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quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25036: O nosso blogue em números (86): Em 2023 publicamos 1089 posts, médias de 91/mês, 3/dia. Subimos ligeiramente em relação a 2022, mas ficámos muito longe de 2010, o nosso melhor ano (Carlos Vinhal)

Deixando para o Luís Graça, Fundador, Administrador e Editor do nosso Blog, as estatísticas mais pormenorizadas de 2023, estou a fazer uma pré apresentação dos números relacionados com as postagens deste ano. 

Comparando os actuais números com os dos anos anteriores, verificamos um decréscimo acentuado na participação da tertúlia. Estamos a ficar velhotes, é verdade, já dissemos quase tudo, também é verdade, mas há sempre qualquer coisa no fundo da gaveta, seja uma fotografia ou uma súbita memória

.Em relação ano de 2023, verificamos que:

a) - conseguimos, apesar de tudo, uma pequena subida no número de posts publicados (1089) em relação a 2022 (1073), sendo que o mês menos produtivo foi o de Março, com apenas 73 posts, e o mais produtivo o de Dezembro, com 122, isto muito graças ao editor Luís Graça que só à sua conta contribuiu com 74 publicações, recorde pessoal e absoluto;

b) - não havendo, como é obvio, competição entre os editores, fica também o registo do maior número de posts publicados, 566, pelo Luís, o que lhe confere 52% do total anual;

c) - o número médio mensal das publicações foi de 91, cerca de 3 por dia, muito longe do ano de 2010 quando se publicaram 1960 posts, cerca de 163 por mês, mais de 5 por dia.

Permito-me lembrar que, apesar de mais velhos, para os editores não há fins de semana, feriados ou dias especiais. Como se costuma dizer, dias são dias. Se um de nós tem um impedimento pessoal, deixa um ou vários posts adiantados/programados para que um dos outros editores os possa publicar atempadamente. Pelo menos eu e o Luís estamos praticamente em contacto permanente para não haver falhas.


Reportando-me agora aos registos a partir de 2010, o nosso melhor ano, notamos ao longo do tempo um acentuado decréscimo nos posts publicados, pelo que apelamos aos nossos camaradas para que não deixem morrer o Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Vejam o gráfico:
OBS: - Estes números podem não coincidir com os apresentados na aba da nossa página (lado esquerdo),  porque o nosso servidor, o Blogger,  faz a contagem das publicações de domingo a sábado, independentemente de no meio da semana ter mudado o mês ou o ano.

Carlos Vinhal

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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23970: O nosso blogue em números (85): Em 2022, tivemos 12 "baixas mortais" e outras tantas entradas para a Tabanca Grande (dos quais 3 a título póstumo)... Somos agora 867 grã-tabanqueiros, dos quais 129 já falecidos (c. 15%)

Guiné 61/74 - P25035: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (14): servindo duas pátrias, Portugal e Angola...



Mapa de Angola. Adaptado: posição relativa de Luanda e Uige e 
das províncias de Cuanza Sul e Cuando-.Cubango. Cortesia de Wikipedia


Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (13):  servindo duas pátrias, Portugal e Angola...

por Luís Graça (*)



Luanda, julho de 2013. Levantaste-te às cinco e meia da manhã. É dia ou quase dia. Às seis,  o motorista de ambulâncias do hospital  já estava pronto para te levar ao aeroporto, de regresso a Lisboa. Era o teu motorista habitual, quando aqui vinhas em serviço... Era o teu motorista das partidas. Porque havia um outro, o das chegadas. Enfim, pequenas mordomias...

Já o conhecias 
há uns anos... Pertencia ao ministério da saúde, mas fora destacado para um dos hospitais da capital. Tu costumavas trazer-lhe uma garrafa de vinho tinto português, comprada no "freeshop" do aeroporto de Lisboa.  Sabias que ele adorava o vinho da terra dos avoengos. O vinho importado era um luxo para um "caluanda".  Tinha feito a tropa e a guerra no "tempo dos portugueses". E sentia-se luso-angolano, mesmo não conhecendo Portugal. " Com muita pena"...

O teu motorista "caluanda" (não o queres identificar, nem a ele nem ao hospital onde trabalhava, já que na altura não lhe pediste autorização expressa para contar a sua história de vida)  "estava de férias" (sic). 

Levantara-se prontamente para te conduzir, a tempo e horas, até ao aeroporto de Luanda. Tiveste a gentileza ( e o bom senso) de não lhe perguntar o que é que um motorista de ambulâncias  fazia, em Luanda,  quando estava de "férias"... Muito provavelmente ia para a praia dar uns chutos na bola e uns mergulhos...

Havia um outro motorista, mais jovem, mas morava "longe", a norte de Luanda, a 20 km, em Viana (onde nunca fostes, apenas conhecias os arredores, a sul, o Mussulo e a foz do Quanza).

20 km era uma distância enorme para quem dormia em Viana e trabalhava em Luanda. Sair de casa a essa hora era então arriscado, devido à insegurança nos musseques. E os transportes públicos  eram maus e morosos. 

Mesmo assim, no hospital, havia gente (incluindo médicos) que saia de casa às 4h da manhã para vir trabalhar!...  Nos cursos de formação alguns, coitados, sucumbiam ao cansaço e á falta de sono.

A vida era dura para os luandenses, os "caluandas",  que precisavam de trabalhar. O que era a grande maioria da população. Era dura, a jornada, para quem tinha de estudar, formar-se, especializar-se como os médicos... 

"Angola tinha  26 médicos (!), no dia da dipanda",  disse-te um deles, o vigésimo  sexto... que  continuava a acreditar que o seu país tinha futuro. ("Que te adianta viver, camarada, se não tens um ideal por que lutar?")

A maior parte dos médicos tinham ficado do lado do MPLA e eram então, em 2013, todos graduados em oficiais superiores. Todos eles haviam feito a  guerra, com exceção dos que ficaram no bem- bom" do estrangeiro e que só voltaram com o fim da guerra civil. Eram ostracizado pelos que tinham ficado na luta.

Esse outro motorista, mais jovem, que costumava ir buscar-te ao aeroporto, à noite, não era não fiável: um dia, ficou à tua espera, devia estar cansado, a morrer de sono (e se calhar de fome),  adormeceu na viatura,  o avião atrasara-se
... 

Enfim, deixou-te completamente "pendurado", incontactável,  á saída do aeroporto,  sem transporte nem telemóvel... Quase á beira de um ataque nervos. E a situação não era para menos.

