generosidade.
Curioso também foi o local onde estavam as minas anti-pessoais; colocadas junto às árvores, eram os locais naturais onde o pessoal se abrigaria para se proteger, uma vez ouvido o barulho do rebentamento da mina anti-carro, caso não fosse detectada.
Na verdade, nunca ninguém sabia onde morava o perigo.
Ele espreitava em todo o local e de muitos modos.
O que era preciso era estar atento, não confiar e... sorte.
Mina AC TM-46, levantada no Bironque, estrada Mansabá/K3, com auxílio de uma corda, como mandavam as regras de segurança.
Fotos de David Guimarães e Carlos Vinhal
Editadas por Carlos Vinhal
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4697: Os Unidos de Mampatá, por Luís Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250 (Mampatá, 1972/74 ) (2): Descuido fatal!
Luís Garça e equipa editorial
Com um abraço de muita amizade, aqui deixo mais um apontamento sobre a vivência da CART 6250 em Mampatá - Guiné.
Um pequeno episódio que mostra um pouco o cenário em que se viveu.
Luís Marcelino
OS UNIDOS DE MAMPATÁ (3)
Onde mora o perigo
Como já anteriormente referi, a partir de finais de 1972 e boa parte de 1973, a actividade principal de CART 6250, foi fazer segurança à construção da estrada entre Aldeia Formosa e Nhacobá, para o que fornecia, por norma, diariamente, dois grupos de combate.
Um dos trabalhos que invariavelmente se fazia todos os dias, logo de manhã, antes da chegada dos homens e máquinas da Engenharia, era efectuar a picagem do acesso e zona de trabalhos com vista a detectar eventuais minas que pudessem ser colocadas nesses locais.
Foi o que aconteceu no dia 29 de Janeiro de 1973.
Estabelecido o esquema de segurança, como era norma naquelas circunstâncias, logo de madrugada iniciaram-se os trabalhos que consistiram em montar um dispositivo de segurança na frente e laterais da zona de trabalhos da Engenharia.
Enquanto se montava este dispositivo de segurança, o GCOMB incumbido de fazer a picagem de todo o acesso ao local onde iriam decorrer os trabalhos, procedeu à referida picagem.
A determinado momento, um dos militares picou num ponto que indiciou existir uma mina.
Dado o alerta, todo o efectivo parou adoptando a atitude adequada de segurança.
Chamado o Furriel de minas e armadilhas que fazia parte da força, examinou o local, confirmando existir ali uma mina anti-carro, colocada num local onde passaria o rodado de qualquer viatura que por ali passasse.
Como era provável que pudessem por ali existir mais minas, procedeu-se à picagem minuciosa de toda a zona envolvente.
Encontraram-se mais 12 minas anti-pessoais, colocadas junto a árvores ali existentes. Todas foram levantadas com sucesso.
Quanto à mina anti-carro, depois de devidamente descoberta, o Furriel dispunha-se a levantá-la.
Não o autorizei, dando-lhe indicações de que deveria utilizar a corda que existia para o efeito.
Respondeu-me que não a tinha trazido, que tinha ficado no quartel, e que certamente conseguia levantá-la.
Não obstante a boa vontade do militar, exigi que se fosse buscar a corda, aguardando-se o tempo necessário para isso.
Lá foi ao quartel buscar a referida corda.
Regressado, colocou o grampo existente na extremidade da corda lateralmente à mina e, depois de todo o pessoal estar a distâncias e condições de segurança, a corda foi esticada.
Logo que foi puxada, deu-se um enorme estrondo e abriu-se no local um grande cratera.
Como era evidente, a mina estava armadilhada!
Naturalmente o Furriel ficou pálido e nem queria acreditar no que via.
A sua vida podia ali ter sido ceifada bem como a de outros em paga de uma ingénua generosidade.
Curioso também foi o local onde estavam as minas anti-pessoais; colocadas junto às árvores, eram os locais naturais onde o pessoal se abrigaria para se proteger, uma vez ouvido o barulho do rebentamento da mina anti-carro, caso não fosse detectada.
Na verdade, nunca ninguém sabia onde morava o perigo.
Ele espreitava em todo o local e de muitos modos.
O que era preciso era estar atento, não confiar e... sorte.
Mina AC TM-46, levantada no Bironque, estrada Mansabá/K3, com auxílio de uma corda, como mandavam as regras de segurança.
Fotos de David Guimarães e Carlos Vinhal
Editadas por Carlos Vinhal
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4697: Os Unidos de Mampatá, por Luís Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250 (Mampatá, 1972/74 ) (2): Descuido fatal!
Guiné 63/74 - P4963: Pensar em voz alta (Torcato Mendonça) (19): Em noite e dia de "cerrar dente"
1. Mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69, com data de 9 de Setembro de 2009:
Caro Carlos
Parece que continuas de serviço. Certamente apanhaste alguma porrada e nós não sabemos.
Há muito, muito tempo que não escrevia nada e não escrevi. Acontece que arrumei escritos e eteceteras para facilitar formatações e novo alinhamento na informática.
Estou, pensou eu, novamente de saída. Como bom Mouro vou até terras de moirama. Apalpo a areia, ponho o velho lenço avermelhado, mais grenad, com as luas, em quarto crescente ou minguante, as estrelas e outros simbolos do Islão e, quando o Sol aquece muito derramo água pelo lenço turbante - há dias atrás postaste uma foto minha com um lenço, esse era o azul da Cart, na cabeça - Gostos. Refresca...
Isto tudo para te dizer que devo voltar a sair; que falam nos médicos, e bem, mas há um, infelizmente desaparecido, que eu recordo com saudade: - o David Payne. Ia para as Companhias no mato. A prova está numa foto dele a fazer pequena cirurgia, quase á luz da vela na minha Cart. Foi médico do Bat 2852 em Bambadinca 68/69. Padrinho do Mário Beja Santos, creio eu, quando estava já em Bissau.
E,nas arrumações, encontrei esse escrito de Fev/09. Teria sido enviado? Perguntei-lhe mas ou por indisposição ou mau feitio nada disse. Sacana. Anexo o dito.
Um abraço forte, não tamanho de nada, só forte e fraterno. Estendo outros aos restantes Editores e a todos os Camaradas desta Tertúlia enorme.
Um abraço Carlos Vinhal do Torcato
Pensando em voz alta em noite e dia de “cerrar dente”!
1 – Pergunto, não ao vento, mas às horas que passam, na noite calma, no silêncio, quase em misantropia, respostas para interrogações e dúvidas minhas advindas de transformações, divergências, nas diversas maneiras de relatar o facto ou o acontecimento vivido.
Não podemos ter a pretensão da igualdade do relato, individual, se foi vivido colectivamente. O relato posterior diverge sempre. Parece-me natural e até desejável que assim seja. As contradições, se analisadas calmamente e em busca de consenso, a maioria, são, desde logo superadas. Outras, fruto de orgulhos ou outros sentimentos menores, tornam os relatos irredutíveis no consenso. Dispensáveis e, salvo se houver a pretensão de tornar a discussão absurda, nunca se encontra a verdade. Subsiste ainda o esquecimento fruto do passar dos anos, décadas no caso vertente, e à consequente evolução do nosso próprio pensamento. Ou seja: o relato, dos factos há décadas passados terá que ser forçosamente relatado, não só em apelo à memória mas à maneira ou à forma do pensar de outrora. Difícil? Evidente. Mas assim aproximamo-nos mais da realidade passada, vivida e, se relatada, mais próxima do acontecido.
