domingo, 18 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10692: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (30): Colégio de Oliveira de Azeméis (3): Parte II (2)

1. Em mensagem do dia 13 de Novembro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos a segunda parte das suas aventuras no Colégio de Oliveira de Azeméis de que se publica hoje o segundo poste:

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (30) 

Colégio de Oliveira de Azeméis C.O.A.

Parte II (2)

Visita “permitida” ao internato feminino 

Era um domingo, ao fim da manhã! Eu frequentava o 7º ano; estávamos num período, sempre complicado, entre as escritas e as orais. Depois da missa e de seguida a uma breve passagem pelo jardim, os alunos internos estavam agarrados aos livros, no salão de estudo. Solicitei ao Sr. Correia que me autorizasse estudar no recreio – pretensão logo autorizada! Ele sancionava tudo o que eu, respeitosamente, lhe pedia!

Eu sabia que os diretores não estavam no colégio. A srª Dª Maria Adília tinha ido a Aveiro acompanhar uma aluna, filha de um juiz que vivera do outro lado da avenida; ela ia juntar-se ao pai que, entretanto fora colocado em Lisboa. Soube há dias que aquela aluna veio a casar com um tal Basílio Horta, que todos, certamente, conhecem.

A hora era propícia! Atravessei o quintal e fiz uma visita ao recreio das alunas. Encontrei a perfeita, menina Rosa; dois dedos de conversa… e as portas do internato foram-me franqueadas. Autêntica anedota! De seguida, fui autorizado a subir às camaratas. As “pequenas” nem acreditavam no que viam. Conversámos a esmo, descontraidamente, durante algum tempo! Só generalidades e… culatras! Apercebi-me que no quintal do vizinho (creio que pertencia à família Guedes, donos da ourivesaria) havia uma pereira cujas peras atraentes chamavam por mim; saltei o muro e trouxe boa quantidade de suculentos frutos e saboreámo-los irmãmente.

Ninguém viu! Quem acreditaria que as educadas meninas do COA ousassem saltar o muro para roubar fruta? Que disparate! Eis que, na porta de entrada do internato feminino, ouvimos alguém chamar, altos brados, pela menina Rosa! Era a voz da Srª Dª Adília que entretanto regressara de Aveiro. A perfeita loira aconselhou que me escondesse e desceu logo ao encontro da Diretora. Esconder-me? Nem pensar! Passei para a varanda (a mesma onde tempos antes as meninas se refugiaram aquando do “assalto” ao internato) pendurei-me nas grades e saltei para o quintal; corri em direção do muro que o separava do nosso recreio, passei por cima e disse para comigo: desta já e safaste! Mas cuidado! O teu anjo da guarda, um dia, pode cochilar!


A “fuga” do 5º ano 

Em época de exames, entre as escritas e a saída das notas, os alunos andavam, regra geral, muito nervosos… em pulgas. Eu estava no 7º ano! Saturado de estar no salão de estudo, sem saber bem o que fazer, pedi ao Sr. Correia autorização para dar, mais uma vez, uma volta pela vila; era essencial mudar de ares e ver pessoas diferentes, acima de tudo, sem livros na mão. Ele passou-me logo a chave do portão do jardim que separava o internato masculino da avenida. Única recomendação já minha velha conhecida:
- Cautela para que o Senhor Almeida não te apanhe!
- Eu sei onde ele está! Na pior das hipóteses eu saltei o muro!

Quando cheguei ao jardim da vila apercebi-me que muitos alunos do 5º ano corriam, em puro desnorte, sem saber bem para onde nem porquê. Nenhum sabia aproveitar convenientemente, aqueles momentos de liberdade! Tinham saltado os muros do colégio mais pelo prazer efémero de infringir as regras, do que por qualquer outro motivo; chegados à rua, não sabiam como aproveitar o tempo. Ao ver aquele triste “espetáculo”, pensei logo nas funestas consequências que poderiam advir daquela atitude coletiva e desconexa.

