O Furriel Enfermeiro Esteves com os seus meninos manjacos de Chulame (1971)
© Rui Esteves (2005)
Meu caro Luís,
Aqui vai o meu primeiro texto de memórias: falo da minha amiga Catotinha, uma bajuda manjaca, de 2 ou 3 anos, que foi minha convidada durante uns meses.
Trinta e quatro anos depois, espero que a minha amiga Catotinha esteja viva e de boa saúde.
Um abraço do
Rui Esteves
(ex-furriel miliciano enfermeiro, CCAÇ 3327, Teixeira Pinto e Bissássema, 1971/73) (1)
Catotinha, uma bajudinha manjaca
Tinha começado a estação das chuvas – nessa altura era em Maio; agora, que cada vez chove menos (a seca começa a estender-se para sul), será lá para Julho ou Agosto – e a minha CCaç [3327] foi dispersa por vários agrupamentos.
A Catotinha e a mãe (Chulame, 1971)
© Rui Esteves (2005)
Até aí, tínhamos montado segurança a umas centenas de trabalhadores que abriam caminho, à catanada, pela mata que fica entre Teixeira Pinto e Cacheu: estava a ser aberta a estrada entre as duas importantes localidades da Guiné-Bissau.
A mim coube-me ficar em Chulame, uma minúscula aldeia manjaca, junto do 2.º pelotão da CCAÇ 3327. O nosso “aquartelamento” estava integrado na povoação.
Logo pela manhã, 7 ou 8 horas, lá me aparecia a minha amiga Catotinha, uma bajudinha com 2 ou 3 anos, uns calções feitos de sobras de um “camuflado”, muito risonha: vinha tomar o pequeno almoço comigo.
A menina manjaca de Chulame, amiga do Furriel Enfermeiro (1971)
© Rui Esteves (2005)
Acabada a refeição, eu seguia para o posto de enfermagem – tinha sempre umas dezenas de pessoas para atender, quase todos da população de Chulame – e a minha amiga Catotinha ficava por perto, a brincar.
Vinha o almoço, vinha o jantar, e lá estava ela, calada, à espera que eu a chamasse.
Esta rotina durou 2 ou 3 meses. Um dia, ao fazer-lhe uma festa na cabeça, dei conta que ela se retraiu: fui ver e deparei com uma otite que já purgava.
Tive que tratar da minha amiga bajudinha: uma injecção de penicilina que dói que se farta (vi tantos militares quase a desmaiar!).
A minha amiga bajudinha não chorou, nem desmaiou, mas, aos pés dela cresceu um regatinho: Catotinha tinha feito um chichi.
Para os tratamentos seguintes já tive que ir buscá-la à tabanca onde vivia, e a Catotinha, perdida a vergonha, chorava, com a mãe dela a segurar enquanto eu dava a injecção.
A minha amiga bajudinha ficou curada, mas perdeu totalmente a confiança em mim.
Passado pouco tempo, em Novembro de 1971, recebemos ordem para seguirmos para Bissássema, região de Tite, e a Catotinha não se veio despedir, mas eu nunca me esqueci dela.
Hoje, se ainda for viva, a Catotinha deve ter cerca de 36 anos, é uma mulher no fim da vida, com cabelos brancos, muitos filhos, que, espero, tenha escapado à lepra e à elefantíase (duas doenças muito vulgares naquela região).
© Rui Esteves (2005)
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(1) Mensagem de boas vindas, enviada anteriormente ao Rui:
Meu caro Rui:
É verdade, parece que foi ontem… De qualquer modo, que sejas bem vindo! Espero que te sintas bem nesta tertúlia. A época natalícia era a pior para quem vivia numa buraco, na Guiné. Ah!, as saudades, a tristeza, a revolta dos nossos vinte/vinte e dois anos…
És o primeiro furriel miliciano enfermeiro a dar sinal de vida. Também não tínhamos ninguém da zona de Tite. Acabei agora mesmo de publicar o teu texto no nosso blogue (2). Manda duas fotos tuas (uma antiga e uma actual), se quiseres. Vou pôr-te na nossa lista de e-mails e em contacto com os outros camaradas e amigos. Presumo que continues a trabalhar na área da saúde Fico à tua espera.
Luís Graça
(2) Vd. post de 29 de Novembrod e 2005 > Guiné 63/74 - CCCXIX: Parece que foi ontem (CCAÇ 3327, 1971/73: Teixeira Pinto, Bissássema)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Sera que os membros da caserna sabem o significado da palavra "CATOTINHA" que era o nome que foi dado a "Bajudinha"?
Vem no nosso glossário:
Diminuitivo de Catota - Orgão sexual feminino; partir catota = ter relações sexuais (crioulo, calão)
Luís Graça
Sera que a Catotinha gostou do nome e ainda eh assim chamada na Guine? Um nome muito criativo que lhe foi dado por um furriel amigo. Sera que no bairro dele tem alguma amiguinha branca chamada "Coninha"?
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