Em fundo tenho música tirada do Korá mandinga de Braima Galissá.
Estou louco? Não. Se assim pensas é porque não viveste o que eu vivi. Vidas!
Mas no futuro, que se quer breve pois há muito tempo perdido, têm que se discutir com frontalidade e objectividade certos temas.
Porque não já hoje?
Não particularizo qualquer caso. Todos nós pensamos, de imediato, num ou noutro. O blogue, este sítio é certamente o lugar para se contarem estórias, analisarem acontecimentos controversos e, por isso mesmo, serem contributos válidos para a história da guerra da Guiné. Não só da guerra mas de vários assuntos que necessitam ser tratados. Não posso dissociar a guerra da Guiné da guerra colonial noutras frentes. Só que aqui é, quanto a mim, preferível ser tratada, por quem viveu lá os acontecimentos e faz o seu relato.
Outro ponto é este tratamento ser feito por militares não profissionais. Nada tenho contra a Instituição Militar ou os profissionais. Vinquei em mim certa maneira de pensar, certo tipo de comportamento que se deve a esse tempo e, ainda hoje, se mantém. Pode e deve ser discutido também por profissionais. A guerra não era feita por eles? Evidentemente que os profissionais eram minoria e faziam comissão atrás de comissão. Aliás muitos profissionais dão aqui o seu contributo e, muitas vezes a eles se recorre no tirar de certas dúvidas.
Isso é assunto a merecer um tratamento e uma discussão própria. Parece-me, no entanto, que é assunto de consenso.
De quando em vez aparece um assunto ou um tema a suscitar maior divergência, por fugir do habitual;
De quando em vez fica o relato, a divergência a merecer um maior aprofundamento;
De quando em vez este blogue parece um bi ou tri blogue, devido a diversidade de assuntos tratados;
Não de quando em vez mas sempre, é obrigatório encontrar o consenso.
Utópico?
Não, nada disso. Entre Homens que têm um laço comum tão forte, não pode ser de outro modo.
2 – Há muito tempo que, através do Paulo Raposo, surgiram cinco questões. Não consegui reflectir e encontrar respostas do meu agrado.
Assim vou voltar a elas e responder o mais sinteticamente possível. Tentem…
i) - O heroísmo do soldado português;
R: Foi grande. Os heróis principais já não estão entre nós.
ii) - A confiança que os soldados depositavam em nós, quadros;
R: Certamente que tinham. Haveria excepções? Penso que sim mas desconheço.
iii) – A nossa passagem por África, que benefício social, económico trouxe a Portugal;
R: A certos grupos económicos certamente que muito. Foram cinco séculos de Império… ao Zé soldado… pouco ou nada. Deve ter havido excepções para validarem regras. Difícil a questão e, se respondida dava resmas de papel.
iv) – A religiosidade, de então e actual, e o porquê da diferença;
R: A de resposta mais difícil para mim. Convivi com homens de fervorosa religiosidade, homens do Norte. Outros, de outra Fé, Muçulmanos, de igual e forte religiosidade.
Mas os Deuses ou Deus, Pai de todos porque deixava os seus filhos serem tão maltratados? Isto ontem. Hoje haverá diferenças? Creio que não!
v) – As nossas famílias, que amarguras passaram por cá aquando da nossa ausência;
R: Muita creio eu. Muita mesmo. O sofrimento foi enorme.
Não quero escrever mais sobre esta questão. Arrepia-me.
A partida em sofrimento terrível (não quis a minha família presente) mas vi cenas inesquecíveis; a comissão; a alegria, quantas vezes a falsa alegria, da chegada. Depois, e mais importante: os deficientes e os que não vieram.
Muito difícil responder e não se diz nunca tudo. Bem colocadas as questões, pela abrangência e a profundidade.
Responder honesta e frontalmente eram muitas folhas. Parabéns Paulo e obrigado pelo que me fizeste reflectir, pensar e tentar, sem nunca responder. Se o não fizesse, assim tão levemente ficava mal comigo. Respondo assim e alivia muito pouco. Mexe connosco.
E tu Camarada? Respondes facilmente?
Não entro no caso do dia. Eu e os Homens que comandei, branco e negros, Homens portanto (só há uma raça a humana), combatemos com dignidade, estivemos não sei quantas horas debaixo de fogo, muitos foram feridos, alguns morreram de arma na mão, outros juntei os bocados. Quase todos voltaram connosco, pois a esta Terra pertenciam. Outros ficaram lá na sua Terra e alguns foram fuzilados. Porquê? Porque combateram comigo e com outros como eu. Fomos Camaradas, somos Camaradas e a justiça está por fazer.
Quase todos, os que voltaram foram recebidos em alegria. Muitos adaptaram-se mal à nova vida e, mesmo hoje ainda sofrem cerram o dente, muito docemente, muito passivamente choram por dentro em raiva surda. Até um dia Camarada, há sempre um dia de acertar contas, fazer justiça.
E, não erro certamente, se nos juntássemos um dia, lá, haveriam abraços com lágrimas. Porque os Homens também choram e era encontro de Irmãos.
FND, 25 de Fev 09
__________
Notas de CV:
Vd. último poste de "Pensar em voz alta" de 18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3648: Blogoterapia (82): Pensar em voz alta: Guileje ainda é cedo, Saiegh 18/12/78: foi há trinta anos...(Torcato Mendonça)
Vd. último poste da série de 8 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4922: Blogoterapia (125): No dia dos meus anos, brindei à amizade e à camaradagem forjadas em tempo de guerra (José Martins)
Caro Carlos
Parece que continuas de serviço. Certamente apanhaste alguma porrada e nós não sabemos.
Há muito, muito tempo que não escrevia nada e não escrevi. Acontece que arrumei escritos e eteceteras para facilitar formatações e novo alinhamento na informática.
Estou, pensou eu, novamente de saída. Como bom Mouro vou até terras de moirama. Apalpo a areia, ponho o velho lenço avermelhado, mais grenad, com as luas, em quarto crescente ou minguante, as estrelas e outros simbolos do Islão e, quando o Sol aquece muito derramo água pelo lenço turbante - há dias atrás postaste uma foto minha com um lenço, esse era o azul da Cart, na cabeça - Gostos. Refresca...
Isto tudo para te dizer que devo voltar a sair; que falam nos médicos, e bem, mas há um, infelizmente desaparecido, que eu recordo com saudade: - o David Payne. Ia para as Companhias no mato. A prova está numa foto dele a fazer pequena cirurgia, quase á luz da vela na minha Cart. Foi médico do Bat 2852 em Bambadinca 68/69. Padrinho do Mário Beja Santos, creio eu, quando estava já em Bissau.
E,nas arrumações, encontrei esse escrito de Fev/09. Teria sido enviado? Perguntei-lhe mas ou por indisposição ou mau feitio nada disse. Sacana. Anexo o dito.
