1. Vigésimo oitavo nono da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 16 de Fevereiro de 2011:
NA KONTRA
KA KONTRA
29º EPISÓDIO
Estavam assim os dois graduados, descontraídos, quando para os lados de Padada, onde se situavam as sentinelas metidas na mata, se ouve um tiro aparentemente de arma automática.
Conforme as instruções que havia e que envolviam toda a população da tabanca, um dos militares foi percutir uma velha jante de viatura que se tinha pendurado numa árvore. Era o sinal de alarme para todos o pessoal ir para os abrigos que lhe estavam destinados. Como já havia abrigo para a população civil, aí se reuniram todas as mulheres, crianças e os poucos homens que não pertenciam à milícia. Deve aqui referir-se que a jante, neste caso, desempenhava as funções do “Grande Tambor” existente em quase todas as tabancas ou o característico tronco oco utilizado pelos balantas, maior que os utilizados nos batuques e por isso de som cavo. Todos eles eram tocados sempre que, por motivo importante, era necessário reunir toda a população.
Há dias já se tinha feito um ensaio dessa situação mas agora era a sério. Fora dos abrigos só se encontram os três graduados. Passaram-se uns minutos sem mais nada acontecer. Teria sido abatido um sentinela? Ou apenas o disparo de um deles? A quem? Os três interrogavam-se.
- João, é preciso mandar um grupo de homens ver o que passou com os sentinelas.
Para alívio de todos tão depressa foram como vieram. Aconteceu que um dos sentinelas viu ao seu alcance um porco do mato e, contrariamente a todas as regras, não perdeu a oportunidade de o abater. Claro que não se podia deixar passar este acto sem uma punição, embora pequena dada a pouca formação militar de todos os milícias. De acordo com o João, o milícia em questão integraria a próxima operação apesar de ter participado na anterior e, principalmente, teria que dividir o animal com a tropa metropolitana.
Dado o sinal para acabar a situação de alarme toda a tabanca voltou aos seus afazeres. O Furriel aproveita e vai deitar-se um pouco, tendo o nosso Alferes pedido ao João para mandar chamar o Samba, pois queria falar com ele. Queria resolver a situação da Asmau rapidamente.
Sentados os dois à mesa das refeições foi rápida a conversa. O Alferes disse que já tinha falado com o Adramane e que iam resolver já o assunto. Para abreviar e não haver constrangimentos de discurso pode dizer-se que o Samba deu ao Alferes o equivalente a meia vaca para ficar com a Asmau. Foi um montante muito inferior ao que tinha dispendido, mas o Alferes Magalhães resolve o seu problema e o Samba também.
Passam uns dias e o nosso Alferes, agora mais liberto, dedica-se além dos patrulhamentos, a colher mais informações sobre os hábitos de todos os habitantes da tabanca. Passa a andar mais com o João vendo o evoluir das suas lavras. Ao princípio achava um pouco estranho que os milícias trabalhassem para ele aparentemente de forma gratuita mas agora já sabe que era uma ancestral prerrogativa de qualquer chefe. Os chefes de tabanca e os régulos chegavam a ter lavras longe da sua morança mas perto das moranças dos súbditos, que tinham que as trabalhar para proveito do seu chefe. Aqui, com o Chefe da Milícia passava-se procedimento semelhante. Não será de esquecer que esses mesmos chefes asseguravam o bem estar dos homens que para ele trabalhavam, distribuindo -lhes os excedentes das produções.
Tinha visto a sementeira da mancarra e acompanha agora o crescimento das plantas. Assiste ao aconchegar de terra às mesmas. Repara nas plantações de mandioca com largos sulcos, para melhor drenarem as águas da chuva e também para protegerem as raízes, não ficando fora da terra nem ensopadas em água, quando chove muito. Fica a saber, contrariamente ao conhecimento que tinha, que a raiz da mandioca se pode comer crua, pois vê comê-la aos africanos. Acha muita piada às enxadas de madeira que usam para trabalhar a terra: Autênticas preciosidades da pré-história. Acaba por comprar algumas para levar para a Metrópole quando regressar de vez. Vê que o João guarda a mancarra descascada, destinada a semente, em grandes garrafões de vidro.
Uma das enxadas com que trabalhavam a terra.
Repara nas cabaças de recolher o vinho de palma com forma de grandes peras e sobretudo nos funis feitos com folhas de palmeira, para lá em cima da árvore conduzirem a seiva da incisão para a cabaça.
Em determinado momento de um fim de tarde o rádio-telegrafista vem ter com o Alferes e entrega-lhe uma mensagem acabada de chegar do comando de Galomaro. Não é demais referir que com o rádio que se possuía, um AN GRC 9, só se conseguia comunicar com Galomaro de dia e só em Morse. Se por qualquer motivo, ataque, evacuação, etc. fosse necessário comunicar durante a noite com a sede da Companhia…
Depois de o Alferes ter ido buscar o livrinho de descodificação pôde ver o que a mensagem dizia: Ordem para no dia seguinte fazer uma operação de reabastecimento de munições à tabanca próxima de Cantacunda.
Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7794: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (64): Na Kontra Ka Kontra: 28.º episódio
8 comentários:
Camaradas:
Quero referir duas coisas:
1 – Soube recentemente, através do Blogue, que a enxada que aparece na foto se designa “féfé”, em fula.
