Pedaços da vida dum… Bígamo
Texto e fotos: © Belmiro Tavares (2011). Todos os direitos reservados
Todos sabemos, pelo menos em termos teóricos, o que é a Bigamia; se perguntássemos aos soldados do senhor de La Palisse o que é Bigamia eles responderiam, mais ou menos, como segue:
- Bigamia é o oposto a Monogamia! - A verdade à La Palisse não é bem isto, mas à falta de melhor.
Também é do conhecimento geral que, segundo a Lei Portuguesa, um homem não pode casar com segunda mulher enquanto não se livrar da primeira por divórcio ou morte; a libertação do homem (ou da mulher) pode ainda ser conseguida (caso raro) através da anulação do casamento via Papal.
Todos aprendemos, há mais ou menos tempo, que não há regra sem excepção; acontece porém que, por vezes, a excepção é própria regra.
Será que perante um tal axioma – afirmação tão simples, tão clara, tão evidente que não carece demonstração – é possível haver excepção?!
Também neste caso há lugar à ressalva quando mais não seja… para confirmar a regra.
Verdade, verdadinha!
Ainda vive, graças a Deus, na região da Grande Lisboa, um português, dito de rija têmpera, que, embora não tenha convivido em simultâneo com duas mulheres, debaixo do mesmo tecto… foi legalmente casado com duas senhoras e convivia com ambas em dias determinados… sob tecto diferentes.
Possuía (ainda possui) duas casas na região da grande Lisboa: uma no Beato onde passava as noites de segunda, quarta e sexta-feira com a senhora com quem casou em primeiro lugar (era mãe da sua única filha que lhe deu três netas); e um apartamento na Amadora onde passava as noites de terça, quinta e sábado com a segunda esposa da qual não teve filhos, propositadamente – problemas conjugais já ele tinha em abundância. Os domingos eram divididos religiosamente e alternadamente pelas duas.
Aquecidos os motores com este intróito, passamos a narrar a história (alguns retalhos) do nosso bígamo começando pelo alicerce.
O nosso herói, Jaime de seu nome (e mais não digo), nasceu na década de vinte do século passado, na zona oriental de Lisboa, casa que pertencia a seus pais.
A vida era difícil para todos – ou para quase todos –; o Jaime começou a trabalhar ainda cedo – fazia pela vida – para apoiar o equilíbrio do orçamento doméstico de seus pais, era uma atitude comum naqueles tempos economicamente complicados.
Foi conseguindo empregos à sua medida e, trabalhando duro, conseguiu ir amealhando umas magras notas no escaninho da sua mala. Naqueles tempos, no campo, trabalhava-se de sol a sol; na cidade… não havia horário ou, se havia, era só para fiscal ver… ou quase.
No início da década de cinquenta casou com pouca pompa e alguma circunstância com uma senhora de nome Elisa (e por aqui me fico) que era cozinheira; convirá referir a profissão, porque, creio firmemente que o facto de ela ser cozinheira tenha influenciado positivamente o relacionamento entre ambos; O Jaime sempre foi um bom garfo.
Nos anos que se seguiram à guerra, a vida continuava a não ser fácil: o trabalho escasseava; as dificuldades avolumavam-se; o nosso herói, não sendo excepção, decidiu procurar novo meio de vida noutras paragens, emigrando para o Brasil donde, roído de saudades, regressou à Pátria, menos de dois anos depois de ali ter chegado.
De regresso a Lisboa conheceu a Joquinha passando a dividir o tempo disponível com ela e com a Elisa. Além do emprego, dedicava-se ao biscate que além de uma receita extraordinária (sem impostos) permitia que fácilmente pudesse desenfiar-se de ambas.
A sua vida na capital era cada vez mais era atribulada devido à sua imprevidência.
Depois de várias peripécias, a Joquinha sugeriu que fossem para a sua terra Natal – Fornos de Algodres -; lá poderiam viver calmamente o seu amor; o Jaime concordou e começou a tratar da viagem e do que levaria consigo.
A Elisa apercebeu-se e escondeu-lhe a roupa para impedir – no mínimo dificultar – a sua saída de casa.
Sugeriu à Joquinha que fosse de comboio; que arranjasse casa e ele encontrar-se-ia lá com ela dentro de dias.
Reunidos os poucos haveres que podia levar consigo e algumas ferramentas (entre estas um torno que deve ser uma peça muito especial como veremos) montou-se na motoreta e abalou em direcção a Fornos.
Pernoitou em Coimbra e, logo pela manhã, continuou a viagem.
Era Janeiro! Uma chuva miúda mas persiste fustigava-o; sentia-se enregelado até ao tutano dos ossos.
