sábado, 15 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10388: Do Ninho D'Águia até África (9): Orquídea Negra da lama da bolanha (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D´Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (9)

Orquídea Negra da lama da Bolanha

O Cifra, desde que foi ferido com estilhaços de granada de morteiro, tinha um projecto em mente que queria realizar. Era a construção de um abrigo com alguma segurança, próximo do centro cripto. Falou com os outros companheiros do centro cripto, e nas horas de folga começaram a escavar a terra numa certa área, onde ainda não havia construção. Os seus superiores, ao vê-los em tal projecto, apoiaram a ideia, e recomendaram que usassem alguns prisioneiros para os ajudarem.

Tanto o Cifra, como os companheiros, pensaram que seria boa ideia, pois deste modo sempre estariam pelo período de algumas horas ao ar livre, onde podiam fazer alguns exercícios físicos. Assim, pela manhã, quase todos os dias, alguém iam buscar dois ou três prisioneiros, dos mais jovens e melhor porte físico, para os ajudarem nessa tarefa.

Passado uns dias de convivência com os ditos prisioneiros, um dos mais novos que falava um pouco de português, dizia ao Cifra, mais ou menos isto:
- Mi, não saber porque estar preso. Mi, querer ser militar do Portugal, como Cifra. Mãe, e irmãs necessita de mi, para trabalhar bolanha e trazê manga de arroz para pessoal comê. Mi, viver próximo do quartel da tropa. Não é justiça estar preso, já não ter pai, quando família necessita de mi

Uma série de palavras que deixou o Cifra a pensar. Num dos próximos dias, ao entregar uma mensagem decifrada, directamente ao comandante, o Cifra, na sua inocência e boa fé, contou a história do prisioneiro.

O comandante, depois de ouvir o Cifra, dá-lhe uma tremenda repreensão, dizendo numa voz um pouco alterada:
- Isto é uma ordem, não deves falar com os prisioneiros, isso são assuntos que não te dizem respeito, nem a mim tu deves falar nesses assuntos, e a partir de hoje, não usas mais esse prisioneiro na escavação do abrigo. Entendidos?

A palavra “entendidos”, foi dita lá de cima, do lugar de comandante, a falar para as tropas. No entanto, tomou nota do nome do prisioneiro.

O Cifra era um militar razoável, mas um fraco guerreiro. Ficou com algum receio do comandante e nos dias seguintes tentava não o enfrentar, procurando todos os truques possíveis. Entregava as mensagens decifradas a qualquer militar, no comando, que trabalhassem junto dele, e que lha fizesse chegar às mãos, o que lhe importava era que assinassem a folha de entregas.

Passado um tempo, quando o Cifra vai ao comando entregar uma mensagem decifrada, sempre tentando evitá-lo, o comandante ouve a sua voz, sai do seu gabinete, e entre outras palavras diz-lhe:
- Anda cá, oh Cifra, vem aqui ao meu gabinete.

O Cifra, não levava nada vestido, a não ser uns calções, já um pouco coçados, ficou ainda mais embaraçado, e a muito custo entrou no gabinete do comandante. Fez uma saudação muito mal feita, dizendo:
- Dá-me licença meu comandante!. Vossa Excel...

O comandante não o deixou acabar a palavra, e diz-lhe:
- Deixa-te de salamaleques e vamos ao que interessa. Põe-te à vontade, parece que o teu comandante já não existe. Ouve bem, pois tenho uma missão para ti. Vamos libertar o prisioneiro, de quem tu me falaste, e se ele vive perto do aquartelamento, tenta visitá-lo, ele já te conhece, se vires alguma coisa suspeita, como visitas, armas ou qualquer outro objecto, lá na sua casa ou à sua volta, que te desperte a atenção, informa-me, talvez não seja como ele diz, pelo menos as informações que temos são diferentes, mas vamos ver como as coisas correm.

As coisas correram perfeitamente.

O Cifra, passou a ser amigo dele. Tinha duas irmãs. Ambas tinham os olhos azuis, talvez descendentes dos padres da ordem religiosa francesa que existiu na área, antes das tropas portuguesas se instalarem na povoação. As duas gostavam do Cifra e faziam tudo para lhe agradar, mas uma delas, de nome Cumba, é que afirmava a pés juntos que era a lavadeira do Cifra e era com essa que o Cifra mais simpatizava. Lavava e passava a ferro as camisas, calções e meias do Cifra, que andava sempre limpo, o que levava a que o Curvas, alto e refilão, comentasse:
- Porra, que o Cifra agora anda vestido, como se fosse um “Maricas”!.

