terça-feira, 5 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8508: Notas de leitura (253): "Amílcar Cabral – Vida e Morte de um Revolucionário Africano", por Julião Soares Sousa (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2011:

Queridos amigos,
Salvo melhor opinião, nunca se tinha ido tão longe na biografia política de Amílcar Cabral. Biografia política e pessoal, no que política e pessoa se interligam pela formação, pela personalidade e no caso vertente pelo génio da actuação, os seus sucessos clamorosos e desastres rotundos.

O Doutor Julião Soares Sousa já recebeu a aclamação pela Universidade de Coimbra, é justo que os estudiosos que agora passam a ter ao alcance este estudo monumental o apreciem pela seriedade e rigor com que conduziu a sua investigação, do princípio ao fim. Será seguramente um livro controverso, alimentará polémicas na medida em que faz cair mitos, retira da sombra combatentes incómodos e não dissimula o pano de fundo do complô contra Cabral e a direcção política predominantemente cabo-verdiana.

Um abraço do
Mário


"Amílcar Cabral – Vida e Morte de um Revolucionário Africano"

Amílcar Cabral, uma biografia política, um grande acontecimento cultural

Beja Santos

“Amílcar Cabral – Vida e Morte de um Revolucionário Africano”, por Julião Soares Sousa, Nova Vega, 2011, é indiscutivelmente uma obra incontornável para os estudiosos da guerra da Guiné, da luta de libertação e da personalidade de grande estatura que foi a do dirigente máximo do PAIGC. Tem por base a tese de doutoramento na Universidade de Coimbra de Julião de Soares Sousa, o primeiro doutor guineense desta universidade.

Tratando-se de uma investigação aturadíssima que comporta perspectivas e revelações novas e controversas sobre a biografia política e dados pessoais de Amílcar Cabral, só vemos vantagem em encetar por uma apresentação deste estudo de grande fôlego, dando-lhe sequência com mais detalhadas notas de recensão.

O historiador rebate algumas ideias preconcebidas (algumas de sabor puramente hagiográfico e mitológico) defendidas pela grande maioria dos estudiosos da obra de Amílcar Cabral nomeadamente no que dizia respeito à influência do pai na sua formação intelectual (de acordo com o autor foi a mãe, Iva Pinhel Évora, a sua grande referência e pedra angular de princípios), expõe com clareza a evolução das atitudes anticolonialistas na Guiné e no quadro metropolitano onde Amílcar Cabral consolidou o seu ideário para a libertação do homem africano. A escolha de um curso de agronomia foi uma descoberta vocacional e será graças ao recenseamento agrícola na Guiné que ele irá conhecer o território palmo a palmo.

O jovem Cabral que enveredou pela actividade literária em S. Vicente é um produto típico de um cabo-verdiano envolvido num conceito de portugalidade e de africanidade. Só em Lisboa é que emerge para a socialização política, anda perto do MUD/juvenil e do PCP, cedo irá marcar distâncias quanto à natureza da emancipação africana mas marcando a diferença do que é verdadeiramente prioritário era a independência das colónias. Será em Lisboa que se irá relacionar com personalidades com quem irá criar amizade e companheirismo político, caso de Mário de Andrade, Lúcio Lara, Marcelino dos Santos e Viriato da Cruz.

Perto do final da década de 50, Cabral é um homem de ideias amadurecidas, lança-se no MAC – Movimento Anticolonialista e a partir de 1959 entrega-se de alma e coração à organização do PAI/PAIGC, em estreita colaboração com o motor da mobilização dentro da colónia, Rafael Barbosa. Instalado em Conacri, lança as bases da guerrilha e da aproximação internacional. Cedo é confrontado com o cepticismo e até a profunda contestação das suas teses sobre a unidade da Guiné e Cabo Verde.

Julião Soares Sousa esmiúça os diferentes termos da equação em torno das concepções da unidade africana que fizeram o seu tempo nos anos 50 e 60, embora tenham praticamente todas falido. Documenta o início da luta armada e a rápida implantação do PAIGC no Sul, a partir de 1962, seguindo-se uma região do Leste e depois o Morés. O historiador dá como provado que Cabral antevira um estado socialista na Guiné, sob a liderança de um partido único de vanguarda, com múltiplos mecanismos de poder descentralizado e com instância militar profundamente controlada pelos comissários políticos, tudo fruto das deliberações adoptadas no Congresso de Cassacá (1964).

