domingo, 8 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4000: Blogoterapia (94): Que faço eu no meio disto tudo? (José Teixeira)

1. Em mensagem do dia 5 de Março de 2009, recebemos este trabalho do nosso camarada José Teixeira(1), pacifista convicto e militante, que na Guiné se recusava a transportar a G3, por achar que a sua arma era o equipamento de saúde inerente à sua função de Enfermeiro:

O Magalhães Ribeiro, num comentário ao poste 3985(2) escrito pelo Joseph Belo, levanta uma questão sobre onde e quando houve descarga de napalm na Guiné.
Socorrendo-me do meu diário reproduzo o que escrevi em 16 de Janeiro de 1969 sobre um ataque a um lugar, que pela direcção, nos pareceu ser Gadamael.
Mais tarde soube que foi em Nhacobá e o ano passado tive oportunidade de confirmar com o Rocha em Guiledge que efectivamente foi em Nhacobá, à data sem população (?) e se tratou de Napalm. Creio que o Rocha foi um dos que comandou o grupo de reconhecimento ao local e poderá testemunhar.

Eu, na Chamarra fui testemunha auditiva. A história dos acontecimentos tal como a escrevo, resultou do que ouvi nos dias seguintes.
Com isto que estou a escrever, não pretendo de modo algum culpabilizar seja quem for, muito menos os camaradas da FA que apenas cumpriam ordens superiores. Responderei apenas o que ouvi o ano passado e já em 2005 da boca de antigos guerrilheiros sobre os seus ataques às povoações onde se encontravam, inclusivé, seus familiares - "Tissera! guerra é guerra, mas kaba manga di tempo".

Janeiro 1969/Chamarra/16
Gadamael foi teatro de uma das maiores lutas no Ultramar entre a Força Aérea e o IN. O resultado, pelo que dizem demonstra bem o poder da aviação e sobretudo mostra que os homens se matam sem compaixão e mesmo neste caso em que as nossas forças lutam para manter a ordem não há homem, creio eu, que não sinta o coração sangrando, quando vê o inimigo a sofrer, numa luta desigual.

Gadamael estava a ser atacada como nunca qualquer outra população da Guiné. Muitos homens, com as melhores armas, algumas utilizadas pela primeira vez. Atacavam de longe ao ponto de os colegas de Gadamael pensarem que o ataque se dirigia a um sítio de ninguém, daí pediram à FA para bater a zona.

Quando os Fiat sobrevoaram o IN foram metralhados por uma quádrupla anti-aérea. Deixaram 200 kg da sua carga mortífera e foram buscar mais. Os bombardeiros T6 apareceram também e durante duas horas foi um descarregar de bombas. Nós só víamos os aviões à distância e ouvíamos o estrondo dos rebentamentos, mas calculamos que tenha sido uma luta terrível, tal a quantidade de sakalata que estourou. Eu imagino o chão juncado de cadáveres, regado com o sangue dos mortos e feridos, imagino os gritos lancinantes dos feridos ao verem a vida a fugir-lhe. Parece-me que estou a ver os que ficaram ilesos carregar os mortos.

Dentro de mim há uma confusão tremenda. A paz consegue-se fazendo a guerra, impondo-a até certo ponto através das armas que matam. É certo que aqueles queriam fazer guerra, estavam a atacar uma população que quer a paz, que quer ir para o seu trabalho na Bolanha sem arma, sem medo que alguém lhe surja no caminho com intenções assassinas. Uma população que quer viver na sua Tabanca despreocupada, sem precisar de correr a toda a hora para um abrigo e dormir debaixo de terra para não ser surpreendida, uma população que quer viver sem precisar de matar, mas haverá homens com coração de pedra que não sinta tanta morte, homens que foram levados talvez à força ou com uma dose maior de vinho de palma, como consta que acontece muita vez...

Dizem-nos que temos de fazer a guerra para impôr a paz, que aqueles que morreram e os que ainda estão vivos, são um perigo para a sociedade guinense. Eu e os meus camaradas, tantos outros, já sofremos muito por sua causa. Arriscamos a nossa vida a todo o momento por causa dessas mãos assassinas, cujo prazer é matar. Um prazer cego ao ponto de verem os seus camaradas morrerem às dúzias e continuarem a luta. Será prazer, ou será a convicção da sua razão que os faz lutar?

Porque é que estes homens querem a guerra, quando podiam viver em paz, do seu trabalho, na sua Tabanca, no seu lar com os seus filhos?

Que os faz lutar?

Que faço eu no meio disto tudo?

Zé Teixeira


(*) Ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70.
__________

Notas de CV:

(1) Vd. poste de 3 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3975: Sr. jornalista da Visão, nós todos somos combatentes, não assassinos (12): José Teixeira, ex-1.º Cabo Enf da CCAÇ 2381

(2) Vd. poste de 5 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3985: De Estocolmo com amizade: Joseph Belo (3): Por que não fui desertor

Vd. último poste da série de 3 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3972: Blogoterapia (93): O que é difícil é ficar calado (José Brás)

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Amigo,
O que fazes tu no meio disto tudo?
Fazes o que deves fazer.
Revives, na tua memória, o que foram todos estes anos.
Fixas o que é (foi) realmente importante.
O resto, coisas que andam por aí e que te incomodam, quer se trata de injustiças, fanfarronices, esquecimentos, ou coisas piores, tenta ignorar.
Não ligues.
Não ocupes espaço e tempo com coisas que não têm valor.
A tua obra é suficiente para ocupar o teu tempo de memórias.
Faz isso.
A Primavera, vai chegar um dia destes e isso também ajuda.

Um Abraço
Manuel Amaro

Anónimo disse...

Sinceros gritos de alma que acabam sempre por ecoar nas escuridoes!Sao Camaradas como o Zé Teixeira,de uma Companhia chamada "Os Maiorais",que nos bons e maus momentos,me fez,e me faz hoje a tao grandes distancias no tempo e no espaco,sentir orgulho do nosso humilde Pelotao de Mampatá! Estocolmo 9/3/09 José Belo.

Luígi disse...

Temos que reportar a pergunta do Zé,"Que faço eu no meio disto tudo?" ao próprio dia em que ele a formulou, para melhor a compreender e interpretar, ou seja, essa pergunta, julgo eu, terá sido posta numa situação ou noutra, por muitos de nós, porque na verdade, estamos muito mais esclarecidos hoje do que então...