domingo, 24 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11146: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (26): 27.º episódio: Memórias avulsas (8): Alto e pára a guerra

1. O nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), em mensagem do dia 5 de Fevereiro de 2013, enviou-nos mais esta história para publicar na sua série "Os melhores 40 meses da minha vida".


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA (26)

GUINÉ 65/67 - MEMÓRIAS AVULSAS (8)

ALTO E PÁRA A GUERRA

A partir de 17/5/1966, primeira data trágica para a CCAÇ 1422, ficou esta como que hibernada durante um mês. As ordens vindas do Comando do Batalhão sediado em Bula e não do nosso 1858, que andava lá por baixo em Catió, foram bem claras: nada de saídas para o mato; dediquem-se a terminar a construção do aquartelamento (havia sido iniciada pela CCAÇ 1421); patrulhamentos só de protecção às colunas de abastecimentos - mas não passem para lá dos carreiros - local a 3 Km na "estrada" para Mansabá e onde o horror se havia dado.

Não queria dizer contudo, que não fossem destacadas uma ou duas Secções para acompanhar grupos que nos viessem ajudar a pacificar os campos circundantes, que foi o que se deu, como descrito na anterior crónica "Inventámos o Santo António".

O acontecimento que narramos abaixo, passou-se precisamente no regresso desse passeio pedreste. Já com a bolanha cheia pela maré e em local desabrigado, e como tal propício a vários perigos dada a exposição, atravessou-se à minha frente, um não menos perigoso individuo do sexo masculino (como mais tarde confirmámos), grande... escamoso e a quem chamavam "o crocodilo".

Ele ia... e roçava-se pelo meu belo camuflado à prova d'água; ele vinha... de boca aberta e reincidia no roçar-se; e repetiu... repetiu... repetiu, até que me enervei e pedi à rapaziada amigalhaça para que me segurassem os canhões, e fui-me à fera, desarmado e tudo e nem faca de mato usei, creiam.

Só lhes disse, ao voluntariar-me, heroicamente, confesso:
-Este gajo tenciona morder-me, coisa de que não gosto, e assim sendo a primeira dentadinha serei eu a dar.

Qual intrépido acagaçado, apanhei o anfíbio pela lombada e rodopiámos nas sujas e lamacentas águas... ora eu por baixo, ora ele por cima (sic), mas que venci a besta reptiliana... lá isso... venci e os aplausos foram a demonstração para quem tivera as coragem e valentia, para enfrentar tão temível e bera sáurio, quiçá com risco da minha própria vida... disse.

O bicharoco era enorme, prái uns 60 centímetros e ainda mamava.
Considerado foi, prisioneiro de guerra e para além dum burro, era o meu segundo troféu.

Aberta uma piscina ao lado da minha suite, ali o prantei e todos o mimámos, dando-lhe também do leite condensado que fazia parte das refeições matinais, usando um biberão com tetina apensa no bocal da garrafa, evidentemente. Viveu apaparicado até ao fim da época das chuvas, desaparecendo depois vitimado sabe-se lá do porquê e foi com tristeza que o esventrei, salguei e sequei ao sol e hoje ainda me acompanha transformado que está em cinto.

Com poucos afazeres a não ser os triviais e dentro daquela languidez com que agora vivíamos, entretivémo-nos também a prestar atenção à vida selvagem dali.
Tanto assim que acolhemos umas cabras, conhecidas por "isso do mato" e que seriam resultantes do cruzamento de gazelas, com bodes compíscuos.

Tal miscibilidade deu origem a uns belos assados em forno de lenha, ou em brasas de lume, não sem que antes marinassem 12 horas e fossem esfregadas com manga de piri-piri e chaibéu.

Com as fressuras, criámos um prato típico conhecido lá na zona, por "chanfana à Saliquinhedim". E para que aos outros "comíveis" nada parecesse mal, também lhes permitíamos que convivessem com as nossas frigideiras e vai daí, tadinhos dos pombos verdes... das cinzentas rolas... dos coelhitos, quando se atreviam a passar pelo ponto de mira de qualquer vulgar G3.

Ficaria mal não falar dos macacões , qu'os havia de várias cores e tamanhos. Os mais pequeninos viviam agarrados às mães o que significava serem presa fácil para os predadores humanos que nelas atiravam para os surripiar. Depois era só domesticá-los o que acontecia se levassem porrada.
Vi e nem acreditava, mas na verdade o estilo era mesmo esse do "quanto mais me bates mais gosto de ti".