Voltei ao Colégio e fiquei a estudar no terraço do ginásio. Apareceu o Sr. Almeida! Procurava os alunos do 5º ano para ministrar mais uma aula de Matemática. Perguntou-me se eu sabia por onde andava aquela rapaziada. - Há cerca de meia hora - respondi – uns tantos alunos estavam no salão de estudo! Outros andavam por aí! Mas nenhum aluno do 5º ano se encontrava intramuros! O diretor chamou o perfeito e, sem delongas, sentenciou, decidido e furioso:
- Se algum aluno do 5º ano entrar no Colégio sem ser acompanhado pelo pai ou pelo encarregado de educação, o senhor pegue logo nas suas malas e saia!

Costumava dizer-se: “o Sr. Almeida não brinca em serviço”. Decisão curta e grossa! Alguém levou aquela nova severa e preocupante aos “fugitivos”. Logo, os alunos em pequenos grupos, começaram a abeirar-se dos muros; o Sr. Correia, qual cão de fila, vigiava atentamente tudo e a todos ia transmitindo a ordem irrevogável da direção:
- Só podem entrar acompanhados pelos pais ou encarregados de educação!

Esperaram pela hora do jantar… mas a ordem fatídica não foi alterada. Pensaram que às 22 horas, hora de recolher às camaratas, seriam autorizados a entrar, mesmo que levando alguns açoites. Mas as contas saíram furadas, mais uma vez; o Sr. Almeida continuou implacável. O Karl Eberl, natural de Angola, como atrás foi referido, foi o único autorizado a reentrar no colégio… porque o Sr. Almeida era seu encarregado de educação. Constou que alguns dos desertores dormiram nos bancos do jardim; outros pediram agasalho aos colegas que viviam na vila.

No dia seguinte, pela manhã, os alunos começaram a entrar no Colégio… acompanhados pelos pais que ali se deslocaram para esse fim. Constou na época que apenas o pai do Álvaro Oliveira, natural de Cesar, barafustou (discutiu) seriamente com o Diretor, lamentando e repudiando aquela decisão tão drástica. Tudo acabou bem… sem complicações maiores, principalmente em relação aos exames.


A equipa de “Económicas” – futebol 

No ano letivo de 1959/60 (ou terá sido no ano seguinte?) organizou-se um célebre campeonato interno de futebol entre os alunos do 5º, 6º e 7º ano. Havia três equipas do 5º ano, duas do 6º ano e três do 7º ano. Uma das equipas do 7º ano incluía apenas alunos de Direito, Germânicas e Economia; era sobejamente conhecida como a equipe de “Económicas”. Na verdade éramos económicos (parcos) em qualidade e habilidade mas nós não “economizávamos” os pontapés e pisadelas nos adversários; o lema dos nossos defesas (principalmente) era: “só pode passar um: o jogador ou a bola”; os dois nunca!

No nosso grupo apenas dois “sabiam jogar” à bola: o Ameixieira, bom guarda-redes (o melhor do campeonato), ex-seminarista, mais velho que os outros (já tinha cumprido o serviço militar) e o J.M. Frias Mendes, ex-júnior da Académica e também já tinha cumprido o serviço militar; os restantes elementos da equipa (Armando Figueiredo, Castanheira, Belmiro e havia outro que não recordo o nome) eram apenas os “sarrafeiros, autênticos toscos, rebenta canelas”!