Um abraço forte, não tamanho de nada, só forte e fraterno. Estendo outros aos restantes Editores e a todos os Camaradas desta Tertúlia enorme.
Um abraço Carlos Vinhal do Torcato
Pensando em voz alta em noite e dia de “cerrar dente”!
1 – Pergunto, não ao vento, mas às horas que passam, na noite calma, no silêncio, quase em misantropia, respostas para interrogações e dúvidas minhas advindas de transformações, divergências, nas diversas maneiras de relatar o facto ou o acontecimento vivido.
Não podemos ter a pretensão da igualdade do relato, individual, se foi vivido colectivamente. O relato posterior diverge sempre. Parece-me natural e até desejável que assim seja. As contradições, se analisadas calmamente e em busca de consenso, a maioria, são, desde logo superadas. Outras, fruto de orgulhos ou outros sentimentos menores, tornam os relatos irredutíveis no consenso. Dispensáveis e, salvo se houver a pretensão de tornar a discussão absurda, nunca se encontra a verdade. Subsiste ainda o esquecimento fruto do passar dos anos, décadas no caso vertente, e à consequente evolução do nosso próprio pensamento. Ou seja: o relato, dos factos há décadas passados terá que ser forçosamente relatado, não só em apelo à memória mas à maneira ou à forma do pensar de outrora. Difícil? Evidente. Mas assim aproximamo-nos mais da realidade passada, vivida e, se relatada, mais próxima do acontecido.
Em fundo tenho música tirada do Korá mandinga de Braima Galissá.
Estou louco? Não. Se assim pensas é porque não viveste o que eu vivi. Vidas!
Mas no futuro, que se quer breve pois há muito tempo perdido, têm que se discutir com frontalidade e objectividade certos temas.
Porque não já hoje?
Não particularizo qualquer caso. Todos nós pensamos, de imediato, num ou noutro. O blogue, este sítio é certamente o lugar para se contarem estórias, analisarem acontecimentos controversos e, por isso mesmo, serem contributos válidos para a história da guerra da Guiné. Não só da guerra mas de vários assuntos que necessitam ser tratados. Não posso dissociar a guerra da Guiné da guerra colonial noutras frentes. Só que aqui é, quanto a mim, preferível ser tratada, por quem viveu lá os acontecimentos e faz o seu relato.
Outro ponto é este tratamento ser feito por militares não profissionais. Nada tenho contra a Instituição Militar ou os profissionais. Vinquei em mim certa maneira de pensar, certo tipo de comportamento que se deve a esse tempo e, ainda hoje, se mantém. Pode e deve ser discutido também por profissionais. A guerra não era feita por eles? Evidentemente que os profissionais eram minoria e faziam comissão atrás de comissão. Aliás muitos profissionais dão aqui o seu contributo e, muitas vezes a eles se recorre no tirar de certas dúvidas.
Isso é assunto a merecer um tratamento e uma discussão própria. Parece-me, no entanto, que é assunto de consenso.
De quando em vez aparece um assunto ou um tema a suscitar maior divergência, por fugir do habitual;
De quando em vez fica o relato, a divergência a merecer um maior aprofundamento;
De quando em vez este blogue parece um bi ou tri blogue, devido a diversidade de assuntos tratados;
Não de quando em vez mas sempre, é obrigatório encontrar o consenso.
Utópico?
Não, nada disso. Entre Homens que têm um laço comum tão forte, não pode ser de outro modo.
2 – Há muito tempo que, através do Paulo Raposo, surgiram cinco questões. Não consegui reflectir e encontrar respostas do meu agrado.
Assim vou voltar a elas e responder o mais sinteticamente possível. Tentem…
i) - O heroísmo do soldado português;
R: Foi grande. Os heróis principais já não estão entre nós.
ii) - A confiança que os soldados depositavam em nós, quadros;
R: Certamente que tinham. Haveria excepções? Penso que sim mas desconheço.
iii) – A nossa passagem por África, que benefício social, económico trouxe a Portugal;
R: A certos grupos económicos certamente que muito. Foram cinco séculos de Império… ao Zé soldado… pouco ou nada. Deve ter havido excepções para validarem regras. Difícil a questão e, se respondida dava resmas de papel.
iv) – A religiosidade, de então e actual, e o porquê da diferença;
R: A de resposta mais difícil para mim. Convivi com homens de fervorosa religiosidade, homens do Norte. Outros, de outra Fé, Muçulmanos, de igual e forte religiosidade.
Mas os Deuses ou Deus, Pai de todos porque deixava os seus filhos serem tão maltratados? Isto ontem. Hoje haverá diferenças? Creio que não!
v) – As nossas famílias, que amarguras passaram por cá aquando da nossa ausência;
R: Muita creio eu. Muita mesmo. O sofrimento foi enorme.
Não quero escrever mais sobre esta questão. Arrepia-me.
A partida em sofrimento terrível (não quis a minha família presente) mas vi cenas inesquecíveis; a comissão; a alegria, quantas vezes a falsa alegria, da chegada. Depois, e mais importante: os deficientes e os que não vieram.
Muito difícil responder e não se diz nunca tudo. Bem colocadas as questões, pela abrangência e a profundidade.
Responder honesta e frontalmente eram muitas folhas. Parabéns Paulo e obrigado pelo que me fizeste reflectir, pensar e tentar, sem nunca responder. Se o não fizesse, assim tão levemente ficava mal comigo. Respondo assim e alivia muito pouco. Mexe connosco.
E tu Camarada? Respondes facilmente?
Não entro no caso do dia. Eu e os Homens que comandei, branco e negros, Homens portanto (só há uma raça a humana), combatemos com dignidade, estivemos não sei quantas horas debaixo de fogo, muitos foram feridos, alguns morreram de arma na mão, outros juntei os bocados. Quase todos voltaram connosco, pois a esta Terra pertenciam. Outros ficaram lá na sua Terra e alguns foram fuzilados. Porquê? Porque combateram comigo e com outros como eu. Fomos Camaradas, somos Camaradas e a justiça está por fazer.
Quase todos, os que voltaram foram recebidos em alegria. Muitos adaptaram-se mal à nova vida e, mesmo hoje ainda sofrem cerram o dente, muito docemente, muito passivamente choram por dentro em raiva surda. Até um dia Camarada, há sempre um dia de acertar contas, fazer justiça.
E, não erro certamente, se nos juntássemos um dia, lá, haveriam abraços com lágrimas. Porque os Homens também choram e era encontro de Irmãos.
FND, 25 de Fev 09
__________
Notas de CV:
Vd. último poste de "Pensar em voz alta" de 18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3648: Blogoterapia (82): Pensar em voz alta: Guileje ainda é cedo, Saiegh 18/12/78: foi há trinta anos...(Torcato Mendonça)
Vd. último poste da série de 8 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4922: Blogoterapia (125): No dia dos meus anos, brindei à amizade e à camaradagem forjadas em tempo de guerra (José Martins)
Guiné 63/74 - P4962: In Memoriam (31): Cap Cav Luís Rei Vilar, meu irmão e meu herói (Miguel Vilar)
1. Mensagem de ontem, enviada por Miguel Vilar, nome conhecido do automobilismo português desde 1974, piloto de ralis que chegaria até à Fórmula Um, nos anos 80 (com sucesso, até ao dia do grave acidente, na A5, que o deixaria às portas da morte) (*), irmão mais novo do malogrado Cap Cav Luís Filipe Rei Vilar, comandante da CCAV 2538 / BCAV 2876, unidade de quadrícula de Susana (1969/71), que morreu, em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas, numa operação contra o PAIGC, já em território do Senegal, no dia 18 de Fevereiro de 1970 (**).
