Com a devida vénia e os nossos agradecimentos ao nosso amigo Jorge Neto.
Fonte: Africanidades > 21.11.05 > Tchon balanta (região balanta).
© Jorge Neto (2005)
Caros camaradas
Estamos já em época natalícia e vou dar-vos uma de prosa, para amenizar (será?...). Tem sido uma das ideias dos meus natais.
A. Marques Lopes
Nota de L.G.:
Amigos e camaradas, esta estória comoveu-me. É a coisa mais linda que eu podia ler neste Natal. Ela foi decididamente escrita com sangue e lágrimas. É sobretudo reveladora da grandeza de alma do nosso amigo e camarada A. Marques Lopes que, em 7 de Julho de 1967, estava no sítio errado, em Samba Culo.
Estamos já em época natalícia e vou dar-vos uma de prosa, para amenizar (será?...). Tem sido uma das ideias dos meus natais.
A. Marques Lopes
Nota de L.G.:
Amigos e camaradas, esta estória comoveu-me. É a coisa mais linda que eu podia ler neste Natal. Ela foi decididamente escrita com sangue e lágrimas. É sobretudo reveladora da grandeza de alma do nosso amigo e camarada A. Marques Lopes que, em 7 de Julho de 1967, estava no sítio errado, em Samba Culo.
Ele era alferes miliciano da CART 1690, sediada em Geba. Não creio que o luto das nossas perdas se possa fazer de uma vez por todas. Escrever e partilhar a escrita ajudam a fazer o luto de tudo aquilo que perdemos quando tínhamos vinte anos e fazíamos a guerra na Guiné... Obrigado, António.
A professor de Samba Culo
Ali estava ela, jovem e bela como a conheci há trinta anos, mas agora com um olhar calmo e um sorriso nos lábios, vi-a na expectativa do meu abraço. E abracei-a... e chorei (...).
Professora, este jovem é o Cinco, que me trouxe de jeep até aqui, e este é o Blétch Intéte, filho da siguê (1) dos balantas de Barro. O outro teu patrício, homem-grande (2), é o Cacuto Seidi, chefe da tabanca (3) de Barro. Foi ele que me disse que o Blétch Intéte tem irã (4) e que só ele podia fazer com que eu te encontrasse. A minha chegada aqui, há trinta anos, foi muito diferente, como deves calcular, e não me refiro, evidentemente, às razões de cada uma das viagens. Desta vez, assim que pisei o aeroporto Osvaldo Vieira (5), tive de levar as mãos ao peito para que o coração não me abandonasse. Por mais esforços, por mais conversas apaziguadoras, durante as quatro horas que durou a viagem, não consegui acalmá-lo nem convencê-lo de que era preciso dominar a ansiedade e moderar os desejos de ti. Perdido, cego de alegria e paixão, chegara a hora da realização do sonho de vários anos, depois de desvanecidos todos os fantasmas, é claro, porque, quando saí daqui a primeira vez, evacuado para o hospital, este coração estava enraivecido com vocês todos, que me tinham ferido e matado amigos meus. Passados nove meses, aqui voltei, para continuar na guerra, é verdade, ainda confuso mas já sem ódio e desejoso de entender o que se passava. Foi nessa minha fase, Professora, que nos conhecemos, quando dei contigo na tua escola de Samba Culo, naquela manhã de 7 de Julho (6). Da segunda vez que abandonei a Guiné e deixei a guerra, a minha vontade e empenho foi esquecê-la, varrer-vos a todos da minha memória, lavar as marcas do sangue dos meus amigos, do meu próprio, e também do vosso, banir o medo e o cansaço que se me entranhara na alma ao percorrer as matas deste chão que, agora, vê lá!, reguei com lágrimas de alegria e de saudade consolada. Para aqui chegar, frequentei bares e prostitutas, acumulei sessões contínuas no Olímpia (7), fui estudante mas nunca acabei cursos, percorri a Europa, estive em Paris, no Quartier Latin das minhas leituras, Londres, vi a Royal Guard e a rainha, Roma, não vi o Papa porque estava de férias em Castelgandolfo, e vê lá que me atrevi a passar a cortina de ferro, em Praga, Moscovo, onde namorei uma soviética na Praça Vermelha, a tchetchena Aniuska, Leninegrado e Kiev, fui activista sindical e militante político, participei em primeiros de Maio, fiz trabalhos clandestinos e levei porrada da polícia, dormi em esquadras, casei-me, fiz filhos e apanhei bebedeiras, bati nos filhos e descasei-me, conheci muitas mulheres, fiz amor por todo o lado, levei muitas negas e passei noites de solidão, dormi em bancos de jardim e debaixo de árvores, mas nunca te esqueci, não houve prazer-anfetamina que cauterizasse esta memória em carne viva nem bebida que a afogasse, cansei-me da vida, como me cansara antes para não morrer, e pensei em matar-me. Mas, olha, não consegui, não por causa de Deus, pois nesse período nunca fui à missa e nunca me confessei. Não o fiz porque tinha começado a amar-te e não queria morrer sem voltar a ver-te, sem deixar de to dizer.(...)