Ela colocava sempre uma flor de cheiro em cima da roupa lavada. Enfim, “era um amor de rapariga”, como se dizia na sua aldeia do vale do Ninho d’Águia, e se a sua mãe Joana, visse a maneira com que ela cuidava da roupa, e não só, de tudo o que dizia respeito ao Cifra, com certeza que diria, “mas que rapariga mais prendada o meu filho arranjou”. Naquele tempo, as mães tinham alguma influência nas decisões dos filhos. Isto tudo, sem ter visto os dotes físicos com que o Criador a beneficiou.

Mas continuando com a narração, o Cifra bebia aguardente de palma, comia papaia fresca e fruta de caju, andava pela beira do rio a ver as raparigas a lavarem a roupa na maré cheia. Andava durante o dia, e numa certa área, à volta do aquartelamento, sem arma ou qualquer protecção, ia para a “bolanha”, que era o pântano onde crescia o arroz, na companhia do amigo, da sua Cumba, da irmã e da mãe, e ajudava-os, algumas vezes, em algumas tarefas. Também andava de canoa, na altura da maré cheia, o que bastante o divertia, enfim, parecia que tinha uma família, e algumas vezes fechando os olhos, pensava que estava na sua aldeia em Portugal. O Setúbal, sempre que estava livre, ia com ele, pois simpatizava com a outra irmã.

Quando iam para a “bolanha” trabalhar, a bonita e apaixonada Cumba, sempre a brincar e com um ar sensual, com uma mão cheia de lama, pintava a cara ao Cifra dizendo que assim era mais parecido com ela, tal qual um africano, e abraçava-o, ficando os dois corpos quase nús, colados um ao outro, encharcados em lama, que caíam abraçados e felizes, ficando por algum tempo juntos, rebolando-se na água e na lama da “bolanha”, tal como dois animais selvagens da savana africana, em plena época do cio, beijando-se e mordendo-se, e das suas gargantas saíam uivos e gritos de dor e prazer. Nessa altura o sabor e o cheiro, feminino e sensual daquilo a que se podia chamar “Orquídea Negra da lama da Bolanha”, ferravam tal como um demónio, as mais profundas entranhas do corpo do Cifra, para não mais sair, durante o resto da sua vida. Quando isto acontecia, o amigo, a outra irmã e a mãe, fugiam para longe, falando uma linguagem alegre, pensando que tudo o que eles faziam devia ser feito, em paz, sem olhares indiscretos e no mais profundo silêncio, somente interrompido pelos seus uivos e gritos de dor e prazer, que saíam das suas gargantas.

Os leitores vão por certo perdoar a maneira como descrevo esta fase de recordações da juventude, passada na guerra, que talvez não faça parte do contexto da história da guerra vivida em África, mas isto é um retrato da verdade, os povos amam-se, sómente os governos se guerreiam, e pensando bem até faz parte dessa mesma guerra, pois todos nós combatentes, talvez pelo isolamento a que estivemos sujeitos, quando havia contacto com a população, e havendo raparigas, tivemos a nossa pequena ou grande aventura de amor em África, e quando há amor, também há dor e sofrimento, por isso estávamos a sofrer, num lugar de conflito, é isso que a nossa história nos diz. Mas continuando com a narrativa, durante o tempo em que o Cifra conviveu com esta família, nunca suspeitou de nada, ou algum contacto fora do normal com forças de guerrilheiros, do movimento de libertação, ou talvez o Cifra não visse, pois era uma fase da sua vida, em que andava feliz.

Tanto o Cifra como o Setúbal, uma vez por semana, esperavam que abrissem as latas de chouriço de conserva que se consumiam no aquartelamento, e levavam parte de uma lata, com o consentimento do sargento da messe, que era amigo do Cifra, para a família. Pão, levavam quase todos os dias, a princípio, não gostavam do pão, mas depois já queriam mais. Também levavam comida do aquartelamento, sempre que sobrava. O Comandante ia perguntando ao Cifra por novidades, e o Cifra respondia:
- Meu comandante, se Vossa Excel... E o comandante, não o deixava terminar e dizia:
- Deixa-te de salamaleques, e diz-me com vão as coisas. E então o Cifra dizia:
- Eu não percebo nada de espionagem, mas nunca me apercebi de nada fora do normal, e duma coisa estou certo, durante o dia, pois não sei o que se passa durante a noite, e principalmente nas horas que passo com a família, são das coisas melhores que me aconteceram na guerra. Ainda não reparou, como agora ando limpinho!. Até já uso camisa.

