FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS
4 - K3, Maio de 1966 - Um dia de serviço à água
Aquela manhã nascera chuvosa, tal e qual estivera a noite que passei deitado na mata emboscando.
Chegara há pouco ao bedroom, dormira uma hora, mas ergui-me do leito e os pés ficaram logo em água, que por acaso ainda não molhava o colchão de suaves penas.
Peguei nos chinelos de Macau, usados habitualmente nos pés... pois então, trouxe-os na mão porém e até à saída da suite, vim devagar e lentamente para não acordar a minha Secção de Morteiros 60.
Cinco metros e trinta depois e já na rua propriamente dita, escorreguei precisamente no local onde me encontro na foto em anexo e tirada uns dias antes para publicidade turística e lá ficou a gabardina com que dormira, cheia de avermelhada lama.
Reparem: eu sou aquele tipo elegante bem parecido e risonho, que está com o pezinho apoiado, mão direita na cintura, assim estilo varina. Notem também o nº 1421 no chão, que eles sim, (CCAÇ 1421) é que iniciaram a construção do hotel subterrâneo.
Resort do K3 - Veríssimo Ferreira em primeiro plano junto à entrada do seu bedroom
Ia para bater à porta do bar, após ter descido dez degraus, só que estava já aberta e afinal eu não era o único madrugador.
Tomei o petit-déjeuner composto por sopas de pão duro com açúcar por riba mais dois ovos inteiros, fora a casca, e de galinha pedrês, tudo ensopado depois pela cerveja preta de 6dcl, que lhe verti dentro.
Esta era a minha costumada dieta e o encarregado barista, bastava ver-me que logo disponibilizava os ingredientes atrás referidos, para que eu sorvesse com a ajuda duma colher de prata, aquela fugaz e simples refeição matinal de todas as manhãs ao amanhecer.
Lá fora notava-se a rapaziada acordando, qu'o novo dia surgia.
Hoje estava eu de serviço à água, que é como quem diz, lá iria com mais oito ou nove voluntários escolhidos, até Farim, de Unimog repleto de bidons, garrafões e tudo o que mais houvesse, para os encher na fonte.
Até nem era uma operação difícil, pois que enquanto isso, aproveitávamos para nos revezarmos e para ali mesmo ao lado petiscarmos.
Cada qual levava alguns dos poucos morfes sobrantes ainda da remessa que familiares enviaram e para além disso, o taberneiro libanês também vendia alguns razoáveis produtos para as, comezaina e bebezaina.
A tarefa da recolha aquífera terminava três viagens após o início, o que resultava mais ou menos até aí pró meio-dia, hora mesmo boa para deglutir o almoço e o prato do dia era bem bom: o já célebre feijão com dobrada liofilizada à chef.
A distancia do aquartelamento até à jangada que nos passava para a banda di lá, era precisamente de três quilómetros (daí o nome K3)... a estrada com mais do que menos buracos... tudo capinado à volta... vistas largas... "précurávamos" as minas picando só na primeira passagem, já que depois haviam sempre patrulhas de dois ou três devidamente de braço dado com as acompanhantes de luxo, as G3.
A rapaziada ia ao rio banhar-se e pescar. Banhar-se mas só depois de atirar uma ou duas granadas para afugentar os enormes crocodilos que por ali andavam e que eram o sustento de especializados caçadores.
Estes, qu'até, ao apanhar os bicharocos, choravam lágrimas de pescador.
Liquidá-los não era fácil pois exigia a perícia de lhes fazer entrar uma bala entre os olhos, ou em luta corpo a corpo, espetar-lhes uma faca assim como aquela que usávamos lá no meu Alentejo para capar grilos, mas muito maior e no coração.
Vendiam a carne e o bife tenrinho era bestial; o coração feito guisado ou à chanfana não lhe ficava a dever nada.
Negociavam também a pele do monstro, depois de seca;
Monstro que crescia apanhando sol, debaixo do olhar atento da mamã e que nascera dum ovo pequenino;
Pele seca que terminava os seus dias nas montras dos estabelecimentos de malas, sapatos e cintos.
Tal como ontem era... hoje também esse será o fim de todos os mauzões, que por aí andam, só que a estes não se lhes compra a pele, reza-se por ela.
PROFUNDO ESTE FINAL, não é?
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 24 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12336: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (3): 1966, ano da construção do primeiro restaurante do K3
2 comentários:
Caro Veríssimo
Desta vez as tuas memórias retratam um 'fresco' sobre como era uma parte da vida de um 'operacional'...
Gostei de ler, pois gosto de ver assim em letra de forma e em discurso directo as vivências dos camaradas que estiveram 'no mato'.
Disseste (já li por aí...) que tens dúvidas sobre se estas coisas interessam a alguém da actual juventude, se vale a pena relatá-las.
Não tenhas. É muito provável que isso possa ter alguma indiferença, desinteresse ou até mesmo estranheza por parte da maioria mas nem que seja um (ou uma) que leia e que compreenda já vale a pena. Deixar isto como registo para 'memória futura' é mais do que uma simples revisitação da memória pessoal, é um imperativo, um dever.
Ninguém pode dizer que 'não sabia' que 'nunca ouvi falar', 'nunca me disseram nada', pois os problemas que os hão-de afligir podem ter respostas nestas nossas recordações.
Passar horas à chuva, deitado na lama, dormir pouco e mal, quase dentro de água, comer as refeições que descreveste, encontrar motivação e recompensa em coisas tão comesinhas e estranhas como um banho com crocodilos como vizinhança ou uma 'ida à água', são coisas que hoje em dia 'não cabe na cabeça de ninguém' mas a verdade fica aqui plasmada e 'quem quiser ver que veja'.
Abraço
Hélder S.
Ora vivam os amigos!
Não sei se o final foi realmente profundo... até porque ainda não houve um final, essa... bicheza ainda não foi exterminada. Persiste inimputável.
De resto, junto-me ao sr Helder, quando se refere a memória futura.
Uma ocasião, na margem direita do Corubal, o Foxtrot e outro grupo que não identifico (já passaram tantos anos, que o desgaste na memória é quase inevitável), quando fui surpreendido com uma rajada, e um corropio de tropa.
Interrompi os meus preparos para uma sonéca caliente e retemperadora, e deparei com um militar todo nervosos a recarregar a arma. A entrar na água distinguia-se um "hipó", que deixou uma mancha de sangue a flutuar antes de submergir e desaparecer.
O que é que foi? perguntei, mas não obtive resposta. O rapaz estava atrapalhado com a visão do monstro que, em má hora, nós fomos perturbar.
Eu tive o azar de não ter frequentado os hotéis da cadeia subterrânea a que te referes, pois com excepção de curtas estadias em Buruntuma, Canquelifé, e (talvez) Copá, sempre me recusei a entrar nesses luxuosos recantos onde se cruzavam as melhores combinações aromáticas.
Mas na pensão estrelar, aí foram muitas as "naites"... e boas!
Abraços fraternos
JD
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