Mais umas horas de motoreta e... Fornos à vista!
Apareceu-lhe ali um cão descomunal que se empinou à sua frente mostrando uns dentes enormes, ameaçadores; não teve tempo de se desviar. Atropelou o cão que, assustado e a ganir, desapareceu; o Jaime andou aos trambolhões no alcatrão, rasgou o casaco e bateu com o capacete num marco da estrada, amolgando-o. “Mais um salvo pelo capacete”, pensei eu. Ainda hoje o guarda aquele capacete como relíquia!
O nosso herói sentou-se na berma da estrada para fazer contas... à vida. Entendeu que aquele cão seria o diabo a pretender impedi-lo de se aproximar de uma das suas queridas.
Reiniciou a viagem! Chovia ainda! Fornos Algodres escondia-se no nevoeiro. Assustou-se ao ver outro arrenegado que segundo ele, também quereria impedi-lo de se abeirar da sua Joquinha: viu na rua um grande molho de feno com um guarda-chuva em cima; “aquele monte de palha” começou a deslocar-se, levando o guarda-chuva consigo.
O Jaime estarreceu! Seria possível que uma nova forma de mafarrico pretendesse impedi-lo de se reajuntar com quem levava no coração e não lhe saia da cabeça?!
Apareceu a Joquinha! Depois dos cumprimentos da praxe manifestou o seu pavor por causa daquelas aparições demoníacas. A Joquinha riu-se descaradamente e decifrou o enigma: - aquilo é um homem com uma palhoça; (uma espécie de sobretudo feito de palha de centeio) é usada principalmente pelos pastores para se protegerem do frio e da chuva.
O Jaime era um menino da capital: não sabia o que era um pastor e muito menos uma palhoça!
As casas eram de granito, muito escuras e não tinham chaminé; o fumo saia pelas juntas das telhas. Aquilo era para ele um mundo novo e assustador... era o fim do mundo!
Não demorou a arranjar emprego; era a época do volfrâmio que “dava dinheiro barato” aos mineiros e a quem o comercializava; vivia-se bem!
Em Lisboa a Elisa colocou anúncios nos jornais: “Marido desapareceu! Procura-se! Não me responsabilizo pelas suas dívidas”!
Começou a trabalhar numa serralharia e fez questão de ali instalar o “seu torno”.
Um indivíduo, ligado ao volfrâmio passou por ali; viu o torno; mirou-o por todos os lados e perguntou:
- De quem é este torno?
- É do Jaime; um gajo que veio de Lisboa e é casado com uma mulher de Fornos; veio para cá há pouco tempo.
- A mulher dele está em Lisboa; está é a amante; onde está o Jaime?
- Foi almoçar! Deve estar a chegar!
O Jaime chegou e... abraçou o irmão. Encontro puramente casual! O forasteiro reconheceu o torno! Aquele torno deve ser muito especial para ser tão facilmente reconhecida denunciando o seu dono.
O Jaime, perante a insistência do mano para que voltasse a Lisboa. Respondeu que ainda era cedo:
- Tenho de arranjar dinheiro para voltar; não posso aparecer junto da Elisa de mãos a abanar; só mais uns meses!
Despediram-se!
O irmão veio para Lisboa e informou a cunhada do paradeiro do marido.
Uns dias mais tarde o mano mandou recado por outro “volframista” ao nosso herói que a Elisa e a filha estavam a caminho... de Fornos. O Jaime preparou o estratagema: num anexo à oficina “montou”as suas “instalações domésticas”; colocou lá um colchão, cobertores, tachos velhos, uns pratos e um fogareiro a petróleo.
A Elisa chegou com a filha e foram recebidas no “seu palácio”. A Elisa chorou que nem uma Madalena e pediu perdão por lhe ter escondido a roupa e por ter “anunciado” o sei desaparecimento.
O Jaime almoçou com a esposa (a primeira) e a filha e convenceu-as a voltar a Lisboa; ele também voltaria depois de aforrar mais algum dinheiro.
A Elisa e a filha regressaram à casa do Beato, esperando ali, ansiosas, pelo regresso do marido e pai.
O Jaime começou logo a convencer a Joquinha que aquilo não era vida; o melhor seria voltarem ambos para Lisboa.
Acordo fechado! Reuniram os “haveres” e viajaram até à capital. Alugou um apartamento na Reboleira onde se instalou com a Joquinha e... recomeçou a fazer vida “dupla”. A breve trecho comprou a casa da Reboleira, deixando de ser inquilino.
Passo seguinte: convenceu a Joquinha a “emigrar” para Lourenço Marques, onde tinha uma irmã bem instalada na vida; ele emigraria para a África do Sul e dava notícias; ela entraria na África do Sul e ali dariam início uma nova vida.
