1. Mensagem de Amílcar Ventura, ex-Fur Mil Mec da 1ª CCAV/BCAV 8323, Bajocunda, 1973/74, com data de 26 de Julho de 2009:
O meu eterno Amigo Mulai Baldé
Camaradas,
Hoje venho-vos falar do meu Grande Amigo Mulai Baldé.
Tive muitos amigos na Guiné, mas um foi diferente de todos os outros, muito especial e jamais, em dias da minha vida, esquecerei.
Quando cheguei a Bajocunda constatei que na nossa messe de Sargentos, haviam dois putos que nos serviam há mesa.
Ainda andavam na escola mas à hora dos almoços e jantares lá estavam eles a servir-nos.
Foram os meus primeiros amiguinhos, pois no fim de cada mês eu dava-lhes um “xis” pela sua ajuda “faxineira”, só que esse meu “xis” era o dobro do dos outros e acabei por cair nas boas graças dos putos.
O Mulai é o que está à direita.
Enquanto os “malandrecos” dos meus camaradas da companhia só queriam Bajudas, para lavadeiras, eu travei muita amizade com uma já mais “velhota”, que era mãe do meu Amigo Mulai, não olhando ao “aspecto” da “figura” humana pois eu sempre tive, como tenho agora, um grande respeito por toda a gente que me rodeia, especialmente o ser: “Mulher”.
Como eu era mecânico, essa minha lavadeira estava-me sempre a pedir petróleo para as suas lamparinas, que eram a única forma de iluminação naquelas bandas.A minha missão decorria normalmente, até que um dia acabei por descobrir que o comerciante local, que vendia o petróleo aos civis, chamado Silva, explorava a população na sua venda.
Não vou perder o meu, e o vosso rico tempo, a falar deste “comerciante” natural de Braga, pois teria muita coisa a dizer, até porque segundo sei ele já faleceu.Dizia eu, que dei então comigo a dar petróleo a toda a tabanca ao ponto de, em alguns finais de meses, me ter visto aflito para fazer os mapas das existências em armazém.
Sempre me senti bem com esta minha faceta que, por um lado foi muito bom para mim, pois caí nas boas graças da população, não me faltando nada sem eu pedir, dando-me ovos, galinhas, carne de gazela, de cabrito, etc. Mas o mais valioso, para mim, foi o carinho com que fui tratado por toda a população, e jamais esquecerei os seus generosos e amáveis convites, para ir comer hás suas tabancas.
Conforme vim a constatar, eu que era o único branco que frequentava os seus bailes e podia andar, há noite, livre e sossegadamente pela tabanca sem ter qualquer problema, enquanto alguns dos meus camaradas (por actos que desconheço) chegaram a ser apedrejados.
Num dos meus dias de rotina descobri, surpreendentemente, que um Grande Amigo meu da tabanca, era guerrilheiro do PAIGC. Como uma das minhas assumidas qualidades é: “Amigo não traí Amigo”, guardei penosamente este segredo apenas para mim.
Mal eu sonhava, que se ainda hoje estou cá neste mundo é graças a ele, porque antes de um ataque que viemos a sofrer ao quartel, eu fui informado, por intermédio da minha lavadeira e do Mulai, que ele ia acontecer, com muito perigo para nós, pois seria executado muito perto da cerca de arame.
“Amigo não traí Amigo”, pensei eu, muito menos os meus camaradas-de-armas, pelo que meti-me numa Berliet e dei comigo a andar à volta dos nossos abrigos, a avisar o pessoal de que íamos ser atacados. A certo momento, quando complementava essa volta, um guerrilheiro do PAIGC, apontou-me um lança-granadas RPG7 e estava prestes a atingir-me com uma das suas mortíferas granadas. A minha sorte foi esse meu Amigo, que viu quem estava dentro da Berliet, e não permitiu que o seu camarada lançasse a terrível granada, cujo disparo esteve eminente, pois vi bem a orientação do tubo e o seu dedo sobre o gatilho da sua arma.
O guerrilheiro do PAIGC (carregador de granadas RPG7), ao qual eu devo a vida “in extremis”, no ataque ao quartel, na situação que acabei de descrever.
Meus amigos, aqui é que vi, senti e jamais ESQUECEREI o que é o verdadeiro valor da palavra AMIZADE.