Caro Luís Graça: A nossa conversa resulta nisto. Se quiseres publicar no teu blogue, estarás à vontade, assim como gostaria de conhecer o dossier Luis Filipe Rei Vilar.
Meu querido irmão:
Passaram 39 anos e a ferida ainda sangra.
O teu presente, depois de um fim de semana equestre atribulado na EPC (Escola Prática de Cavalaria), depois de à tua frente me teres visto cair do teu cavalo, o Atómico, do Sanches Osório, teu colega, e no fim de semana a seguir ter caído dum outro cavalo em Cascais, tinha 10 anos, e ter partido os dois braços e uma perna e ter ficado quase 1 ano na cama depois de 13 operações, lembro de me visitares na Clínica de São Lucas e vinhas comunicar que esperavas o teu 1º filho. O Tiago. Vieste-me dar a honra de ser o padrinho dele.
Filho esse que de ti não tem memórias porque cedo partiste. E depois veio o João Luís que também não guarda memórias de ti.
Eras o meu herói e lembro nesse dia 18/02/1970,. às 13h00, chegava das escola para almoçar, como todos os dias, vinha eu e o Duarte. Entro em casa, subo ao meu quarto no 1º andar e estava o pai no cimo da escada que me olhou de frente, agarrou-se a mim a chorar (o meu pai nunca chorou!!) e abraça-me e em pranto diz:
- Miguel, levaram o Luisinho.....eles levaram o Luisinho!
Vivo esse momento agora e choro. Convivi pouco contigo porque estavas sempre no quartel mas o que guardo de ti são as melhores das memórias. Homem honrado e digno e justo.
Vivi anos a achar que eles se tinham enganado e que não eras tu. Eles tinham-se enganado de certeza!!!
Devo-te uma homenagem. Quero pisar o chão onde te mataram. A guerra era justa ou não. Não me interessa, na altura era o teu trabalho e deste a vida pelo teu patrão: a pátria. E recordo a placa gravada pelos teus colegas de armas que acompanhava o teu caixão naquele dia 18.03.1970 quanto te enterrámos. E dizia: "Homenagem dos colegas em missão de soberania na Guiné: E AQUELES QUE POR OBRAS VALOROSAS SE VÃO DA LEI DA MORTE LIBERTANDO".
Luís, foste, és e serás o meu herói.
Vou pagar a factura que me deixaste, que será molhar a terra onde te mataram com as lágrimas que correm agora pelo rosto.
Miguel
2. Comentário de L.G.:
Querido Miguel: Tinha acabado, umas horas antes, de falar ao telefone com o teu irmão Duarte, meu amigo e colega do ISCTE onde ambos cursámos sociologia na segunda metade da década de 1970, quando me ligaste para casa... Sabia da tragédia que se abateu sobre a tua família, com a morte do teu irmão mais velho, meu camarada, do meu tempo de Guiné... Desconhecia, no entanto, a outra tragédia de que foste o protagonista, há treze anos atrás (bem como o processo kafkiano que se seguiu com a justiça)... Soube do infausto acontecimento, através da imprensa, na época, mas nunca imaginei que a vítima foste tu, irmão do Duarte, do Manuel e do Luís...
Deu para perceber, no entanto, enquanto falávamos ao telefone, que és um homem corajoso, determinado, inconformado, decidido, disposto a saber a verdade, toda a verdade, sobre as circunstâncias da morte do teu mano, que era o teu ídolo e o teu herói... Tinhas então 13 anos (e o Duarte 15), quando chegou a brutal notícia da sua morte, que destroçou a vossa família...
Li, com emoção, a tua pequena mas sentida homenagem ao teu irmão e nosso camarada Luís, e sei da tua vontade (bem como dos teus outros irmãos mais velhos, o Duarte e o Manuel) em ir até à Guiné-Bissau, à região do Cacheu, a Suzana, molhar, com as tuas lágrimas, aquela terra vermelha que ele pisou e conhecer aquele povo, os felupe, de que ele era amigo, tendo ainda tempo, apesar da actividade operacional da sua companhia, de construir uma escola para a população local...
Ofereci-te o nosso blogue para escreveres o que te ia na alma (ainda hoje, ao fim destes quase 40 anos de dor e de saudade) e inclusive para retomares a pesquisa da família sobre as circunstâncias da sua morte... Tu e a tua família não descartam a hipótese de o Luís ter sido morto por uma bala de G3, ou seja, por uma bala dos nossos... Acidente, com bala de ricochete ? Outras hipóteses, mais sinistras ?
Também o Duarte me escreveu, em 14 do corrente, o seguinte, da maneira lúcida e desassombrada que eu sempre lhe conheci:
(...) "Eu sei que há várias versões da morte do meu irmão e, mesmo que elas sejam melindrosas, gostava de as saber. Pouco depois da sua morte, e ao longo destes anos, correu a versão que o meu irmão tinha sido atingido por fogo nosso e não dos guerrilheiros. Também sabia da versão de a emboscada ter ocorrido no Senegal ou numa zona libertada (o Cassum)" (...).
O teu irmão Manuel, que vive em França onde é cientista, já deve ter falado ao telefone ao ex-Fur Mil Enf Jesus, da CCAV 2538, e que vive (ou vivia em Junho de 2007) em Mértola, contacto que lhe foi fornecido pelo nosso camarada Afonso Sousa, de Ovar. O Jesus estava a 2 metros do seu comandante e é, seguramente, uma das testemunhas-chave deste processo... A sua versão é a da emboscada do PAIG, ainda em território do Senegal...
Verifico agora que dossiê de que te falei, está praticamente publicado no nosso blogue. Há pistas que ainda estão por explorar, como por exemplo o relatório da autópsia que ninguém sabe onde pára... O relatório oficial da morte do Cap Luís Rei Vilar é o único documento que foi facultado à tua família (seria assinado pelo então tenente-coronel Ricardo Durão, segundo me dizes..), mas onde se fala em bala de ricochete (tese do acidente ?).
Pessoalmente não acredito na tese (monstruosa) de um eventual tiro, de um miserável justiceiro qualquer, nas costas do capitão... ainda para mais em território do Senegal, longe de casa, ou seja, Suzana, sede da CCAV 2538... Não tenho notícia de nenhum caso eventualmente parecido, debaixo de fogo, em combate, no TO da Guiné... Sei de dois casos de assassínio de oficiais (um alferes e um capitão), não a quente, debaixo de fogo do inimigo, mas sim a frio, no interior do aquartelamento: o caso mais conhecido é do Cap da CART 1613, na noite de Natal de 166, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João (frente a Bolama), foi morto, por tiros de G3, por um dos seus soldados que estava sob o efeito do álcool, e que esteve quase a ser linchado pelos seus camaradas (***).