Bom planeamento! Tudo correu como previsto.
Na África do Sul teve de passar pelas dificuldades inerentes à entrada num país estranho onde deparou com clima, língua, mentalidade e cultura totalmente diferentes daquilo a que estava habituado. Comeu ali, como soi dizer-se, “o pão que o diabo amassou”.
Muito a custo foi vencendo as dificuldades que iam surgindo até que arranjou emprego dentro do ramo – ele era caldeireiro, canalizador e ferreiro mas também “arranhava” um pouco de pedreiro, soldador, electricista e ladrilhados; era o que se chama um “faz tudo” um polivalente ou ainda “homem dos sete ofícios”.
Amargurado pelo afastamento da Elisa e da filhinha que haviam ficado na sua casa do Beato, ia vivendo corajosamente... um dia de cada vez no seu “degredo”. Logo que lhe foi possível ordenou à Joquinha que deixasse Moçambique e se lhe juntasse.
A Joquinha também era cozinheira – caso estranho – como convinha a um bom “garfo”.
O nosso Jaime entendeu (e fez constar, como lhe convinha) que era uma grande graça de Deus o facto de entrar na sua vida uma nova cozinheira.
Como não tinha averbado o casamento com a Elisa no seu BI, foi com a Joquinha ao Consulado de Portugal e ali deram o “nó” – eis a razão por que afirmo que ele era “legalmente” casado também com a Joquinha.
Viveram alguns anos felizes e contentes em África (assim suponho pelo que vi por cá uns anos mais tarde). Prometeu à Joquinha que casaria com ela “com papel passado pelo padre”, logo que possível.
Cerca de 1960 decidem regressar à Pátria... e aos enredos provenientes da sua imprudência.
Recordo que o nosso herói era canalizador – picheleiro lá no Norte – e, deste modo, sabia “canalizar a água para o seu moinho”; como também era soldador, sabia “remendar os buracos” em que, incauto, se metia, umas vezes com a convivência de uma esposa, outras com o apoio da outra e frequentemente com a colaboração e complacência isolada e secreta de ambas.
O Jaime “das duas mulheres” – como era carinhosamente tratado entre amigos – arranjou emprego no Hotel Dom Carlos em Lisboa, nas imediações da praça Marquês de Pombal.
Não sei bem como, mas a breve trecho, o pessoal do hotel, cedo tomou conhecimento dos seus segredos sentimentais. Como era um excelente companheiro e também porque ajudava de boa vontade os outros trabalhadores do hotel a solucionar problemas da sua profissão (ões) em suas casas, todos colaboravam para que as suas duas “esposas” não soubessem uma da outra, poupando assim o amigo a novos e complicados dissabores. A todos ele convenceu que uma esposa não sabia que... “afinal havia outra”!
As telefonistas eram as suas principais cúmplices; sabiam perfeitamente onde ele estava – ou devia estar – em cada dia da semana. Se uma das esposas telefonava a perguntar pelo Jaime num dia em que ele “não lhe pertencia”, a resposta era imediata:
- O Jaime está na Malveira (por vezes no Porto) noutro Hotel do Patrão; deve voltar amanhã.
Tinha uma queda especial para lidar com o outro sexo; a todas (solteiras, casadas ou... assim assim) pedia um beijo para consertar o que elas lhe pedissem no serviço diário. Consta mesmo que entrou no chuveiro com uma colega para lhe “esfregar as costas” durante o banho.
Um dia a chefe do escritório afirmava a “pés juntos” que a Elisa não sabia da Joquinha e vice-versa, quando alguém a interpelou nestes termos:
- Oh Elsa! (era o nome da chefe em causa) se o teu marido te faltasse em casa todas as segundas, quartas e sextas e te aparecesse apenas em domingos alternados, acreditarias que ele prestava serviço “extraordinário” na Malveira?
Foi uma bomba! O estrondo e o fumo espalharam-se! Todos compreenderam que haviam sido agradavelmente enganados durante tantos anos. Mas assim continuaram a colaborar na manutenção do segredo do amigo; poderia acontecer uma tragédia nefasta se alterassem o seu comportamento usual.
Um dia entrei no carro para ir trabalhar e... a bateria estava descarregada. Telefonei ao Jaime. Imediatamente ele pôs-se a caminho levando carro, “cabos” (alicates) para dar carga à minha bateria.
Pedi-lhe que me seguisse até à oficina onde eu ia deixar o carro e dali dava-me boleia para o serviço. Quando saí da oficina (Av. Marconi, mesmo ao lado do Ministério do Trabalho) o Jaime olhava tão atentamente para um dos edifícios que não ouviu o meu chamamento. Aproximei-me e perguntei-lhe o que observava com tanta deferência.