A equipe do 5ºA, a mais temida, era constituída por jovens muito habilidosos, especialmente o Poças que era um malabarista da bola, um “brinca na areia” e dono de um pontapé fortíssimo e normalmente bem colocado. Jogava-se ali uma espécie de futebol de onze (as mesmas regras) mas apenas com cinco ou seis jogadores; o “campo” era a cobertura do ginásio que não comportava mais jogadores. O último jogo daquele campeonato disputadíssimo, ia ser discutido entre o 5º A e “Económicas” e decidia-se ali o vencedor do certame – os campeões colegiais. À equipa de Económicas bastava o empate – tínhamos mais um ponto que eles – mas o 5ºA era um “osso duro de roer”, tremendamente duro; mas nós os rijos, valentes, ousados, corajosos, aguerridos – podem inventar outros atributos dentro desta linha de pensamento – jogávamos com um amor imenso pela nossa camisola e isso fazia diferença.

Mas camisola não havia! Jogávamos de camisa, calças e… botas! No dia aprazado, o nosso goleiro não compareceu – e que falta que ele nos fazia! – e só havia um suplente se jogássemos cinco contra cinco. Decidiu-se que o lateral direito (eu) ocuparia o lugar do Ameixieira. Embora nos bastasse o empate para erguermos a “taça”, a nossa tarefa era enorme, não só pela falta do guardião titular (era o único) mas também porque o adversário merecia todo o nosso respeito – mas não subserviência. Mesmo desfalcados fomos aguentando o jogo sem golos.

A tática escolhida visava economia de esforços: atacavam todos… sem descurar a defesa! Esta tática veio a ser explanada e aplicada no Boavista, pelo Jaime Pacheco: todos ao ataque… cá atrás. Quando já aguardávamos ansiosamente o toque salvador da sineta que marcava o início das aulas (neste caso também o fim do jogo) eis que árbitro (um ladrão desavergonhado, um filho da… mãe dele, subornado, bandido e outros atributos que não cito aqui para não abandalhar, ainda mais, o ambiente) assinalou uma grande penalidade contra a equipa de Económicas… sem respeito algum pela economia (tal como aconteceu por cá em tempos recentes).

Tratava-se, apenas, de um ligeiro toque de “mão na bola” inofensivo, involuntário, sem consequências (a não ser a famigerada grande penalidade)… mas a decisão do árbitro não se alterou. Cumpre informar os hipotéticos leitores, aqui e agora, que nos nossos jogos não havia árbitro – os próprios jogadores, a bem ou a mal, decidiam se era falta ou não; por vezes pedia-se a opinião da assistência. Portanto não houve qualquer insulto ao árbitro… porque não havia! Informo, também que não havia nem grande nem pequena área – decidia-se a olho; o centro do terreno ficava na junta de dilatação do terraço. As balizas não tinham travessão; a altura da baliza variava segundo a altura do goleiro.

Chegou a hora fatídica da marcação do penalti contra a “Economia”; um simples golo naquele momento dava o título ao 5º A. O Poças, o melhor dos adversários, já tinha jogado nos juvenis do Porto, mas foi “emprestado” ao 5º A, ia ser o carrasco. Apavorado, eu estava desamparado naquela baliza que ficava na vedação do lado do quintal do Arq. Gaspar. O Poças chutou a meia altura, com força mas quase à figura. Eu meti o pé direito à bola (o esquerdo servia apenas para caminhar e “pisar” o adversário); para jogar era totalmente cego e inábil) com tal gana e coragem que a bola sobrevoou o “estádio” anichando-se na baliza contrária. Feito inédito!

Na defesa de uma grande penalidade, marcar na baliza do adversário é coisa do outro mundo! Muito se discutiu se o golo era válido; este caso não estava previsto nos alfarrábios da bola… mas à equipa de “Económicas” pouco interessava, se era golo a sério ou não. O empate já era suficiente e, acabado o jogo, já ninguém nos tirava o título de campeões – só o título! Depois de alargada discussão inútil entre os nossos “sábios da bola” concluiu-se que aquele golo, quase fantasmagórico, nunca antes visto, era mesmo válido… porque o “guardião não tocou na bola com a mão”. Foi um acontecimento inédito, invulgar! Mas fomos campeões! Algum de vós já marcou um golo assim? Duvido! (olha a modéstia!) só um predestinado da bola – como eu, claro – podia ser o autor de tal façanha! Lamenta-se que não haja sequer uma fotografia! E a televisão chegou tarde de mais!