Foi uma pequena aventura, chegar, à "guest house" onde costumavas icar alojado,  às 11 h da noite, com um jovem "taxista" de ocasião, de chinelos,  t-shirt e calções esfarrapados, com viatura sem portas, completamente "descaracterizada" e "canibalizada", sem matricula,  com o tabliê esventrado...  

Àquela hora da noite não descortinaste outra alternativa (ou não tiveste a lucidez  de a procurar),  depois de respirares fundo e manteres o sangue frio, recusando-te a entrar em pânico... A solução foi aceitares a oferta do único "taxista" que por ali ainda restava, àquela hora da noite,  provavelmente na esperança de  ganhar o dia com um turista incauto, imprevidente,  desastrado e enrascado,  como tu.

Aceitaste o serviço, combinaste o percurso e o preço,  sem discussão e sem sequer poderes ver a viatura, estrategicamente dissimulada  por detrás de uma sebe, do outro lado do largo...

Foi, seguramente, a viagem de "táxi" mais fantasmagórica da tua vida: custou-te 40 euros,  todo o dinheiro trocado que tinhas no bolso, nem sequer tinhas kwanzas ou dólares para pagar ao mais jovial, simpático e prestável "taxista da candonga", a quem confiaste a tua bolsa, o teu PC,  a tua semana de trabalho ( textos, exercícios,  "slides"...), a tua bagagem e porventura até a tua própria vida. 

Ficaste na dúvida (confessas ainda hoje!)  se a viatura não teria acabado de ser roubada naquela noite... E estarias metido numa grande encrenca se a polícia vos apanhasse pelo caminho... Aos dois, notoriamente cúmplices, "numa boa", na galhofa... Afinal, prevaleceu a tua confiança  na boa fé e honestidade do "taxista"  

Foram os dois todo o trajeto a conversar, amavelmente, atravessando a noite quente e húmida de Luanda, como se fossem "velhos conhecidos" ou até amigos, quiçá  irmãos!... Falando sobre tropa, médicos, militares, música, rap, kuduro, sexo, mulheres, sida e outras doencas, enfim, o presente incerto e o futuro glorioso de Angola...

Ele fizera tropa mas já não fora à guerra, a "segunda guerra da dipanda"... Puxaste dos teus galões, fizeste-te passar por médico (o que não era verdade) e professor da faculdade de medicina de Lisboa (o que até nem era falso), e para mais militar, falaste-lhe de alguns nomes de gente da "nomenclatura" angolana que te gabavas de conhecer ( e de facto conhecias), o diretor do hospital militar, o diretor da clínica X, o reitor da universidade  Agostinho Neto, sua excelência o ministro da saúde que tinha sido teu aluno, etc.... 

Acabou por ser uma relação cordial, até empática, e lá chegaste ao destino sem mais problemas. E o rapaz ganhou o dia ou a noite. 

"Bué de cumbú, patrão!", rspondeu-te ele, ao contar as notas, frescas, de 5 e 10 euros, com visível boa disposição... (Moedas não quis aceitar, "dinheiro preto"  de tuga não circulava no mercado do Roque Santeiro.)

Ainda não tinhas varrido da memória o "incidente", ocorrido logo nos primeiros  anos em que começaste a ir a Angola em trabalho, duma vez em que apanhaste um pouco por tabela, a paranóia securitária da polícia local do tempo de guerra... 

Gostavas, afinal,  de lembrar, quando o tema Angola vinha à baila numa roda de amigos,  que ainda  tinhas chegado andar  fugido de um polícia, armado de apito e de Kalash, que mandara parar a tua viatura... Só porque tu estavas com um pequena e discreta  máquina fotográfica digital (ingenuidade a tua!), na mão, no "lugar do morto", tu, um branco, ao lado do condutor, um negro, num jipe do ministério da saúde angolano, na tremenda confusão do trânsito, a caminho do Futungo de Belas... 

Desobedecendo à ordem de parar, o jipe não levou nenhuma rajada, mas tu sentiste um calafrio pela espinha acima... 

Claro que o polícia era decididamente um patriota (ao pensar que um diabo branco,  um bandido estrangeiro,  poderia andar por ali a fazer espionagem) mas o mais provável é que ele, mal fardado, mal pago e pior formado, apenas quisesse  ganhar uns trocos para a "gasosa" ou o "mata-bicho")... 

Valeu-te o condutor, experiente, corajoso e afoito, o teu "anjo-da-guarda" nessa manhã, por sinal também um antigo militar:  só parou na escola de enfermagem do Futungo de Belas, depois de uma condução de doidos por aquelas artérias esventradas de Luanda... 

Mas voltando ao teu motorista "caluanda",  em julho de 2013... Era um homem afável,  mestiço, de Uíge (se a tua memória não te falha...),  que ficava a nordeste,  a cerca de 350 km de capital...  Pelas tuas contas devia ter nascido em 1953.  Teria então 60 anos na altura...

Era preciso atravessar Luanda, de um lado a outro, até chegar ao aeroporto... Nas horas de ponta, podia então ser um inferno. Daí teres que te levantar às 6 da manhã... para estar com uma certa margem de segurança, a tempo e horas, no aeroporto... 

Era outra aventura, mesmo com "passaporte especial" (para os VIP da cooperação como tu...), até poderes sentar-te no teu lugar do avião da TAP e, enfim, respirar fundo... E depois de teres sido passado a pente fino e "depenado" na Alfândega: 100 dólares para a "gasosa" (mais s CD de música popular angolana que transportavas na mala da roupa, comprados na "candonga": uma mescla de estilos, a kizomba, o semba, o kuduro, a rebita, etc. )...

Além disso, levavas contigo, dez mil dólares, em maços de notas (algumas sebentas...), limite máximo legal... Num envelope com o logótipo do Ministério da Saúde, o MINSA... E o credo na boca:  não era dinheiro teu, era da tua instituição, e iria servir para pagar viagens e ajudas de custo dos próximos formadores... 

Enfim, uma forma expedita, um desenrascanço, à portuguesa e à angolana, para contornar a morosidade burocrática da transferência de dinheiro entre os dois países... Era ostambém um sinal da crise,  que já se notavs no comércio de rua, nos agentes da autoridade (que se batiam à "gasosa"), nas "quinguilas" (cambistas do mercado negro, que traziam os maços de notas no sutiã), nas "zungueiras" (as vendedeiras de comes & bebes)...