Caso concretizes, tu e os teus irmãos, a planeada romagem de saudade a Susana, nos próximos tempos, será para nós um privilégio e uma honra fazer a devida cobertura do acontecimento e mobilizar possíveis apoios na Guiné-Bissau.
Recebe as melhores saudações de solidariedade, apreço e respeito pela minha parte, bem como por parte dos restantes editores e demais membros do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
___________
Notas de L.G.:
(*) Vd. excertos de imprensa sobre o caso do Miguel Vilar que teve na época algum destaque na imprensa, por más e boas razões:
Diário de Notícias
Uma pedra na estrada e a falência do sistema
por P. S.
21 Novembro 2004
Aos 40 anos, uma pedra de cinco quilos atravessou-se na vida de Miguel Vilar através do pára-brisas do carro. A pedra resvalou do rodado de um camião à frente da sua viatura e atingiu Miguel em cheio na cabeça. Ninguém sabe o que fazia um paralelepípedo cinzento no meio da auto-estrada. Sabe-se que Miguel se despistou, já sem sentidos, e que passou um mês em coma, a lutar pela vida na cama de um hospital. Luta, que para o neurologista António Damásio, é o exemplo extremo da força de vontade. A força de querer fazer sempre bem tê-lo-á salvo. Miguel é um sobrevivente.
Apesar da brutalidade da pancada, que lhe provocou afundamento do cérebro com perda de massa encefálica, Miguel não morreu, porque quis viver.
Piloto de automóveis, empresário bem sucedido, casado, com filhos, habituado a arrancar títulos na competição de quatro rodas, Miguel travou então a corrida pela recuperação da qualidade de vida. Perdeu as empresas, meses depois ficou divorciado, passou a ter problemas financeiros e viu-se obrigado, de um momento para o outro, a refazer tudo. «Ninguém me perguntou nestes anos se precisava de uma aspirina», afirma.
A Brisa, empresa concessionária da A5, foi absolvida em tribunal. O Fundo de Garantia Automóvel foi condenado a pagar uma indemnização. Mas recorreu. E voltou a perder. E agora voltou a recorrer...
Miguel Vilar espera, consumindo-se no desespero. Assume a revolta e incompreensão contra o sistema. «Sempre paguei tudo o que tinha para pagar. Até paguei para circular naquela estrada em condições de segurança. Para que servem então os seguros?»
Sobre a história da extraordinária recuperação do Miguel Vilar, com o apoio da sua família e de muitos amigos, incluindo o Prof António Damásio, bem como do seu regresso às corridas, oito anos depois da tragédia, para passar a sua mensagem de vida ("Nunca percam a esperança"), vd. notícias:
Miguel Vilar volta às corridas para agradecer o apoio (DCA News, 17/7/2005)
Miguel voltou às corridas (DCA News, 26/7/2005)
Oito anos depois do grave acidente rodoviário
(...) Miguel Vilar foi um caso raro de recuperação, mesmo um Case Study da Universidade de Iowa e do cientista português radicado nos Estados Unidos da América, Prof. António Damásio. O ex-piloto lutou com todas as suas forças, e teve o apoio dos amigos, mas sente que tem o dever de passar a mensagem da sua filosofia ao longo desta longa caminhada pela vida, aos muitos casos que estão no desespero e que não são apoiados: 'Nunca percam a esperança'.
Para Miguel Vilar 'o importante é que as pessoas não desistam, que acreditem que é possível melhorar. É esta mensagem que gostaria que me ajudassem a passar. '
No próximo fim-de-semana no Autódromo do Estoril, Miguel Vilar vai regressar às corridas de automóveis, ao seu 'habitat natural' com um único objectivo: 'de agradecer às pessoas que mais me ajudaram e que acreditaram que era possível conseguir evoluir e lutar pela vida, sem baixar nunca os braços. Não desistam, vale a pena lutar.' (...)
(**) Vd, postes de
30 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1902: Manuel Rei Vilar, França: Quem conheceu o meu irmão, Cap Cav Luís Filipe Rei Vilar, morto em Susana, em Fevereiro de 1970 ?
30 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1903: Cap Cav Luís Filipe Rei Vilar, comandante da CCAV 2538, morto numa emboscada (Afonso M.F. Sousa)
1 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1906: Notícias sobre o Cap Cav Rei Vilar, comandante da CCAV 2538, morto em 1970 (Benjamim Durães / Ayala Botto)
1 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1908: Cap Cav Luís Rei Vilar, comandante da CCAV 2538, morto no campo da honra, em incursão no Senegal (Afonso M.F. Sousa)
10 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1939: Susana, região de Cacheu: fantasmas do passado (Pepito)
(***) Vd. I Série, poste de 23 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXVI: O meu capitão, o capitão Corvacho da CART 1613 (1966/68) (Zé Neto)
Caro Luís Graça: A nossa conversa resulta nisto. Se quiseres publicar no teu blogue, estarás à vontade, assim como gostaria de conhecer o dossier Luis Filipe Rei Vilar.
Meu querido irmão:
Passaram 39 anos e a ferida ainda sangra.
O teu presente, depois de um fim de semana equestre atribulado na EPC (Escola Prática de Cavalaria), depois de à tua frente me teres visto cair do teu cavalo, o Atómico, do Sanches Osório, teu colega, e no fim de semana a seguir ter caído dum outro cavalo em Cascais, tinha 10 anos, e ter partido os dois braços e uma perna e ter ficado quase 1 ano na cama depois de 13 operações, lembro de me visitares na Clínica de São Lucas e vinhas comunicar que esperavas o teu 1º filho. O Tiago. Vieste-me dar a honra de ser o padrinho dele.
Filho esse que de ti não tem memórias porque cedo partiste. E depois veio o João Luís que também não guarda memórias de ti.
Eras o meu herói e lembro nesse dia 18/02/1970,. às 13h00, chegava das escola para almoçar, como todos os dias, vinha eu e o Duarte. Entro em casa, subo ao meu quarto no 1º andar e estava o pai no cimo da escada que me olhou de frente, agarrou-se a mim a chorar (o meu pai nunca chorou!!) e abraça-me e em pranto diz:
- Miguel, levaram o Luisinho.....eles levaram o Luisinho!
Vivo esse momento agora e choro. Convivi pouco contigo porque estavas sempre no quartel mas o que guardo de ti são as melhores das memórias. Homem honrado e digno e justo.
Vivi anos a achar que eles se tinham enganado e que não eras tu. Eles tinham-se enganado de certeza!!!
Devo-te uma homenagem. Quero pisar o chão onde te mataram. A guerra era justa ou não. Não me interessa, na altura era o teu trabalho e deste a vida pelo teu patrão: a pátria. E recordo a placa gravada pelos teus colegas de armas que acompanhava o teu caixão naquele dia 18.03.1970 quanto te enterrámos. E dizia: "Homenagem dos colegas em missão de soberania na Guiné: E AQUELES QUE POR OBRAS VALOROSAS SE VÃO DA LEI DA MORTE LIBERTANDO".
Luís, foste, és e serás o meu herói.