A Dr.ª Celina

A professora de inglês e alemão, a Dr.ª Celina era natural da Covilhã, filha de um industrial de lanifícios, era jovem, simpática, boa mestra, acessível e divertida. Naquele ano os finalistas organizaram um sarau; o programa era variado, longo e interessante; preparámos sátiras a alguns professores e não só como convinha. A Dr.ª Celina não escapou, mas ela até colaborou emprestando o seu casaco comprido, muito característico em tons de vermelho e branco (mais aquele do que este) que ela usava durante grande parte do ano. O Castro Lopes (José Manuel) que agora vive no Canadá, muito bem casado com a colega Maria do Céu (Micéu), era o irmão mais velho e de uma série de oito irmãos que frequentaram o Colégio, foi encarregado deste escárnio. Vestiu o casaco emprestado pela professora visada, sentou-se muito à vontade na cadeira atrás da secretária (uma mesa vulgar sem proteção na frente baixa) e voltado para o público iniciou o seu monólogo em inglês “macarrónico”:
- Oh Covilha city! Covilha city! (O Zé espreguiçava-se e bocejava assiduamente) -There is no other city like Covilha!

Aconteceu que o Zé com toda a exuberância dramática e naturalidade esqueceu-se que naquele momento não usava calças e que a secretária permitia que lhe vissem longamente as pernas; estava tão entusiasmado que até mostrou as cuecas. Creio bem que esta amostragem não foi intencional… mas aconteceu! Não fazia parte do programa. A drª Celina, um tanto incrédula, assistia àquela cena com o noivo a seu lado. Constou que ele não teria gostado daquela brincadeira – falta de sensibilidade ou sensibilidade em demasia; os extremos tocam-se! Mas o namoro continuou e cerca de cinco anos mais tarde o então já marido da drª Celina trabalhava em Sever do Vouga numa chamada Experiência Agrícola patrocinada pela Shell. Ela além de continuar a lecionar no COA, creio que dava aulas também no colégio de Sever do Vouga.

Um dia, já em 1966, após a minha chegada da Guiné, encontrei aquela mestra na vila; estava sentada no carro, de porta aberta e os pés assentes no asfalto. Fui logo ao seu encontro e cumprimentei-a com muito respeito, como ela merecia; conversávamos havia uns minutos quando ela admirada, comentou:
- Mas você caminha normalmente!
- E então… não deveria caminhar com normalidade?
- Então… não lhe amputaram uma perna?! Isso foi voz corrente em Oliveira! E não só!

Eu puxei as calças um pouco para cima, exibindo as tíbias e esclareci:
-Como vê, são iguais, são ambas de origem e são minhas há 26 anos.

Ela acrescentou que no COA correra a notícia – agora boato - que me havia sido amputada uma perna devido a ferimentos, em combate, na Guiné. Soube que na mesma época constou – só boato, Graças a Deus – que eu tinha sido morto em combate. Esta inventiva foi da autoria involuntária de uma aluna do COA, natural de Sever do Vouga (irmã da Dirce e da Manuela Bastos). Em Dezembro de 1965 foi amplamente noticiado na rádio e na TV – então canal único – que eu havia sido galardoado com o Prémio Governador da Guiné, por feitos em combate, e em consequência viria passar o Natal a casa com a família. Ela ouviu a notícia, só a parte final, apercebeu-se do meu nome e Guiné; depreendeu logo que, tratando-se daquele “palco” só poderia ser por morte ou – que bom! – No mínimo uma amputação.

No Verão desse ano, encontrei o Arlindo (Escariz) em Espinho. Ao vê-lo gritei pelo seu nome, e caminhei na sua direção. Ele, assustado, começou a recuar e gaguejando, exclamou:
- És tu, pá? Mas… tu não morreste na guerra?!

