domingo, 3 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11183: Blogpoesia (323): É um pássaro, diz ela. De areia. Ferido de morte (Luís Graça)




Lourinhã > Praia de Vale de Frades > 8 de Junho de 2007 > É um pássaro, diz ela. De areia. Ferido de morte.

Foto: © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados.

Para o Idálio Reis e os bravos da CCAÇ 2317 

(Gandembel/Ponte Balana, 1968/69), 
com um Alfa Bravo

É um pássaro.
De areia.
Diz ela.
Ferido de morte.
Uma jurássica ave de arribação
que te veio anunciar a peste.

Peste branca. Preta. Vermelha.
Vírus do Nilo.
Dengue.
Al Qaeda.
O tchador.
A burkha.
A mulher dengosa.
A expulsão do paraíso.
A língua viperina.
O caduceu do Asclépio.
Febre hemorrágica.
Sida.

Pena capital.
Terror nuclear.
Pandemia. Amarela.
Bílis negra.
Os neutrões.
A língua azul dos camelos.
O vírus influenza
dos gansos selvagens.

A danação eterna.
A gripe das gaivotas-ratazanas.
A implosão dos neurónios.
O buraco do ozono.
A febre da carraça.
Malária, paludismo, sezonismo.
A doença de Creutzfeldt-Jakob.
O mal de viver.

O mal de amores.
O morbo gálico.
A vingança das índias
que envenenaram o sangue dos espanhóis.
Os vectores de todas doenças emergentes e reemergentes.
As metástases pancreátricas.
O pão transgénico.

As setas pragas do Egipto.
A implosão do milenar Portugal dos pequeninos.

O triunfo do Goldman Sachs Sachs Sachs,
o homem de ouro
que está acima de Deus
e de todas as suas criaturas.

A estátua jazente de um deus alado
que morreu nas dunas.
Diz ele.
Por fadiga. 

Burn-out
Desidratação.
Imprecação.
Hipotermia.
O irã que largou o poilão
e morreu de infinita tristeza.
Vidrado.
Varado por um tiro de Kalash.

Puro pau sangue exangue.
Triste bissilão dda diáspora,
sem raízes.
Ou então um pobre náufrago da costa de ouro, marfim e prata.
A escassos metros da meta.
À entrada do paraíso.
Da reserva ecológica.
Dos abrigos à prova de canhão sem recuo
da Europa imaginada.
Blindada.

Cega.
Surda.
E muda.

Terá atravessado os campos de golfe magnéticos
que outrora eram verdes.
Diz ela.
Na rota das Canárias e do Saará,
segue sempre em frente
e encontrarás o paraíso.

Do ouro, do incenso e da mirra.
Já.
Ou encontravas.

Miragem,
diz ele.

Aqui jaz.
Agora.
Na areia da praia.
O soldado.
Desconhecido.
Número tal.
Que terá vindo de Gandembel,
sobrevoando Ponte Balana.
Sem senha
nem contra-senha,
nem ração de combate,

nem número mecanográfico.
Nem requisição de transporte.
Nem visto
ou simples carta de chamada
da Pátria.
Nem sequer muda de roupa
para o além.

Nem sequer a última carta da namorada.
Simples soldado raso,

morto por uma roquetada.

O puro terror dos fornilhos,
diz ele.
A cilada.
A emboscada.
As pirogas à deriva.
A guerra elevada à categoria de arte
do predador.
Generalíssimo predador.
As tripas de fora
de um deus-menino.
O pássaro.
De fogo.
Desintegrado.

Oh! Gandembel das morteiradas,
dos abrigos de madeira
onde nós, pobres soldados,
imitamos a toupeira
.
-diz ele.


In memoriam.
A morte, sem legenda,
a asfixia, sem escape,
a exaustão, sem honra,

a luta sem glória nem compaixão,
os nervos de aço esfrangalhados
do soldado-toupeira,
o envenenamento das fontes de água
que corria doce e triste,
o triste rio Balana,
triste como todos os rios da Guiné,
o céu trespassado por setas envenenadas,

as chuvas ácidas,
o napalm,

o jato do povo.
o strela,
o RPG-Sete.

O pássaro de areia, diz ela, 

outra vez.
- Quem vem aí ?
Cala-se o dari no Cantanhez. 

Imobiliza-se o jagudi de Pirada.
Esconde-se a gazela na orla da bolanha de Ponta Coli.

....Para se poder ouvir o tiro tenso do voo
da ave mortal da madrugada.

______________

Nota do editor

Último poste da série > 26 de fevereiro de 2013> Guiné 63/74 - P11160: Blogpoesia (322): Não sou nada, não sou ninguém (Ernesto Duarte)

5 comentários:

Luís Graça disse...

... Amigos, lembram-se das nossas "crises palúdicas" ?... Pois é, é o que faz estar de "molho", com gripe desde quinta-feira... Já devia ter juízo e seguido o conselho do meu médico...e tomar a vacina contra a gripe sazonal...

Felizmente que há mar e mar, há ir e voltar!... Mas a gente só se lembra da saúde quando sente a falta dela!...

Torcato Mendonca disse...

Pois o poema dizia algo. Era poema de desagrado, de inquietação...

Agora vejo que é de aborrecimento, poema a afugentar maleita...

As melhoras, caro Luís Graça e cuidado com "as" mal curadas...a vacina não evita tudo; ajuda um pouco e suaviza o ataque.

Ab, T.

José Botelho Colaço disse...

Luís como se diz:De Santa Bárbara quando faz trovões.
Rápidas melhoras.Um abraço.

Henrique Cerqueira disse...

Luís Graça
És mesmo um fotógrafo mão cheia.
Conseguiste através de um desperdício que possivelmente deu á praia transformar em poesia.
Este desperdício é um resto de um big-bag e utilizaste a pega para parecer uma ave isótica.Parabéns consegues ver poesia em lixo ambiental.
Um abraço
Henrique Cerqueira

Luís Graça disse...

Obrigado, amigos... Mas lá tive que ficar sozinho em casa... este fim de semana.

Quanto à foto e o poema, é verdade, são um resultado da "economia do lixo" em que vivemos... (ou no "lixo da economia")...

Há tempos tirei uma foto a um mural, onde alguém escreveu (cito de cor):

"O homem descobriu o caminho para a lua; só não descobriu ainda o destino a dar ao lixo que produz"...

Não tenho dias, nem horas, nem sequer lugar, para escrever textos destes... Preciso de ser "picado"... Enfim, tenho que estar "conetado"... Começo sempre por um "manuscrito"... que depois que desenvolvido no PC...

Habitualmente ando com a máquina fotigríafica a tiracolo, mesmo na praia, e o bloco de notas no bolso... Enfim, cada um tem direito à sua loucura saudável... Tenho um medo que pelo da saúde louca...