Voltando ao meu Amigo Mulai quando me vim embora chorei, por não o puder trazer comigo. Senti que tinha ali um daqueles Amigos que, rara ou indefinidamente, se encontram no decurso da nossa vida. Ainda não era casado, não sabia como seria a minha situação cá, mas tinha uma certeza é que ele teria todo o apoio da minha namorada e família, senão fosse por mais motivo nenhum, sê-lo-ia por me ter avisado atempadamente naquele inesquecível dia.
Quando abalei deixei-lhe a minha direcção para, se no futuro que se seguiu houvesse uma oportunidade, eu trá-lo-ia para Portugal.
Durante alguns anos trocamos correspondência até que as minhas cartas deixaram de ter resposta.Nem é preciso dizer-vos o quanto fiquei triste e abalado, ainda por cima sem saber o que poderia ter acontecido ao meu bom Amigo Mulai.
Mais tarde, estava eu na minha loja de fotografia, o telefone tocou e lá fui atender. Que grande e maravilhosa surpresa eu tive, pois ouvi a voz inconfundível do meu Grande Amigo Mulai, que me estava a telefonar do Patação - uma pequena localidade ao pé de Faro, a 45Kms da minha casa. A chorar de alegria disse-lhe para ele não sair de onde estava, pois ia ter com ele de imediato.
Foram os trinta e cinco minutos mais angustiantes da minha vida, enquanto não cheguei ao pé dele. Quando eu, a minha mulher e ele nos juntamos parecíamos três crianças a chorar abraçados. O tamanho da minha alegria só foi comparável ao do nascimento de mais um filho.
Daí para a frente, até à um ano atrás, nunca mais nos perdemos um do outro e, com a colaboração do meu contabilista, o Mulai ficou logo legalizado, tendo-o também ajudado a formar uma pequena empresa de construção civil em Lisboa, onde tem vários trabalhadores. Depois ele acabou por mandar vir a sua família para o nosso país.
Agora estou novamente triste e amargurado, pois vai para um ano que não sei nada dele. Já contactei a Embaixada da Guiné, em Portugal, e ainda não tive nenhuma resposta. Só espero que não lhe tenha acontecido nada de mal, visto que ele me dizia muitas vezes que queria voltar à Guiné-Bissau, para ajudar o seu país a progredir e desenvolver-se.
Estou deveras preocupado pois quando perdi o seu contacto, da primeira vez, soube que ele estudava em Bafatá, onde ele e os demais estudantes, de então, participaram numa manifestação por melhores condições de ensino e foram todos presos a mando do Nino Vieira.
Agora com o estado de instabilidade política que a Guiné atravessou, e as mortes que se sucederam nos últimos tempos, estou um bocado aflito… sem notícias dele...
Bom, a conversa já vai longa, pelo que vou-me ficar por aqui.
Deixo um abraço a todos os camaradas da Tabanca Grande e Amigos do nosso blogue,
Amílcar Ventura
Fur Mil Mec
Fotos: © Amílcar Ventura (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Este poste é o primeiro dcca série "Estórias do Amílcar Ventura".
3 comentários:
Bem, Amilcar...
cortas a respiração ao pessoal nesse teu jeito raso de contar a amizade.
também eu tive lavadeira com homem na guerrilha e nunca disse nada a ninguém.
Talvez que devesse ter sido preso por isso, contudo, que saiba,nunca vi pide em Aldeia formosa e ainda menos em Mejo, e o Furriel de informações do exército era um compincha açoriano Corisco mal-amanhado de S. Miguel a quem ninguèm tem nada a apontar.
Vê se encontras o teu amigo Mulai e dá-lhe um abraço meu
José Brás
Manuel Reis:
Caro amigo e camarada Amilcar:
Bela história nos contaste.
Estamos necessitamos dessas histórias de amor e amizade desse bom povo que, apesar de massacrado, continua a sua luta pela sobrevivência. É importante que saibam que estamos com ele.
Um abraço
Manuel Reis
Amigo e camarada Amilcar Ventura,
o teu texto é um hino à amizade!
Por causa dessas amizades, nascidas das excelentes relações pessoais que soubemos manter, com quela gente simples, sofredora e generosa, que a Guiné não nos sai do coração!
Emocionalmente, ficámos ligados para sempre à Guiné, é uma espécie de segunda Pátria! Penso que todos sentimos quando aquele povo irmão é mal tratado! gostaríamos de estar por perto para o auxiliar!
Um abraço do
JOSÉ BORREGO
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