quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P379: Estórias cabralianas: 'turras brancos' em Bissaque, uma ficcção cabraliana (Jorge Cabral)

Em 1952, terminado o curso de engenheiro agrónomo em Lisboa, Amílcar Cabral regressa à sua terra, contratado pelos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné Portuguesa, trabalhando nomeadamente em Fá Mandinga (dizia-se, no meu tempo...) e em Pessubé, em Bissau (onde dirige uma exploração agrícola, a famosa Granja de Pessube: vd. mapa da cidade de Bissau).

Em 1969/71, outro Cabral passaria por Fá (Mandinga): era Alferes Miliciano do Exército Colonial Português, poeta e grande admirador da beleza feminina africana... Fá também foi centro de instrução da 1ª Companhia de Comandos Africanos.

Em 18 de Dezembro de 1969, o Alferes Cabral, à frente do seu Pel Caç Nat 63, vai, de noite, em socorro de Bissaque, atacada por um "turras brancos"... Trinta e cinco anos depois, em primeira mão, neste blogue, faz-se história: o próprio Cabral vem revelar que essa dos brancos em Bissaque foi uma "ficção cabraliana"... Esses delíros eram frequentes enre os soldados portugueses: recordo-me de um dos nossos básicos (da CCAÇ 12) que um dia terá visto elefantes junto ao arame farpado do quratel de Bambadinca!

© Jorge Cabral (2005)

1. Em Dezembro de 1969 a disposição das NT no Sector L1 da Zona Leste (Bambadinca) era a seguinte:

BCAÇ 2852 > Bambadinca
(1) CSS do BBCAÇ 2852 > Bambadinca

(2) CART 2520 (-) > Xime
(21) Um pelotão > Enxalé

(3) CCAÇ 2404 (-) > Mansambo
(31) Uma pelotão (-) > Candamã
(32) Uma secção > Afiá

(4) CART 2413 (-) > Xitole
(41) Um pelotão > Ponte dos Fulas

(5) Pel Caç Nat 52 > Bambadinca
(6) Pel Caç Nat 54 > Missirá
(7) Pel Caç Nat 63 > Fá

(8) Pel Autometralhadoras DAIMLER 2046 > Bambadinca
(9) Pel Mort 2106 (-) > Bambadinca. Com um esquadrão (-) em cada um dos seguintes aquartelamentos ou destacamentos: Xime, Mansambo, Xitole, Enxalé, Fá, Missirá
(10) 20º Pel BAC 1 > Xime

(11) CCAÇ 12 (-) > Bambadinca
(111) Uma secção > Sansacuta

(12) Pelotões de milícias nas seguintes localidades: Missirá (201), Finete (202), Madina Bonco (241), Amedalai (203), Taibatá (242) e Dembataco (242).


2. Na História do BCAÇ 2852, Capítulo II, página 123, pode ler-se:

“Em 18 [de Dezembro de 1969 ], pelas 00h01 horas, um “Grupo IN, estimado em cerca de 20 elementos com alguns brancos (negrito meu), assaltou com armas ligeiras e granadas de mão, durante 20 minutos, a tabanca de Bissaque (Bambadinca 8 C 6), roubando uma vaca, um porco, várias galinhas e diversos objectos de uso pessoal, causando um ferido ligeiro à população que reagiu à catana e pelo fogo, o único elemento armado. 

"O IN sofreu um ferido motivado por catanadas, deixando poças de sangue, retirando e cambando o Rio Geba na Região (Bambadinca 3 I 7-65). As NT estavam emboscadas em (Bambadinca 5 I l-98), alertadas e passando obrigatoriamente pelo quartel de Fá [Madinga], fizeram fogo de morteiro sobre a última cambança (Bambadinca 5 I 9-24) reconhecendo o trilho IN de retirada até ao Rio Geba”.

O comandante da força que estava emboscada (o Alf Mil Cabral, do Pel Caç Nat 63) e que fez depois o reconhecimento - ainda nessa mesma noite - da acção do IN em Bissaque, deixou transparecer há dias, aqui neste blogue (1), que a notícia de brancos, integrando o grupo IN que terá assaltado Bissaque, foi tão exagerada… quanto a notícia da morte de Mark Twain comentada pelo próprio.

Em Dezembro de 1969, o Alf Mil Cabral comandava o destacamento de Fá Mandinga, guarnecido pelo PEL CAÇ NAT 63. Aqui vemo-lo, em traje de combate, devidamente protegido, contra as balas do IN, pelo mezinhos mandingas

© Jorge Cabral (2005)

O Jorge Cabral terá querido assustar o valoroso tenente-coronel e os magníficos majores de Bambadinca ao dar a notícia (fantasiosa) dos brancos em Bissaque. Nunca ninguém viu ou apanhou brancos no Sector L1, integrados na guerrilha do PAIGC.