- O Senhor não imagina! Pouco depois de vir de África a Joquinha trabalhava neste prédio; um dia, ao fim da tarde, passei por aqui para a levar comigo para casa; quando cheguei a Joquinha e a Elisa esbofeteavam-se em plena rua; empurrei-as para um monte de areia que aqui havia. Quando me reconheceram fugiram uma para cada lado; eu fui sózinho para casa. Pouco depois chegou a Joquinha, alegre e fagueira, como se nada tivesse acontecido. Nunca nenhuma delas me falou neste assunto!
Já nos anos oitenta, em casa da minha sogra, a conversa com o Jaime – acerca da sua vida com duas mulheres – estava animada; a minha esposa perguntou-lhe:
- Se alguém decidisse que uma das suas mulheres tinha de morrer agora, qual escolhia para ficar consigo?
O Jaime, sem hesitar, respondeu:
- Quero as duas! Elas são muito diferentes mas eu gosto de ambas da mesma maneira! Não quero que nenhuma morra! Que seria de mim sem uma delas?!
Um dia o azar bateu-lhe à porta; ao tentar recuperar um parafuso – mesmo profissionalmente não desperdiçava um tostão – ficou sem uma vista; poupar um parafuso, saiu-lhe caro! Foi parar ao Hospital dos Capuchos onde ficou internado cerca de dez dias.
As esposas começaram a perguntar por ele; as telefonistas receberam logo instruções para lhe evitar aborrecimentos acrescidos. A resposta era a mesma para as duas:
- O Jaime foi em serviço urgente para um hotel que o patrão comprou no Porto; como o hotel ainda não abriu, não tem telefone (ainda não tinha chegado a era dos telemóveis) o patrão foi com ele e dá noticias diariamente; vão ficar lá cerca de dez dias.
Quando voltou às “suas casas” explicou que não falou do acidente, porque não queria ser visitado no hospital; a mesma justificação serviu para as duas. Como habitualmente as duas esposas acreditaram... para não arranjar mais confusões que seriam prejudiciais... para os três.
Em consequência de não ter um olho, o Jaime estaria inibido de conduzir automóveis. Isso é que era bom! Na DGV nunca se aperceberam desta mazela. Várias vezes renovou a carta e ainda hoje conduz, com 85 anos. A polícia mandou-o parar várias vezes e nunca se aperceberam que ele via apenas “a 50%”.
Embora empregado por conta d’outrem o nosso herói viveu sempre razoávelmente bem – à sua maneira – porque, além do emprego, fazia uns bons biscates que lhe proporcionavam um rendimento extra de bom nível e livre de encargos fiscais.
Devidamente autorizado, usava máquinas e ferramentas da Entidade Patronal; ele merecia que assim acontecesse, porque estava sempre disponível para trabalhar a qualquer hora do dia ou da noite e nunca solicitou qualquer remuneração extra – caso raro.
Com certa frequência ia jantar fora com uma esposa... ou com outra. Também os almoços eram divididos equitativamente pelas duas!
O Jaime era um bom “garfo” e adorava pratos “leves”: um arroz de marisco no Linhó, um cozido na Malveira da Serra, uma feijoada ou grão com mão de vaca e outros pratos... mas sempre “leves”.
Quando ficava com um “grão na asa”, não o preocupava um suborno para não ficar sem carta.
Uma das vezes em que tal aconteceu vinha do restaurante “O Fuso” em Arruda dos Vinhos. Na véspera recebeu o pagamento dum “biscate” com que já não contava e decidiu almoçar “à rico” – como ele dizia - com a Joquinha. Na manhã seguinte fez o mesmo com a Elisa, ao aproximar-se da portagem de Alverca, a polícia mandou-o parar. A conversa com a autoridade estava demorada; a esposa saiu do carro e foi em socorro do marido; entrou “de chancas” perguntando “delicadamente” ao Jaime:
- Que raio se passa aqui?
- O Sr. Guarda, responde o Jaime, quer ficar com a minha carta só porque eu bebi um “nadinha” acima do limite; tu sabes a falta que a carta me faz!
Ela, decidida, encarou o guarda e disparou:
- Isso é coisa que não se resolva com cinco contos?!
- Tem de ser oito – retorquiu o guarda.
- Por que esperas?! – interpelou ela, olhando para o marido.
Mulher de armas! E o caso ficou logo sanado. Ainda sobravam uns mil escudos do tal biscate; foram comprar marisco para gastar aquele dinheiro que ele já não contava receber.