Com a profunda militarização, os portugueses e os guerrilheiros do PAIGC foram confrontados com uma nova realidade: a conquista das populações, o seu controlo e fixação. O ideário de Spínola, nesta vertente, será uma permanente dor de cabeça para Cabral. O historiador procede a um exame exaustivo dos conflitos internos, deixa bem claro que a tensão entre cabo-verdianos e guineenses foi uma constante, mesmo antes da luta armada e até ao assassinato do líder, em 20 de Janeiro de 1973.

No início da década de 70, Amílcar Cabral é um dos mais proeminentes líderes africanos, distingue-se pela ousadia como reflectiu sobre o pensamento socialista, a unidade africana, a capacidade de antecipação face ao contendor. Em 1972 está em andamento um conjunto de operações destinadas a desequilibrar em definitivo o impasse da guerra colonial: a URSS promete fornecer material bélico tecnologicamente superior e preparar pilotos guineenses para um novo quadro ofensivo; com base num recenseamento interno, o PAIGC prepara-se para anunciar a sua independência unilateral, manobra para a qual se sabe que a potência colonial não possui capacidades de contra-argumentação.

É neste quadro complexo de preparativos que Cabral descura a frente interna. Como Julião Soares Sousa ilustra ao longo de centenas de páginas, o líder é o coração e o nervo do PAIGC: é o único ideólogo, é o único político que o pode representar na cena internacional, todas as teses, todos os documentos sobre a luta armada e a denúncia do colonialismo lhe saem do punho. Como se verá na análise do complô, é indesmentível que foram militantes guineenses que liquidaram Cabral. Mais, Portugal, com a morte de Cabral perdia a última possibilidade de um entendimento para uma transição menos dolorosa como aquela que teve lugar em Outubro de 1974. A sua morte foi um contratempo para a independência, mas esta tinha ganho raízes suficientemente fortes. E a luta armada, de 1973 para 1974, é o que toda a gente sabe que foi.

Amílcar Cabral tem sido objecto de biografias, estudos e memórias de indiscutível interesse. Este será porventura o seu retrato mais completo: o estudante assimilado, o socialista heterodoxo, o pensador arrojado, o líder que viveu perigosamente, enfrentando a belicosidade das suas teses, como a paradoxal unidade Guiné-Cabo Verde. Um líder político que consorciou o projecto da independência fundando-a numa luta armada que ele desenhou e manobrou. O líder que amava profundamente a sua mãe a quem dedicou um poema na sua página do Livro de Curso, em 1949:

Para ti mãe Iva,
Eu deixo uma parcela
Do meu livro de curso…
Pr’a ti, que foste a estrela
Da minha infância agreste.
A tua alma viva
E o teu Amor profundo,
Aceita este tributo,
Que tudo quanto eu for,
Será do teu Amor,
- Tua carne, Mãe, teu fruto!
Sem ti, não sou ninguém.
Só sou - porque és Mãe.

(Continua)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8496: Notas de leitura (252): Picadas e Caminhos da Vida na Guiné, de Fernando de Sousa Henriques (Mário Beja Santos)

6 comentários:

Anónimo disse...

Só uma pequena nota.
Segundo julgo saber em 74 o PAIGC ainda não tinha ninguém a fazer formação para piloto.
Quando tivessem pilotos e aviões de onde é que operariam..da Guiné-Conakry ? do Senegal ? do interior da Guiné ?!
Como é que se resolvia esse imbróglio a nível de direito internacional.. não podemos esquecer que a Guiné apesar de ter sido reconhecida por muitos Países, ainda mantinha pela O.N.U. ..Portugal como potência administrativa.
Será que a aventesma do sekou touré iria permitir isso.!! porque passava o PAIGC a ter maior poderio militar que o próprio exército da Guiné-Conakry.
Sabemos hoje que os próprios migs do exército da G.Conakry estavam há muito inop e os respectivos pilotos com uma preparação quase nula.
Lamento que ainda hoje se continue a falar nesta mistificação.

C.Martins

Mário Beja Santos disse...

