1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 25 de Maio de 2009:
Olá Carlos,
Em anexo encontrarás a continuação da minha experiência militar.
Como sempre deixo-te à vontade para fazeres com ela o que muito bem de aprouver.
Um abraço do
José Câmara
Memórias e histórias minhas
2 - O IAO em Santa Margarida
Três apitos! Saudação tradicional de despedida dos barcos que aproavam à Ilha das Flores. A âncora começou a subir na proa do n/m Ponta Delgada. Extremeci. O coração apertou… de ternura! Por uma lágrima que quisera saborear. Comigo, bem escondido no meu coração, levava uma linda recordação.
Olhei a minha ilha uma vez mais. Relutantemente, as costas lhe fui virando…
Um aspecto da linda ilha das Flores, Açores
Juntei-me aos outros camaradas oriundos das ilhas das Flores e Corvo que, tal como eu, estavam mobilizados, e íam juntar-se às suas Companhias, incluindo a CCaç 3327. Na chegada à Terceira, um piquete militar esperava por nós. Guias de marcha em ordem, passagens confirmadas. De repente, sem esperar, o som inconfundível de calcanhares à posição de sentido. O Aspirante de serviço, com a dignidade própria de um camarada de armas, estendeu a mão num cumprimento, desejou-nos boa sorte. Jamais esqueci esse gesto simples, mas cheio de um sigificado muito especial. Afinal eramos todos irmãos.
Ao largo, majestosamente boiando na baía de Angra, o luxuoso paquete Funchal esperava por nós. Esse navio, no seu giro tradicional, passaria pela Horta, Ponta Delgada, Funchal e Lisboa. Aqui, em perfeito contraste com o que se tinha passado na Terceira, não havia piquete, estafeta ou qualquer outro tipo de apoio militar. De malas às costas lá segui com os outros militares que me acompanhavam para o Depósito Geral de Adidos. Ali deparei com outro desastre, ou melhor, com uma afronta: não sabiam da chegada dos militares, mas sabiam que íamos para Santa Margarida no dia seguinte. Desenrasquem-se, foi a palavra de ordem. Foi isso que se fez, até à hora de tomar o combóio, no dia seguinte para Santa Margarida.
12/1970 – José Câmara a bordo do n/m Funchal, em frente à cidade com o mesmo nome, a caminho do IAO
A chegada àquele campo militar trouxe um pouco de comoção. Os meus camaradas desdobravam-se a contarem as suas experiências do IAO. Porém, não foi o retrato da instrução o que mais mexeu comigo. A grande notícia no campo militar era a deserção de três oficiais mobilizados para a Guiné. O madeirense Gonçalves, Aspirante a Oficial Miliciano, Comandante do 3.º GComb da CCaç 3327, era um dos oficiais desertores. Servi, ainda na Terceira, durante algum tempo debaixo do seu comando. Considerava-o um bom oficial, e nunca pensei ser capaz (e desejoso) de dar o salto. Enganei-me! A atitude daquele oficial trouxe-me a certeza de uma outra realidade: eu nunca seria capaz de abandonar os meus soldados, que treinei e que confiavam em mim para os guiar em terras da Guiné.
O IAO não teve, em mim, quaisquer proveitos práticos. Porque cheguei mais tarde, e porque no pouco tempo que estive em Santa Margarida, não me apercebi de nada ser diferente daquilo que já se fazia no Monte Brasil, Ilha Terceira. Os exercícios com o apoio de helicópteros foi a novidade programada mas, até isso, foi cancelado. Passavamos o tempo em exercícios de ginástica e ordem unida, treinos de penetração, progressão, patrulhamentos, emboscadas, e pouco mais. O mais importante, para mim, foi a manutenção do poder físico e da disciplina militar. Foi num desses exercícios que conheci o distinto e prestigiado coronel Maçanita, Comandante do campo militar. Observou o meu Grupo durante algum alguns exercícios, fez alguns comentários, desejou-nos sorte e prosseguiu a sua vistoria.
12/1970 – José Câmara no IAO, Santa Margarida
Mas nem tudo foi monótono no IAO. Três eventos muito importantes marcaram a minha estadia em Santa Margarida: a visita ao Santuário de Fátima, as festas de Natal e Ano Novo, e o festival da Batatada entre açorianos e madeirenses.
A visita que a Companhia fez ao Santuário de Fátima, foi o evento mais importante do IAO. Para os açorianos, profundamente religiosos, essa visita acabou por ser uma autêntica peregrinação de fé cristã. A magnitude do lugar, o silêncio, o simbolismo e as manifestações de fé que constantemente se podem observar são deveras impressionantes. Nesta visita ao Santuário, com cerca de quatro contos que conseguimos juntar entre os militares da Companhia, foi adequirida e abençoada uma linda imagem do Sagrado Coração de Maria, que nos acompanhou e protegeu durante toda a comissão. Hoje, a imagem, como muitas outras imagens que fizeram comissão no ultramar, faz parte do espólio religioso da igreja de São João Batptista, que se encontra edificada no Castelo, em Angra do Heroísmo.