O Jaime remediava a contento a conjuntura mais delicada em que se deixava cair. Decidiu um dia ir almoçar a Caneças com a Elisa. Ao descer a Calçada de Carriche manifestou o seu espanto, porque Odivelas era já uma povoação “imensamente” grande.
Mas por que te surpreendes? Tu passas aqui várias vezes por semana quando vais trabalhar na Malveira!
A resposta estava na ponta da língua:
- Quem leva a “carrinha” é o meu ajudante e quando passamos por aqui, eu já vou a dormir! Nunca me apercebi deste crescimento enorme! Tão rápido!
Boa saída!
Quando lhe apetecia um arroz de marisco... ia ao Linhó onde determinado restaurante, dentro do preço/qualidade, servia o que ele considerava e publicitava como sendo o melhor arroz de marisco na zona da Grande Lisboa. A partir da segunda vez que foi lá, já a proprietária vinha à sua mesa conversar com o Jaime e a Joquinha.
Tantas vezes o cântaro vai à fonte que... um dia... “estoirou a bronca” e de que maneira! O Jaime decidiu levar àquele restaurante a Elisa, a filha, o genro e as netas. Almoçaram “à maneira”! A filha e as netas elogiaram muito àquela escolha; o Jaime estava eufórico.
Pediram café (para ele era com “cheirinho”) e apareceu a proprietária; cumprimentou os “amigos” e perguntou:
- Então o Sr. Jaime hoje não trouxe a esposa?!
O Jaime sempre soube ultrapassar com mestria as complicações mais embaraçosas, mas, desta vez, na presença das netas, empalideceu; com os olhos (só com um!) procurou um buraco onde pudesse enfiar-se.
A Elisa, sempre atenta ao que a circundava, defendendo a sua causa, deu uma ajuda, esclarecendo:
- A esposa sou eu! A outra é a amante! E lançou, os braços à volta do pescoço do marido, beijando-o ternamente.
Esta terá sido a única vez em que o Jaime não se desembaraçou pelos próprios meios.
O Jaime ficou surpreendido; recuperou de imediato e elucidou cabalmente:
- O Joquinha é meu ajudante! Ele chama-se Jorge mas todos o tratam por “Joquinha”; é um bom rapaz e eu gosto dele, mas às vezes repreendo-o com dureza, porque ele não gosta de trabalhar – é o seu maior defeito!
Mais um caso solucionado... a contento.
Não acredito que a Elisa tivesse engolido aquela desculpa rápida mas fingiu que acreditava para o bem de ambos.
Numa festa de Natal em sua casa do Beato com a Elisa, a filha, o genro e as netas, ofereceu um carro a cada neta (todos em “segunda mão”); a filha lembrou que ficou esquecida. Ele afastou-se um pouco e emitiu um cheque de um milhão de escudos (mil contos como ele diz).
- Fiquei quase “teso” mas contente; comecei logo a fazer novas economias para a velhice!
Os anos foram passando... a saúde não dura sempre! A vida com frequência é madrasta! Quando tudo parecia um paraíso, surgiram novas complicações muito sérias relacionados com saúde.
A filha, ainda jovem, faleceu de “doença prolongada”; as netas, ainda estudantes, assumiram ainda jovens o “governo” da casa do pai apoiando também os avós sempre que podiam.
A Elisa sofreu um AVC e amputaram-lhe uma perna. O Jaime, com o assentimento e complacência da Joquinha passou a dar mais apoio à primeira esposa; passava as noites com ela. Durante o dia, por vezes, pedia à sua irmã para fazer companhia à cunhada enquanto ele ia “tratar dum biscate”. Ia até à Amadora passar umas horas com a Joquinha. Quando regressava ao seu “posto” trazia comida que a Joquinha preparava e ele comia com a Elisa e por vezes também com as netas alegando que trazia o repasto do restaurante. As netas sabiam que a comida era elaborada pela Joquinha. A Elisa... também sabia ou suspeitava, mas não se manifestava.
A Joquinha ofereceu-se para tomar conta da neta mais nova; a Elisa manifestou o seu desagrado; o Jaime não quis contrariá-la e convenceu a Joquinha a desistir da ideia.
A Joquinha, porém, visitava as netas dele (viviam com o pai perto da casa dos avós) iniciava-as nas lides domésticas e convidava-as frequentemente a almoçar ou jantar em sua casa e de lá traziam uma refeição para o Pai. As “miúdas” eram obsequiadas com artigos de enxoval que a Joquinha confeccionava.
Entretanto comemorou as bodas de prata do seu casamento... com a Elisa. Quatro anos depois a Elisa faleceu.
A Joquinha logo que considerou o momento conveniente, recordou-lhe a promessa do casamento religioso e com “papel do padre”.