2 – Lembro que a estória começou com o rebentamento de uma mina, em princípios de Agosto de 1969. Depois recuou-se para 1953 para assistirmos ao nascimento da bajuda Asmau. De seguida a estória começa a desenvolver-se, ainda no 2º episódio, em Junho de 1969, com a ida do Alferes para Madina Xaquili. Estamos pois a chegar a princípios de Agosto de 1969, quando se deu o rebentamento da mina. A partir daqui a saga desenvolve-se até ao fim havendo apenas alguns saltos no tempo, pois ela termina depois de 2010.
Um abraço a todos.
Fernando Gouveia
Caro Fernando Gouveia,
Parabéns.
Leio diáriamente todos os seus episódios, e tenho-os guardados para reler. No entanto, gostava de saber se tem estes episódios editados. Se sim, qual a editora, ou qual a forma de adquerir o livro. Gostava de o comprar.
Com os meus melhores cumprimentos.
Filomena
Et pourtant...
o alferes teve oa seus "pruridos" pelo facto de a "bajuda" não ter sido ouvida nem achada quanto à "transação" em que ela foi o próprio "objecto", tendo procurado perceber a sua aceitação através de gestos ou atitudes;
mas, agora, o mesmo alferes seguiu simplesmente as práticas locais, arranjando um "depositário" para a mesma, sem preocupações quanto ao que a "ex-bajuda" pudesse pensar ou sentir.
Et alors...
Alberto Branquinho
Filomena:
Espero que esta resposta ainda vá a tempo.
Folgo em saber que está a gostar da estória.
Penso proximamente fazer a publicação em livro. Nessa altura através do Blogue irá tomar conhecimento.
Até lá.
Fernando Gouveia
Caro Fernando,
Obrigada.
Fico então a aguardar a publicação do livro.
Saudações
Filomena
Por questões de actualidade respondo ao Alberto Branquinho no próximo episódio.
Fernando Gouveia
Caros amigos,
Quero felicitar o Fernando Gouveia por esta interessante novela em terras Guineenses que, quanto a mim, dava para um belo filme.
Senti muita inveja do Alfero Magalhães pela bonita residencia que lhe coube em Madina Xaquili. Na nossa lingua (fula)chamam estas casas de "Náatu ka sudu" ou seja "faça o favor de entrar", s´il vous plait.
Sobre o "fefé" quero acrescentar que é um instrumento utilizado só pelos povos originariamente islamizados (Fula e mandinga).
E, ao falar do seu ar primitivo, opinião que eu também partilho, convém salientar outros aspectos não menos importantes.
Em primeiro lugar, trata-se de um instrumento resistente e leve, sendo fácil de manobrar para toda a gente e nas diferentes faixas etárias e, em segundo lugar, é facilmente adaptável aos diferentes tipos de solos. Os solos da região tropical são diferentes dos solos das regiões temperadas pois aqui a camada nutriente que alimenta as plantas não é muita profunda. Mas, sobretudo é um instrumento altamente social, pois ninquém o utilizava de forma isolada e já se falou aqui dos "Wampanhs" daquela época. Hoje em dia, praticamente não se usa, e também porque nessa era de telefones móveis acompanhada de crises móveis, já ninguém trabalha como outrora. E por falar de trabalho, entramos na análise de uma outra vertente mais cultural ou socio-antropológica aflorada por A. Branquinho e que diz respeito a gestão da vida familiar e/ou patrimonial em que os mais velhos controlam tudo e mais alguma coisa.
Nas nossas sociedades tradicionais, providas de meios de produção bastante precários, a gestão da força do trabalho era fundamental para garantir alguma sustentabilidade (dentro de um circulo de aparente miséria). A base fundamental para o equilibrio de todo o sistema era o controlo do sexo e da sexualidade, isto é a gestão rigorosa e racional do mesmo de forma a garantir que só têm acesso a casa das mulheres (ao sexo) aqueles que já tinham cumprido as condições e regras tácitamente estabelecidas pela sociedade para esse efeito. Este esquema permitia a (re)produção social e económica das comunidades numa perfeita harmonia com o meio envolvente.
Este modelo sofreu uma gradual mas durável destruição, primeiro com as imposições da colonização e o advento do mundo novo (a globalização)mas acabou mesmo por sucumbir sobretudo com as nossas independências. Hoje, qualquer sapateiro da esquina tem direito...tudo está politizado, o sexo se liberalizou, tornando-se baratinho e fácil de obter, os mais novos já não querem vergar a espinha para nada deste mundo.
O nosso modelo social antigo perdeu-se antes de termos tempo de construir um outro que seja funcional e adaptado a nossa realidade e as nossas condições. As nossas cidades estão cheias de gente que ao acordar de manhã não sabe o que há-de fazer com a sua vida mas também não quer ser camponês, trabalhador do campo, está civilizado antes de garantir o seu sustento.
Um velho ditado fula diz: O lado para onde olha aquele que está perdido no mato, não há tabanca nenhuma.
Um grande abraço
Cherno Baldé
Caro Cherno:
Sensibilisado pela apreciação que faz da minha estória.
Só quero acrescentar que pode ver no poste 4429 fotografias de dois féfés, de um que trouxe de Madina Xaquili e de outro que vi no Museu Britânico em Londres datado de há 1500 anos antes de cristo.
Um abraço.
Fernando Gouveia
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