O teu "caluanda" morava na ilha de Luanda, perto do centro aonde foste dar formação.  O trabalho de motorista de ambulâncias, diga-se de passagem, não era pêra doce:  uns largos anos atrás, talvez em finais da década de 1990, a sua ambulância fora metralhada num musseque dos arredores (ele disse-te o nome, que não fixaste, talvez Sambizanga, onde viviam cerca de 250 mil almas emparedadas ), quando um "grupo de bandidos" tentava assaltar a casa de um "fulano ricaço" (sic)... 


Os "bandidos, que não sabiam ler" (sic), confundiram o "tinonim" da ambulância com o carro da polícia...  Houve feridos graves, doentes baleados dentro da ambulância; mas, mesmo com os pneus furados, e o assento do motorista "crivado de balas", o teu herói  lá conseguiu safar-se, são e salvo... Foi título de caixa nos jornais. Na altura até foi louvado (pelo "nosso Mais Velho", em visita ao hospital)...

Revelou um extraordinário sangue frio e coragem, dois atributos essenciais para se poder sobreviver numa cidade como Luanda de 5 ou 6 milhões de habitantes onde só uma escassa elite, privilegiada,  ia tendo vida segura, conforto e decência. (Só a Norte, no concelho vizinho de Viana, deiam viver mais de milhão e meio.)

Esse sangue frio e coragem vinham-lhe do tempo da guerra. Eta um duplo ex-combatente. fizera duas guerras, ao serviço de duas pátrias... que, aos seus olhos, se completavam: "Nasci português, hei de morrer angolano"....Timha muitas histórias para (e por) contar. 

Rapidamente criaste com ele um laço de cumplicidade e  empatia, típicas dos ex-combatentes. 

De facto, nada como dois ex-combatentes encontrarem-se,  beberem um copo  e começarem a desatar os nós da memória .... Não foi preciso copo nenhum, ele era um homem simples, prestável, falador e afável... 

Resumindo: fizera a "guerra colonial" , do lado português, com "muita honra" (sic), por volta de 1972/74 ou até talvez 1973/75 (já não podes hoje precisar). Era furriel miliciano. 

Serviu "a sua pátria de então" (sic), dizia-te com naturalidade e sem qualquer subserviência nem complexo de culpa.  Sentia-se português,  tinha sangue transmontano do lado paterno, o trisavô, desterrado (como muitos outros primitivos colonos),  ainda conhecera e privara com o "Kimuezo", "o homem das barbas grandes", o lendário Zé do Telhado. (Falecido em 1875, estava sepultado na aldeia de Xissa, Mucari, Malange; o seu túmulo ainda era então, em 2013,  venerado pela gente local.)

Quando "os sul-africanos, os zairenses e outros bandidos" (sic) invadiram Angola, "sua terra natal", as FAPLA (Forças Armadas para a Libertação de Angola) convocaram-no para as suas fileiras. 

Foi então promovido ao posto de  1º tenente de infantaria, comandando cerca de 70 homens (se bem percebeste). Participou em várias batalhas. E lá ficou na tropa e na guerra até à desmobilização, em finais de 1980...  Como "já não sabia fazer mais nada", aos 37 anos  (com 17 anos de vida militar, sem eira nem beira!) deram-lhe uma ambulância para conduzir... Ganhava mal mas... "tinha um emprego no Estado".

Também se queixava, tal como os antigos combatentes portugueses,  de o Estado angolano os ter abandonado  à sua sorte, com "muitas centenas de milhares de camaradas deficientes, incapacitados"... (Curiosamente, trinhas deixado de ver, em 2013, os "estropiados de guerra", atravessando as ruas sujas da cidade,  aos saltos nas suas muletas de pau, como os cangurus, espetáculo que te chocara em 2003.)

Também esteve na província do Cuando Cubango. onde foi um dos bravos da batalha de Cuito Cuanavale, de trágica memória para todos os contendores de um lado e do outro, angolanos, cubanos, sul-africanos, e até conselheiros soviéticos (quando o muro de Berlim ainda estava, fisica e simbolicamente,  de pé)... 

Nessa altura  fazia a segurança ao hospital de campanha na retaguarda onde viu coisas que nunca contará aos filhos e netos: amputar pernas e braços a sangue frio, sem anestesia; fuzilamentos de "rebeldes da Unita";  atos de sodomia entre angolanos e cubanos, enterrados nas trincheiras lá nas "terras do fim do mundo"....

Mas a cena mais dramática da guerra que terá vivido, não foram tanto  os bombardeamentos maçiços  da artilharia, cavalaria e aviação dos sul-africanos no sul, foi sim uma emboscada às portas de Luanda (a cerca de 100 km, se bem percebeste), a um coluna de várias viaturas guarnecidas por um grupo de combate que ele comandava, composto por cerca de 30 homens. 

Tens dúvidas se foi na altura da batalha de Quifangondo (em 10/11/1975) (#) nas imediações de Luanda,  ou se foi no âmbito da batalha do Ebo (##), mais longe, a sudeste... Em qualquer dos casos, o desfecho destas duas batalhas foi fundamental para reforçar a posição do MPLA e do seu braço armado, as FAPLA

Nessa altura as forças que apoiavam a FNLA, o Exército Nacional de Libertação de Angola (ELNA), já tinham tomado o Caxito, estando às portas de Luanda.  Eram constituídas pelos "comandos do coronel Santos e Castro" (sic), por forças do exército regular do Zaire, e por uma unidade de artilharia dos sul-africanos,  mais um grupo de mercenários estrangeiros" esclareceu-te o teu motorista. 


Tens de admitir também a  hipótese de o teu motorista ter participado na batalha do Ebo onde haveria de morrer o comandante cubano Raul Díaz-Argüelles (1936-1975) (###), em 11 de dezembro de 1975 (um mês depois da proclamação da independência de Angola).  


A batalha do Ebo, a sudeste de Luanda,
a par da batalha de Quifangondo, a nordeste de Luanda,  foi decisiva para suster o avanço das forças  anti-MPLA  que pretendiam impedir a proclamação da independência em Luanda pelo partido de Agostinho Neto.

É bom lembrar que, à revelia da potência colonizadora, Portugal, e do Acordo do Alvor (janeiro de 1975),  cada um dos três movimentos nacionalistas proclamou a independência de Angola em sítios e datas diferentes: a FNLA  no Uíge, a UNITA no Huambo e o MPLA em Luanda.

