terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7844: Blogoterapia (178): Regresso ao passado (Felismina Costa)

1. Mensagem da nossa amiga tertuliana Felismina Costa* com data de 21 de Fevereiro de 2011:

Boa-tarde Amigo e Editor Carlos Vinhal
Antes que o Inverno acabe e o texto deixe de fazer sentido, envio esta dissertação sobre o meu passado.
É o recordar de um tempo que sempre valorizo, pelo que me foi oferecido, pelo conhecimento adquirido, pelo crescimento acompanhado e pelas lições de vida recebidas.

Carlos, se achar que vale a pena, publique.
Obrigada.





Regresso ao Passado

É a noite fria e ventosa que me leva, (qual máquina do tempo), ao princípio da vida.
À adolescência.
A um passado que ficou meio século para trás, vivido no meu Alentejo, sempre presente nas minhas recordações.

Enquanto aqui em casa, o vento faz bater as persianas das janelas, lá, uivava no alto da chaminé do Monte, passando apressado por entre as frestas da mesma, assobiando uma assustadora melodia, a que me habituei e que hoje, gosto de ouvir.
Cinquenta anos depois, as recordações são tão presentes na minha memória, como se tudo, tivesse acontecido… ontem.

A casa grande, de divisões de cerca de vinte metros quadrados cada, tinha um amplo corredor que as dividia: um arco a meio, ajudava a quebrar a amplidão.
Caiado de branco, à boa maneira alentejana, tinha, pendurados nas paredes, pequenos vasos de plantas pendentes, que quase roçavam o chão e embelezavam naturalmente o espaço pouco mobilado.

Abrigava as nossas vidas, modesta… mas gostosamente.

A lareira, no Inverno, acesa permanentemente, era o lugar de maior conforto.

Era o espaço social por excelência, para os de casa e para quem chegava.
Frente à lareira, um poial suportava as bilhas de água fresca que trazíamos do poço e por detrás destas, encostados à parede, perfilavam-se os alguidares de barro onde se amassava o pão e se temperavam as carnes do porco. Por baixo do poial e em nichos concebidos para o efeito, guardavam-se as panelas de barro de vários tamanhos, onde se cozinhavam os grãos, o feijão e o famoso cozido que me faz crescer água na boca. Decorando o poial, cortinas de chita coloridas embelezavam a grande e acolhedora cozinha, em cuja lareira cabíamos todos e jantávamos nas noites de Inverno.

A panela de ferro, encostada às brasas, sempre cheia de água, funcionava como esquentador, e pela manhã e ao longo do dia, a cafeteira de barro fervia o café que acompanhava, muitas vezes, as fatias de ovos ao pequeno-almoço ou as migas fumegantes em que o pai era especialista.

Sempre acordei bem disposta, fosse qual fosse a época do ano, e depois, o beijo matinal e o sorriso constante de meus pais, criavam e desenvolviam o ambiente propício para a minha alegria de viver.

O trabalho era um prazer.

Durante o Inverno, muitos dias não se podia sair de casa porque a chuva não deixava, mas em casa havia sempre que fazer. O pronto-a-vestir, praticamente inexistente, fazia com que as mulheres tivessem a seu cargo a confecção das roupas da sua prol, o que absorvia imensas horas da sua vida, e assim, o tempo das chuvas, era tempo de costurar, de fazer croché, de fazer tricô, de bordar, enfim, mil afazeres que ocupavam a mulher permanentemente.

Aos serões… crescia-se.

As histórias verdadeiras, eram-nos apresentadas na descrição dos nossos pais, que ao serão recordavam igualmente o seu passado, a sua origem, as suas saudades, no sossego daquele lugar, que só uma guerra em África preocupava já a tranquilidade de todos os lares, quer dos que lá tinham família, como daqueles que estavam ainda a criar os filhos e já sofriam por antecipação a sua ida para lá, uma vez que não se vislumbrava o fim do conflito.

Menina e primogénita, eu era a confidente, a que tinha o maior contacto com a realidade, por ser capaz de compreender melhor, e assim me tornei, grande companheira e amiga da nossa saudosa mãe, cujas dificuldades económicas faziam dela uma mulher dos sete ofícios.

Ninguém como ela engomava e lavava a nossa roupa.
Ninguém como ela fazia do velho novo, dando graça e beleza a cada peça.
Ninguém como ela educava contando-nos poesias moralistas.
Ninguém como ela amava a natureza, que ela própria ajudava a tornar bela e produtiva.
Ninguém como ela alindava a nossa casa.
Ninguém como ela sabia receber e valorizar o ser humano.
Ninguém como ela para nos amar e ensinar a amar o próximo.
Ninguém como ela para valorizar o conhecimento, a formação… os valores.

Jovem ainda, (que jovem era) quarenta anos, tinha à data a nossa mãe, mas sempre que recordo as suas palavras, vejo nelas a experiência de uma pessoa idónea.
Rapidamente a vida nos dá conhecimento, porque tão breve passa.
O que ficou para contar de uma vida breve, é tanto e tão prazeroso, que volto lá com o maior prazer e frequência.

Em dias de Inverno, vejo a sua preocupação em relação ao nosso bem-estar, proporcionando o conforto possível, numa terra, que tanto gelava no Inverno, como abrasava no Verão, mas… nada pesou mais que o seu carinho e toda a sua capacidade de ultrapassar dificuldades… rindo-se delas.