Era uma ficção que já vinha da Operação Lança Afiada (Março de 1969) (2): os homens do BCAÇ 2852 ficaram muito frustrados quando entraram no Fiofioli e não encontraram nem enfermeiras nem médicos cubanos!

O Jorge Cabral era o único, de nós, que muito provavelmente se divertia com a guerra, “avacalhando” o sistema, fazendo “non sense” e produzindo inventonas como esta. "Ficções cabralianas", como ele próprio as define... A verdade é que os brancos de Bissaque, tal como os cubanos do Fiofioli, ficaram registados nos livros da tropa, o mesmo é dizer, no Arquivo Histórico-Militar...

Bissaque era uma aldeia balanta, em pleno chão fula (Zona Leste), situada no Geba Estreito, nas proximidades de Ponta Amaro, na margem esquerda, a norte de Fá Mandinga, a menos de cinco quilómetros em linha recta (pelo mapa). Pela carta (de 1955) era uma tabanca dispersa com meia dúzia de moranças. Não me lembro de lá ter passado, mas é bem possível que sim, numa qualquer acção de patrulhamento. De qualquer modo, Bissaque fazia parte do importante núcleo de população balanta do Sector L1, considerado sob duplo controlo, a par de Nhabijões, Mero e Santa Helena (3).

A população destas tabancas ribeirinhas, localizadas ao longo do Geba Estreito, hostilizava-nos ou, pelo menos, colaborava com o PAIGC, até por razões de parentesco e de etnia. Contrariamente às tabancas fulas, as tabancas balantas não estavam em autodefesa nem tinham milícias. Lembro-me de estar destacado em Nhabijões, já depois do seu reordenamento, e ser alertado, à noite, para a presença de guerrilheiros. Entravam e saíam com relativa facilidade no reordenamento, nas nossas barbas, quase descaradamente. Em contrapartida, nunca nos atacaram, por muito provavelmente recearem as nossas represálias sobre a população balanta. Limitaram-se, um dia, a 13 de Janeiro de 1971, a montar duas minas anticarro, à saída do reordenamento, na estrada de Nhabijões-Bambadinca,que nos custaram 2 mortos e vários feridos graves (entre eles, o Alf Mil Sapador Luís Moreira e o Fur Mil Atirador de Infantaria Joaquim Fernandes, membros da nossa tertúlia) (4).

Não sei, de resto, o que nos poderia acontecer se um dia a “esquadra de polícia” do Reordenamento de Nhabijões fosse atacada, à noite, de surpresa… Até Julho de 1970, o destacamento de Nhabijões era guarnecido por forças da CCAÇ 12… A partir daí foi constituído um pelotão permanente da CCS do BART 2917, enquadrado por graduados da CCAÇ 12. Os homens da CCS não tinham qualquer experiência de combate… No essencial, era um “pelotão de básicos” que seria rapidamente destroçado se algum dia o PAIGC nos atacasse…

A menos que se tratasse de um pequeno grupo de ladrões de gado, de etnia balanta (o que era vulgar acontecer, no Sector L1, mesmo em plena guerra...) ou de um pequeno grupo de guerrilha esfomeado e fora do controlo do seu comissário político, não vejo qual o interesse do PAIGC em amedrontar a pacata e colaborante população de Bissaque. Par mais à meia noite e para roubar apenas um vaca, um porco e algumas galinhas. Em suma, esta história parece-me estar mal contada, como muitas outras relatadas pelas NT...

Três dias depois, a 21, às 5h30 da manhã, os Pel Caç Nat 53 e 64, reforçados com duas secções de milícia, efectuaram uma operação de dois dias para detecção de vestígios do IN na região de Missirá, Finete, Chicri, Mato Cão, Finete. Não houve contacto nem vestígios (Op Espada Gaulesa). O Mato Cão era um dos pontos sensíveis do Geba Estreito donde a guerrilha costumava desencadear acções de barragem à navegação. Era uma zona intensamente patrulhada pela CCAÇ 12. Depois do regresso a casa dos quadros metropolitanos da CCAÇ 12 (Março de 1971), foi instalado um destacamento no Mato Cão (A informação é do Jorge Cabral que lá ficou na região por mais uns meses).

As forças do PAIGC que actuavam nesta região eram provenientes da base de Madina/Belel, no regulado do Cuor. Ataques e flagelações aos destacamentos de Missirá, Finete e Enxalé eram frequentes, obrigando ao reforço temporário de alguns deles (como era sobretudo o caso de Missirá).