Não tiveste oportunidade, nas conversas esporádicas que mantiveste  com o teu  motorista (afinal , em escassas e fugidias duas vezes, em que o assunto veio à baila, no trajeto até ao aeroporto) de esclarecer este e outros pormenores importantes das suas histórias de  guerra... que ele sempre te contou, "sem filtros",  com a espantosa naturalidade e candura dos africanos...

Ias em geral com um ouvido atento à conversa com o condutor e um olho no vidro da janela do teu lado... Reconstituias a tua conversa com ele, já depois no avião de regresso a Lisboa, no teu "diário de bordo".... E podes estar a ser traído pela memória. Mas confias na boa fé do teu amigo angolano.

Essa emboscada (com  apoio de artilharia
) poderia ter sido  quando as forças sul-africanas,  que invadiram Angola,  chegaram até ao sul do Ebo, na província do Cuanza Sul, ameaçando Luanda. Os angolanos e os cubanos destruiram as pontes e sustiveram o avanço dos invasores justamente no Ebo (município a 300 km de Luanda).

Segundo o depoimento do teu motorista,  nessa emboscada, as viaturas foram todas destruídas, as FAPLA tiveram cerca de 2/3 de baixas mortais, incluindo 7 cubanos. 

Conversa puxa conversa, diz-te que "já não há bandidos na ilha de Luanda e no centro de Luanda". A polícia "limpou-os" (sic). 

Àquela hora, 6 da manhã, havia grupos de 3 e 4 brancos (presumivelmente estrangeiros, incluindo portugueses,  a viver e a trabalhar em Luanda) que andam a fazer "jogging" na marginal.  Com relativa t5ranquilidade e  descontração.  

As praias estavam "limpas",  contrariamente ao que se via há uns anos atrás... A zona agora era "turística" (sic), as barracas dos pescadores havia desaparecido, sob as "buldozers"... Enfim, a cidade mudara, "para melhor", havia obras por todo o lado... "Bandido é no musseque onde a polícia não entra" (sic). Também por delicadeza não abordaste a questão dos "esquadrões da morte", de que ouviras falar, e que ele acabava de confirmar.

Tinhas-lhe prometido trazer uma garrafa de vinho de Lisboa. Deixaste-lhe kwuanzas para beber um copo à tua  saúde e à condição de ambos como  antigos combatentes, homens da mesma geração, nascidos sob a mesma bandeira, falando a mesma língua...

Percebeste então  melhor porque é que os teus novos amigos  angolanos, eram pessoas que viviam com tanta intensidade o dia que passava e manifestavam publicamente a sua felicidade, através da comida, da bebida, do sexo, da música, da dança. 

"Para ser feliz tem que ser aqui em Angola", diz um kudurista dos musseques de Luanda no filme angolano "I Love Kuduro", do realizador português Mário Patrocínio, (a cuja estreia, em Portugal, tu assististe, uns meses mais tarde, em novembro de 2013, no Cinema São Jorge, no âmbito do doclisboa'13)... 

Confessavas, por outro lado, a tua grande ignorância em relação à história e à geografia de Angola, apesar de lá ires já desde 2003...  

Por exemplo, Cuando Cubango... Era uma província situada no sudeste do país. Verificaste então que era limitada a norte pelas províncias do Bié e Moxico, a leste pela República da Zâmbia, a sul pela República da Namíbia e a oeste pelas províncias da  Huíla e do Cunene (onde a guerrilha da SWAPO tinha bases e campos de refugiados, e onde as tropas sul-africanas faziam "raides" punitivos, atravessando impunemente a fronteira). (####)

 
Mas voltando à guerra, à chamada segunda guerra da " dipamda" em que participou também o teu motorista.... Durante muito tempo alguns municípios (como Mavinga, Dirico, Cuchi e Cuito Cuanavale) serviram como bases de apoio à guerrilha da UNITA, liderada por Jonas Savimbi, que só abandonou completamente estes territórios (a  "Jamba") em finais de 2001, aquando da última (e decisiva) ofensiva das forças armadas angolanas. 

É sabido que o movimento do Galo Negro recebeu apoio dos EUA e da África do Sul, na luta contra o MPLA, que por sua vez era apoiado pela União Soviética e Cuba. Estava-se  em plena guerra fria. Angola era uma peça importante no tabuleiro do xadrez da geopolítica mundial, sendo cobiçada pelas potências neocloniais pelas suas riquezas (o petróleo, os diamantes) mas também era fundamental para a sobrevivência do regime de supremacia branca na África do Sul...

batalha de Cuito Cuanavale terá sido o maior confronto militar da guerra civil angolana. Foi um batalha sangrenta e prolongada durante mais de 4 meses, entre 15 de novembro de 1987 e 23 de março de 1988.


Foi aqui , na província de Cuando Cubango , e mais concretamente no munícipio de Cuito Cuanavale, que as FAPLA, apoiadas pelos cubanos e com armamento soviético, se confrontaram com  as forças da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), apoiada pelo exército sul-africano.

Foi considerada a batalha mais longa travada no continente africano desde a Segunda Guerra Mundial. Nesta batalha de Cuito Cuanavale, foi posto em cheque o mito, aos olhos dos angolanos, da invencibilidade do exército "racista" da África do Sul, garantiu-te, com visivel orgulho e patriotismo, o teu motorista. 

Independentemente das duas partes terem clamado vitória, a África do Sul terá sido obrigada a reconhecer tacitamente senão a superioridade, pelo menos  a capacidade de resistência, resistência e coragem demonstrada pelas FAPLA (e seus aliados cubanos) no campo de batalha. (Para os cubanos, Angola terá sido o seu Vietname, é bom não esquecê-lo...).

Isso explicará a posterior assinatura dos Acordos de Nova Iorque, ponto de partida para o fim de um conflito que afinal não era apenas uma guerra civil, nem um simples conflito regional. 

Como é sabido, a implementação da resolução 435/78 do Conselho de Segurança da ONU vai levar à independência da Namíbia e apressar o fim do regime de segregação racial, que vigorava na África do Sul.

Em 2913  ainda pensavas voltar a Angola (o que aonteceu até à pandemia) , e esperavas poder reencontrar, vivo e com saúde,  o teu amigo  motorista, que servira duas pátrias.  Imaginava-lo, dez anos depois,    ele os seus 70 anos e tu um pouco mais... Se possível com a mesma sabedoria e alegria de viver do homem comum angolano. E imaginavas poder  continuar a tua conversa, agora à mesa de uma  esplanada de um bar da ilha de Luanda com vista para o nosso comum oceano Atlântico....E, de preferência  com um bom copo de vinho  tinto português.  