Dos "crocodis" esqueci-me de mencionar que os seus bifes são um petisco de se lhe tirar o chapéu, Provei em Bissorã e comi dezenas deles em Farim, onde os caçavam diariamente, mesmo ali às bordas do rio, mais propriamente para lhes aproveitarem as peles que alguns de nós, e ao regressar, trazíamos para ofertar às queridas. Por mim falo, que trouxe uma com 5 metros que me custou mil e quinhentos pesos, ou seja o equivalente a trinta garrafas de "Cavalo Branco" ou a quinze serviços de café casquinha d'ovo.

(continua)

OBS: - A foto retirada da internete para ilustrar a estória do nosso camarada Veríssimo Ferreira, não deslustra de modo nenhum a prova da sua coragem e valentia aqui relatada.
O editor
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 3 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11047: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (25): 26.º episódio: Memórias avulsas (7): 13 de Junho de 1966, inventámos o Santo António

11 comentários:

Tony Borie disse...

Olá Veríssimo.
Um texto agradável de ler, e que na realidade acontecia a quem andava por aquelas bolanhas, que às vezes não eram bolanhas, eram braços de rios e pantanos.
Um abraço, Tony Borie.

Bispo1419 disse...

Aí, "veríssimo" valentão! (coitadinho do croco...!)

Um abraço
Manuel Joaquim

Hélder Valério disse...

Caro camarada Veríssimo

Quem te ler, apenas por esta memória, compreende logo por que foram 'os melhores 40 meses da tua vida'....

Festim, atrás de festim... aquilo eram 'pombos verdes', aquilo eram 'rolas', aquilo eram 'cabras do mato, aquilo eram 'bifes de crocodilo', aquilo eram 'gazelas', enfim, de fazer concorrência a algum destes modernos restaurantes de 'fondue'...

Quanto à tua heróica luta contra o crocodilo-bebé apenas te posso dizer que tiveste sorte pois nessa época ainda vinha longe a 'defesa dos animais', caso contrário eras capaz de ter um processo.

Abraço
Hélder S.

JD disse...

Ói Veríssimo,
Devo alertar-te para a qualidade da chanfana que preparo, tanto a lenha, como a gaz. Tão boa como a minha, ainda admito, melhor é que não. E com vinho da casta baga. Pena que na Guiné não me tivesse dado a manobras culinárias, ou a malta teria reclamado a revolução com antecedência.
Mais tarde, estive num acampamento onde ainda se criam crocos para exportação, separados em pequenos tanques, conforme os tamanhos, mas nunca excedem o metro e meio, que é o ideal para bifes.
Lá, no lindo restaurante e esplanada, comi bife, mas não sei a proveniência, e agora não me interessa.
A propósito de comezaina e paródia para recordar, já estás informado sobre o encontro da Magnífica Tabanca da Linha, no dia 7?
Parabéns caçador
JD

Anónimo disse...

Caro JD, já me informaram, tudo indica que estarei por lá, mas só 4ª à noite terei a certeza. Era meu gosto conhecer-vos e espero não faltar. Um abraço
De Veríssimo Ferreira

Anónimo disse...

Camarada Helder Valério, Qu'ais protecção qu'ais quê? se nem a nós ninguém protegia... Alturas houve de tanta raiva, qu'até comia tais protectores, ai nanas... Um abraço do
Veríssimo Ferreira

Anónimo disse...

Amigo Manuel Joaquim, obrigado e sei que não é para me gabar, mas na realidade, foi um acto impensável, aquele combate com um tão grande bicharoco, mas qu'hei-de fazer...vi-o com fome, tratei dele, e que bela caldeirada deu no fim. Abraços do
Veríssimo Ferreira

Anónimo disse...

Amigo Tony. Andei por aqui a investigar e julgo que ainda nos encontrámos em Mansoa. Obrigado por gostares, mas agora tenho de entrar na parte séria da coisa e não me está a sair nada bem. Abraço do
Veríssimo Ferreira

Arménio Estorninho disse...

Caro Camarigo Veríssimo Ferreira, Saudações.

Depois de ponderar, somente tenho a dizer que gostei da narração de uma fábula muito sugestiva e da qual realço que comeste dezenas de crocodilos. Foi obra!...

Parabéns pela imaginação
Arménio Estorninho



Omis Syrev Ferreira disse...

Camarigo Arménio Estorninho.Pobre será sempre pobre e come tudo o que mexe. A fome também ajuda à imaginação e na verdade já andávamos fartos de tanta dobrada com feijão. Um abraço do
Veríssimo Ferreira

Omis Syrev Ferreira disse...

Camarigo Arménio Estorninho.Pobre será sempre pobre e come tudo o que mexe. A fome também ajuda à imaginação e na verdade já andávamos fartos de tanta dobrada com feijão. Um abraço do
Veríssimo Ferreira