Vou pagar a factura que me deixaste, que será molhar a terra onde te mataram com as lágrimas que correm agora pelo rosto.
Miguel
2. Comentário de L.G.:
Querido Miguel: Tinha acabado, umas horas antes, de falar ao telefone com o teu irmão Duarte, meu amigo e colega do ISCTE onde ambos cursámos sociologia na segunda metade da década de 1970, quando me ligaste para casa... Sabia da tragédia que se abateu sobre a tua família, com a morte do teu irmão mais velho, meu camarada, do meu tempo de Guiné... Desconhecia, no entanto, a outra tragédia de que foste o protagonista, há treze anos atrás (bem como o processo kafkiano que se seguiu com a justiça)... Soube do infausto acontecimento, através da imprensa, na época, mas nunca imaginei que a vítima foste tu, irmão do Duarte, do Manuel e do Luís...
Deu para perceber, no entanto, enquanto falávamos ao telefone, que és um homem corajoso, determinado, inconformado, decidido, disposto a saber a verdade, toda a verdade, sobre as circunstâncias da morte do teu mano, que era o teu ídolo e o teu herói... Tinhas então 13 anos (e o Duarte 15), quando chegou a brutal notícia da sua morte, que destroçou a vossa família...
Li, com emoção, a tua pequena mas sentida homenagem ao teu irmão e nosso camarada Luís, e sei da tua vontade (bem como dos teus outros irmãos mais velhos, o Duarte e o Manuel) em ir até à Guiné-Bissau, à região do Cacheu, a Suzana, molhar, com as tuas lágrimas, aquela terra vermelha que ele pisou e conhecer aquele povo, os felupe, de que ele era amigo, tendo ainda tempo, apesar da actividade operacional da sua companhia, de construir uma escola para a população local...
Ofereci-te o nosso blogue para escreveres o que te ia na alma (ainda hoje, ao fim destes quase 40 anos de dor e de saudade) e inclusive para retomares a pesquisa da família sobre as circunstâncias da sua morte... Tu e a tua família não descartam a hipótese de o Luís ter sido morto por uma bala de G3, ou seja, por uma bala dos nossos... Acidente, com bala de ricochete ? Outras hipóteses, mais sinistras ?
Também o Duarte me escreveu, em 14 do corrente, o seguinte, da maneira lúcida e desassombrada que eu sempre lhe conheci:
(...) "Eu sei que há várias versões da morte do meu irmão e, mesmo que elas sejam melindrosas, gostava de as saber. Pouco depois da sua morte, e ao longo destes anos, correu a versão que o meu irmão tinha sido atingido por fogo nosso e não dos guerrilheiros. Também sabia da versão de a emboscada ter ocorrido no Senegal ou numa zona libertada (o Cassum)" (...).
O teu irmão Manuel, que vive em França onde é cientista, já deve ter falado ao telefone ao ex-Fur Mil Enf Jesus, da CCAV 2538, e que vive (ou vivia em Junho de 2007) em Mértola, contacto que lhe foi fornecido pelo nosso camarada Afonso Sousa, de Ovar. O Jesus estava a 2 metros do seu comandante e é, seguramente, uma das testemunhas-chave deste processo... A sua versão é a da emboscada do PAIG, ainda em território do Senegal...
Verifico agora que dossiê de que te falei, está praticamente publicado no nosso blogue. Há pistas que ainda estão por explorar, como por exemplo o relatório da autópsia que ninguém sabe onde pára... O relatório oficial da morte do Cap Luís Rei Vilar é o único documento que foi facultado à tua família (seria assinado pelo então tenente-coronel Ricardo Durão, segundo me dizes..), mas onde se fala em bala de ricochete (tese do acidente ?).
Pessoalmente não acredito na tese (monstruosa) de um eventual tiro, de um miserável justiceiro qualquer, nas costas do capitão... ainda para mais em território do Senegal, longe de casa, ou seja, Suzana, sede da CCAV 2538... Não tenho notícia de nenhum caso eventualmente parecido, debaixo de fogo, em combate, no TO da Guiné... Sei de dois casos de assassínio de oficiais (um alferes e um capitão), não a quente, debaixo de fogo do inimigo, mas sim a frio, no interior do aquartelamento: o caso mais conhecido é do Cap da CART 1613, na noite de Natal de 166, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João (frente a Bolama), foi morto, por tiros de G3, por um dos seus soldados que estava sob o efeito do álcool, e que esteve quase a ser linchado pelos seus camaradas (***).
Caso concretizes, tu e os teus irmãos, a planeada romagem de saudade a Susana, nos próximos tempos, será para nós um privilégio e uma honra fazer a devida cobertura do acontecimento e mobilizar possíveis apoios na Guiné-Bissau.
Recebe as melhores saudações de solidariedade, apreço e respeito pela minha parte, bem como por parte dos restantes editores e demais membros do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
___________
Notas de L.G.:
(*) Vd. excertos de imprensa sobre o caso do Miguel Vilar que teve na época algum destaque na imprensa, por más e boas razões:
Diário de Notícias
Uma pedra na estrada e a falência do sistema
por P. S.
21 Novembro 2004
Aos 40 anos, uma pedra de cinco quilos atravessou-se na vida de Miguel Vilar através do pára-brisas do carro. A pedra resvalou do rodado de um camião à frente da sua viatura e atingiu Miguel em cheio na cabeça. Ninguém sabe o que fazia um paralelepípedo cinzento no meio da auto-estrada. Sabe-se que Miguel se despistou, já sem sentidos, e que passou um mês em coma, a lutar pela vida na cama de um hospital. Luta, que para o neurologista António Damásio, é o exemplo extremo da força de vontade. A força de querer fazer sempre bem tê-lo-á salvo. Miguel é um sobrevivente.
Apesar da brutalidade da pancada, que lhe provocou afundamento do cérebro com perda de massa encefálica, Miguel não morreu, porque quis viver.
Piloto de automóveis, empresário bem sucedido, casado, com filhos, habituado a arrancar títulos na competição de quatro rodas, Miguel travou então a corrida pela recuperação da qualidade de vida. Perdeu as empresas, meses depois ficou divorciado, passou a ter problemas financeiros e viu-se obrigado, de um momento para o outro, a refazer tudo. «Ninguém me perguntou nestes anos se precisava de uma aspirina», afirma.
A Brisa, empresa concessionária da A5, foi absolvida em tribunal. O Fundo de Garantia Automóvel foi condenado a pagar uma indemnização. Mas recorreu. E voltou a perder. E agora voltou a recorrer...
Miguel Vilar espera, consumindo-se no desespero. Assume a revolta e incompreensão contra o sistema. «Sempre paguei tudo o que tinha para pagar. Até paguei para circular naquela estrada em condições de segurança. Para que servem então os seguros?»