O comandante mostrava um pequeno sorriso e mantinha-se calado. Algum pessoal, no comando que ouvia esta conversa, ria-se pela calada, e alguns, até mandavam piadas ao Cifra.

Passou algum tempo, até que um pelotão de reconhecimento regressa ao fim da tarde ao aquartelamento, com um guerrilheiro que tinham encontrado, por casualidade, deitado debaixo de uma árvore, dando a intender que adormeceu mascando “cola”, pois eram esses os indícios que vinham da sua boca, ou talvez se tenha deixado mesmo adormecer, esperando pela noite, para continuar com a sua missão. Estava fardado, trazia uma metralhadora e uma catana segura na sua cinta, e era possuidor de diversos documentos e alguma quantidade de dinheiro, dando a entender que devia ser mesmo um mensageiro.

Chegados ao aquartelamento com o guerrilheiro, que estava com as mãos amarradas com uma corda, vão ver o comando, onde aparece um major que fazia parte do serviço de operações especiais, a quem o Cifra nunca viu um sorriso na face durante os dois anos de comissão, e que para ele todos os naturais eram “terroristas”, se não eram agora, iriam ser no futuro, pelo menos era o que diziam a seu respeito, que ao ver o guerrilheiro fardado, aproxima-se, e no momento em que o guerrilheiro, talvez vendo as divisas de major, diz mais ou menos isto, num português que se compreendia:
- Sou um guerrilheiro do movimento de libertação PAIGC.., e quero ser tratado como um prisioneiro de guerra.

Alguns militares, não percebendo a mensagem, riram-se, e o major, aproxima-se mais um pouco e desfere uma enorme bofetada na cara do guerrilheiro, que parecia mais um soco, pois o guerrilheiro com as mãos amarradas, desiquilibrado, caiu no chão imediatamente, dizendo com uma voz de fúria, mal contida:
- Levem este “terrorista” para o local dos interrogatórios.

Resultado do interrogatório.

Este guerrilheiro, que devia ser um mensageiro que fazia a ligação entre as diferentes bases do movimento de libertação que actuavam na zona, pois trazia dinheiro em alguma quantidade e documentos que comprometiam o tal amigo do Cifra que queria ser militar de Portugal, cuja a irmã era a lavadeira, e que era nem mais nem menos, que o informador dos guerrilheiros que actuavam na zona do aquartelamento.

Veio também a saber-se que parte da comida, que o Cifra e o Setúbal levavam para a família, à noite, era entregue a alguns guerrilheiros, sendo este um deles.

Também informava os guerrilheiros de toda a movimentação das tropas que saíam e entravam no aquartelamento. Antes de conhecer o Cifra e ser preso a primeira vez, quando houve um ataque ao aquartelamento, em que o Cifra e outros militares foram feridos por granadas de morteiro, era ele que dava o sinal, com tiros de pistola, por código, mais para o sul, ou mais para o norte, de modo a acertar com mais precisão no alvo, que neste caso era o aquartelamento. Imediatamente uma secção de combate foi recapturar o dito amigo do Cifra, que muito admirado com a atitude dos militares, em o levarem preso de novo para o aquartelamento, dizia mais ou menos isto:
- Que quer o pessoal da tropa de mim? O Cifra está no quartel da tropa?

Interrogado na frente deste guerrilheiro e perante os documentos que o comprometiam, confessou e explicou que sentia orgulho no que tinha feito, pois era africano e esta era a sua terra. Mais disse, que a base de onde recebia ordens era em determinado local, mas que já deviam de ir tarde para a destruírem. Nomeou por diversas vezes o nome do Cifra, sem nunca o comprometer ou o acusar, mas que o queria ver. 

Ainda hoje o Cifra está para saber porque é que ele, vendo chegar o guerrilheiro mensageiro, que ele devia conhecer, preso no meio dos militares que regressaram ao aquartelamento, pois vigiava todos os movimentos das tropas, não fugiu. Talvez pensasse que estava protegido pelo Cifra e que nada lhe ia acontecer. O Cifra ainda hoje lamenta se ele pensou assim, pois não tinha qualquer influência, era um simples militar que tentava sobreviver em ambiente de guerra e considerava o tempo que passou com a sua família, uma dádiva do destino, pois o Cifra, também se entregou com o coração e nunca pensou que talvez estivesse a ser usado, e o comando, que tratava os guerrilheiros por “terroristas”, não lhe ia perdoar, pelo que ele tinha feito antes.