Afinal, há conversas, entre antigos combatentes, que não acabam mais  (ou merecem ser prolongadas, melancolicamente, pela tarde dentro, aguardando o pôr-do-sol tropical)...

Lisboa, julho de 2013. Revisto,  4 de julho de 2025

Notas do autor:


(#) Sobre batalha de Quifangondo (em 10 de novembro de 1975), vd. aqui o depoimento do general António França 'Ndalu' (chefe do Estado-Maior da 9ª Brigada, uma unidade das FAPLA,   criada uns meses antes para "defender Luanda das investidas do inimigo contra a capital, nos dias que antecederam a Independência, no dia 11 de Novembro de 1975"). 

Já agora leia-se, com atenção, também o seguinte comentário de um anónimo (entre muitos outros, que entretanto surgiram no seguimento daquela entrevista):

(...) "O que o General António dos Santos França, na altura Comandante N´Dalu, não mencionou, talvez por não lhe ter sido perguntado, foi a constituição da 9ª Brigada . Estavam incluídos nela os melhores guerrilheiros das então FAPLA, e principalmente militares angolanos desmobilizados das forças portuguesas, onde se incluiram também paraquedistas e comandos portugueses. 

Ouvi pessoalmente oficiais cubanos a elogiarem a preparação destes militares do contingente de Angola nas forças portugueses. Foi a 9ª Brigada e os cubanos quem destroçaram as forças da FNLA/Zairenses/sul-africanos a norte, e perseguiram os sul-africanos estacionados próximos de Porto Amboim até à fronteira, no Cunene. 

Paradoxal e infelizmente, a maioria dos militares da 9ª Brigada foi fuzilada dois anos depois, nos acontecimentos do [27] de maio [de 1977]".

É muito possível que o teu motorista fosse um daqueles jovens, desmobilizados do exército português, que se ofereceram como voluntários para a 9ª brigada, ou foram recrutado à força...  

Sobre os trágicos acontecimentos de 27 de maio de 1977 tiveste o bom senso de não lhe fazer perguntas, era um assunto-tabu em Angola naquela época; mas recordas-te de um jovem economista, assessor do ministério da saúde,  te ter confidenciado, a meia-voz, embargada: "Sabe, doutor, o meu pai saiu de casa na madrugada do dia 27 de maio, e nunca mais voltou") 

(##) Pela descrição da batalha do Ebo (no portal cubano EcuRed (que não pode todavia ser considerado uma fonte independente), inclinas-te mais para a primeira hipótese, a da emboscada em que caiu a coluna comandada pelo teu motorista, ter ocorrido no âmbito da batalha de Quifangondo, a escassa centena de quilómetros de Luanda, a nordeste.

(###) Recorde-se que o Diaz-Argëlles também passou pelo teatro de operações da Guiné, em 1972, ao tempo da guerra colonial, tendo ajudado o PAIGC a planear a operação contra Guileje.

(####) A capital da província era a cidade de Menongue e distava de Luanda mais de mil km e de Cuito menos de 350 km. Tinha cerca de 140.000 habitantes e ocupava uma superfície duas vezes superior a Portugal...

Era constituída pelos municípios de Calai, Cuangar, Cuchi, Cuito Cuanavale, Dirico, Mavinga, Menongue, Nancova e Rivungo. O clima é tropical no norte da província e semi-árido no sul. Esta região de Angola, "terras do fim do mundo",  é conhecida atualmente como "terras do progresso», devido ao seu grande potencial económico, praticamente por explorar.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 7 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24926: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (13): O cruzeiro das nossas vidas

Guiné 61/74 - P25034: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (24): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Março de 1971



"A MINHA IDA À GUERRA"

24 - HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: CAPÍTULO II - ACTIVIDADES NO TO DA GUINÉ

João Moreira



MÊS DE MARÇO 1971

Os 3 furriéis do 4.º grupo de combate: Moreira, Justino e Ramalho.
Olossato, 05FEV1971 - João Moreira
Olossato, 05FEV1971 - João Moreira a escrever para a família
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P25008: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (23): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Janeiro e Fevereiro de 1971

Guiné 61/74 - P25033: Capas da Ilustração Portuguesa - Parte VII: outra foto fabulosa, intimista, do Joshua Benoliel, na partida do CEP para França: uma jovem mulher despede-se do marido (ou do pai ?), com a mãe ao lado, de xaile; olha-o, olhos nos olhos, e com a sua mão direita afaga o pescoço do militar, que era do RI 14 (Viseu)



Legenda: "À partida para França: uma despedida afectuosa". ("Cliché": Benoliel)


Capa da Ilustração Portuguesa, II Série, nº 582, Lisboa, 16 de abril de 1917. (Edição semanal do jornal "O Século"; editor lit.: José Joubert Chaves; nº avulso: 12 centavos.)

1. Mais outra foto (ou "cliché") intimista do Joshua Benoliel, fotojornalista (1873-1932), considerado o pai da reportagem fotográfica em Portugal. Esta é outra foto fabulosa: uma jovem mulher despede-se do marido (ou do pai ?), com a mãe (presumivelmente)  ao lado, de xaile, tapada dos pés à cabeça; olha-o, olhos nos olhos, e com a sua mão direita afaga o pescoço do militar, que era do RI 14 (Viseu); o gesto afectuoso, de ternura e de encorajamento,  é surpreendente por ser em lugar público, e as mulheres portugueses estarem ainda longe de ter protagonismo na vida (e na via) pública; nenhum fotógrafo fez fotos como estas do Benoliel na despedida dos soldados durante a guerra colonial, no cais da Rocha Conde de Óbidos;  não fez ou a censura estado-novista nunca terá deixado publicar.


Joshua Benoliel (segundo a Wikipédia):

(i) nasceu em Lisboa em 1873, no seio de uma família judia originária de Gibraltar;

(ii) fez a cobertura jornalística dos grandes acontecimentos da sua época: as viagens ao estrangeiro dos últimos dois reis portugueses; a revolução de 1910; as revoltas monárquicas durante a Primeira República; o CEP que partiu para França e combateu na Flandres durante a I Grande Guerra; a ditadura de Sidónio Pais...