Está a ficar noite e tenho três horas para chegar a Bissau. Cinc, prépare le jeep, nous en allons tout de suite. Sabes, professora, porque é que o meu condutor se chama Cinco? Nasceu no dia 5 de Maio e é o quinto filho de sua mãe, que decidiu dar-lhe esse nome tão significativo. Não, não te preocupes que ele não percebeu nada da nossa conversa, além do crioulo só sabe francês, pois frequentou apenas uma escola em Dakar. É que, professora, nasceu há 23 anos, muito depois daquele dia em que tive de te abrir o ventre com uma rajada de G3 por te ver empunhar a kalash que tinhas pendurada no quadro da escola. Ele não estava aqui entre os teus meninos. Se tivesse estado, saberia falar e escrever português, com certeza. Sei que foste uma boa professora. Vi que escrevias no quadro as palavras com o desenho correspondente para os teus alunos identificarem bem em português os objectos do seu dia-a-dia. Vi os livros por onde aprendiam a ler, vi os cadernos de redacção e de cópias. Está descansada, não matei nenhum deles, garanto-te. Devem estar por aí, cidadãos do teu país (...).
Uma escola do PAIGC, em "região libertada"...
Tal e qual como a que as forças da CART 1690 destruiram na Op Inquietar II (4 a 7 de Julho de 1967) e em que morreu a jovem professora, aqui evocada pelo autor.
© Agência de Notícias Xinhua (1972)
Tenho de partir, de voltar a Portugal. Gostei muito de falar contigo, tinha mesmo necessidade de o fazer, já que, naquele dia em que nos encontrámos pela primeira vez, só eu te disse “firma lá!” (8) e tu não me disseste nada. Percebo que nem me quizesses ouvir... E nunca mais dormi descansado até agora. (...) Quero pedir-te uma última coisa, que desculpes aquele meu soldado que tentou violar-te quando estavas agonizante. Conseguiste ver ainda que não o deixei fazer isso. Perdoa-lhe, era bom rapaz, um camponês minhoto que para aqui foi lançado e, sabes, é fácil perder a cabeça numa guerra de inimigos fabricados. Talvez o encontres por aí, o teu camarada Gazela matou-o em Jobel e o corpo dele por cá ficou. Deve andar, como tu, no meio desta floresta do Oio. Fala com ele agora. (...)
© A. Marques Lopes (2005)
______
(1) Feiticeira tribal
(2) Homem idoso, respeitável, aceite como autoridade pelos mais novos da povoação.
(3) Povoação.
(4) Irã, entre os balantas, que são animistas, é qualquer ser da natureza, árvore ou animal, ou qualquer objecto a que é atribuído poder mágico. «Tem irã» significa ter poder sobrenatural que é preciso respeitar e temer.
(5) Aeroporto de Bissau, a que foi dado o nome de Osvaldo Vieira, herói do PAIGC, morto durante a guerra de libertação.
(6) vd. post de A. Marques Lopes, de 7 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II :
" (...) o que mais me impressionou nesta operação foi o seguinte: Samba Culo tinha uma escola; quando lá chegámos, vi escrito no quadro preto, em perfeito português: "Um vaso de flores". Tinha desenhado, a giz, por baixo, um vaso de flores.E o que nunca mais esquecerei na minha vida: quando atacámos a base, uma jovem dos seus 18 anos ficou com a barriga aberta por uma rajada de G3. E mais (coisas terríveis desta guerra!): o Bigodes, o Armindo F. Paulino (que foi, depois, feito prisioneiro pelo PAIGC e que acabou por morrer em Conakri), quis saltar para cima dela. Tive que lhe bater. Esta é uma situação que nunca me sai do pensamento... e da minha consciência. Tinham muitos livros em português, que era o que estavam a ensinar aos alunos (miúdos ou graúdos?). Trouxemos também (imaginem!) uns paramentos completos de um padre católico! Lembranças que se me pegaram para toda a vida".