Continuando, portanto já não queria ser “militar do Portugal”, como dizia anteriormente ao Cifra, agora era africano e esta era a sua terra. Toda esta informação do interrogatório, ninguém sabe como, mas correu de boca em boca, pelo aqurtelamento, alguns militares brincavam com o Cifra e com o Setúbal, dizendo:
- O vosso amiguinho afinal era guerrilheiro. Que era africano já nós sabíamos, pois a cor não enganava. Quanto às irmãs, ainda vão ficar viúvos, coitadinhos...

Alguns, como era o caso do Curvas, o tal soldado atirador, alto e refilão, não escondia a sua reles linguagem e dizia:
- Se eu tiver oportunidade, eu faço-lhe a folha. Então o filho da puta era o que dava os tais sinais de pistola! Porque é que eu não o matei antes?

Ninguém sabe se era coincidência ou não, mas durante o tempo em que o Cifra e o Setúbal conviveram com essa família, o aquartelamento nunca foi atacado pelos guerrilheiros. Passado algum tempo, e quando os guerrilheiros começaram de novo a atacar o aquartelamento, levou a que o Cifra fosse interrogado pela tal polícia do Estado, que tinha a sua central na capital da província mas que se passeava por algumas áreas do aquartelamento, umas vezes de passagem de rotina, outras vezes convocadas para interrogatórios de grau elevado, que quase sempre acabava em morte dos interrogados, e metia o nariz em tudo o que no seu entender lhe parecia suspeito. Alguns até diziam que esta polícia mandava mais que o comando e andava por ali para o fiscalizar. Numa dessas passagens pelo aquartelamento chamaram o Cifra ao local onde era costume fazerem os interrogatórios, onde foi bombardeado com perguntas por dois arrogantes polícias durante uns longos vinte minutos, tempo esse que o Cifra considerou um dos momentos mais difíceis e humilhantes da sua passagem por este cenário de guerra. As perguntas não eram do género do polícia bom e do polícia mau, eram perguntas com frases já feitas e escritas num papel, que tanto um como outro queriam pôr na boca do Cifra e que finalizavam quase sempre com as palavras “anda confessa", "diz que sim” ou “nós sabemos que tu sabes, diz que sim”. Isto tudo intervalado com algumas perguntas estúpidas a respeito de sexo. Quando estas perguntas eram feitas os olhos brilhavam à espera de resposta, dizendo sempre qualquer coisa como “elas eram boas, não eram, até tinham olhos azuis”, dando a entender que estes miseráveis polícias não deviam ter tido sexo há um milhão de anos. O comandante, talvez por obra do destino ou porque alguém o avisou do que se estava a passar, aparece no local e diz:
- Quem autorizou todo este interrogatório? Terminem imediatamente com este disparate, pois fui eu que lhe dei ordens para conviver com o prisioneiro e sua família, pois havia um plano que entretanto abortou, mas mais tarde ficou completo com a chegada de novas informações.

O Cifra nunca chegou a saber que plano era esse e se iria servir de cobaia nesse referido plano, mas pensou que o comandante se referia à prisão definitiva, do seu suposto amigo, irmão da lavadeira. Por uma fracção de segundos ainda pensou se o comandante não entraria no interrogatório, fazendo de polícia bom, mas não, o comandante veio pôr as mãos nas costas do Cifra e tentou levá-lo para fora do local dos interrogatórios.O Cifra, ouvindo estas palavras do comandante, recuperou alguma coragem e disse, sem qualquer controle, tudo o que lhe ia na alma, usando a linguagem do Curvas, alto e refilão, e terminando mais ou menos assim, referindo-se aos polícias:
- ...vocês, são os maiores filhos da puta que encontrei em toda a minha vida!

Para alguma tristeza do Cifra e do Setúbal, as duas irmãs e a mãe, pois o pai há muito que tinha falecido com uma doença que lhe comeu parte das pernas, diziam que era a lepra ou coisa parecida, desaparecem da aldeia na noite em que o suposto amigo do Cifra foi de novo levado pelos militares. Passado um tempo houve informações, que passaram pela mão do Cifra, que os guerrilheiros, informados da prisão do irmão e do guerrilheiro mensageiro, vieram buscá-las, e claro, mudaram imediatamente a localização das suas bases na região.