Assim se desfez mais um boato.


Curto-circuito no internato 

Tirar o corpo da cama às 6h30 da “madrugada” em noites de breu, frio e chuva era um sacrifício enorme. O Sr. Correia entrava esbaforido em cada uma das três camaratas (naquela altura ainda não havia sido construído o ultimo piso de camaratas), acendia as luzes, batia as palmas, acordando todos os alunos.

Um dia, alguém desapertou as lâmpadas de uma camarata; além disso prendeu um cordel entre duas camas. Vendo que não havia luz, apenas naquela camarata, o perfeito entrou decidido no corredor entre as duas fiadas de camas para apertar as lâmpadas; tropeçou no barbante (a armadilha funcionou devidamente), reapertou as lâmpadas e… fez-se luz! Pouco depois, enquanto se barbeava, o sr. Correia comentava furioso:
- Eu magoei-me! Mas se me aleijava…, alguém já teria engolido os dentes da frente!

Se à hora da “alvorada” não havia luz podíamos dormir descansadamente sem que o perfeito nos incomodasse até que fosse possível ler com luz natural. Tornava-se, pois, imperioso provocar a falta de eletricidade, de vez em quando, para que não fossemos obrigados a levantar tão cedo. Um aluno (adivinhem quem!) retirou uma lâmpada incandescente do respetivo suporte, colocou uma moeda de 20 centavos (semelhante à atual 2 cêntimos) sobre a dita lâmpada, enroscou-a cuidadosamente provocando de imediato um curto-circuito (contacto entre os dois polos); o internato ficou às escuras e dormimos até mais tarde.

No internato só havia um quadro elétrico no rés-do-chão, portanto incessível ao perfeito. Isto foi acontecendo com certa frequência e o aventureiro (amigo dos alunos internos) nunca foi “apanhado”.


O tremoço… é uma arma! 

Como atrás se afirmou, no COA, naquele tempo, havia apenas uma turma por cada ano; no meu 5º ano, creio que pela primeira vez, fomos divididos em duas turmas mas, se bem me recordo, tal não aconteceu em todas as disciplinas. A Drª Maria José Mourão (irmã de um aluno) era professora de inglês de uma das turmas, a minha. Ao sábado, segundo o horário, tínhamos inglês às 9:00 horas. Ela combinou com a sua turma que ao sábado (quase todos) teríamos prova escrita das 8:00 horas às 9:50 horas.

Para os alunos internos não havia complicação; os externos teriam de fazer de tudo para chegar mais cedo ao Colégio, nesse dia. Ninguém arranjou desculpas incoerentes (esfarrapadas) até porque a professora, excelente docente, ótima educadora, não cobrava essa hora nem aos alunos nem ao Colégio. Imagina isto nos tempos que correm! Impossível! Às 8 horas, os internos comunicavam ao perfeito – o velho Correia – que tínhamos ponto de inglês e seguiam para a aula.

De vez em quando, havia um sábado em que não havia prova escrita, mas os internos por força do hábito, procediam do mesmo modo. Como o portão estava aberto até às 9 horas, nesses dias, os alunos aproveitavam para mudar de ares – lavar os lhos – foram dar uma volta pela vila. Alguns houveram por bem dar uma volta pelo mercado (praça) que, tal como hoje, ficava no topo norte do jardim central da povoação, ou praça José da Costa (creio que esse nome é recente). Um desses alunos comprou 50 centavos de tremoços – uma quantidade maluca!... um saco de tremoços e entretanto regressou ao Colégio.

No último tempo da manhã desse sábado, o 5º ano – turma única – tínhamos aula de Português, disciplina ministrada pelo Dr. Maurício; era o 1º ano que lecionava no COA. No dia da apresentação a esta turma, o Dr. Maurício entre outras coisas correntes (generalidades e culatras), informou, mais ou menos nestes termos:
- “Tenham cautela comigo, porque eu sou mau! O meu próprio nome diz que eu sou mau!”