Já em 28 de Setembro de 1969, há o registo, na história do BCAÇ 2852, de uma incursão de um grupo IN, armado, na povocação de Nhabijões Bedinca:

“Em 28, pelas 1h30, um grupo IN estimado em 50 elementos, armados de PM [ Pistolas Metralhadoras] e de espingardas [ automáticas ?] assaltaram a tabanca de Nhabijões Bedinca (Bambadinca 4 A – 3), agredindo à coronhada alguns africanos e roubando arroz, milho, uma vaca e um porco e diversos agasalhos. Retiraram para Norte, cambando o Rio Geba em canoas para a bolanha de São Belchior (Bambadinca 1 F 3 ?)”.

Alguns dias depois, a 3 de Outubro, pelas 14h00, muito provavelmente o mesmo grupo IN flagelou a embarcação Gouveia XVI da margem direita do Rio Geba, na região de São Belchior, “causando 1 morto, 4 feridos graves e 6 feridos ligeiros à população”… A embarcação, da Casa Gouveia, transportava apenas “carga civil” e dirigia-se, segundo presumo, de Bafatá para Bissau.
De qualquer modo nesse mês de Dezembro de 1969, há o registo de mais duas acções intimidatórias deste tipo, atribuídos pelo comando de Bambadinca à guerrilha do PAIGC:

“Em 10 de Dezembro, pelas 1h45, um grupo IN estimado em 6/8 elementos roubou 2 vacas na tabanca de Canchicamo (Bambadinca 8 A 8 ?) incendiando a morança do dono daquelas e tendo morrido uma criança e um nativo quando reagia ao IN com um pau. O IN atravessou o Rio Geba (Bambadinca 5I2) a nado, retirando pelo mesmo local. As NT, alertadas por elementos da população, imediatamente se deslocaram à tabanca de Canchicamo tendo detectado o trilho IN e tendo encontrado uma GMO [granada de mão ofensiva] (5).

“A 16, pelas 21h30, um grupo IN não estimado assaltou as moranças da tabanca de Nhabijões Bedinca roubando 2 vacas, um porco e tendo agredido o dono daquelas à coronhada e ocasionando nestes ferimentos. O IN cambou o Rio Geba na região (Bambadinca 1 I 5- 52)”.

Como se pode avaliar pela magnífica carta de Bambadinca, as povoações ribeirinhas ao longo do Geba Estreita eram de difícil (para não dizer impossível) controlo por parte das NT.

Ainda, nesse mês e ano, nas vésperas de Natal, a 24, dois Gr Comb da CCAç 12, “em cooperação com a autoridade administrativa de Bambadinca levam a cabo uma rusga, com cerco, à tabanca de Mero”. Na história desta unidade (Cap. II, pág. 20) diz-se que “apesar de alguns indícios suspeitos, não foram detectados elementos IN”; por outro lado, “para efeitos de controlo populacional, completou-se e actualizou-se o recenseamento dos habitantes de Mero (Acção Guilhotina)”.

Luís Graça
__________

(1) Vd. post de 21 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXCIII: Bendito Cabral, entre as mandingas de Fá e as balantas de Bissaque:

"Porque estamos no Natal, recordas o teu de 69 e um ataque a Bissaque. Eu passei o meu em Fá, e dias antes, noite dentro, quando já o comemorava por antecipação, acorri a defender a Tabanca de Bissaque, guiado pelo Marinho. Este era um velho, seco e pequenino, guardião das instalações de Fá, desde os anos 50. Embora existisse uma estrada para Bissaque, o Marinho conduziu-nos por uma interminável bolanha, após a qual lá chegámos, obviamente muito depois do "inimigo" ter retirado. O ataque referido nos documentos oficiais, não passou de uma breve flagelação. Fui eu que relatei a ocorrência, e porque quem conta um conto... acrescentei- lhe alguns pormenores (essa da intervenção de brancos deve ter sido ficção cabraliana), para assustar o Comandante de Bambadinca!"

(2) Vd post de 15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

(3) Vd mapa de Bambadinca

(4) Vd. posts de:

21 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCII: O reordenamento de Nhabijões (1969/70)

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

(5) Na brochura sobre a história do BCAÇ 2852, a grafia é Canxicamo. A mim parece-me que a grafia correcta é Canchicamo, de acordo com o mapa de Bambadinca, dos Serviços Cartográficos do Exército (1955). Canchicamo ficava a norte de Bissaque, junto a Ponta Amado numas curvas (caprichosas) desse mítico rio que era, para nós, o Geba (ou Xainga).

Sem comentários: