Luís Jales
ex-Fur Mil Trms Inf
Agrup Trms de Bissau e CCAÇ 20
Bissau e Gadamael Porto
1972/74
1. Mensagem do nosso camarada Luís Jales, em 17 de Janeiro de 2008:
Ex.ºs Senhores :
Luís Graça
Carlos Vinhal
Virgínio Briote
Caros amigos : (Permitam que assim os trate)
Chamo-me Luis Jales [de Oliveira], tenho 57 anos, sou casado, tenho duas filhas, moro em Mondim de Basto, Trás-os-Montes e exerço funções de Adjunto do Presidente na Câmara Municipal.
Prestei serviço militar na Guiné de 1972 a 1974, como Furriel Miliciano de Transmissões de Infantaria.
Mobilizado em rendição individual para uma Companhia de Comandos, fui colocado, por insondáveis desígnios do destino, no Agrupamento de Transmissões de Bissau, na Secretaria Geral, até 1973 e depois despachado para a CCAÇ 20, do CTIG, que se formou em Bolama e que partiu para Gadamael Porto onde permaneci até ao fim da Comissão (12 de Maio de 1974).
Sou, portanto, daqueles que, respondendo ao apelo da Pátria herdada, do Estado imposto e do Governo não votado, partiram, um dia, por essas estradas, com os olhos coalhados de Tâmega e suplicantemente ajoelhados aos pés de Nossa Senhora da Graça.
Daqueles que foram arrancados violentamente do colo materno, do aconchego do lar e das telúricas fragas do Marão sagrado, para partirem, de madrugada, deixando a cama desfeita e, quantas vezes, uma vida a germinar na barriga das companheiras.
De todos aqueles que voaram sobre os continentes, navegaram sobre os oceanos e desembarcaram, de peito feito, nas praias escaldantes duma África que os enfeitiçou.
De todos aqueles que durante dois estáticos e intermináveis anos comeram o pão que o diabo amassou, comungaram dos horrores da guerra revelada e beberam do cálice que transbordava de sangue, que transbordava de suor e que transbordava com as lágrimas derramadas. O amargo cálice das saudades, o amargo cálice da fome, da sede, do calor, da ansiedade e do desespero, das febres e das viroses, da distância e da loucura, do pasmo e do horror, do silencio e do sofrimento. Do cálice da dor, do cálice do martírio, mas também do cálice da redenção.
De todos aqueles que por obras valorosas da lei da morte se foram libertando, partidos pelas rajadas, estilhaçados pelos morteiros, rachados a foguetão e nas minas crucificados. De todos aqueles a quem a alma foi arrancada, a quem a alegria foi interrompida e a quem a esperança foi degolada,
De todos aqueles de quem o Estado cobardemente se esqueceu e de todos aqueles a quem a sociedade, estupidamente, apontou o dedo castigador.
De todos aqueles que foram ultrajados e sobre quem pesa o estigma condenatório.
Mas também de todos aqueles que vão saldando, aos poucos, as contas com os processos pendentes dum passado que não passou e que continua e há-de continuar excessivamente presente até ao fim.
Porque os nossos corpos ainda tresandam a África e as nossas noites continuam povoadas de fantasmas, bombardeadas de sobressaltos e minadas de pesadelos.
Sou, portanto daqueles que voaram sobre o maciço do Futa-Jalon, contemplando entre o Cabo Roxo, a Norte, e a Ponta do Café, a Sul, os palmares, os mangais e as lalas, a floresta e a savana, as terras vermelhas e os baga-baga, as queimadas e as culturas de rotação, o tarrafe e as bolanhas, o lençol omnipresente que penetrava apaixonadamente aquela mulher negra e sensual que um dia foi baptizada com o nome de Guiné.
E que viram, no ventre daquela mulher africana, pulular búfalos, hienas e leopardos, macacos do tarrafe, cachoros de mango, ratos voadores, gazelas de lala, porcos pretos, irãs cegos, jibóias e cobras cuspideiras, lagartos e ratos das palmeiras, macacos-cão, pelicanos, abutres, garças, gaivotas e maçaricos, rolas, perdizes e pombos torcaz, cachos calderon, colibris, galinhas do mato e íbis sagradas.
E que viram , nas suas veias, nadar peixes-sereia, bicas, bicudas e cações, candambas, safias e bentanas, jotós, peixes saié e tubarões.
De todos aqueles que voaram nas asas dum passarinho parecendo escutar o mavioso som dos violinos Fulas, que Djagras de barbas brancas acariciavam debaixo dos venerandos Bissilon, nas margens da lagoa de Cufade, onde os nenúfares explodiam em luxúria multicolor.
Eu sou daqueles em quem permanecem, gravadas a fogo, as imorredouras imagens em que se agigantam, como emblemáticas, a dança dos flamingos cor de rosa nas margens silenciosas dos rios de maré e o recorte das bajudas semi-nuas balançando, com graça e altivez, os chalavares dos camarões, nos indescritíveis poentes rubros das bolanhas do chão sagrado.
Eu sou daqueles onde permanecem, também, sacramentados, o cheiro seco do mato após as queimadas, o odor desagradável dos pântanos e das bolanhas, a dor dos olhos cansados pelo sol do meio dia, o buque-buque enigmático dos tantãs guerreiros durante a noite, o ondular das lalas verdejantes, a arte dos Nalus, o brio das mancanhas e o porte dos homens grandes ornados com a dignidade dos barfacon.
Eu sou, portanto daqueles que dormiram, primeiro, nas valas e nos abrigos e depois numa tabanca, deitados numa maca de campanha inglesa, com um cantil a servir de travesseira e que perderam a conta, por não terem máquina calculadora, ao número das morteiradas 120, das canhoadas sem recuo supersónico, e dos foguetões Strella, ou SAM 3 com seis buracos de propulsão, que sobrevoaram aquele chão com o nosso nome etiquetado como destino.
E eu que sou da Tabanca de Gadamael e que servi às ordens de Tomás Camará e de Adriano Sisseco, venho bater, agora, à porta da Tabanca Grande da camaradagem, ansiando por um abrigo e para que possam partir comigo a castanha de cola de tantas e tão marcantes recordações.
Um grande abraço.
Luís Jales
Morada : Rua Comendador Alfredo Alvares de Carvalho
4880 Mondim de Basto
Telm : 966495651
Tel. Casa : 255.382011
Tel. Serviço : 255.389300 – 255.389304
luisoliveira@cm-mondimdebasto.pt
luis.jales.oliveira@gmail.com
2. Comentário de CV
Caro Luís Jales
Bem-vindo à nossa Tabanca Grande, onde não é preciso pedir licença para entrar.
A porta está sempre aberta para algum camarada que se nos queira juntar ou amigo da Guiné-Bissau, que por gostar, de algum modo, da terra onde passámos dois dos mais árduos anos da nossa vida, é também nosso amigo.
Por muito que tenhamos sofrido, aquela terra marcou-nos definitivamente, para o bem e para o mal, e com isso viveremos até ao fim dos nossos dias.
Fica combinado que a partir de hoje deixarás essa coisa horrível, entre camaradas, que é o excelentíssimos disto e daquilo. Os verdadeiros camaradas, independentemente dos postos que tiveram, tratam-se por tu.
Acomoda-te, prepara as tuas estórias e as tuas fotografias e conta-nos aquilo que tens guardado em papel ou na memória do tempo, para aumentares o nosso espólio.
A nós, Tertulianos do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, não vão acusar de deixar esquecer o passado duma geração que viveu uma guerra esforçada. Aos nossos filhos e netos deixaremos um legado histórico contado pelos intervenientes.
Na nossa página, do lado esquerdo, poderás consultar as nossas dez normas de conduta, que são afinal, preceitos de gente civilizada que se respeita e tolera ideias diferentes.
Deixo-te um abraço de boas vindas em nome de toda a Tabanca.
CV
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
4 comentários:
Bela descrição dos sentimentos, das paisagens, da fauna e flora, das gentes, dos ambientes, dúvidas, angústias, alegrias, medos, enfim de quase tudo o que nos envolveu.
Hélder Sousa
Caro Luís,
Escrevo, apenas para te dizer que poucos de nós em tão poucas linhas conseguiriam dizer o que foram os nossos dois anos lá passados.
Um abraço,
vb
Parabéns ao Luís Jales por traduzir em palavras o que nos vai no coração.
Henrique Matos
Olá Luís Jales, novo tertuliano, és bem vindo daí das terras verdes de Mondim de Basto, onde tudo é bom....até o verde!
Quase vizinho teu, sou de mais abaixo de Felgueiras, aqui te trago o meu apreço pelo testemunho vivo, rico e bem colorido que nos deste sobre a Guiné que nos calhou na rifa...
Só quem por lá andou, te entende.
Um grande e amigo abraço
Joaquim Mendes Gomes
Enviar um comentário