O Cifra, a partir desse momento, ficou com quase a certeza que elas já eram guerrilheiras, mesmo antes de conhecerem o Cifra e tinham recebido treino, sendo instruídas e mentalizadas para fazerem tudo, mesmo tudo, sem qualquer restrição, a favor do seu movimento de libertação, vendo no Cifra uma potencial fonte de informação, mas nesse aspecto não tinham sido bem treinadas, pois o Cifra era um razoável militar, embora fosse um fraco guerreiro, que exercia o seu trabalho com seriedade e todo o sigilo, para que tinha sido treinado, nem ele sabia porquê, mas tinha assimilado essa vertente do treino. Mas voltando ao assunto, sem querer cortar o fio à meada, o comando, imediatamente, organiza uma operação para destruir a base que o suposto amigo do Cifra citou e também para verificar se era verdade o que ele tinha dito. Uma operação destas não era simples, mas também não era complicada. Normalmente incluía a força aérea e algumas unidades do exército. Esta começou com parte de um pelotão de morteiros e de uma companhia de intervenção, onde actuavam alguns militares africanos, onde ia o suposto amigo do Cifra que seria o principal guia, forçado, claro. Talvez com promessas de libertação.

(A história de acção, que se segue, foi descrita por alguns intervenientes, após chegada ao aquartelamento, contudo o relatório oficial, que seguiu para o comando territorial, na capital da província, era um pouco diferente.)

Saíram ao amanhecer do aquartelamento, pois de noite ninguém circulava em viaturas auto. Quando próximo do objectivo, e em lugar que entendessem ser de alguma segurança, deixaram as viaturas, onde ficou parte da força militar a manter a sua segurança. Os restantes militares seguiram a pé por pouca distância, comunicaram à força aérea, que fez deslocar um avião que largou umas bombas que normalmente continham napalma, que praticamente destruíu o objectivo. Depois é só esperar que o fogo, que as bombas produziram termine, e segue-se o serviço de limpeza e recuperacão de algum material do inimigo que ainda possa ter sobrevivido às explosões das bombas, como armas, documentos ou qualquer outros objectos que possam ter interesse militar. Mas normalmente depois da actuação das bombas do avião, nada ficava que fosse possível recuperar.

(Creio que na altura havia um ou dois aviões na base aérea da capital da província que largavam estas bombas e que uma organização internacional com o nome de ONU, a que o governo de Portugal pertencia, tinha proibido esse mesmo governo de usar esses aviões neste cenário de guerra de guerrilha. Nessa altura já não tinha o suporte de um terço dos seus membros, para lhe dar essa legitimidade, não sei se estou certo, mas creio que sim. Na altura passaram pelas mãos do Cifra mensagens com alguma informação nesse sentido, por ocasião de uma possível visita de enviados ao território para inspecção, por essa organização internacional. Talvez os meus camaradas, mais bem informados e ainda vivos, possam esclarecer com mais detalhes).

Mas continuando com a narração, por vezes o pelotão de morteiros era fundamental com o lançamento de algumas granadas quando havia alguma força de guerrilheiros em actividade, o que não era o caso nesta situação, porque se houvesse actividade, e se por tal motivo fosse necessário, tinha vindo uma força de tropas pára-quedistas, ou até um grupo de comandos da capital da província, que nessa altura se estavam a formar, e que era composto quase na sua totalidade, por naturais. Diziam que estes comandos, como grupo de tropas de acção, era o mais eficaz na guerra de guerrilha. A base, no momento, e como se esperava, não tinha actividade, foi destruída e não houve contacto com o inimigo.

Terminada a operação, já no regresso, antes de chegarem às viaturas auto, executaram o principal guia, neste caso o suposto amigo do Cifra. Ninguém sabe porque o mataram, talvez porque deixou de ter interesse militar ou pelas informações do interrogatório que andaram de boca em boca no aquartelamento. Foi muito simples, para quem anda na guerra, para quem perdeu quase todos os sentimentos de dignidade, derivado ao local e ambiente onde se encontra, que é de constante conflito, angústia e sobrevivência, ou seja estar vivo todo o momento, nem que para isso tenha que praticar as coisas mais horríveis, que um ser humano, alguma vez pensou em fazer, enfim, para quem foi instruído e treinado para matar.

Um certo grupo de militares deixou-se atrazar dos demais, onde se incluía o dito amigo do Cifra. Soltaram-no, e disseram:
- Estás livre, vai-te embora.