Outro evento importante, para nós açorianos, foi a celebração do Natal de 1970 e a passagem de ano em terras de Santa Margarida. Para muitos soldados açorianos foi a primeira vez que o fizeram longe do aconchego familiar. Foi um Natal passado com saudades, tristeza e resignação. Para mim era a segunda vez que me acontecia. Mas tive uma consolação: voluntáriamente, estive de serviço contítuo à Companhia, permitindo, assim, que os meus camaradas continentais pudessem disfrutar, mais uma vez, do calor familiar, e das alegrias próprias que embelezam a época de Natal. Nunca me arrependi de o ter feito. A minha família, naquele momento, eram os militares da CCaç 3327.
Natal 1970 – Caserna da CCaç 3327 - Armas ensarilhadas e imaginação. José Câmara junto da árvore de Natal
Natal 1970 – José Câmara (Em pé – Primeiro da direita) – CCaç 3327 - A minha família
As Companhias em exercícios de IAO eram as CCaç 3325, do BII19, Funchal e as açorianas 3326, que foi para Mampatá, a 3327 (a minha) que ficou, no príncipio, em Bissau e a 3328 que foi para Bula. Com as férias de mobilização dos graduados continentais, essas Companhias ficaram decapitadas pela ausência de commandos a todos os níveis. Apenas sargentos de dia se encontravam presentes. As relações entre açorianos e madeirenses, que usufruiam do mesmo refeitório, começaram a azedar com a recusa dos madeirenses em descascar as suas batatas.
Pelo facto de ser açoriano, julgo eu, a minha ajuda foi solicitada, para ajudar a resolver o problema das batatas, ou melhor, da recusa pelos militares madeirenses em descascar as suas batatas. Em voz bem alta, e para que não houvesse dúvidas, dei ordem para que as batatas descascadas e por descascar fossem depositadas no mesmo caldeiro, cozidas e servidas ao jantar. Seguidamente, e com os sargentos de dia das outras Companhias, saí do refeitório, e fechei a porta. Nunca soube o que se passou a seguir. Ao jantar as batatas foram servidas descascadas, havia sorrisos, e, por incrível que pareça, vi açorianos e madeirenses sentados na mesma mesa. Tenho que confessar: o Sagrado Coração de Maria tinha feito o seu primeiro milagre: tinha tornado uma ordem muito perigosa em remédio santo. Julgo que Lhe agradeci
No príncipio do mês de Janeiro o frio começou a apertar, e apareceram os primeiros flocos de neve. Os exercícios de IAO cessaram e, começamos a contagem dos dias para a partida para a Guiné. Soubemos que o embarque estava marcado para o dia 5 de Janeiro de 1971. Por razões que desconheço só veio a acontecer no dia 21 de Janeiro de 1971.
Entretanto, mais uma surpresa me estava reservada. Fui nomeado, conjuntamente com o Aspirante Francisco João Magalhães, para fazer a vistoria do barco que nos levaria à Guiné. No dia da minha partida para Lisboa o Comandante da Companhia, Cap. Mil. Rogério Rebocho Alves, chamou-me ao seu gabinete, e mandou-me por as divisas de Furriel. Excusado será dizer que, ainda hoje, o braço direito me doi de responder a tanta pala feita com a mão esquerda: o gozo normal, nestas circunstâncias, dos meus camaradas. Porém, quando em frente do espelho as vi nos meus ombros, aquilo que podia ter sido um sentimento de honra e orgulho, foi substituído pelo peso acrescido das responsabilidades que se advinhavam: comandar tropas no teatro de guerra: a Guiné!
A 19 de Janeiro eu deixava Santa Margarida com destino a Lisboa no cumprimento da minha missão: vistoriar as acomodações do n/m Angra do Heroísmo, da Empresa Insulana de Navegação, que iria fazer, segundo se dizia, a sua viagem inaugural como navio transporte de tropas. O resto da Companhia chegaria a Lisboa dois dias depois.
NAVIO ANGRA DO HEROISMO
Tipo... Navio de passageiros de 1 hélice
Construtor... Deutsche Werft A.G. (construção número 690)
Local construção... Hamburgo
Ano de construção... 1954-55
Ano de abate... 1974
Porto de registo... Lisboa
Número de registo... I 358
Indicativo de chamada... C S B P
Comprimento ff... 152,71 m
Comprimento pp... 138,34 m
Boca... 19,87 m
Pontal... 11,00 m
Calado máximo... 8,71 m
Capacidade de carga... 4 porões com capacidade para 9.019 m3 de carga, incluíndo 536 m3 de carga frigorífica
Tonelagem... 10.187 TAB, 6.230 TAL, 6.870 TPB, 13.900 T deslocamento
Aparelho propulsor... Um grupo de turbinas a vapor AEG, construídas em Berlim Ocidental, por Allgemeine Electric Gesellschft, 2 caldeiras.
Potência... 11.500 shp a 119 r.p.m.
Velocidade máxima... 19 nós
Velocidade normal... 18 nós
Classificação... +100A1 LRS
Passageiros... Alojamentos para 80 em primeira classe, 43 em turistica A, 80 turistica B e 120 em turistica C, no total de 323 passageiros.
Tripulantes... 139
Photo and Copyright Carlos Russo Belohttp://navios.no.sapo.pt/angrah.html
O resto da Companhia chegaria a Lisboa dois dias depois.
José Câmara
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Nota de CV:
Vd. primeiro poste da série de 16 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4353: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (1): O início do Serviço Militar
Em tempo:
Poste rectificado em 29 de Maio por ter sido publicado originalmente com parte do texto suprimido.
As minhas desculpas ao José da Câmara
CV
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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