(7) Cinema popular na Rua dos Condes, em Lisboa.
(8) Está quieta aí!
A professor de Samba Culo
Ali estava ela, jovem e bela como a conheci há trinta anos, mas agora com um olhar calmo e um sorriso nos lábios, vi-a na expectativa do meu abraço. E abracei-a... e chorei (...).
Professora, este jovem é o Cinco, que me trouxe de jeep até aqui, e este é o Blétch Intéte, filho da siguê (1) dos balantas de Barro. O outro teu patrício, homem-grande (2), é o Cacuto Seidi, chefe da tabanca (3) de Barro. Foi ele que me disse que o Blétch Intéte tem irã (4) e que só ele podia fazer com que eu te encontrasse. A minha chegada aqui, há trinta anos, foi muito diferente, como deves calcular, e não me refiro, evidentemente, às razões de cada uma das viagens. Desta vez, assim que pisei o aeroporto Osvaldo Vieira (5), tive de levar as mãos ao peito para que o coração não me abandonasse. Por mais esforços, por mais conversas apaziguadoras, durante as quatro horas que durou a viagem, não consegui acalmá-lo nem convencê-lo de que era preciso dominar a ansiedade e moderar os desejos de ti. Perdido, cego de alegria e paixão, chegara a hora da realização do sonho de vários anos, depois de desvanecidos todos os fantasmas, é claro, porque, quando saí daqui a primeira vez, evacuado para o hospital, este coração estava enraivecido com vocês todos, que me tinham ferido e matado amigos meus. Passados nove meses, aqui voltei, para continuar na guerra, é verdade, ainda confuso mas já sem ódio e desejoso de entender o que se passava. Foi nessa minha fase, Professora, que nos conhecemos, quando dei contigo na tua escola de Samba Culo, naquela manhã de 7 de Julho (6). Da segunda vez que abandonei a Guiné e deixei a guerra, a minha vontade e empenho foi esquecê-la, varrer-vos a todos da minha memória, lavar as marcas do sangue dos meus amigos, do meu próprio, e também do vosso, banir o medo e o cansaço que se me entranhara na alma ao percorrer as matas deste chão que, agora, vê lá!, reguei com lágrimas de alegria e de saudade consolada. Para aqui chegar, frequentei bares e prostitutas, acumulei sessões contínuas no Olímpia (7), fui estudante mas nunca acabei cursos, percorri a Europa, estive em Paris, no Quartier Latin das minhas leituras, Londres, vi a Royal Guard e a rainha, Roma, não vi o Papa porque estava de férias em Castelgandolfo, e vê lá que me atrevi a passar a cortina de ferro, em Praga, Moscovo, onde namorei uma soviética na Praça Vermelha, a tchetchena Aniuska, Leninegrado e Kiev, fui activista sindical e militante político, participei em primeiros de Maio, fiz trabalhos clandestinos e levei porrada da polícia, dormi em esquadras, casei-me, fiz filhos e apanhei bebedeiras, bati nos filhos e descasei-me, conheci muitas mulheres, fiz amor por todo o lado, levei muitas negas e passei noites de solidão, dormi em bancos de jardim e debaixo de árvores, mas nunca te esqueci, não houve prazer-anfetamina que cauterizasse esta memória em carne viva nem bebida que a afogasse, cansei-me da vida, como me cansara antes para não morrer, e pensei em matar-me. Mas, olha, não consegui, não por causa de Deus, pois nesse período nunca fui à missa e nunca me confessei. Não o fiz porque tinha começado a amar-te e não queria morrer sem voltar a ver-te, sem deixar de to dizer.(...)