Refastelado na sua carteira, ao lado do Escariz, na última fila, junto à janela com vista para o quintal, um aluno comentou divertidamente: - o “gajo” (desculpem o calão) chama-se Maurício? Não pode ser outro o seu nome? E não é que acertei? Retomemos o fio da meada!

Nesta altura do ano, o Dr. Maurício ensinava-nos a interpretar “Os Lusíadas”; nós entendíamos que ele inventava uns tantos complementos circunstanciais. Nós até “ajudávamos” nesta ideia, publicitando que ele teria dito que, na expressão: “a terra é lavrada pela charrua”, este utensílio era o “complemento circunstancial de ferramenta” – brincadeira nossa – que foi utilizada no sarau como sendo da sua autoria – em verdade não aconteceu! Reconheço, apesar de tudo, que se ainda sei interpretar cabalmente aquela obra-prima da nossa Literatura, e se adoro lê-la, porque amo o que é genuinamente português, ao Dr. Maurício o devo!

Quando parti para a Guiné, para uma comissão de dois anos, levei comigo apenas dois dicionários de alemão – porque me correspondia com uma garota alemã – e Os Lusíadas . durante anos, esta obra insigne foi o meu livro de cabeceira.

De pé, ao lado da secretária, o Dr. Maurício, ensinava-nos a interpretar Os Lusíadas. Foi quando um dos alunos, o tal que comprou os tremoços, começou a bombardear as alunas, disparando (comprimindo) aqueles projéteis. Depois de vários disparos… houve azar! Um dos tremoços atingiu o professor na cabeça (má… ou boa pontaria?). O tremoço de seguida caiu para o livro que o professor segurava na mão, rolou, depois sobre a secretária até cair desamparado no estrado – tremoço endiabrado!

O Dr. Maurício apenas terá comentado: “no fim da lição conversamos!”

O prevaricador esperou que todos os alunos saíssem para, a sós, se desculpar perante o mestre. Aproximou-se cabisbaixo, pesaroso (pelo menos na aparência) e apresentou as suas desculpas “sinceras” pelo sucedido. Alegou que não era sua intenção agredi-lo; apenas pretendia alvejar, com respeito, as alunas e sem qualquer indício de maldade. O professor respondeu secamente: “ é algo que não posso desculpar! Tenho de participar a ocorrência ao Sr. Almeida”. - “Se não pode desculpar” – respondeu o aluno – “nada mais tenho a alegar em minha defesa; já cumpri a minha obrigação”.

Na verdade, ele cumpriu com a promessa, informado o diretor. O Sr. Almeida, encontrando o faltoso no corredor de acesso à secretaria, perguntou-lhe pelo sucedido. - Eu já expliquei ao Dr. Maurício como tudo aconteceu e apresentei as minhas desculpas sinceras – respondeu o aluno. Decisão imediata do sr. António Almeida:
-Isso não é suficiente; amanhã, domingo, não sais do Colégio!

Acontece que o aluno já estava autorizado a ir passar o fim-de-semana à “santa terrinha”, não sofrendo assim, qualquer punição. Claro que o Sr. Almeida não se deve ter apercebido daquela situação; caso contrário teria agido de outro modo. Quem saberá como?!

O Dr. Maurício… chegou, viu e venceu! Mal chegou a Oliveira, encontrou uma “jovem” mais ou menos da sua idade (talvez fossem ambos quarentões ou perto disso) e à primeira vista… apaixonaram-se mutuamente, e juntaram o útil ao agradável. Ela era filha do Dr. Tomás. Chamava-se (chama-se ainda Graças a Deus e ao bom tratamento que o marido lhe dá) Mariazinha. Era giro vê-los no “picadeiro”; ela, creio que mais alta, colocava o braço esquerdo sobre os ombros do Dr. Maurício, ele poisava, acintosamente, a sua mão sobre o traseiro bastante saliente da namorada; assim andavam às voltas no jardim para gáudio da juventude académica. As idades não aconselhavam muitas demoras e, a breve trecho, casaram; da união nasceram duas “Mariazinhas”. Ainda vivem, felizes e contentes, na cidade de Oliveira de Azeméis.

