quarta-feira, 11 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4013: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (V): Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)

(Continuação da publicação do Diário de Guerra, de Cristovão Aguiar)
Lisboa, 17 de Abril 1965

Sábado de Aleluia

Com repiques ao contrário den­tro de mim. Acabei de embar­car com a minha Companhia Independente de Caça­dores número oitocentos. Vamos com destino marcado para a Guiné. O "Ana Ma­falda" vai cheio de carne para canhão e ainda se encontra atracado no Cais da Ro­cha.
São três as companhias de caçadores e parte de uma de coman­dos e serviços de um batalhão. No salão de primeira classe, há pouco, houve discursos e vinho do Porto e uísque e sal­gadinhos.
Uma falta de respeito. Mal acabou a cerimónia, en­fiei-me no meu ca­ma­rote de primeira, pois en­tão! Morra Marta, mas morra farta! Estou para aqui so­zi­nho, la­vado em lágrimas, en­quanto os outros oficiais meus ca­ma­radas, talvez mais corajosos, se en­contram na amu­rada do navio nos últimos acenos de despedida. Puta de Pátria a minha!

Já fora Barra do Tejo, no mesmo dia, à noite

BARCO DE ESPERANÇA

Fizeste um barco de esperança e partiste
Ao longo de um mar verde de ternura.
Ficou no cais ainda o eco triste
Do mar acalentando a aventura...

Geme agora o mar contra a noite escura,
Num beijo sincopado de segredo...
E a alma num alentejo de secura
Cai de joelhos tran­sida de medo.

Medo da longa noite onde me canso,
Comprida noite onde nunca há descanso,
Nem estrela, nem barco ou gaivota...

E o mar que nos meus olhos cabia inteiro,
É agora um soluço de guerreiro,
Caindo em duas lágrimas de derrota.

18 de Abril

Mar e céu

neste Domingo de Páscoa triste, cele­brada com amêndoas amargas que nos serviram à sobremesa do almoço para que hou­vesse sabor a festa. O navio não dá um balanço sequer. No porão, os soldados jo­gam às car­tas e fazem algazarra. Ouço-os do deque de primeira. À mesa, o capitão só diz as­neiras com ar compenetrado e sábio.

22 de Abril

Véspera de chegada
.

Ainda se não adivinha terra nem rumor dela. Após a última refeição, passeio no deque, obstinada­mente, como um burro à roda da nora. Houve mudança súbita de ventos, o que fez com que logo cor­resse o boato de que estaríamos mudando de rumo.
Ainda se não perdeu a crença num súbito milagre que nos leve à Ilha do Sal, nosso primordial destino! Só assim, so­n­han­do, se aguenta esta patriótica estopada.


23 de Abril

Bissau

Evola-se desta terra avermelhada e ressequida um bafor que se transmite ao corpo e o faz destilar rios de suor. Logo após o de­sem­bar­que e com as tropas já aquarteladas na Amura, fomo-nos apresentar ao co­mando mili­tar. Desconhe­cia pura e simplesmente a nossa existência. Que não nos des­tiná­vamos a esta guerra, mas à da Ilha do Sal − foi-nos dito na secre­taria, antes de apresentarmos cumprimentos ao comandante.
Ainda olhámos uns para os outros com um pequeno clarão nos olhos, mas depressa nos desiludiu SEXA, refastelado no seu gabinete, com ar condicionado, onde pouco depois en­trámos, perfilados. Ti­nha na verdade havido um pequeno deslize de informação, mas iria ser ime­diata­men­te remediado. Ficaríamos, para compensar, à or­dem do comando-chefe. Uma honra para a nossa com­panhia, que tinha vindo da me­trópole para defender este tão pátrio chão.

26 Abril

Carreira de tiro

Fomos todos para a carreira de tiro treinar a ponta­ria e experimentar pela primeira vez as espingardas G3, que se utilizam nesta guerra. Nos cur­sos de preparação, em Mafra, Tavira e Santarém ainda se treina o pessoal com a Mauser da última guerra mundial. Que se divide em dez partes, a saber: cano com es­trias, coronha, gatilho, guarda-mato, etcetra e tal.