Ele justificou:
- Não é isso que nos vai proporcionar mais amor; já estamos com oitenta anos; e eu perco uma boa reforma que recebo como viúvo da Elisa.
Mais uma vez houve acordo!
Também comemorou bodas de prata com a segunda esposa!
A Joquinha passou a acarinhar ainda mais as netas do seu marido. Com pequenos intervalos, as netas casaram; Vive uma para cada lado mas reúnem semanalmente ou quase com o avô, o pai... e a Joquinha que passou a fazer parte da família.
Fruto de um AVC ou similar, a Joquinha ficou com as pernas paralisadas. O Jaime solicitou ao médico que a mandasse para a fisioterapia:
- Não há nada a fazer. - respondeu o “físico”.
Uma vez mais, o Jaime foi herói: com uns tubos de ferro galvanizado, umas soldaduras, umas roldanas e cordas engendrou uma máquina “milagrosa” e a Joquinha recuperou de maneira assombrosa; Para ela tomar banho sózinha, fixou umas peças nas paredes, comprou um cinto especial e com argolas prendeu-o às tais peças, ele só tinha de lhe lavar os pés.
Ela esticava as cordas que lhe movimentavam as pernas isoladamente ou em simultâneo e voltou a caminhar – sem apoio do “marido”. O Jaime levou-a ao tal médico que ficou “meio gago”; Mostrou-lhe as fotografias da sua “máquina prodigiosa” e o médico chamou os colegas e enfermeiros para que apreciassem aquela invenção salvadora.
Há uns cinco ou seis anos, pediu-me se o ajudava a conseguir uma solução para o seu caso. Pensei que ele já trazia outra “debaixo de olho”. Mas não era isso! Ele contou:
- Como sabe eu vivo com a Joquinha na casa da Amadora; por minha morte não quero que as minhas netas lhe tirem a casa (suponho que elas não fazem esse disparate mas...), mas também não admito que os sobrinhos dela fiquem com a casa; eles só aparecem para “pedinchar” e mais nada; são cá uns “cravas”!
Sugeri que doasse a casa às netas e reservasse o usufruto da mesma para a Joquinha. Ele assim fez.
O homem põe... Deus dispõe! Nada aconteceu como ele imaginou! A Joquinha faleceu em Setembro de 2010.
O nosso herói viveu dezenas de anos “apaparicado” por duas esposas cozinheiras; agora pode contar apenas com o amor e carinho das netas; felizmente, elas adoram-no; são a única bóia a que ele pode agarrar-se.
Nas vésperas de Natal encontrei-o na Av. Liberdade; ia a uma consulta. Aconselhei-o ir ao médico, porque... “o médico precisa de viver... e tu também”.
Perguntei-lhe como ia passar o Natal; respondeu que ia a casa do genro com as netas; não quero que, nessa noite, estejas só; se quiseres, vens a minha casa. Questionei-o se concordava que eu escrevesse sobre as peripécias da sua vida e as publicasse. Riu-se abertamente e autorizou. Não pedi que fosse ele a narrar estes e outros “retalhos” da sua vida porque sabia que isso ser-lhe-ia tremendamente doloroso. Como amigo, não tenho o direito de o massacrar, desnecessariamente.
És um “amigão”! Obrigado, Jaime.
Lisboa, 18 de Fevereiro de 2011
Belmiro Tavares
Ten. Mil.
P.S.: Em fins de Janeiro de 2011, encontrei-me com o Jaime; mostrei-lhe o esboço do que seria o texto; achou imensa graça a estes retalhos da sua vida e riu a “bandeiras despregadas”. Pedi-lhe fotografias e, se possível, o “anúncio” que a Elisa pôs nos jornais. Ficou de me entregar este material o mais breve possível; - haverá dificuldades para encontrar isso porque para restaurar a casa do Beato, encaixotou todas as “miudezas”.
Agora com oitenta e cinco anos (completou-os a 24 de Janeiro) está a restaurar e remodelar a casa do Beato, onde nasceu e viveu (em part-time) com a Elisa. – “É uma boa casa com um grande quintal”. Uma das netas vai viver lá; as outras serão compensadas com dinheiro proveniente das suas contas bancárias e da venda da casa da Reboleira que vai efectuar.
Procura ser justo!
Ainda hoje, se fala duma das suas mulheres as lágrimas aparecem logo a bailar nas suas órbitas – apenas uma.
Um homem das Arábias! Se não existisse tinha de ser inventado!
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Nota do Editor
Vd. último poste da série de 21 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7651: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (4): Os Adidos
8 comentários:
Camarigo Belmiro
Li com bastante interesse esta história...simplesmente espectacular.
Uma "história das Arábias".