O Dr. Maurício era também professor de filosofia no 6º e 7º anos. Em meu modesto entender as aulas do 6º ano (daquela disciplina) eram uma autêntica seca. Eu nunca consegui entender absolutamente nada daquela matéria; a culpa seria por certo muito mais minha do que do mestre – até porque os outros alunos aprenderam aquela matéria que para mim era impenetrável… aquela psicologia para mim… era o fim da picada.

Naquele ano eu entrei no colégio quase no fim de Outubro; os colegas já estavam enfronhados na matéria. Eu bem quero alijar o meu fardo mas não consigo. O Dr. Gandra, porém, entre a escrita e a oral, durante uns noventa minutos explicou-me um capítulo da matéria do 6º ano e eu compreendi e assimilei perfeitamente aquela parte da matéria. Com isso safei-me na oral como narrarei mais à frente. Entrei bem na matéria do 7º ano e aprendi aquilo quase na perfeição.

Fazia parte do programa – do 7º ano – um capítulo que tratava do objeto, conceito e método de algumas ciências, entre as quais História. O Dr. Gandra, enquanto mestre de História, ensinou-nos esse tema com tal minúcia e precisão que nós aprendemos muito para além do que era exigido no programa; e nós, alunos de História sabíamos aquele tema na ponta da língua. Um dia, o Dr. Maurício fez-me umas perguntas para o meu lugar (sem abandonar a minha carteira); à 2ª pergunta ele ordenou-me que falasse sobre: objeto, conceito e método da História. Àquela data, eu ainda não dominava aquele tema, na perfeição, como o Dr. Gandra nos ensinou; mas tinha os apontamentos em cima da carteira. Pouco falei do que constava no compêndio; segui o que tinha no rascunho. O Dr. Maurício deve ter-se apercebido (com certeza, mas não se manifestou), que eu olhava para o livro, mas o que eu ia transmitindo não vinha no compêndio. De soslaio eu ia lendo os tópicos no meu manuscrito e tudo saiu pelo melhor. Tocou a sineta, impondo o fim da aula; o Dr. Maurício comentou:
 - Se todos os alunos estudassem como o Belmiro, teríamos aqui uma turma excelente! Gostei!

Mal ele sabia que eu ia lendo os meus apontamentos! Chegou a hora do exame! Na escrita, não acertei uma única resposta sobre a matéria do 6º ano; só respondi a uma, lançando ao ar duas bolinhas de papel. Errei! Daquela vez, a sorte não protegeu o ignorante. Passei na escrita com nove – uma boa nota, tendo em conta que só respondi à matéria do 7º ano. Na oral safei-me com o 10 da ordem, porque já sabia um capítulo do 6º ano (apenas um), o tal que o Dr. Gandra me ensinou; foi precisamente esse tema que o Dr. José Bento escolheu para me metralhar. Na matéria do 7º ano eu estava à vontade!

Desta vez a sorte protegeu-me! Mais um problema resolvido!


A Guerra das Laranjas 
(Não confundir com a guerra luso-espanhola – invasão do Alentejo que culminou com a perda de Olivença). 

No quintal da Direção havia uma laranjeira que produzia umas laranjas excelentes (querias que fossem peras!?) que, quando surripiadas, eram ainda mais deliciosas. No ano em que o internato masculino foi aumentado – construção de mais um piso – os alunos internos passaram a dormir, temporariamente no ginásio; assim encontrávamo-nos mais perto do quintal. Alguns alunos, isoladamente ou em grupo, babavam-se ao ver tantas laranjas, ali tão perto a enfeitar a laranjeira que fora plantada no interior do galinheiro (ou este foi construído em redor da árvore).