29 de Abril

Ordem unida na Amura

Houve tentativa de levantamento de rancho na nossa companhia. Como ninguém se tivesse acusado como cabecilha da frustra­da rebelião, o capitão, furioso por não ter bode expiatório, deu como castigo aos três pelotões ope­ra­cio­nais, neles incluindo cozinheiros e outras especialidades não béli­cas, oito horas se­guidas de ordem unida, entremeada com passo de cor­rida.
Para que não hou­vesse que­bra de ritmo nem de suor, ordenou que os quatro alferes des­sem, à vez e na ordem in­versa da sua antiguidade, duas horas de in­s­trução cada um. Ainda se acre­dita pia­mente, na tropa, que a ordem unida é a mãe de todas as virtu­des mili­tares, sobretudo da disci­plina.
No quartel da Amura, os velhos de caqui amarelo, que aguardam em­bar­que de regresso após dois anos de comissão, olharam para nós, maçaricos, vesti­dos de verde-bilioso-vomitado, como se pertencêssemos a outra ga­lá­xia.

5 de Maio

Primeiras baixas, nos arredores de Bissau
,

O nosso capitão e o seu guarda-costas foram feridos numa operação-treino nos arredores de Bissau. Foram ambos transportados de ur­gên­cia, de helicóptero, para o hospital militar. O primeiro, com estilhaços fin­ca­dos por todo o corpo; o último, sem as duas pernas dos joelhos para baixo e com as tri­pas de fora e sujas de terra. Como oficial mais antigo, tomei o co­mando da com­pa­nhia.


8 de Maio

Em Bissau, como Cmdt da CCaç 800

Recebi um rádio do gabinete do comando-chefe, anun­ciando a transferência para a metrópole do capitão e do seu soldado guarda-costas. Es­tou fragilizado e com muito medo. Não nasci para comandar tropas.
Para me sen­tir mais aconchegado e protegido no meio de toda esta engrenagem de inse­gurança e de morte pressentida, escrevi uma longa carta a meu tio Fran­cisco, que mal conheço, de­vido às zangas fraternais entre ele e meu Pai que se estenderam du­rante quase toda a minha vida. Agora estão de bem um com o outro. Fizeram as pa­zes há cerca de dois meses, após meu tio ter frequentado, durante três dias, um Curso de Cris­tan­dade na Ilha, na estância termal do vale das Furnas.
Soube-me bem acolher-me ao robusto tronco fami­liar, durante as duas breves horas de escrita epistolar, regada a lágrimas sa­borosas. Pressinto a morte, muito perto, rondando-me os gestos, as pa­la­vras e os pas­sos.


10 de Maio de 1965

No HM 241

Hospital Militar de Bissau, para uma pequena in­ter­venção cirúrgica. Circuncisão, isto é, um corte no freio, que tinha dificuldade em arregaçar.
Se tivesse nascido judeu, ter-me-ia poupado ao incómodo nesta idade de quase um quarto de século. Saí do hospital pouco depois e vim para o quartel da Amura, sem sequer sentir necessidade de me ir recostar na tarimba. Fui antes para o bar dessedentar-me e dar umas boas tragaças, que o cigarro tem sido para mim um ex­celente camarada de armas...

24 de Maio de 1965

Bambadinca

Veio a companhia por aí a cima, sob o meu co­mando, escoltada por outras tropas e por brigadas especializadas na de­tecção e le­van­tamento de minas e armadilhas, atravessando terra-de-ninguém de Man­soa até aqui, em não sei quantas viaturas, abarrotando de tudo quanto é ne­ces­sário para ins­talar uma companhia operacional no mato, desde tarimbas de ferro até tachos e pa­nelas, pas­sando por móveis para a secretaria, que, na guerra, a papelada tem grande impor­tân­cia. Chamam-lhe mesmo a guerra dos papéis, por vezes ainda mais renhida do que a sua irmã colaça.
Chegámos à margem esquerda do rio Geba, es­tava um capitão, Ga­briel Tei­xeira de sua graça, com duas secções à nossa es­pera. Pertencem ao batalhão ao qual vamos ficar logisticamente ad­s­tritos, uma vez que, operacional­mente, conti­nuamos à ordem do comando-chefe.
Ainda temos, porém, de atravessar tudo de jan­gada para a outra mar­gem, incluindo as viaturas, a fim de seguirmos para Bafatá e de­pois para Con­tu­boel, nosso des­tino. O rio Geba está su­jeito ao regime das marés, nesta altura vivas, aqui chamadas macaréu, de forma que vamos demorar muito tempo até nos passar­mos to­dos para o lado de lá.

Bambadinca, 25 de Maio de 1965

A TUA AUSÊNCIA


A tua ausência
É este estar nu por dentro,
E ter um rosto velho
Gretado de suor
Do sol dos prados
E das manhãs
Que nunca tive...

Em cada segundo te habito
Como a loira canção das abelhas
O indomável cio
Das flores abrindo-se
Loucas de tesão...
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Notas:

1. Destaques da responsabilidade de vb

2. Último artigo do "Diário de Guerra", do Cristóvão de Aguiar em

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