terça-feira, 26 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4415: (Ex)citações (29): A Guiné que todos temos um pouco na alma (João Lourenço)

1. Mensagem de João Lourenço (*), ex-Alf Mil do PINT 9288, Cufar, 1973/74, com data de 24 de Maio de 2009:

Assunto: P4393 (**)

Li o artigo enviado pelo nosso companheiro Eduardo Alves, sobre a visita que fez à Guiné-Bissau....

Ao contrário de alguns, nada me choca na mensagem que o nativo de Pirada fez passar, ao dizer: - "Sim é a Guiné Portuguesa"... Eles são seres pensantes, podem não ter instrução nos nossos moldes, mas a cor da pele não lhes retira a capacidade de pensar, temos caucasianos que se esquecem mais fácilmente do que é importante para as pessoas... são vulgarmente conhecidos por políticos profissionais... não se lhes conhece emprego... só o de político...

Mas ainda a propósito deste encontro, relato um pequeno episódio, tenho mais, acontecido na Guiné no pós 25/04/1974.

Fiquei de conserva até 5/10/1974, dia em que me virei para o Cap. Clemente e disse:

- Tou farto desta m... vou-me embora. Comprei um bilhete de ida na TAP com o meu dinheiro e dei de frosques com uma guia passada à pressa no BIG.

Assim e entre muitas deslocações que fiz, esta é a parte interessante, estive em Farim a fazer a liquidatária. A dada altura um soldado do PAIGC veio cumprimentar-me, vinha fardado com o que restava de um camuflado nosso, chamou-me pelo meu posto e nome, tinha desertado havia uns meses do BIG ou de Cufar, não me lembro ao certo, e apresentou-me seu Comandante e legitimo representante do Povo da Guiné-Bissau... tudo bem, estávamos em paz. Dirigiu-se a mim com pose militar e disse-me:

- Coment sa vá?... Bien?

Fiquei siderado..., falo algum francês, melhor do que escrevo, e daí em diante foi a língua possível entre nós, porque nem crioulo falava. Penso que este episódio se encaixa na verdade escondida do que era e ainda é hoje a pobre Guiné-Bissau, de que todos nós trouxemos um pouco na alma.

Até dia 20.
Um abraço e publica o que achares interessante deste meu contributo para o blogue.
João Lourenço
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4377: Tabanca Grande (145): João Lourenço, ex-Alf Mil do PINT 9288 (Cufar, 1973/74)

(**) Vd. poste de 21 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4393: Tabanca Grande (146): Eduardo Alves, ex-Soldado Condutor Auto da CART 6250 (Mampatá, 1972/74)

Vd. último poste de 20 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4389: (Ex)citações (28): Ah! Grande Lourenço ou… confessando os nossos pecadilhos de Cufar 1973/74 (António Graça Abreu)

3 comentários:

Luís Graça disse...

Meu caro João:

Se há um mérito que não podemos negar ou regatear ao PAIGC (e, em última análise, ao seu fundador, estratego e líder histórico, Amílcar Cabral), foi o de fazer do crioulo o "latim" da Guiné-Bissau... Num mosaico de mais de três dezenas de grupos étnico-linguísticos, o crioulo é, tem sido, o elemento orgânico da identidade (ou do reforço da identidade) dos guineenses...

Infelizmente, o crioulo da Guiné está mais "atrasado" como objecto de investigação científica e de ciação literária do que o crioulo de Cabo Verde...

O crioulo é uma invenção extraordinária dos povos para se entenderem, comunicarem entre si, comerciarem, negociarem, fazerem a paz e a guerra...

É uma invenção dos portugueses e africanos da costa ocidental, a Senegâmbia, que era desde o Séc. XV um vasto território muito superior ao actual território da Guiné-Bissau...

O cerco do francês e dos interesses dos franceses não é de hoje, é de ontem, da época da expansão colonial europeia...

Não me espanta que alguns dirigentes e muitos militantes do PAIGC (sobretudo fulas e mandingas) falassem melhor o francês que o português, ou que não falassem de todo o português... Mesmo figuras de Estado de hoje, não falam (ou não falavam) o português.... Caso do malografo Tagma Na Waie, Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas,morto este ano...

Por razões que se prendem com a mobilidade espacial, as trocas comerciais (papel dos gilas, os comerciantes ambulantes, futa-fulas), a artificialidade das fronteiras impostas pelas potências coloniais, o apoio do Senegal e da Guiné-Conacri à luta do PAIGC, etc., havia e continua a haver muitos francófonos...

De resto, a política cultural da francofonia tem sido, nestes últimos 35 anos de independència, muito mais agressiva e inteligente do que a da lusofonia... Basta comparar o papel e os recursos dos 2 centros culturais, o francês e o português, que coexistem em Bissau...

Segundo as estatíticas, apenas 5% dos guineenses têm o português como língua materna... Isto disto tudo, ou diz muito, sobre a nossa presença histórica na Guiné... O nosso próprio ressente-se da fraca participação dos guineenses, devido não só mas também à falta e literacia em português, e à inexisténcia do crioulo escrito...

Anónimo disse...

Já no poste P2940 eu dizia o seguinte:
“Outro facto de que me recordo perfeitamente, pela espanto que me provocou, foi que, ao contactar com vários dos guerrilheiros do P.A.I.G.C., que faziam parte da guarda de honra nesse dia, verifiquei que um grande número deles não entendiam nada de português, e nada ou quase nada de crioulo.
Só entendiam e falavam francês!
De onde são vocês? - perguntei eu.
- Somos da Guiné Conakry!
Afinal, após quase cinco meses sobre o 25 de Abril, onde estavam as forças do P.A.I.G.C.?”
Este testemunho do João Lourenço vem reforçar a minha velha tese, de que o PAICGC poucos nacionais da Guiné teria nas suas fileiras em 1974 devido, fundamentalmente, às grandes importantes perdas, que sofreu em Guileje e Guidage, no decorrer do ano de 1973.
Mais creio que em 1974, o seu número de homens devia estar de tal modo reduzido que, para cumprir o abandalhado e apressado plano de evacuação de tropas portuguesas, com alguma dignidade e aparato, teve que recorrer ao “empréstimo”, pelo menos, de tropas da Guiné-Conakry.
Até que haja alguém que me prove o contrário.
Magalhães Ribeiro

Unknown disse...

Depois destas duas belas dissertações do LG e do MR, queria apontar uma coisita.
Qual foi o milagre que aconteceu para nos conseguirmos entender com os naturais ? Eu tive 4 soldados africanos de duas etnias, no meu pelotão. Pois todos nós entendíamos. Foram meus cicerones. E guias. Tinha absoluta confiança neles. Uma razão apenas. A nossa tentativa sempre de compreendermos o que nos rodeia e nos adaptarmos. Ainda hoje, quando algum estrangeiro em visita nos faz uma pergunta, não é que conseguimos saber o que ele quer e tudo fazemos para o orientarmos ? Mesmo que não saibamos uma palavra do idioma dele. Português é assim mesmo.