De vez em quando, pela calada da noite, alguém aliviava aquela árvore que, na parte voltada para o quintal da Dª Dores, tinha imensa fruta a pedir carinhosamente para ser saboreada. O Sr. Almeida apercebendo-se que a quantidade de laranjas diminuía a olhos vistos, decidiu agir em defesa da fruta. Entrou no refeitório, à hora do almoço, e informou-nos que alguém andava a abarbatar-se com as suas apetitosas laranjas, e acrescentou:
- “Parto do princípio que não são os alunos a cometer tal asneira. Por isso, se eu me aperceber que alguém anda nas minhas laranjas, eu disparo sobre os larápios, sem dó nem piedade; se ouvirem alguém gemer ou gritar já sabem do que se trata!”

Numa das noites seguintes, o Leonel Castro Nunes e eu tomámos a decisão corajosa de enfrentar a ameaça irada do diretor. Partimos do princípio (credível) que ele sabia perfeitamente que os assaltantes eram mesmo os alunos e não ousaria disparar sobre nós; por outro lado, ele sabia que os chumbos danificariam não só as laranjas mas também a própria árvore.

Já tarde, saímos do ginásio, subimos o muro que separava os dois quintais… a lua iluminava tudo! E as laranjas estavam ao alcance das nossas mãos gulosas. Estávamos cuidadosamente a encher a sacola, quando ouvimos abrir uma janela, de guilhotina, nas instalações habitadas pela Direção. Nós pendurámo-nos nos ferros da latada da Dª Dores e encostámo-nos ao muro – uma boa proteção contra os chumbos. Nisto o Sr. Almeida perguntou, de forma bem audível:
-“Quem anda aí?”

O Sr. Almeida fez fogo – apenas um disparo – para o ar (não ouvimos o ruído do chumbo a bater no muro ou na árvore), fechou a janela e foi dormir. Não acreditávamos que ele se tivesse apercebido que alguém lhe surripiava laranjas, pois nós agimos no mais profundo silêncio; naquele momento, ele teria chegado do café (ele frequentava a chamada “Leitaria”, mais ou menos em frente ao café Guarani, hoje Hotel Dighton em memória da lápide com o mesmo nome), e lembrou-se de cumprir o aviso anunciado aos alunos.

Lestos, acabámos de encher o alforge e seguimos velozmente para a camarata. Tivemos fruta (não confundir com a fruta do PC) para vários dias. Laranjas deliciosas, divinais!
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10688: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (29): Colégio de Oliveira de Azeméis (Belmiro Tavares)

1 comentário:

admor disse...

Caro Belmiro Tavares,
Não há dúvida que ao ler estes teus relatos, uma pessoa tem de reviver os nossos tempos de infância e adolescência, quando Portugal ainda não era um país europeu, não tinha práticamente estradas e nem se ouvia sequer falar em auto-estradas. Enfim éramos uns terceiro-mundistas quaisquer, que tínhamos o Banco de Portugal a abarrotar de ouro, que mais tarde os europeístas convictos estouraram a maior parte.
Mas voltando ao tema, eu felizmente nunca passei por colégio interno nenhum a única experiência mais parecida com essa situação foi a tropa, só que nessa altura já era um rapaz de 22 anos,mas que teve de engolir todos os desafôros que tinha repudiado até aqui. E apesar de termos de trabalhar desde tenra idade uns aos 10, outros aos 12 e outros aos 14 anos para ajudarmos os pais (neste caso acho que era mais as mães) nas despesas da casa, mesmo assim acho que saímos beneficiados em relação áqueles que tiveram de passar por colégios internos.
Nunca tinha comentado nenhum dos teus escritos anteriores, mas não foi por não os ter lido e muito menos por não ter gostado, foi só uma questão de oportunidade.
Um grande abraço.
Adriano Moreira