1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 6 de Julho de 2012:
Queridos amigos,
Direi sem hesitação que a leitura deste discurso meu permitiu clarificar o quadro ilusório, a inocência de alguns, a inoperância de muitos e o devaneio de todos que dirigiam o PAIGC no pós-independência: verborreia nas promessas, incapacidade na autocrítica, desmando no uso dos dinheiros públicos, a pesporrência e o infantilismo com que se quis estatizar, planificar e até usar os financiamentos de projetos megalómanos.
Agora até vale a pena reler o testemunho de Filinto Barros e perceber todos aqueles anos de descalabro que prepararam a ditadura pessoal de Nino e da sua clique.
Um abraço do
Mário
Guiné-Bissau, o estado da Nação segundo Luís Cabral (2)
Beja Santos
Em 9 de Maio de 1978, Luis Cabral, Presidente do Conselho de Estado da República da Guiné-Bissau dirigiu-se aos deputados presentes na Assembleia Nacional Popular. Foi um longuíssimo discurso, têm-se sérias dúvidas que estas 200 páginas correspondam à sua comunicação ao longo do dia. Mas o que interessa é o conteúdo, temos aqui uma grande angular das medidas de política encetadas e prometidas, estão aqui os sonhos de progresso entremeados de críticas ríspidas e elogios aos comissários e suas equipas.
Esta comunicação, como se referiu em texto anterior, partiu de uma série de considerações sobre o planeamento, daqui saltou-se para o orçamento e para a situação das importações e exportações; logo a seguir aflorou a política agrícola, a necessidade de melhorar a alimentação dos guineenses, o reforço do controlo do comércio numa economia tendencialmente estatizada e depois anunciou os projetos industriais, destacando pela sua previsível importância o ambicioso projeto do Cumeré que, segundo ele, iria permitir transformar toda a mancarra em óleo bruto, criar condições para o descasco de arroz, o complexo do Cumeré fabricaria sabão e óleo refinado para o consumo nacional e de Cabo Verde. A fábrica do Cumeré começara com todos os sacrifícios, já que não havia ainda financiamento externo. Outros projetos de grande porte tinham sido modificados e reduzidos, caso do projeto para uma fábrica de açúcar e a prevista central em Porto Gole, que daria luz para todo o norte da Guiné. Havia queixas sobre a fábrica Titina Silá, que era a primeira fábrica feita na Guiné, do princípio ao fim, com a ajuda da holanda. Havia críticas, importava perceber as dificuldades técnicas: “O sistema que ali foi colocado para encher os pacotinhos de sumo de fruta não funciona bem: o ar entra nos pacotes provocando a fermentação do sumo. Há uma coisa que não podemos compreender: como é que uma fábrica daquelas, nesta altura do ano – o período mais importante da campanha de frutas: do mango e do caju – parou por não ter dinheiro para comprar fruta! E qual o motivo por que as compotas da fábrica são arrecadas no armazém e não se vendem? Isto é bastante grave”. Feita a admoestação, veio o elenco de mais promessas, caso dos silos que levam mais de 3 toneladas de produto, seria ali que se iria guardar a mancarra destinada à fábrica do Cumeré; iria ser construída uma fábrica de cerâmica em Bafatá, uma fábrica de descasque de castanha de caju em Bolama, uma fábrica de curtumes em Bissau, fábricas de óleos de palma em Cacheu e nos Bijagós, uma pequena fábrica semi-artesanal de produção de cal nos Bijagós.
Feito o anúncio de tanto projeto em latência, Luís Cabral disse que chegara a hora de pegar a sério no problema da energia. Bissau vivia permanentemente os cortes de energia e fez o reparo: "Não é possível fazer desenvolvimento sem eletricidade e corremos o risco de vermos a nossa indústria paralisada”. Adiantou que tinha sido criado a Ceabis, a companhia de eletricidade e águas de Bissau e explicou que tinham havido problemas de gestão e desleixo dos diretores. Listou novas promessas: “Temos um projeto que é feito com crédito da União Soviética para a instalação de centrais em Gabu, Bissorã, Farim, Cacheu e outros pontos. São 11 grupos que compramos com crédito que a União Soviética nos concedeu e começaram já a ser instalados. Mas é claro que ainda há problemas de distribuição decorrente naqueles centros. Vamos fazer uma central nova, ou duas centrais, noutros lados talvez três, e a produção de energia ficará assim garantida nesses locais”. Havia recursos que iriam ser explorados, com prioridade para a água, era o caso de um projeto de algumas centenas de furos nas áreas de Bafatá e Gabu; os fosfatos do Boé eram uma riqueza potencial, tal como a bauxite e anunciou: “Iremos construir uma fábrica que irá transformar a bauxite em alumínio, sendo depois exportada com grande acréscimo de valor"; no caso do petróleo previa-se, com a colaboração de uma firma italiana fazer-se a prospeção das águas territoriais, fora criada a empresa Petrominas para tal.
A exposição de Luís Cabral deslocou-se para os transportes, elogiou a empresa Silô Diata, considerou-a uma das grandes vitórias do Governo, graças à ajuda da Noruega já tinham sido recebidos 35 autocarros; fora criada uma empresa de transportes marítimos, a Guinémar. Mas criticou o facto de haver barcos que estavam paralisados há demasiado tempo e aproveitou para criticar os motores de barcos novos que estavam a ficar rebentados incompreensivelmente e afirmou mesmo: “Um motor Volvo pode trabalhar mais de 10 anos sem problemas, um motor Chrysler dura também pelo menos 10 anos de trabalho. Mas na nossa terra um motor rebenta 3 meses depois, 6 meses depois. Não podemos realizar o progresso da nossa terra se continuarmos a trabalhar dessa maneira”.