(iii) as suas fotografias caracterizam-se pelo seu enfoque intimista e humanista

(iv) trabalhou para, entre outras publicações o jornal O Século, as revistas Illustração Portugueza, O Occidente (1878-1915), o Panorama (1837-1868):.

(v) em 1929, foi agraciado com o grau de Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada;

(vi) morreu erm Lisboa em 1932. 

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25032: Casos: a verdade sobre...(37): O Ten Art Montanha, Ernesto Luiz Lemonde de Macedo, foi mortalmente ferido no combate de Nhamacurra, a 50 km de Quelimane, no dia 1 de Julho de 1918, vindo a falecer no dia 22 do mesmo mês (Morais da Silva, Cor Art Ref)

1. Mensagem do nosso camarada, Coronel Art Ref, António Carlos Morais da Silva (ex-Instrutor da 1.ª CCmds Africanos em Fá Mandinga; Adjunto do COP 6 em Mansabá e Comandante da CCAÇ 2796 em Gadamael, 1970 e 1972), com data de 2 de Janeiro de 2024:

Guiné 61/74 - P25023: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XLII: ten art Ernesto Luiz Lemonde de Macedo (Lisboa, 1892 - Quelimane, Moçambique, 1918)

Comentário de Fernando Ribeiro:

“Eu peço desculpa pela minha estranheza, mas custa-me acreditar que este militar tenha sido morto pelos alemães na zona de Quelimane, na Zambézia. Quelimane fica a muitíssimos quilómetros de distância do Rio Rovuma, que fazia (e ainda faz) fronteira entre Moçambique e o ex-Tanganyika, atual Tanzânia. Talvez mil quilómetros! Como foi que os alemães foram parar a Quelimane? Não se terá dado o caso de o infortunado tenente Ernesto Luiz Lemonde de Macedo ter sido morto pelos guerreiros de um régulo local, eventualmente aliado dos alemães?”


Caros editores
Porque convivo mal com faltas de educação e de civismo comentei:
O formato da documentação que possuo sobre o Ten. Lemonde de Macedo (fotos de documentos oficiais) não é compatível com o espaço de Comentários pelo que as enviarei, via mail, para os editores o poderem fazer e assim dissipar estranhezas aceitáveis e "palpites" inaceitáveis.

Em anexo seguem alguns documentos que me serviram para escrever as circunstâncias da morte em combate do meu camarada artilheiro.
Por regra, não brinco em serviço. Para que conste.

Muita saúde para 2024.
Cumprimentos cordiais
Morais Silva

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P25006: Casos: a verdade sobre...(36): A morte do Braima Djaló, o irmão do Amadu Djaló e de outros 'comandos' do BCmds, na Caboiana, e do aprisionamento do tenente graduado 'comando' António Jalibá Gomes, cmdt da 3ª CCmds (Joaquim Luís Fernandes, ex-alf mil, CCAÇ 3461, Teixeira Pinto, 1973/74)

Guiné 61/74 - P25031: Historiografia da presença portuguesa em África (402): Sarmento Rodrigues, o definidor da colónia guineense, pô-la no mapa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Outros antes de mim, e com incontestável competência reconheceram a importância da governação de Sarmento Rodrigues que governou a Guiné num momento de viragem da política colonial. Por exemplo, merece toda a atenção o ensaio que António Duarte Silva dedicou à personagem e ao período, recomenda-se a leitura: https://journals.openedition.org/cultura/586. O governador impõe-se pelo programa de trabalho, pela vontade de congregar esforços, sabe ao que vem, respeita os projetos em andamento deixados pelos antecessores, cumulam-no de ofertas, ele agradece e traça mais projetos, de tal modo que o seu sucessor, Raimundo Serrão, no essencial concluiu-lhe a obra. Percorreu a Guiné de uma ponta à outra, diz-se maníaco pelas árvores e pelas plantas, está cercado de gente muito competente, e à Guiné chegam num quase turbilhão especialistas em medicina tropical, um eminente geógrafo, figuras proeminentes da investigação tropical, geólogos, jornalistas, a Guiné saiu do torpor, aparecem escolas, hospitais, fontanários. Alguma coisa de muito sério aconteceu, quando Sarmento Rodrigues regressa à Guiné em 1955, na comitiva de Craveiro Lopes, a propaganda do regime não esconde que ele é figura triunfante, as populações não o esqueceram, ele tinha posto a Guiné no mapa.

Um abraço do
Mário



Sarmento Rodrigues, o definidor da colónia guineense, pô-la no mapa

Mário Beja Santos

Não é por puro acaso que escolhi a governação de Manuel Sarmento Rodrigues como o termo da viagem antológica dos textos fundamentais da presença portuguesa na Guiné. É visto como uma escolha inédita, o ministro que o nomeia não os conhece, o futuro governador é um homem que não esconde a sua independência, é um crente nos valores do Império, conhecido pelo rigor e pelo pragmatismo. E de uma seriedade que já não se usa, quando toma posse em 15 de março de 1945, já sabe a dimensão das tarefas que tem pela frente, e dirá em público que começará por acabar as obras de quem o antecedeu. Nesse ato de posse, não lhe falta o desassombro: “Se me disserem que na Guiné tudo está por fazer, não devemos espantar-nos.” E fala do património deixado pelos seus antecedentes, a Guiné entrara numa nova via de desenvolvimento: “O ministro enfrenta um vasto programa de melhoramento na Colónia para a realização dos quais já começaram a trabalhar os organismos superiores do Ministério. Habitações, saneamento, águas e hospitais; pontes, portos, obras hidráulicas, aeroportos, farolagem; missões científicas de geodesia, hidrografia, zoologia, antropologia, botânica, medicina, etc.; desenvolvimento do serviço missionário, na parte religiosa e na parte do ensino indígena; defesa militar da Colónia; assistência às atividades económicas; ensino dos indígenas em agricultura, pecuária e artes e ofícios; e outros.”

Já está em Bissau, vai ser empossado, avisa a classe política, os funcionários, os militares, os empresários. Reafirma o que dissera ao ministro Marcelo Caetano: “Temos uma vasta lista de obras projetadas para um período que desejaríamos que fosse bastante curto. Coloco à frente as construções por acabar e que pretendo arrumar: Palácio, Sé, capelas de Catió, Bafatá, Canchungo, Mansoa e Gabu, moradias projetadas para os funcionários em Bissau, o monumento ao Esforço da Raça, edifício da Praça do Império, cuja origem quase se desconhece e outras tentativas dispersas pela colónia, aguardando que as acabem.”