O desgraçado, vendo-se livre, correu em direção oposta ao grupo. Nesses momentos há sempre um militar, como no caso do Curvas, alto e refilão, que num acesso de fúria, derivado à sua pouca educação escolar, porque carrega uma enorme frustração de algo que ainda não conseguiu realizar na sua ainda curta vida, porque na sua ignorância quer mostrar que é mais valente que os colegas ou até às vezes um natural que colabora com os militares, e que também leva uma arma, servindo de guia e tradutor, que não simpatizando com o homem pois é de diferente etnia, que dispara um tiro, ou uma rajada de G3 nas costas do prisioneiro.

Não foi o militar que o matou, mas sim, o regime que o treinou para matar, que lhe dizia na altura da instrução básica qualquer coisa como: não importa, vai em frente, tens a razão do teu lado, em força, contra tudo, mata, tens uma arma na mão, estamos a ensinar-te a manuseá-la, usa-a, pois quando ganhares, serás um herói. Embora neste caso, a situação não seja a mesma, mas o sentido do treino e da formação, estava lá, e alguns militares absorveram, enfim, aprenderam a lição que os instrutores lhe explicavam e exemplificavam no seu próprio corpo, por centenas de vezes, a melhor maneira de matar um ser humano, com uma faca, uma metralhadora, com morte rápida, ou com prolongamento de dor.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10365: Do Ninho d'Águia até África (8): O "Arroz com pão"

3 comentários:

G.Tavares disse...

Camarada Cifra
Permita-me que o trate assim.
Li a sua história,gostei e fiquei a meditar nela pelos dois aspectos quem me impressionaram e revoltaram:um ,foi "o amor em tempo de guerra" bonito embora com um final pouco feliz ainda que escondesse outras intenções.Em todas as guerras isso aconteceu mas nem por disso deixa de ter encanto,mais não seja enquanto se vive; o outro , brutal, comum também a todas elas, mas que eu talvez por ingenuidade sempre achei que os Portugueses não os praticassem.Refiro-me aos facínoras criminosos da policia politica, ao "valentão" do major que dentro do arme farpado agride um prisioneiro amarrado e indefeso e o "militar" "valente " que covardemente assassina um prisioneiro a quem cinicamente dão a liberdade. . Acho que estes "heróis" deviam ser identificados, principalmente o major que hoje certamente será um coronel ref a contar baboseiras das suas heroicidades aos netos.Talvez esses netos gostassem de saber que espécie de avô têm ou tiveram. Também era bom saber quem autorizava que os fdp dos pides a andarem dentro dum quartel militar e fazerem interrogatórios. Do mesmo modo gostava de conhecer o seu comandante que pôs termo a esse interrogatório que podia ter acabado da pior forma para si.Pelo menos este salvou-se. Foi pena que ninguém tivesse tomado a iniciativa de os linchar dentro do quartel,pois essa gente (pides) não conhecia outra linguagem.Fui combatente noutro TO mas não servi esse "exército". Graças a Deus.
Continue a escrever pois sou seu leitor e gosto do que escreve.
Saudações de combatente para combatente.
G.Tavares

Anónimo disse...

Um abraço, camarada
José Brás

Henrique Cerqueira disse...

G Tavares
Informo que a PIDE/DGS Estava instalada em especial nas sedes de Batalhão,no programa de informações e contra informações.Esses indeviduos infelizmente chegavam a ter mais autoridade que o próprio Comandante de Batalhão,pois que muitas das veses as suas promoções dependiam do sistema "político".Esses indeviduos ganhavam chorudos ordenados,tinham jipes civis ,motas e pavoneavam-se nas messes em especial nas dos sargentos.Haverá de certeza alguns dos nossos ex.comandantes que se quisererem e tiverem coragem poderão contar muito melhor a vidinha desses ex.Bandidos.
Quanto á polémica de maus tratos físicos de superiores a subordinados,felizmente nunca verifiquei.MAS...VI e SOFRI NA PELE EM TAVIRA O PIOR DOS MAUS TRATOS QUE FORAM OS PSICOLÓGICOS E POR MOTIVOS GRATUITOS E POR MERO GOZO. Mais grave ainda por Alferes e Aspirantes milicianos.Não falo nos seus nomes porque nem sei,mas tenho as suas caras gravadas na memória e se já morreram ou quando morrerem que a terra lhes seja muito pesada.Não sou um traumatizado,tenho uma familia feliz ,filhos neto e espôsa.Mas esses,oficiais estarão na minha mente até ao dia que eu morrer.
Abraços Henrique Cerqueira