Sobre a história da extraordinária recuperação do Miguel Vilar, com o apoio da sua família e de muitos amigos, incluindo o Prof António Damásio, bem como do seu regresso às corridas, oito anos depois da tragédia, para passar a sua mensagem de vida ("Nunca percam a esperança"), vd. notícias:
Miguel Vilar volta às corridas para agradecer o apoio (DCA News, 17/7/2005)
Miguel voltou às corridas (DCA News, 26/7/2005)
Oito anos depois do grave acidente rodoviário
(...) Miguel Vilar foi um caso raro de recuperação, mesmo um Case Study da Universidade de Iowa e do cientista português radicado nos Estados Unidos da América, Prof. António Damásio. O ex-piloto lutou com todas as suas forças, e teve o apoio dos amigos, mas sente que tem o dever de passar a mensagem da sua filosofia ao longo desta longa caminhada pela vida, aos muitos casos que estão no desespero e que não são apoiados: 'Nunca percam a esperança'.
Para Miguel Vilar 'o importante é que as pessoas não desistam, que acreditem que é possível melhorar. É esta mensagem que gostaria que me ajudassem a passar. '
No próximo fim-de-semana no Autódromo do Estoril, Miguel Vilar vai regressar às corridas de automóveis, ao seu 'habitat natural' com um único objectivo: 'de agradecer às pessoas que mais me ajudaram e que acreditaram que era possível conseguir evoluir e lutar pela vida, sem baixar nunca os braços. Não desistam, vale a pena lutar.' (...)
(**) Vd, postes de
30 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1902: Manuel Rei Vilar, França: Quem conheceu o meu irmão, Cap Cav Luís Filipe Rei Vilar, morto em Susana, em Fevereiro de 1970 ?
30 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1903: Cap Cav Luís Filipe Rei Vilar, comandante da CCAV 2538, morto numa emboscada (Afonso M.F. Sousa)
1 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1906: Notícias sobre o Cap Cav Rei Vilar, comandante da CCAV 2538, morto em 1970 (Benjamim Durães / Ayala Botto)
1 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1908: Cap Cav Luís Rei Vilar, comandante da CCAV 2538, morto no campo da honra, em incursão no Senegal (Afonso M.F. Sousa)
10 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1939: Susana, região de Cacheu: fantasmas do passado (Pepito)
(***) Vd. I Série, poste de 23 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXVI: O meu capitão, o capitão Corvacho da CART 1613 (1966/68) (Zé Neto)
Guiné 63/74 - P4961: Histórias de Juvenal Candeias (4): Há periquitos no Quitáfine
1. O nosso Camarada de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520 - Cameconde, 1971/74 – enviou-nos mais uma história das suas memórias da guerra:
Camaradas,
Para rentrée, aqui vai mais um retalho das minhas recordações de Cacine!
Seria interessante se conseguísseis juntar uma carta da região que é mencionada - Cacine, Cameconde e Cassacá.
Os especialistas sois vós, eu não sei fazer isso.
Fico-vos a dever uma cervejinha ou mesmo uma bazuca!
Anexo também duas fotos do "Desembarque da LDG “Montante” em Cacine" para acompanhar esta história:
Fotos do desembarque da LDG "Montante" em Cacine
Anexo também duas fotos do "Desembarque da LDG “Montante” em Cacine" para acompanhar esta história:
HÁ PERIQUITOS (*) NO QUITÁFINE
A região do Quitáfine, a Sul de Cacine, era considerada o santuário do PAIGC, que aí estava fortemente instalado e provido de dispositivos de segurança, que tornavam os nossos movimentos impossíveis, salvo com utilização de meios excepcionais.
Trilhos minados e sentinelas avançadas, permitiam-lhes uma tranquilidade apenas quebrada pelos obuses de 14 cm, disparados do nosso destacamento de Cameconde!
Os efectivos de que dispunham com um grupo especial de 20 lança-granadas, responsável pelas constantes flagelações a Cameconde, apoiado por um bigrupo disperso pela zona de Cassacá e Banir (onde se supunha estar o comando), eram reforçados por uma vasta população armada em auto-defesa, distribuída, entre outras, pelas tabancas de Ponta Nova, Bijine, Dameol, Cassacá, Banir, Campo, Cassebexe e Caboxanque.
O PAIGC furtava-se sistematicamente ao contacto, optando por uma estratégia defensiva de protecção às populações que controlava, privilegiando as flagelações e a colocação de engenhos explosivos!
Quem circulava a Sul de Cambaque (que distava cerca de 3 Km de Cameconde) tinha como certo algumas surpresas no trilho! Provavelmente um campo de minas e a seguir (algum humor-negro), munições de Kalash espetadas no chão formando a palavra PAIGC!
O Quitáfine permitia ainda ao PAIGC, um reabastecimento regular e seguro, processado a partir da República da Guiné, através de vários rios, em especial o Caraxe e o Camexibó!
Ao dispositivo militar juntava-se uma mata densa intransponível!
Os pára-quedistas, após uma operação no Quitáfine, só à noite conseguiram chegar a Cameconde, com grande dificuldade e orientados pelo clarão da queima de cargas de obus, em cima dos abrigos!
O grupo de Marcelino da Mata, largado de helicóptero, fez um golpe de mão a Cabonepo, a base do PAIGC mais a Norte do Quitáfine, onde estaria instalado um posto transmissor. Quando chegou, após lenta progressão através da mata… não havia lá nada… a base tinha sido abandonada momentos antes!
O Quitáfine era, efectivamente, o santuário do PAIGC, desde o início da guerra! Foi ali que se realizou, na tabanca de Cassacá – a 15 Km de Cacine e a 8 Km de Cameconde -, em meados de Fevereiro de 1964, o 1º Congresso do PAIGC, com a presença de Amílcar Cabral, Luís Cabral, Aristides Pereira e outras individualidades do Partido!
ACÇÃO PERIQUITO
A CCaç 3520 tinha chegado ao porto de Cacine, a bordo da LDG Montante, em 24 de Janeiro de 1972, para render a CCaç 2726 – companhia açoriana comandada pelo Capitão Magalhães -, o homem que retorcia as pontas do bigode com cera e a quem o tabaco nunca faltava! Dizia-se mesmo, à boca pequena, que, quando o tabaco acabava em Cacine, o PAIGC deixava, no mato, uns macitos para o Capitão! Rumor ou realidade… ninguém sabe! Ficou por provar!
Decorria ainda o período de sobreposição, que se prolongou até 22 de Fevereiro, quando foram recebidas instruções de Bissau, para ser preparada uma operação ao Quitáfine – Cabonepo e… Cassacá!
Seríamos, então, ainda bastante inexperientes, mas nunca aquilo a que alguém chamou um verdadeiro bando, embora a preparação que recebêramos para a guerra fosse bastante incipiente, com uma IAO feita no Cumeré, que pouco valor guerreiro nos acrescentara.
A formação garantida pelos oficiais e sargentos da companhia, essa sim permitia que o pessoal se apresentasse bastante bem preparado!
Os comentários e interrogações começaram a surgir entre as poucas pessoas que tinham conhecimento da operação!
Como vamos entrar no Quitáfine, com tudo minado e com sentinelas avançadas?
Qual será o grupo de combate eleito, quem serão os milícias que o acompanham?
Porque vamos intervir a nível de grupo de combate, quando estão estacionadas duas companhias em Cacine, enquadradas por capitães do quadro?
Será que com mais efectivos e um comando experiente e profissional, não poderíamos tentar um assalto frontal à base de Cassacá?