Faz questão de dar ampla publicitação ao que diz aos administradores, quer transparência, respeito pelos direitos dos indígenas, eles devem ser acompanhados pela administração, não esconde ser um humanista e diz: “Nada de estatísticas rosadamente falsas, nem problemas a que se volte a cara para não os resolver. É preciso que tudo seja são e posto à luz do dia.” Isto é afirmado em 4 de novembro de 1946. É um obcecado pelo trabalho, tem uma informação atualizada sobre tudo o que se está a fazer em prol do desenvolvimento, desde fontanários a campos de futebol, escolas e creches, desenvolvimento agrícola, sente-se atraído por novas espécies e novas culturas, como dirá em 1947: “Plantámos este ano muitos campos de cajueiros. Haveremos de prosseguir no mesmo ritmo para o próximo ano, pois que bem se viu ser fácil conseguir que as plantas vinguem. E dentro de alguns anos será uma nova riqueza que existirá na colónia. Deve ser mania minha a defesa e expansão das árvores, sobretudo de fruta. Mas creio que muito pior seria consentir na sistemática derruba, feita a qualquer pretexto.”

Há textos em que podemos apreciar como o governador domina na perfeição os dossiês, veja-se este conjunto de documentários que ele profere no Concelho de Governo em 8 de fevereiro desse ano. Aborda as instalações dos serviços públicos em Bissau; a propósito da conclusão do Palácio do Governo alude à transferência de serviços; aguarda-se dinheiro para pôr de pé o museu e a biblioteca; não esconde as imensas obras que se impõem, elenca um vasto conjunto de postos administrativos, secretarias das administrações, residências dos administradores; aguarda os estudos para a construção da ponte do Impernal, há reparações de envergadura nas pontes de Bolama e Mansoa e uma verdadeira reconstrução da ponte de Bafatá; ainda não é possível criar a ligação do Norte com o Sul da colónia, conta poder adquirir jangadas a motor; virá em breve a Missão Hidrográfica; prevê-se para 1948 um novo local acostável para os navios de longo curso, no porto de Bissau; seria em breve publicado o Regulamente dos Serviços de Saúde da Colónia, prevê igualmente para breve a resolução das águas em Bissau e também em Bolama; impõem-se uma redistribuição das forças militares; aborda a necessidade de se revolucionarem os métodos agrícolas, fornecer aos indígenas melhores sementes; aborda as vacinas para os animais, pretende que se aumente a rede telefónica, quer mais bibliotecas. E termina: “Quando vim para esta colónia, chamado do serviço onde me encontrava, não foi certamente para aqui estar e durar. Não tenho intenção de durar, de assistir placidamente ao desenrolar lento da vida, assim de atuar num ritmo veloz. Conto que ao sair desta colónia não tenho onde me acusar de deixar qualquer coisa feita. A obra que surgir será de todos, e que eu não sirva senão para os animar na confiança nas suas capacidades.”

Não esconde em todas estas circunstâncias que é um cultor do detalhe, que não lhe escapa a visão de conjunto, veio com a incumbência de mudar hábitos de civilização e por vezes refere que sente desconsolo: “Alguns régulos do Gabu pediram e levaram carros. Não tendo podido acompanhar-lhes as atividades, nem sei como os têm utilizado. Se consideraram apenas agradar-me pessoalmente levando-os para apodrecerem ociosos, enganam-se. No entanto, eles já eu vi circulando-o numa estrada, carregando arroz. Mas em que estado! As rodas laqueantes, uma delas sem cavilha, outra com ela metida ao contrário! As autoridades têm o dever de olhar para estas coisas, de ensinar e acompanhar o indígena. Estes simples engenhos precisam de ser estimados, conservados, reparados, multiplicados, tudo no local, com os recursos locais, visto que com outras não foram eles feitos.”

Sempre que é oportuno esclarece que muito do que se está a fazer é obra dos seus antecessores: “Não são iniciativas minhas. Tudo tinha sido começado ou projetado pelos meus ilustres antecessores.” Sarmento Rodrigues era seguramente um homem influente, a sua obra impressionava e ele não esconde que em Lisboa se lhe abriam os cordões à bolsa, e di-lo publicamente:
“Quando no fim de 1945 estive na metrópole, obtive tudo, vim cheio de dádivas para a Guiné. O Ministério da Guerra ofereceu-me um avião Tiger e os dois mil contos do Fundo de Defesa Militar do Império. O Ministério da Marinha deu-nos todo o material de guerra para armar a Polícia de Segurança Pública. Do Ministério das Colónia, então, não houve facilidade que não fosse concedida, por todos os seus departamentos.
O Gabinete de Urbanização Colonial esteve durante um longo período a trabalhar quase exclusivamente para a Guiné, elaborando projetos que nos têm permitido desenvolver as obras que todos conhecem e que nunca poderiam ter execução sem eles.”


É uma governação que decorre em tempo vertiginoso, ao abandonar a coordenação da Guiné deixa um museu, o boletim cultural que continua a ser uma referência, todas as obras encetadas pelos seus antecessores foram concluídas, estão em curso iniciativas que irão dominar a atividade do seu sucessor, Raimundo Serrão. Sarmento Rodrigues procura apagar-se, enquanto todos lhe batem as palmas pela sua dinâmica de governação, dirá em jeito de despedida: “As obras que todos vemos nada valem por si; apenas significam que num dado momento houve, sobre esta terra escaldante, um grupo de homens que viveu em harmonia para as construir.” Recorda o leitor que quando ocorreu a visita do presidente Craveiro Lopes em 1955 Sarmento Rodrigues fará parte da comitiva e as reportagens publicadas não puderam esconder que era em toda a parte recebido com aplauso, não houvera antes governador como ele, traçou uma trajetória para a cultura, para o ensino, para uma miríade de infraestruturas, fez criar hospitais, estimulou boas relações com as colónias vizinhas.

E nesta vertigem aconteceu que a Guiné passou a figurar no mapa do império como terra de oportunidades, a Guiné passou a ter um lugar no mapa e até na História, ele aproveitou intensamente as comemorações em 1946 do quinto centenário da chegada à costa da Guiné; e cruzaram-se com a mesma intensidade cientistas e homens de letras que deixaram relatos inapagáveis; o desenvolvimento humano dos indígenas guineenses deu um passo em frente, atacou-se as doenças do sono e outras doenças tropicas, abriram-se postos sanitários. Dir-me-ão que nem tudo foi róseo, é verdade, o ensino não conheceu o mesmo dinamismo que o das infraestruturas, continuaram a faltar recursos humanos. Mas o fundamental é que este governador deixou uma semente de exigência e nada mais voltou aos tempos da pura exploração e do aleatório do trabalho forçado.