Camarada C. Martins, a imprensa portuguesa divulgou em 4 de Outubro de 1974 que tinham chegado a Bissalanca 2 Mig 17 e 3 Mig 18, com os respectivos pilotos guineenses, formados na União Soviética. Em 1973, segundo relato do Marechal Costa Gomes, na entrevista/livro que concedeu a Manuela Cruzeiro, ele, então chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, terá dito a Marcelo Caetano que a Guiné seria defensável desde que não houvesse ataques dos aviões Mig. São diversos os autores que se referem à preparação destes pilotos e à oferta do equipamento pela União Soviética. Vi-os em Bissalanca, já enferrujados, em 1991. E os pilotos preferiram ir ganhar a vida para outro sítio. Os aviões vieram directamente da União Soviética para Bissau. Os dirigentes do PAIGC sempre negaram ter havido a intenção de bombardear a Guiné-Bissau com os Mig. E Amílcar Cabral referiu explicitamente que estavam a ser formados pilotos guineenses para estes aviões. Cumprimentos do Mário

JC Abreu dos Santos disse...

[... escrito, antes do precedente "comment"]–
Meu caro amigo Manuel A. C. Martins, veterano artilheiro de Gadamael-do-fim,
À sua fundamentada análise crítica com parcial desmonte do que acima está, em mais um postal hagiográfico, apetece acrescentar um estribilho muito em voga nos idos do PREC entre uma certa esquerda folclórica: "o que faz falta é agitar a malta... ".
Desde há anos é incontroverso, para quem regularmente visite e leia este weblog, ser o recensor indefectível apóstolo cabralista que, à míngua de memórias e/ou reflexões - próprias ou alheias - sobre actuação das NT no outrora teatro-de-operações da Guiné Portuguesa, jamais perde "uma janela de oportunidade" para difundir o que, sem sombra de qualquer dúvida, se enquadra na luta contínua da agitação-e-propaganda, não "A Bem da Nação" de todos quantos combateram pela e sob a Bandeira portuguesa, mas em prol das "razões" e - como muito bem lembra - mistificações do IN... Basta que se atente no demagógico e estafado argumentário, incluído na hagiografia supra: «a luta armada, de 1973 para 1974, é o que toda a gente sabe que foi.»
Mais palavras, para quê?!

Anónimo disse...

Caros camaradas
Beja Santos e Abreu dos Santos
A cada um a sua verdade.
Pessoalmente considero que Amilcar Cabral foi o melhor "lider" de todos os movimentos, ditos de "libertação" inclusivé li alguns dos seus escritos antes de cumprir o serviço militar e por quem nutria alguma simpatia.Isso não invalida que procure ser objectivo e tente procurar a verdade dos factos históricos.
Pessoalmente contactei alguns dirigentes do P.A.I.G.C. após abril de 74, durante as conversações para a entrega do aquartelamento onde me encontrava(gadamael).Soube na altura muita coisa que vem desmentir muito do que hoje ainda se escreve.Naltura o PAIGC estava refém do sekou touré e se disser que por exemplo gadamael foi entregue ao exército da Guiné-Conakry, quase ninguém acredita, mas essa foi a pura verdade.
Aquilo que se passou após a entrega da Guiné,é completamente diferente porque os cenários mudaram e não se pode pensar que o rumo dos acontecimentos seriam iguais.
Com a ída de russos para a Guiné na dita "solidariedade proletária internacional" uma das coisas que fizeram por exemplo foi destruir quase por completo os recursos marinhos com seus arrastões de pesca,dando provavelmente em troca entre outras coias uns migs.
Muito teria para dizer mas fico-me por aqui.
Um alfa bravo

C.Martins

antonio graça de abreu disse...

Então Gadamael foi entregue pelas NT ao exército de um outro país, a Guiné Conacry?!...
Estamos sempre a aprender.
Já o Magalhães Ribeiro, na transição de poderes em Mansoa,a que assistiu, nos falou nos soldados do PAIGC que só falavam francês, quer dizer não eram da Guiné-Bissau.
Tenho vontade de dizer mais umas coisas, mas não digo porque prometi
silêncio. Mas lá que apetece, apetece...
E podem vir por aí os Migs...

Abraço,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

De facto, caro António Graça de Abreu, "vivendo e aprendendo", como muito bem diz o nosso povo.

Um abraço,
Carlos Cordeiro