Parabéns
Alfa Bravo
Luís Borrega
Caro camarigo Belmiro Tavares
Já li muitas vezes que, por vezes, "a realidade ultrapassa a ficção".
Ora aqui está uma história que corrobora totalmente esta afirmação!
Até parece o guião duma telenovela.
Abraço
Hélder S.
Belmiro:
És um homem de grande sensibilidade e com talento para a escrita, não é a primeira vez que to digo... Poderá aparecer estranha a publicação desta "estória avulsa", que aparentemente não tem nada a viver a "nossa Guiné"... Mas não, a bigamia e a poligamia eram problemas (às vezes compliacados) com que tivemos de lidar, no Guiné, no nosso tempo, nas comunidades, e nas subunidades constituídas por tropas do recrutamento local (como era o caso da minha CCAÇ 12)...
Além disso, o Jaime é teu amigo e foi teu empregado... É uma história de vida que não é tão incomum quanto se pensa... Embora tendo o Okay do teu amigo, achei que era eticamente imprescindível não identificar as pessoas que aparecem nas fotos, protegendo o seu direito à privacidade e à imagem... Até porque há pessoas vivas, há familiares, há amigos e conhecidos...
O nosso blogue não é sensacionalista nem voyeurista...
Espero que aceites e compreendas a minha decisão sobre a qual não chegámos a trocar ideias... Mas tu mesmo optaste, e bem, por omitir os seus apelidos...
Um Alfa Bravo. Luís.
Caro Belmiro Tavares
Que rica história...de "vidas".
No exercício da minha profissão de
Advogado, encontrei várias
situções de bigamia.Lembro-me que
uma vez, tendo um cliente preso,
recebi a Mulher que me pagou.Logo
minutos depois de ela ter saído,
recebi um telefonema de alguém que
se intitulava Mulher do preso,
dizendo que também ela queria
pagar.E assim aconteceu até ao fim
do Processo.Estabeleci então uma
regra-Os bígamos pagam a dobrar..
Abraço.
Jorge Cabral
caro belmiro eu sou uma das peças que voçe refere numa determjnada parte da estoria,pois sou sobtrinho da joquinha,tenho quase 6o anos e conheço a estoria quase desde o inicio, e lembrome da estoria do jaime quando foi com a minha tia joquinha para uma terra perto de fornos de algodres e tambem me lembro dessa estoria da casa negra por causa das lareiras da casa pois eu tambem fui lá criado,so que eu sou um sobrinho que sempre dei á joquinha e ao jaime quando a joquinha eo jaime eram mais novos eu explorava os bares de uma colectividade na zona oriental de lisboa (C.O.L.)na qual se davam muitas festas de final de ano,carnaval.e muitas noites de fados, o jaime e a joquinha sempre frequentaram a minha casa e essa coletividade e nunca lhes pedi qualquer totão por isso, já quando a joquinha estava doente, ela e o jaime me disseram que gostariam de ir a fatima, e á terra da joquinha visitar os familiares pois o jaime já nao tinha condiçoes para fazer uma viagem dessas, eu oferecime que os levava a fatima e a terra, e leveios lá ficaram muito contentes, mas mais uma vez nao recebi qualquer valor, leveios no meu carro paguei portagens,gasoleo, e nao é assim tao perto pois da reboleira á terra da joquinha são mais ou menos 350klm como ve os sobrinhos que visitavam a joquinha e o jaime nao eram aqueles que se relata numa parte da estória,só queriam era chular«««« que deus ajude a joquinhaa descançar em paz, pois ela enquanto esteve perto do jaime, ela naõ era senhora do seu nariz porque ele naõ deixava ,chamam a isto um hroi???«««« assino com as iniciais M.B.S.R «««««««
A minha tia "Joquinha" e o Jaime que eu ainda trato por tio fizeram a vida que queriam e puderam com mentiras e confusões e ninguém tem nada a comentar sobre isso pois eram pessoas adultas e normais.
Esclarecimento: Os comentários que estão feitos sobre os sobrinhos são falsos pelo que me sinto de certa forma ofendida, o que me levou a escrever estas linhas. Os sobrinhos, de quem fala que da forma como o texto esta escrito é de todos, eu, nunco pedi fosse o que fosse à minha tia e ao Jaime ele sabe muito bem, felizmente todos os sobrinhos da Joquinha têm, a custa do seu trabalho, uma vida limpa e honesta que podem andar de cabeça erguida e não andar arranjar esquemas para viverem.
As coisas que o Jaime fez para a minha tia poder voltar a andar foram bastantes e eu vi e reconheço o esforço dele, nunca quiz que fossem profissionais a tratar da Joquinha porque na cabeça dele as pessoas só queriam era ganhar dinheiro, pois a maior alegria de todos era que a Joquinha voltasse a ser a pessoa que era, mas isso infelizmente ñão aconteceu.