Manuel Sarmento Rodrigues
Um torneio internacional de futebol em Bissau do tempo do governador Sarmento Rodrigues
Fotografia de Bissau em 1945, imagem retirada do Arquivo Científico Tropical, com a devida vénia
Travessia do rio Impernal, 1945, imagem retirada do Arquivo Científico Tropical, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P25007: Historiografia da presença portuguesa em África (401): Pedido de subsídio para uma exploração geográfica e comercial à Guiné, 1877 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25030: In Memoriam: Os 14 membros da Tabanca Grande falecidos em 2023 (ou cuja notícia da morte só foi sabida por nós em 2023)


António Cunha (Tony) (c.1950 -c. 2022) (*)
O ex-fur mil Cunha foi esteve temporariamente colocado em Mansoa, em 1973, na 38.ª CCmds: acabou a comissão na CCAÇ 6, em Bedanda, onde era conhecido como o Furriel Mezinho Djaló: vivia em North Arlington, New Jersey, USA; era o nosso grã-tabanqueiro nº 782.

António Eduardo Jerónimo Ferreira (1951-2023) 
Ex-1.º cabo condutor auto rodas da CART 3493 / BART 3873 (Mansambo e Cobumba, 1972/74); vivia em Moleanos, Alcobaça; integrava a nossa Tabanca Grande desde 15/3/2012.

Armando Tavares da Silva (5/5/1939 - 1/2/2023) 
Grão-tabanqueiro nº 734, desde 25/1/2017; historiador, autor de "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)” (Porto, Caminhos Romanos, 2016, ISBN 978-989-8379-44-3).

Carlos Alberto Rodrigues Cruz (26/05/1941 - 07/09/2023)
Ex-fur mil inf, CCAÇ 617 / BCAÇ 619(Catió e Cachil, 1964/66); membro da Tabanca Grande desde 21/1/2014; vivia em Paço de Arcos, Oeiras


 
Carlos Nuno Carronda Rodrigues, cor inf 'cmd'  (1948 - 2023)
Ex-alf mil, CCAÇ 6, "Onças   Negras", Bedanda, 1970/72, cor cmd ref: membro da Tabanca Grande, sob o n.º 876, desde 23/6/2923; viviia na área metropolitana de Lisboa.

Coronel Inf Ref Ângelo Augusto da Cunha Ribeiro (26/07/1926 - 22/03/2023)
Ex- Major Inf, 2.º Comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70): vivia no Porto: membro da Tabanca Grande, a título póstumo, nº 879, desde 31/7/2023.



Fernando da Silva Costa (1951-2018)
Ex-fur mil trms da CCS/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa 1973/74) (*); moravaem Lisnoa; membra da Tabanca Grande desde 25/10/2009.

Fernando de Pinho Valente Magro (10/05/1936 - 18/09/2023)
Ex-cap mil art,  BENG 447 (Bissau, 1970/72); nasceu em Arouca; éra membro da Tabanca Grande desde 5/7/2013,



José António Paradela (1937-2023)
Ilhavense, arquiteto, escritor,  andou na pesca do bacalhau aos 16 anos, e fez o serviço militar no Marinha; pseudónimo literário "Àbio de Lápara"; membro da Tabanca Grande nº 872, desde 23/2/2023.



José Carlos Suleimane Baldé (c. 1951 - 2022) 
Ex-1º cabo at inf, CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1969/74): era natural de Amedalai,  Xime, região de Bafatá. Guiné-Bissau; entrou para a Tabanca Grande em  15 de maio de 2012, depois de ter visitado Portugal em 2011.



José Marcelino Sousa (1949 - 2023)
Ex-1º cabo at inf, CCAÇ 3327 / BII 17 (Bissau, Mata dos Madeiros, Calequisse, Tite e Bissássema, 1971/73): natural da ilha das Flores, Açores, vivia  desde 1974 em Stoughton, Massachussetts, EUA... Passou a sentar-se, no lugar nº 877, sob o poilão da nossa Tabanca Grande , desde 25/6/2023.



Manuela Gonçalves (Nela)  (Castelo Branco, 1946  - Caldas da Rainha, 2019)
Professora aposentada, cooperante, esposa do ex-alf mil,  Nelson Gonçalves, cmdt Pel Caç Nat 60, 1969/70, vítima de mina A/C , em 13/11/1969, na estrada São Domingos-Susana: integrava a nossa Tabanca Grande desde 9/1/2006.




Cor art ref Nuno José Varela Rubim (1938-2023)
Fez duas comissões no CTIG, como capitão (CCAÇ 726, CCAÇ 1424,  e CCmds, out 1964 / dez 1966) e como major (QG,  Cheret, 1972/74): historiógrafo militar, vivia no Seixal; era membro da Tabanca Grande desde 10/6/2006.



Zélia Neno (1953-2023)
Que foi casada com o Xico Allen (1950-2022) e mãe da Inês Allen: a primeira mulher a integrar a nossa Tabanca Grande (em 19 de fevereiro de 2006); viva em Vila Nova de Gaia.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


1. Lista dos amigos/as e camaradas que, em 2023,  da lei da morte se foram libertando (n=14) :

António Cunha (Tony) (c.1950 -c. 2022) (*)
António Eduardo Ferreira (1950 - 2023)
Armando Tavares da Silva (1939-2023)

Carlos Alberto Cruz (1941-2023)
Carronda Rodrigues (1948-2023)
Cunha Ribeiro (1936-2023)

Fernando Costa (1951-2018)(*)
Fernando Magro (1936 - 2023)

José António Paradela (1937-2023)
José Carlos Suleimane Baldé (c.1951-2022)(*)
José Marcelino Sousa (1949 - 2023)

Manuel Gonçalves (Nela (1946-2019 (*)

Nuno Rubim (1938 - 2023)

Zélia Neno (1953 - 2023)

(*) Só soubemos da sua morte no ano de 2023

Total de membros da Tabanca Grande, desde 23/4/2004, o início do blogue= 882... Falecidos = 143 (16,2%).