Nesta noite fria de Inverno, fui capaz de voltar atrás cinquenta anos e partilhar convosco o tempo da minha adolescência, tão grato que me perco a recordar.

Obrigada.

Felismina Costa
Agualva, 17 de Fevereiro de 2011
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7781: Blogpoesia (113): Mulher, minha irmã (Felismina Costa)

Vd. último poste da série de 20 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7824: Blogoterapia (177): A minha gratidão, com um abraço do tamanho do mundo, a todos os que se preocuparam com o meu estado de saúde (Rui Ferreira)

9 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Mais um texto maravilhoso e mais uma bela viagem ao passado.

É semore com prazer que leio os textos, que fico com a sensação de que sempre a conheci.

Será que vou ter esse prazer em Monte Real, a 4 de Junho?

Torcato Mendonca disse...

E eu voltei lá. Eu voltei ao Alentejo, mais Alentejo. Eu voltei àquela cozinha parecida á que você tão bem descreve e recordo aqueles cheiros e sabores, aquelas conversas que eu ouvia embevecido da gente adulta. A Felismina já está a ver onde: sim claro - Garvão.
tive saudades e já lá vão tantos anos, tantos...mais de cinquenta, mais. Tudo se foi... andando e desaparecendo. De quando em vez ia lá, já pai de filhos e eles corriam no quintal...belos tempos.E a ribeira logo ali...
Vou fechar isto já . Quero guardar o que li e nada mais.Fica a imagem!
Obrigado Felismina e um Abraço Fraterno do T.

Anónimo disse...

Estimada Felismina!

Isso não se faz!

Então quase na hora da deita, a falar em matança de porco, em grãos de carne e muito mais?

Querida amiga como deve reparar estou a brincar... com as palavras... porque agora ainda eram capaz de ir umas sopas de cachola, daquelas do dia da matança do porco.

É verdade!... era tão lindo! Que saudades.

E à lareira as histórias de meu avô? Nunca lhe foi dito para onde eu tinha ido, mas na hora do correio, lá estava à porta esperando o "Zé carteiro" para ver se havia noticias.

Vou-me deitar sonhando com esses lindos tempos na planície e que a Felismina tão bem sabe narrar.

Era assim! Dificeis sim... mas que nos deixaram tão gratas recordações.

Continue. Traga sempre a sua linda prosa, com aqueles odores e sabores do nosso querido Alentejo.

Bem haja!

Mário Fitas

Cesar Dias disse...

Felismina, bem haja por este regresso ao passado.
O Torcato refere-se ao Alentejo, mas o que foi descrito pela Felismina também se passava em casa do meu avô no Ribatejo,numa pequena aldeia no concelho de Torres Novas, e pelos vistos por esse Portugal fora. É mais um testemunho que ficará para a história.
Felismina, mais uma vez bem haja por nos recordar esses momentos.

César Dias

Anónimo disse...

Cara amiga Felismina

Que bem me fez vir espreitar o Blogue a esta hora...!
É reconfortante adormecer com os sons, as cores, os odores e sabores do nosso Alentejo, aqui tão bem descritos por si.
Quando o pouco sabia a tanto...!
As nossas mães, e nossas avós, eram autênticas fadas do lar, com poucos meios disponíveis, faziam comidas deliciosas com as ervas aromáticas da região, poejos, coentros, salsa, oregãos, e pouco mais. O pão e o azeite eram a base de toda a alimentação.
Se bem me lembro...
eram as mulheres alentejanas, naquele tempo, que faziam tudo na sua casa, a roupa dos maridos e dos filhos, o pão, e íam buscar água ao poço, e ainda trabalhavam no campo. Os homens só trabalhavam "fora de casa"..., não tinham papel activo nas lides domésticas.
E que alegria elas punham na decoração do seu lar com as cortinas de chita, que a minha amiga Felismina tão bem retratou, e nas barras coloridas com que pintavam as suas casas. E que asseio...!
São os ensinamentos que elas transmitiram que fizeram as mulheres da nossa geração.
Abençoadas mães...!
Obrigada, Felismina, por mais este belo texto.

Um fraterno abraço

Maria Teresa Parreira

admor disse...

Caríssima Felismina,

Gostei muito do seu texto, mas o que mais me tocou é que a sua mãe era exactamente igual à minha.Eram aquelas caraterísticas todas, num corpo tão frágil e débil, que ainda hoje me interrogo onde é que Ela ia buscar aquela força interior tão grande.

Um grande abraço.

Adriano Moreira

Anónimo disse...

Parabéns Felismina pelo lindo texto com que presenteia os leitores deste Grande Espaço.
Um abraço
Filomena

Anónimo disse...

Caríssima Sra. Obrigado por ter trazido até täo longe,nas suas recordacöes, o "calor" do nosso querido Portugal.Bonitas estátuas existem em todas as Vilas e Cidades.Muitos heróis;justas. Mas....as Mäes? Quero crer que as näo têm por delas näo precisarem! Bem haja pelo que escreveu,e, como escreveu!

Anónimo disse...

Amigos e Amigas

Agradeço a todos as vossas manifestações de agrado pelo tema que apresentei.

Sinceramente agradecida ao meu passado, continuo no presente a ter motivos para isso, porque as minhas palavras encontraram eco nos vossos corações.

Mil vezes obrigada pela vossa sensibilidade, que me apraz registar.

Um abraço fraterno para todos.

Felismina Costa