Custa a crer que um líder político tivesse conseguido manter um auditório interessado com tantíssimos pormenores, ao longo de um só dia. Ainda no dossiê dos transportes, Cabral falou detalhadamente das obras do aeroporto, de companhias aéreas, de uma companhia de transportes da Guiné e Cabo Verde e de reparações nos portos. Acerca do sistema de telecomunicações, explicou a natureza das ajudas internacionais previstas falou do estado das estradas, fez críticas às obras públicas, da urbanização de Bissau, de uma fábrica de casas pré-fabricadas. Foi minucioso sobre o dossiê educação, a formação de professores e o modo como se deviam tratar bem as ajudas de países amigos e criticou a demora na elaboração de livros escolares. Deteve-se sobre o sistema de saúde, a rede hospitalar e a necessidade de melhorar a assistência sanitária. Exaltou o papel dos meios de comunicação social, queixou-se de ver o jornal Nô Pintcha amontoado nas prateleiras por pura negligência dos quadros da administração do Partido e pediu pedagogia aos camaradas da rádio: “Camaradas em que depositávamos bastante confiança mas que estão agora a falhar na própria transmissão do noticiário em direto. Dão barracas grandes que colocam a nossa terra no ridículo. Há pessoas que se sentam à frente do microfone e que dizem coisas que não têm nenhum senso”.
Passou em revista os problemas da indústria hoteleira, a situação melindrosa dos Combatentes da Liberdade da Pátria, havia que os apoiar a fazer cooperativas, cuidar dos órfãos. Deu largas esperanças aos deputados sobre as riquezas do mar. Falando da justiça, chegou mesmo a descer à demagogia pura: “Nós temos que ver que o ladrão e até o criminoso é um produto da sociedade onde vive. Entre nós, eles são consequência do colonialismo que os levou à degradação e à tendência para o crime, tendência às facilidades, ao roubo e oportunismo, à vontade de ter dinheiro muito rapidamente. Tudo isso é consequência da sociedade colonial. Naquele tempo em que cada um puxava para seu lado, em que uma pessoa roubava para ficar mais rica, as pessoas que trabalhavam na Gouveia roubavam para passarem a comerciantes. Quem trabalhava para a Ultramarina, se roubasse ficava rico porque, naquele tempo, era a ver quem é que apanhava mais”.
A longa viagem discursiva abordará ainda as Forças Armadas a amizade e cooperação com todos os países e por fim a elevação cultural do povo, falou-se da Casa da Cultura, do Instituto Nacional de Cinema, do Instituto Nacional de Investigação Científica e na edição das obras de Amílcar Cabral. Contrariando muito do que disse atrás, findou assim: “Sabemos que a nossa terra avança bem. Que o Partido está a cumprir todas as promessas que fez. Sabemos que o nosso povo lavrador sente que hoje a terra é diferente do que era ontem. E se perguntarmos às nossas crianças certeza que dizem que hoje a Guiné-Bissau é feliz”. O que veio depois desmentiu o corolário de ilusões.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 7 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10344: Notas de leitura (398): Guiné-Bissau - O Estado da Nação (1) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Pois é Mário, um discurso de 200 páginas sintetizado em 2 posts é trabalho.
"...O ladrão e até o criminoso...Entre nós, eles são consequência do colonialismo que os levou à degradação e à tendência para o crime"", dizia Luís Cabral.
Descrever os sonhos de Luís Cabral, que eram descritos na rádio e no Nô Pintcha, e nas obras mirabolantes que eu conheci quase todas, quase me faria "rir" à gargalhada se eu não tivesse trabalhado em oito (8x2) túneis para turistas na Ilha da Madeira.
Até podia "rir à gargalhada" se não viesse a tempo para a tuga a tempo de trabalhar numas estradas com 40 metros de largura e viadutos de 1000 metros no interior de Portugal, para um dia passarem ovelhas e cabras.
Luís Cabral ligou a fábrica do Cumeré à ponte cais de Bissau atravez de um tudo para bombar o óleo de mancarra directamente para os navios para exportar.
Esse tubo como era enterrado nas bolanhas e canal do Ipernal quase ninguem sabe onde passa nem sabe que existe, mas existe porque o vi na saída e conheci os encarregados da obra.
Mas tambem vi um dia no meio de um pinhal um estádio de futebol que parecia um circo abandonado, era o estádio do Beiramar perto de Aveiro.
Como o Luís se enganou e tanta gente se iludiu.
Mário cada vez que vens com as tuas leituras, fico sempre mais reacionário.
Tanto Luís Cabral como eu ainda colonizámos simultaneamente, ele na Guiné eu em Angola, será que eu e ele deixámos o gene da roubalheira e do crime, como ele diz que a culpa é do colonialismo o roubo e o crime?
Cumprimentos
Olá Rosinha,
O Luís Cabral terá posto o dedo na ferida, mas com muito medo para escarafunchar, daí o volte-face final.
Ele sabia da necessidade premente de energia, mas, ainda antes de a dispor, lançou os empreendimentos. Como se deus fosse grande!
Tudo contado, resulta que aprenderam a dar tiros, que aprenderam a viver confortavelmente, e que ainda devem contar com a solidariedade internacional. Como nós aqui: elegemos alarves para governar, sacam a bel-prazer, ficamos passivos perante os dislates, e queremos a solidariedade para continuar a financiar-nos.
Sem regressos ao passado,às vezes também fico meio-reaccionário com dirigentes desta categoria. A Guiné foi uma colónia muito sacrificada, onde a ignorância de uns quantos, os leva a disputar cargos sem noção do rídiculo e da incapacidade. É uma espécie de D.Branca, enquanto houver moedas no saco e balas na câmara.
Abraços fraternos
JD
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