O Jaime não tinha o direito de pôr em causa a honestidade dos sobrinhos da Joquinha, pois se ela fosse viva decerteza ficaria muito triste. Quando ao Jaime também podemos deixar aqui uma questão: a Joquinha a vida toda trabalhou e ganhava o seu ordenado e sabemos que não era senhora de fazer nada sozinha e quem lhe controlava o dinheiro e a vida toda era ele, pelo que fez sempre o que quiz e até mentiu a Joquinha porque a minha tia sempre disse que o modesto andar onde vivia era dela o que se veio a verificar que é mentira, até nisto ele conseguiu engana-la. Para onde foi tudo o que a minha tia tinha???, nós até sabemos e as pesoas que nos conhecem também sabem mas somos superiores aos bens materiais existem mais coisas importantes além do dinheiro, das casas, do ouro etc.etc.etc.
Os verdadeiros herois não precisam de se gabar do que fazem ou fizerem o universo trata de reconheçe-los. Desejo ao Jaime , meu tio, que continue a ter a vida feliz que julga ter.
Felicidades para todos
MFC
A.V.M.F. disse:-
Que linda historia de um homem bigamo a quem chama de "heroi"!!!Se a isto é chamar de "heroi" para mim é chamar "porco" "malandro" que viveu e fez viver estas duas senhoras uma vida de mentira, um explorador especialmente da tia Deolinda este sim o nome dela nome pela qual sempre a chamei, para ele a "Joquinha" que se fartou de trabalhar para lhe dar tudo do bom e do melhor que o dinheiro do trabalho dela era todo para as despesas da casa e o dele para as tais contas do banco (que bem fala no texto) Porque sera que so agora que elas morreram ele concordou em publicar isto!!!Porque so ele sabia ??Engana-se pois a mais quem saiba e nao é tao bonita nem sacrificada como conta ha partes que simplesmente foram ocultadas/alteradas.
Emigrou para o Brasil!!ou melhor foi clandestino no porao dum navio como ele tanta vez contou.
Convenceu a Deolinda(e mais nao digo como diz o senhor , pois Deolindas ha muitas mas como esta duvido que so mesmo ela para ter tido aturado tudo isto) a emigrar para Moçambique!!! mentira foi a irma que ja la vivia que a chamou para la para a tirar dessa vida dupla que ela vivia que ele sempre lhe mentiu ele proprio foi para Lourenço Marques mas o cunhado da Delinda nao permitiu que ele se instalasse la em casa por isso ele sempre fumentou uma guerra e afastamento entre as duas irmas.
diz que casado com mas duas ??!! Gostaria de ver as provas disso pois no B.I: da Deolinda consta solteira e na escritura do andar da Reboleira vem la casado com Elisa ..... e tbm vem la o nome de Deolinda com solteira falo com provas como ele bem sabe que pussuo, mais aldrabices,mais mentiras mais falcaturas,.... fala que o seu "heroi" vivia bem dos biscatosse ele falsificava nos.contrib.e assinaturas contado por ele a boca cheia, ate o andar da Reboleira estava mal registado nas finanças estava como propriedade plena em nome da Deolinda quem sabe para que pudesse mais uma vez fugir ao fisco??ou simplesmente fazer com que fosse ela a pagar os imposto do dito andar!!Teve que legalizar a situaçao depois da morte da mesma e ter sido comfrontado por uma sobrinha da Deolinda.
Sim concordo na doença que teve uma meningite, nestes ultimo anos de vida ele fez tudo para ela melhorar, mas para que ela pudesse voltar a ser a criada que sempre foi toda a vida dela que se fartou de trabalhar para ficar sem nada a passar os seus ultimos dias ou melhor anos a viver na porcaria que ele nao queria la ninguem para que ela nao pudesse fazer queixas, quantas vezes,...tantas lhe disse para vender o andar e por a Deolinda num lar para que pudesse passar os seus ultimos dias em melhores condiçoes e assistencia medica e ele nunca quis pois o andar nunca foi dela como ele sempre contava a familia dela, acamada tirava-lhe o telefone para ela nao falar para a irma ou sobrinha diz ele que os sobrinhos sao pedinchas e cravas!!mas ele é que semanas/dias antes dela falecer tirou tudo la de casa, ouro,coisas de mais valores levou para o Beato posso-lhe garantir que nem a irma (ainda viva e sua herdeira legitima)lhe pediu fosse o que fosse ou la foi buscar alguma coisa nem qualquer um dos sobrinhos ele sim é que a cravou uma vida inteira e é a isto que o senhor chama de "seu heroi" ???
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