Está a ficar noite e tenho três horas para chegar a Bissau. Cinc, prépare le jeep, nous en allons tout de suite. Sabes, professora, porque é que o meu condutor se chama Cinco? Nasceu no dia 5 de Maio e é o quinto filho de sua mãe, que decidiu dar-lhe esse nome tão significativo. Não, não te preocupes que ele não percebeu nada da nossa conversa, além do crioulo só sabe francês, pois frequentou apenas uma escola em Dakar. É que, professora, nasceu há 23 anos, muito depois daquele dia em que tive de te abrir o ventre com uma rajada de G3 por te ver empunhar a kalash que tinhas pendurada no quadro da escola. Ele não estava aqui entre os teus meninos. Se tivesse estado, saberia falar e escrever português, com certeza. Sei que foste uma boa professora. Vi que escrevias no quadro as palavras com o desenho correspondente para os teus alunos identificarem bem em português os objectos do seu dia-a-dia. Vi os livros por onde aprendiam a ler, vi os cadernos de redacção e de cópias. Está descansada, não matei nenhum deles, garanto-te. Devem estar por aí, cidadãos do teu país (...).
Uma escola do PAIGC, em "região libertada"...
Tal e qual como a que as forças da CART 1690 destruiram na Op Inquietar II (4 a 7 de Julho de 1967) e em que morreu a jovem professora, aqui evocada pelo autor.
© Agência de Notícias Xinhua (1972)
Tenho de partir, de voltar a Portugal. Gostei muito de falar contigo, tinha mesmo necessidade de o fazer, já que, naquele dia em que nos encontrámos pela primeira vez, só eu te disse “firma lá!” (8) e tu não me disseste nada. Percebo que nem me quizesses ouvir... E nunca mais dormi descansado até agora. (...) Quero pedir-te uma última coisa, que desculpes aquele meu soldado que tentou violar-te quando estavas agonizante. Conseguiste ver ainda que não o deixei fazer isso. Perdoa-lhe, era bom rapaz, um camponês minhoto que para aqui foi lançado e, sabes, é fácil perder a cabeça numa guerra de inimigos fabricados. Talvez o encontres por aí, o teu camarada Gazela matou-o em Jobel e o corpo dele por cá ficou. Deve andar, como tu, no meio desta floresta do Oio. Fala com ele agora. (...)
© A. Marques Lopes (2005)
______
(1) Feiticeira tribal
(2) Homem idoso, respeitável, aceite como autoridade pelos mais novos da povoação.
(3) Povoação.
(4) Irã, entre os balantas, que são animistas, é qualquer ser da natureza, árvore ou animal, ou qualquer objecto a que é atribuído poder mágico. «Tem irã» significa ter poder sobrenatural que é preciso respeitar e temer.
(5) Aeroporto de Bissau, a que foi dado o nome de Osvaldo Vieira, herói do PAIGC, morto durante a guerra de libertação.
(6) vd. post de A. Marques Lopes, de 7 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II :
" (...) o que mais me impressionou nesta operação foi o seguinte: Samba Culo tinha uma escola; quando lá chegámos, vi escrito no quadro preto, em perfeito português: "Um vaso de flores". Tinha desenhado, a giz, por baixo, um vaso de flores.E o que nunca mais esquecerei na minha vida: quando atacámos a base, uma jovem dos seus 18 anos ficou com a barriga aberta por uma rajada de G3. E mais (coisas terríveis desta guerra!): o Bigodes, o Armindo F. Paulino (que foi, depois, feito prisioneiro pelo PAIGC e que acabou por morrer em Conakri), quis saltar para cima dela. Tive que lhe bater. Esta é uma situação que nunca me sai do pensamento... e da minha consciência. Tinham muitos livros em português, que era o que estavam a ensinar aos alunos (miúdos ou graúdos?). Trouxemos também (imaginem!) uns paramentos completos de um padre católico! Lembranças que se me pegaram para toda a vida".
(7) Cinema popular na Rua dos Condes, em Lisboa.
(8) Está quieta aí!
4 comentários:
Fiquei parva com esta história - de link em link cá cheguei.
Está lá o coração todo.
E mais parva fiquei por este post não ter comentários.
Os portugueses ignoram aquilo que não querem saber? Parece-me o caso.
Apesar do pendor dramatico da história apresentada, transpira a verdadeira...
FÁNTASTICO
dizem os franceses que
...un meque que pleure pas,
cest pas un meque...
eu sou homem
ze manel cancela
Relato com muito sofrer mas também com muita estima.Belas palavras
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