Parece que uns sentiam que a comissão estava terminada e o embarque estava à vista, enquanto outros, recém-chegados, temiam que a sua estreia no teatro de operações não fosse a mais auspiciosa… pelo que ninguém considerava ser o melhor momento para pôr em prática uma operação de grande envergadura!
Assim sendo, avançou um grupo de combate de periquitos, reforçado por alguns milícias, para um terreno totalmente hostil e com efectivos IN muito superiores!
Enfim, o moral das tropas era elevado e os madeirenses eram gente de muita coragem!...
Cassacá, 16 de Fevereiro de 1972
Exactamente no 8º Aniversário do 1º Congresso do PAIGC, exactamente no mesmo local! Se alguém o pensou… ninguém o confessou!
A lotaria contemplou o 1º Grupo de Combate do Alferes Alexandre Margarido (mais tarde Spínola viria a graduá-lo como Capitão), uma escolha certa, seria aquele que estaria melhor preparado, tanto pela sua formação em Operações Especiais, como pelas suas características pessoais!
O 1º Grupo de Combate seria apoiado por um grupo de milícias, formado pelos melhores elementos da respectiva companhia!
A operação foi preparada em detalhe, vindo mesmo um Major de Operações de Bissau que a comandaria o pessoal desde… Cacine! Haveria apoio aéreo de dois helicanhões! Sabia-se, então, que a abordagem ao Quitáfine se faria através do Rio Cacine primeiro, e do seu afluente Rio Poxiuco depois, dada a impossibilidade de o aceder por terra e a necessidade de não perder o factor surpresa!
Hora de partida… havia apenas dois sintex para transportar o pessoal ao longo dos rios! Nada de grave! Tudo se desenrasca! O restante pessoal será transportado em canoas gentílicas!
A viagem é lenta! Os sintex puxam as canoas para que se ganhe algum tempo! A organização é impecável e os meios fazem inveja aos exércitos melhor equipados!
A Armada Invencível chega, finalmente, ao ponto previsto para o desembarque! Os operacionais, depois de camuflarem os barcos, para reutilizarem no regresso, penetraram na mata, tentando chegar de surpresa à base do PAIGC, em Cassacá!
Andam, andam, andam… até que é avistado, já perto de uma tabanca, um solitário nativo armado! Um dos milícias, contra todas as instruções recebidas, faz fogo… o alarme estava dado!...
O cagaçal feito pela população da tabanca, incitando à descoberta e captura do grupo, é enorme!
Quebrara-se o efeito surpresa, o PAIGC poderia organizar-se e os efectivos com que contava na zona eram muito superiores e, naturalmente, melhor conhecedores da zona de acção!
A ocorrência é do conhecimento imediato do comando, em Cacine, que decide sobrevoar o local da operação numa avioneta Dornier 27, que após verificar a situação no terreno, ordena a retirada!
O pequeno grupo constata, porém, que a retirada não seria fácil!
Em pouco tempo a maré baixara, a armada estava atascada na bolanha, o rio era apenas um fio de água, insuficiente para garantir o reembarque e a retirada dos candidatos "a apanhar o IN pelas costas".
Um daqueles pequenos pormenores que, a falharem na hora “h”, transformam muitas operações planeadas ao detalhe em autênticos desafios de sobrevivência e desenrascanço!
O pequeno grupo encontrava-se assim entre a espada e a parede ou… pior, entre uma armada atolada na bolanha e 10 Km de terreno hostil, ocupado por largas dezenas de guerrilheiros e centenas de habitantes armados!
Que fazer então?
O alferes conferenciou com os seus graduados e com os elementos da milícia mais experientes, excelentes caçadores e determinantes neste terreno, não apenas para evitar o contacto com o inimigo, mas também para detectar e evitar as minas e armadilhas colocadas nos trilhos!
Acabaram por decidir criar uma manobra de diversão!
Iniciaram, então a progressão, como se o objectivo fosse chegar à base de Cassacá, para evitar que o inimigo descobrisse as embarcações, entretanto guardadas por uma secção e, simultaneamente, ganhar o tempo necessário para que a maré subisse e a armada pudesse navegar!
Não foi preciso caminhar muito para se pressentir uma emboscada de um grupo numeroso, mas barulhento, o que permitiu aos periquitos mergulharem na mata!
Com os dedos nos gatilhos mergulhados em absoluto silêncio - determinado pelo medo ou pelo treino? – o pequeno grupo, assistiu ao desencadear de forte tiroteio a uns 100 metros, não traindo a sua posição, facto este que constitui condição essencial para evitar um previsível desastre!
A situação, contudo, estava a tornar-se insustentável! A pouca experiência de movimentação na mata iria, certamente, acabar por denunciar as suas posições no terreno!
Entretanto o tempo decorrido permitiu, certamente, que os sintex e as canoas pudessem flutuar, pelo que não foi necessário simular mais o falso avanço para Cassacá!
Mas como chegar às embarcações sem ser detectado, com guerrilheiros e população armada em sua perseguição?
O alferes solicitou o apoio aéreo, que com umas valentes bujardas largadas cirurgicamente pelos helicanhões, criaram uma verdadeira confusão entre os guerrilheiros, permitindo aos piras, já então detectados e perseguidos de perto, chegarem às embarcações, entretanto já a flutuar!
Uma autêntica saga!
O reembarque foi um sucesso, mas o regresso iria representar uma nova aventura!
Avariou-se o motor de um dos sintex, o que obrigou à formação de um comboio naval indescritivel! À cabeça desse "comboio" seguia o único sintex com
motor que rebocava o outro sintex e ainda meia dúzia de canoas. Esta formação arrastou-se penosamente ao longo do Rio Cacine, por longas horas, com a pequena ondulação a ameaçar permanentemente o seu afundamento.
motor que rebocava o outro sintex e ainda meia dúzia de canoas. Esta formação arrastou-se penosamente ao longo do Rio Cacine, por longas horas, com a pequena ondulação a ameaçar permanentemente o seu afundamento.
Completamente ensopados e exaustos, os homens desta operação de periquitos, tinham, no cais de Cacine, todos os restantes elementos das duas companhias à sua espera! Com tanto rebentamento e explosão, ninguém acreditava que todos ali chegassem… sem um arranhão!
Da nossa parte acabou assim, deste modo frustrante, com um indigno fogo de artifício (de apenas um tiro), a comemoração do 8º Aniversário do 1º Congresso do PAIGC em Cassacá!
À noite, com pompa e circunstância a Maria Turra (nome por que era conhecida a locutora IN da rádio oficial do PAIGC), anunciava o aniquilamento completo do grupo que tentara o assalto a Cassacá!...
Pois é… poderia mesmo ter acontecido…
Um abraço do,
Juvenal Candeias
Alf Mil da CCAÇ 3520
Nota 1: (*) Na Guiné, os periquitos ou piras, era a designação dada aos tropas recém-chegados ao território.
Nota 2: O relato desta história teve a colaboração directa do Alexandre Margarido, que ainda hoje não sabe como saiu vivo do Quitáfine, e a quem agradeço com um grande abraço.
Fotos: © Juvenal Candeias (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:
Vd. último poste da série em:
1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4623: Histórias de Juvenal Candeias (3): Um Manjaco em chão Nalú
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